Música e Artes / Projeto História / 2011

O universo das obras e manifestações artísticas e, nele, a arte dos sons, tem recebido atenção crescente dos historiadores e historiadoras a fim de desvelar os vários elementos que constituem culturas híbridas, culturas hegemônicas, como enfatizava Raymond Williams, modos determinados de viver, estruturas de sentimentos particulares e os processos infinitos de objetivação criativa nas experiências vividas que apontam para engates entre passado e presente e que remetem às questões humano-societárias. A arte tem a potencialidade de revelar os determinantes sociais que situam destinos individuais e criticam formas sociais de controle e agenciamentos humanos. Está claro que a esfera da arte em sua processualidade histórica, em especial no mundo da modernidade, alcançou uma autonomia estética que, muitas vezes, opõem a obra produzida às posições políticas dos criadores. O que não contradiz, de forma alguma, que as obras de arte possam simplesmente flutuar sobre a vida cotidiana sem ter quaisquer condicionamentos histórico-culturais. Não se trata de absolutizar o seu âmbito, mas sim de recusar uma perspectiva utilitarista, pragmática, e por que não referir o seu desfibramento, concepção e prática que mutila a obra de arte, segundo seu modelo redutor e mecanicista, que dilui o específico do estético e a função social da arte, tornando-a um transmissor politicista, como mero reflexo passivo de uma dada situação social. Isto não significa a anulação do partidarismo da arte, mas a recusa de uma arte impregnada dos contornos da política. Lukács fez desse combate um bom combate. As orientações do fenômeno do stalinismo, os equívocos do proletkult simplesmente, em sua época, vitimizaram artistas e seus produtos.

O fato de as obras de arte – sejam em suas expressões mais grandiosas, sejam daquelas menores ou mesmo sem qualquer aferição de autenticidade – ficarem submetidas à lógica do grande capital, às necessidades do mercado, não implica que a arte desapareça do horizonte. “Mas o que faz com que a arte seja autêntica? O que constitui a liberdade do verdadeiro artista? […] André Gide constatou certa feita que toda literatura autêntica de nosso tempo nasceu em oposição à sua época. Isso é totalmente verdadeiro tanto para a forma quanto para o conteúdo”, escrevia Lukács.[1] Esta forma de combate não se restringe, é certo, apenas à sobrevivência do artista e de sua arte, ao escape dessa subordinação, mas diz respeito ao modo determinado da vida cotidiana, aos fenômenos coisificadores que a cercam, aos produtos das próprias relações sociais regidas pelo capital. Hegel supôs que esse fenômeno de dessubstancialização da arte decorria de uma forma social decadente. Algo que se movia nas contradições de seu presente impediam a arte de ser uma plenificação consciente. Para o filósofo idealista,

O pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte. Se nos comprazemos com queixas e recriminações, podemos tomar tal fenômeno por uma decadência e imputá-lo ao excesso de paixões e interesses pessoais, que tanto afugentam a seriedade quanto a serenidade da arte; ou podemos lamentar a miséria do presente, o estado intrincado da vida burguesa e política, que não permite que o ânimo aprisionado a interesses mesquinhos possa libertar-se para os fins superiores da arte.[2]

Nicolas Tertulian aclarou essas determinações do plano estético ao mostrar que arte em seu poder mimético não significava de modo algum uma mera reprodução mecânica da vida, uma apreensão neutral e indiferente, mas, ao revés, sua tônica está na própria vocação da arte em intensificar a subjetividade. A substância revigorante da subjetividade realçada nas obras de arte é a humanitas, a essência humana que barra os estranhamentos e ancora a integridade humana contra os aviltamentos e toda sorte de efeitos reificadores. Súmula lukacsiana: grandeza artística, realismo autêntico e humanismo estão indissoluvelmente unidos. A negação da intervenção transformadora do artista em nossos tempos tem revelado um traço de impotência e uma natureza postiça de sua visão da arte. O filósofo romeno assegura que para o autor da Estética: “a arte tem por missão propor uma representação plenamente objetiva do mundo olhado da perspectiva única de sua conformidade com as aspirações humanas.”[3] Recorde-se que para Lukács, a criação artística é, ao mesmo tempo, descobrimento do núcleo da vida e crítica da vida. A maneira mais adequada, expressiva e elevada da produção da autoconsciência da humanidade.

Mesmo reconhecendo que a música tenha a “divina finalidade” de mover os afetos e paixões humanas promovendo a decantação de nossa alma numa elevação humanista, sua capacidade de nos envolver e tomar por inteiro, como também o de apontar o dever-ser no interior das tramas históricas dos destinos individuais; todavia, a arte dos sons pode ser destinada a servir a outras finalidades, a outros atributos históricos. Usos sociais que motivaram teleologias vis e infames, como a de insuflar atos de barbárie, de monstruosidades como a guerra, de violência, de tortura e de outras finalidades irracionais. Assim como o nazismo se valeu da música para afirmar a sua pretensa superioridade rácica, sua identidade germanista, outras ditaduras – como as que vicejaram no Cone Sul – também se valeram do uso da música na prática da tortura, mesclando os sons dos martírios e tormentos de suas vítimas com a audição de músicas; músicas, inclusive, de autores de grandiosa relevância para a humanidade, como as de Bach. Podemos fazer referências a inúmeras situações nas quais a música foi utilizada de forma torpe, pragmática, distorcida, transformando canções em hinos patrióticos, guerreiros, que além da coesão que articula de modo indistinto classes sociais antagônicas, produzem cantos de guerra, desencadeando sentimentos violentos, servindo de molde para indivíduos conformistas que apodrecem sob a própria pele e se tornam apologéticos da ordem social. Os processos culturais reificadores – como aqueles disseminados em tempos de paz pela indústria cultural, simplesmente, despojam a arte de sua função desfetichizadora, reduzindo seu papel humanista à mera reprodução da crosta aparencial da vida social coisificada, aderindo aos estranhamentos humanos, se amoldando a atos de conformismo, de humilhação e até mesmo agindo no fortalecimento dos sentimentos religiosos.

Num trabalho pioneiro, recém-lançado, intitulado Música e Humilhação, Susan Forster analisou cerca de duzentos e vinte acórdãos proferidos pelos Tribunais Regionais do Trabalho para identificar os conteúdos específicos que motivaram os trabalhadores e trabalhadoras a solicitarem indenização por afronta à dignidade humana, por danos morais, por humilhações. Ao não cumprimento das metas propostas pelas empresas, os funcionários eram humilhados, devendo passar por sessões musicais; “músicas” que os colocavam em situações bizarras, por vezes rebolando e fazendo micagens em torno de uma garrafa, zombeteados por seus colegas, obrigados a “cantar” e a “dançar”, num nítido caráter depreciativo da imitação com motivos sensuais e eróticos; ou até mesmo eram obrigados a enfrentar papéis de subalternidade, como os de se passar por “escrava Isaura”. Baseando-se numa formulação de A Montanha Mágica – que a princípio nos causa suspensão –, Forster cita uma passagem de Thomas Mann que diz: “Há na música um elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita”.[4]

Para entender esse aviso do grande romancista, há que relembrar as formulações de um dos principais compositores do século XX, ante a tragédia do desabamento das torres gêmeas e suas conseqüências genocidas. Karlheinz Stockhausen, o célebre músico reconhecido por levar “às últimas conseqüências a idéia da composição com séries. Queria trabalhar com os 12 sons da escala cromática, límpidos, filtrados de qualquer conteúdo ou ranço do passado, raciocínio esse que estendeu à organização rítmica e às intensidades […]”. Em sua maturidade, “criou obras grandiosas que contavam com participação de quatro helicópteros; outras, como a da Exposição de Osaka, onde a música era distribuída pelos espaços da mostra com sonoridades específicas para cada local”. Todavia, este músico que buscava romper com todas as tradições, com o nosso passado musical, acabou por se voltar a uma espécie de arte indesejada, idêntica àquela que Walter Benjamin inscreveu em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e combateu uma manifestação de arte concebida na máxima: “A guerra é bela!”. O maestro Júlio Medaglia relembrou que após os acontecimentos da implosão das Torres Gêmeas, no dia 11 de setembro de 2001, em Nova York, Stockhausen “disse que naquela cidade ocorreu o maior de todos os espetáculos e que nós, músicos, que pretendemos conduzir pessoas a delírios estéticos ‘não somos nada perto daquilo’.”[5]

Recorde-se também, apenas como dimensão de exemplaridade, o arrepio dos germanistas puristas à sonoridade provinda dos negros, como o blues e o jazz! A superioridade racial ditando também aqui a sua superioridade, imputando a outras culturas meros “sintomas de arte degenerada”, e sua mescla traduzindo impurezas! Por outra parte, em contraste flagrante a essa visão do mundo nazi-fascista, há que qualificar os esforços do maestro argentino Daniel Barenboim e do escritor Edward W. Said (1935-2003) – origem judaica e palestina, respectivamente –, que juntos esgrimiram com seus aríetes, escritos e, fundamentalmente, com suas músicas, desarmaram os espíritos, fortalecendo-os na solidariedade, a fim de juntar povos em permanente estado de guerra. São esforços poéticos, alguns dizem, mas gigantescos. Barenboim teve a ousadia e coragem de reger Wagner – considerado um músico por excelência “nazista”, em plena Jerusalém. Claro está que foi hostilizado. Num teatro para se ouvir música e ser hostilizado significa ser amplamente vaiado. E, mais tarde, cobrado! Em Diálogos sobre música e teatro – Tristão e Isolda, o condutor argentino deixa transparente sua posição:

Não acredito no nacionalismo cultural nesse sentido. Percebi que na expressão da música wagneriana existe alguma coisa que se adapta de modo mais natural à sensibilidade alemã do que à sensibilidade latina ou eslava, sem dúvida. Mas ao mesmo tempo acho que a essência de Wagner é plenamente acessível a um italiano, assim como a essência de Verdi é plenamente acessível a um alemão.[6]

Conforme se lê nas primeiras páginas deste número da Projeto História, intitulado “Música e Artes”, esta área da produção humana é tomada enquanto expressão da correspondência entre “fenômenos singulares e pressupostos universais que outorgam à obra de arte sua peculiaridade enquanto esfera autônoma e normativa”. Para expressar concretamente como tais aspectos se manifestam na produção acadêmica, os textos que compõem este volume abarcam o universo da música, do teatro e do cinema, bem como a análise de romances e de poesias, cujas funções sociais se alteram conforme o particular desenvolvimento do capitalismo, assim como se alteram seus significados culturais.

Embora tais dimensões não esgotem a campo da arte enquanto estética, ou seja, enquanto essencialidades particulares que expressam a universalidade humana, tais artigos permitem ao leitor dimensionar um campo de reflexões inéditas e renovadoras na historiografia.

A começar pela objetivação da música como metonímia que revela a exclusão na ordem escravocrata ainda em fins do Império. No caso em tela, trata-se dos escravos cuja vida na capital do Império, efetivamente, era “regada de muita música”, expressas nos batuques e cânticos que ecoavam pela noite adentro, escondidos dos olhos, mas soando aos ouvidos, conforme relatos dos viajantes.

A música como expressão da insatisfação popular, como denunciadora dos problemas cotidianos da população pobre, também urbana, aparece novamente na análise de outro autor centrado em revelar como na década de 1940, os sambas tratavam de temas como guerra e racionamento de gêneros alimentícios. Mas tal analista vai além ao demonstrar como tal musicalidade revela “um combate sem tréguas, a favor da regeneração social do samba”,[7] expressando também uma contraposição a postura de intelectuais brasileiros que, na época, o queriam “civilizar”. Ainda neste texto adentra o autor na análise do humor enquanto crítica social e à ideologia do trabalho predominante naqueles anos do estadonovismo. Não por acaso, ressalta, um dos maiores sucessos deste gênero musical em fins dos anos de 1940, se denominava: “Trabalhar, eu não”.

Mesmo quando a subjetividade está mais à vontade, o respeito pela objetividade é uma condição prévia e sine qua non, o que possibilita aos autores reconhecer a arte como constituinte de um “mundo”, um “microcosmo”, e reveladora das essencialidades espirituais a que se refere Lukács, em nossa seção de traduções.

Assim é que, tomando-se músicos e compositores por sua expressão subjetiva, como o faz o autor que analisa a musicalidade de um Pixinguinha e de um Caymmi, reconhece-se como esta realiza o “ponto de fuga de uma interpretação dualista e genérica – onde – Música Negra, seria a expressão do conhecimento oral e, Música Ocidental- a expressão do conhecimento escrito”. Conforme enfatiza o historiador aqui presente, “com Pixinguinha, esse esquemão é demolido”. Com Caymmi, esclarece, não só observa-se o início de “canções praieiras que anteciparam os jovens músicos urbanos e burgueses da bossa nova”, como se observa o experimentar de possibilidades harmônicas através de seu violão, traçando “temporalidades distintas instituídas nos saberes, vivências e memórias afro-indígenas no espaço da Bahia”.[8]

Outro exemplo de como a subjetividade “se faz e se realiza pelo reconhecimento da realidade objetiva”, está na análise dos versos de Ernesto Nazareth, cotejada com a produção literária de um dos mais eminentes modernistas, Mário de Andrade. Neste texto se demonstra como este músico e compositor carioca de fins do século XIX e começo do XX, soube traduzir o comportamento da sociedade carioca, a urbe carioca dos idos de 1871 a 1934, período em que viveu. Conforme ressalta o historiador,

a análise de aspectos da vida e da obra de Ernesto Nazareth traz pontos importantes para o debate, tais como: linhagens da música carioca; a estética pela determinidade histórico-social e expressão dos modos de vida; dimensões ideológicas aparentemente pares mas que pulsam em diferença quanto ao nacional e o nacionalismo no início do século XX; a função social do músico e sua arte. [9]

Tal objetivação é reconhecida também por outro autor cuja análise ressalta a trajetória do violonista Aníbal Augusto Sardinha,[10] fazendo menção ao rádio como o grande meio de comunicação de massas. Apesar do reconhecimento histórico da importância da música e de outras manifestações artísticas como expressão da concretude social brasileira em cada particularidade, a produção historiográfica sobre o tema ainda está em seu estágio inicial, resumindo-se a análises que recuperam apenas aspectos aparentes de tais manifestações, faltando-lhes a capacidade de revelá-las enquanto “construção de uma objetividade corpórea plena de significado concreto, individualizada como mundo”, ou mesmo analisar os limites que as impedem de serem reconhecidas enquanto arte. É o que se deduz da análise da autora que trata da historiografia sobre a história da música no Brasil. Conforme afirma, apesar da produção literária musical ser vasta do ponto de vista quantitativo, “obras dedicadas à história da música brasileira são poucas […] ao longo do século XX”. A partir de uma vasta retrospectiva sobre a historiografia da musica, a autora conclui que o enquadramento desta como disciplina escolar e sua análise por docentes vinculados à área, sem preocupações em situá-la enquanto produto histórico resulta, principalmente a partir da segunda metade do século XX, em uma analítica que “raramente se utiliza de procedimentos analíticos vigentes no campo da história”, isentas de aproximações com teorias ou sem abordar documentos originais, “permanecendo quase que como um gênero literário”0.[11]

Também o olhar sobre a historiografia produzida sobre o cinema no país, demonstra que poucos se debruçaram em uma análise que descortine a sua importância enquanto expressão das particularidades sociais ao longo do século XX. A maior parte da produção que analisa, pouco aborda sobre o cinema silencioso das primeiras décadas do século XX, “permanecendo os documentários e toda uma produção nacional de não ficção praticamente desconhecidos do publico em geral.”[12] Mesmo a crítica cinematográfica que foi ganhando, ao longo do século XX contornos distintos, seja pelas severas críticas, seja por seus adeptos, também se mantêm no ostracismo enquanto objeto de estudos acadêmicos. Assim, conclui o autor, “a estética deste gênero cinematográfico ainda está para ser descoberta pelos estudiosos do nosso cinema”. Sequer o reconhecimento de que foi tal tipo de cinematografia, o da não ficção em suas mais variadas expressões (os filmes naturais ou de cavação, os cinejornais ou filmes atualidades e os documentários), o responsável por sustentar o cinema nacional por mais de cinco décadas, dando até subsídios para a produção de filmes de enredo neste período. Em seu artigo, o autor resgata ainda os primeiros críticos de cinema, considerando-os responsáveis pela fixação de preceitos que até os dias atuais norteiam as considerações de tais profissionais. Neste sentido, destaca que tais críticos, já no começo do século XX, evidenciaram a percepção da importância da “sétima arte” como veículo de propaganda nacionalista, acompanhando o diapasão de muitos militares e intelectuais que, naquele momento da primeira guerra mundial, enfatizavam a importância de proteger o cinema nacional e sua utilização para a propaganda patriótica, “contribuindo para edificar a nação”. Assim defendiam a organização de uma indústria cinematográfica no Brasil, sob os auspícios do Estado, conforme entendiam que ocorria nos Estados Unidos, Alemanha e Itália, o que perdura até por volta da década de 1950. A partir da década de 1960, em que pese a concorrência com o cinema estrangeiro presente desde a década anterior, observa-se, deduz o autor pautado na análise de farta documentação, a “construção de uma nova cultura cinematográfica no Brasil”. A história do cinema ganha novos contornos a partir deste momento, diz ele, “mais independente de padrões estrangeiros e voltado para a reflexão em torno da estética”. Tomando-se a história como categoria central são

publicados os primeiros livros sobre o cinema nacional […] que mapeiam a produção, escrita a biografia dos homens e mulheres que deram início à atividade no país, organizadas as informações sobre as salas de exibição e seu público, feito os primeiros balanços sobre a política e a legislação adotadas para o setor.

Mas nem neste momento ou nos seguintes, reconheceu-se, por exemplo, a estética das chanchadas. Estas são analisadas em outro artigo, tomadas enquanto expressão de uma industria cultural de divertimentos, que “lutava por uma hegemonia político – cultural do país, protagonizada pelos cinemas carioca e paulista nas suas versões da Atlântida e da Vera Cruz”.[13] Nesta sua empreitada, a autora resgata as similitudes entre a figura do malando, do palhaço e a do caipira sintetizados nas chanchadas são entendidos como expressão de “uma visão carnavalizadora” do mundo em que “pilantras” (o típico malandro virador da chanchada), “jecas” e “palhaços” interagem a partir das relações de trocas simbólicas entre a cultura erudita e a cultura popular, entre o folclore e o cinema, entre o circo e o teatro, “entre a música e o rádio, e assim por diante, revelando-se, portanto, uma estrutura imaginária da sociedade brasileira”.

Em contraposição à perspectiva da arte que expressa a tragédia humana pelo riso, mesmo que seus autores não se dêem conta disto, temos o cinema novo que, na expressão do entrevistado Carlos Diegues, assume objetivamente a função social de sua produção cinematográfica:

a gente queria mudar a história do cinema, mudar a história do Brasil, mudar a história do planeta. Com a ditadura militar a gente viu que isso era impossível. A ditadura militar, na minha opinião, enterrou o Cinema Novo. Entre outras coisas porque a matéria prima do cinema brasileiro era a realidade brasileira e naquele momento a realidade brasileira ficou proibida pela ditadura.[14]

O cinema está presente também no artigo que aborda a trajetória cinematográfica nos anos 1950.[15] No mesmo período, “em que qualquer expressão musical indicava, pela própria conjuntura, a posição pró ou contra a ditadura”, no dizer de outra autora, outras expressões artísticas assumem a dimensão da denúncia social à política vigente. É o que fica demonstrado na análise do Movimento que ficou conhecido como o MPB. É o que conclui o texto no qual a autora observa o panorama da música popular no Brasil dos anos 60 e 70 do século passado.

Cada um a seu modo, esses artistas pareciam ter um recado a dar, e serviam-se da música (assim como outros serviram-se de tintas, pincéis, máquinas de escrever…), para passar seus recados, posicionamentos, esperanças. Essa ânsia em dizer algo está presente no que encontramos nos repertórios de Elis Regina e Taiguara, por exemplo, mas também naqueles voltados ao excitamento de uma revolução comportamental, visíveis na experiência da Jovem Guarda assim como na do grupo musical Mutantes. Nos quatros exemplos aqui lembrados, o que temos são diversificadas formas de posicionamento crítico e político frente ao instituído.[16]

O vínculo entre a concretude social e a criação estética transparece também, embora com outro foco, em outro texto, no qual se aborda o impacto da difusão de novas tecnologias na cultura musical, inclusive atribuindo-se à esta produção humana, finalidades práticas. Concomitantemente à introdução de fonógrafos, gramofones, máquinas de escrever, mimeógrafos, estereoscópios, cinematógrafos e mais um grande sortimento de aparelhos e apetrechos de comunicação, que expressavam o advento da modernidade, à música se atribui poderes terapêuticos que iam desde a cura de doenças, cicatrizando ferimentos, acalmando crianças, até a “catequese de selvagens” e ao “incentivo para soldados em guerra”.[17] Desta forma, a autora demonstra como a revista Echo “busca criar um mercado de consumo no Brasil para as novidades industriais importadas – principalmente para as máquinas de reprodução sonora – no início do século XX”, disseminando novas práticas culturais. Até mesmo os problemas resultantes dessa insipiente tecnicidade, eram considerados benéficos, como se observa curiosamente, que tal veículo de informações sobre variedades divulga que choques elétricos faziam bem à saúde.

A continuidade das reflexões que enfatizam o impacto da tecnologia na produção cultural do país, encontra-se no artigo de outro colaborador presente nesta edição da revista, o qual resgata a importância do rádio enquanto meio predominante de comunicação de massa até o advento da TV já em fins da década de 1950. Analisando programas musicais da década de 1940 e 1950, os autores destacam a importância de “mestros e instrumentistas como personagens” centrais “deste universo musical da Era do Rádio, não só por atuarem ao lado dos cantores, mas também pelo fato de trabalharem nas mais importantes emissoras de rádio do período”, como foi a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a Tupi do Rio de Janeiro e São Paulo e a Gazeta de São Paulo, particularmente nas décadas de 1940 e 1950”, à exceção de um “Heitor Villa-Lobos, provavelmente pelo fato de estar a frente do projeto do canto orfeônico, por quase todo o primeiro governo Vargas (1930-1945)”.[18]

A literatura poética, a ficcional e a teatral são outras dimensões da arte presentes neste tomo da Projeto História que, com este número, completa 27 anos de lançamentos ininterruptos. Conforme salienta uma autora centrada em objetivar o estreito entrelaçamento entre a realidade, a criação e a narração na obra literária de Lima Barreto, sua “obra literária está inseria e é inseparável do mundo real” de modo indissociável.[19] Neste sentido, contrapondo-se à historiografia que trata desse literato, o artigo apresenta como Lima Barreto dá forma literária às personagens do mundo urbano, redimensionado pelas novas relações de trabalho e pela violência da ditadura daquele momento. A trajetória de personagens pobres que, advindos do mundo rural, tracejam sua ascensão social no urbano e para os quais tais esforços incluem aproveitar-se do jogo de influências vigente no interior dos segmentos dominantes no poder político. Um jogo que incorpora alguns em detrimento dos milhares que “não recebiam as graças do Estado” e que têm que enfrentar a burocracia quando se lhes impõem a necessidade de resolver problemas na esfera pública. A presença “pobresremediados, pretos-brancos, mulheres-crianças, moços-velhos” nos romances deste autor dá um “quadro geral dos grupos que compunham a realidade social do início do século”. Tais grupos sociais compõem o quadro da exclusão revelado pelo romancista, cuja revelação do social não se resume a eles. Conforme salienta a analista, Lima Barreto também incorpora na condição de excluídos os “beneficiários por extensão desse poder”, os “remediados”, pois esse os apresenta humilhados e falsos, pois “precisavam dissimular tanto a situação de subalternidade quanto a percepção de que eram diariamente mortificados pelo medo e pelos humores daqueles ‘sagrados’ que ocupavam momentaneamente um cargo superior”. Assim, conclui a autora do artigo, evidencia-se que era o Estado que havia se transformado no “mais forte desmoralizador do caráter”.

Daí a associação que o romancista faz entre os vícios e o Estado como corrosivos do caráter: “mais que os vícios, o álcool, o jogo, a morfina, a cocaína, o tabaco”, era o Estado que tirava a “dignidade, todo o nosso amor-próprio, todo o sentimento da realeza de nós mesmos”. O papel da corriola, dos adeptos e admiradores do candidato era “provar dedicação”, porque para isso eram pagos, e o excesso de bajulação – “pugilato de bajulações” na expressão do escritor – fazia parte do pacote.

A perspectiva de revelar como o romance recria a historia se encontra em outro artigo cujo autor analisa a obra Iracema, de José de Alencar.20 A originalidade do texto está não apenas em situar tal obra no interior da produção de intelectuais cearenses do fim do século XIX, os quais demonstram a preocupação em “compor narrativas sistematizadas sobre o passado” daquela região, destacando sua importância naquele presente e “conferindo-lhe legitimidade para o futuro”. Fundam assim, conforme se revela destes romancistas, a “pátria cearense”. Em outro artigo a relação entre o romance e concretude social, se revela ainda, mas em outros termos. Conforme salienta sua autora, que analisa a produção de intelectuais brasileiros de fins daquele século XIX, “as palavras, no romance e na história, tinham a ambição de colocar a terra, o homem e a luta numa trama temporal”. Salienta o autor que tais intelectuais demonstram o cotidiano vigente no Brasil, mas perpassado por sentimentos vicejantes na Europa: “a melancolia, o pessimismo, a morbidez, […] a solidão”. Assim, diz a analista, os cronistas finisseculares, afeitos aos problemas da época, registraram, em seus escritos, um Brasil que, na esteira do capitalismo, tentava ser moderno, adotando idéias vindas da Europa. Como contadores de histórias, eles reconstruíram “os acontecimentos com suas sensibilidades, com sua capacidade imaginativa e seus sentimentos de solidão”.[21]

O tema da relação entre a produção estética e a realidade, aparece mais uma vez em outro artigo que retoma uma questão já identificada nos artigos deste numero da Revista: o do engajamento por alguma causa política, agora revelado pelo teatro. Com a preocupação principal de analisar a atuação de grupos teatrais da década de 1960 e 1970, revelando suas formas de confronto com a ditadura no Brasil, este demonstra como dramaturgos “intervêm criticamente na esfera pública, trazendo consigo não só a transgressão da ordem e a crítica do existente, mas também a crítica do modo de sua inserção no modo de produção capitalista e, portanto, a crítica da forma e do conteúdo de sua própria atividade”. Apesar dos reveses que sofreram com o advento da ditadura de 1964 “as experiências do teatro operário do Arena, dos Centros Populares de Cultura (CPCS), do Oficina e do Opinião, em busca do político e do popular, carrearam um amplo movimento cultural que envolveu grupos, diretores, autores e elencos”, confrontando pela arte, a ditadura que oprimia a maioria da sociedade.[22]

Com a junção de música e do teatro atuaram enquanto protesto contra o regime e expressaram tanto a tristeza dos retirantes fugindo da seca quanto souberam gestar metáforas que mostravam a relação entre tal miserabilidade humana e os algozes do poder, de que a canção Carcará foi a mais emblemática.

A incorporação dos marginalizados e a perspectiva da participação igualitária transparece, conforme a visão desse artigo, na construção quase que coletiva das apresentações teatrais do grupo Opinião, denotando que todos estavam irmanados “de maneira inescapável, à mesma realidade opressiva”. Tal engajamento é reconhecido na produção teatral ao longo de toda a ditadura, sendo também analisado como isto contribuiu para o movimento que se articulou visando a recuperação da democracia no pais, já em fins da década de 1970 e seguinte, através dos metalúrgicos que as “leram e representaram de acordo com seu repertório sociocultural” e as demandas daquele momento histórico, ressalta a analista. A este, informa ainda, veremos associado o teatro produzido na “periferia urbana” que indica a incorporação de “novos públicos, novas temáticas, novas linguagens e a dinamização de canais não convencionais de comunicação que transgrediam as normas do sistema, na década de 90”.

A perspectiva analítica do engajamento do teatro é reconhecida ainda em outro artigo, este agora de um colaborador estrangeiro. Recuperando uma peça teatral elaborada por José Martí, o autor demonstra como tal peça se propõe unificar de forma massiva os mais diversos setores sociais em torno das independências unificadas das regiões latino americanas, conforme o ideal de Simon Bolivar e o do próprio Martí. O autor do artigo recupera como Martí recebeu das autoridades cubanas, em 1877, a incumbência de escrever uma peça teatral que pudesse ser encenada por ocasião das comemorações da independência daquele país e de “toda a America Central”.[23]

O resultado foi a peça cujo título já demonstra quais eram os principais problemas enfrentados por aqueles povos: como denominação principal temos Patria y libertad, e como subtítulo: Drama indio. Conforme salienta o analista “desde ese encabezamiento queda claro que para el joven exiliado cubano la independencia era asunto también de los pueblos originarios, no sólo de los blancos, durante el desarrollo de la trama”e que mais do que protagonistas, estes eram os principais. Nota ainda o autor do artigo que os personagens não são fictícios, ou seja, Martí recuperou personagens atuantes nas lutas daqueles idos de 1821, assim como fatos históricos dos quais foram protagonistas, como que comprovando sua tese do protagonismo dos povos originários na confecção da trama real das independências. Os vencidos na trama ficcional são, não por acaso, os representantes do colonialismo, identificados como um sacerdotes, um nobre e os funcionários da coroa espanhola. Na peça também está presente outro problema enfrentado por aqueles povos: o do racismo que, calcado em preceitos escravocratas, denuncia como o medo aos negros era usado para manter a divisão entre os cubanos de origem étnicas distintas.

Marshall Berman, ao comparar as produções espirituais em nossa modernidade, alinhou-as em suas múltiplas formas da sensibilidade moderna no interior de um “turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”,[24] e que se ancora numa unidade paradoxal, numa “unidade de desunidade”, onde mal o novo se manifesta e tudo parece se volatizar, o que se vivifica imediatamente desaparece, torna-se caduco, petrificado, porque sob a ordem humano-societária do capital, essencialmente destrutiva e corrupta, particularmente em nossos tempos sombrios, “em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário”.[25]

Notas

1. LUKÁCS, György. “Arte livre ou arte dirigida?”. In: Marxismo e Teoria da Literatura. Tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo, Expressão popular, p. 274.

2. HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética – vol. I. Tradução Marco Aurélio Werle; Revisão técnica Márcio Seligman-Silva. São Paulo: Edusp, 1999, p. 34-35.

3. TERTULIAN, Nicolas. Georg Lukács – Etapas de seu pensamento estético. Tradução Renira Lisboa de Moura Lima. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 240.

4. MANN, Thomas apud SUSAN C. FORSTER. Música e humilhação: uma visão através das ações de indenização por dano moral. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2011, p. 9. Na parte 4, conclusiva, a autora elucida essa máxima de forma sintética: “A execução de música durante episódios de violência institucionalizada é fenômeno recorrente na história. A música foi utilizada nos campos de concentração da Alemanha Nazista e nas salas de tortura e interrogatórios dos centros de detenção da ‘Guerra contra o Terror’, para citar os acontecimentos recentes mais representativos. Em tais centros de detenção, foram utilizadas inclusive técnicas destinadas a atingir suscetibilidades de cunho cultural e de gênero e a causar humilhação sexual. E, não custa lembrar que, apesar da imensa variedade de música disponível e a facilidade de acesso em decorrência das modernas tecnologias, o repertório utilizado pelos militares norte-americanos foi bem restrito. As músicas mais executadas nestes episódios são produtos da Indústria Cultural norte-americana e incluem algumas músicas infantis”. FORSTER, S.C. op. cit., 2011, p. 169.

5. MEDAGLIA, Júlio. Karlheinz Stockhausen, 1928-2007. In: Concerto – Guia mensal de música erudita, janeiro / fevereiro, 2008, p. 12.

6. BARENBOIM, Daniel & CHÉREAU, Patrice. Diálogos sobre Música e Teatro. Tristão e Isolda. Tradução Sérgio Rocha Brito Marques. São Paulo, Martins Fontes, 2010, p. 121.

7. Cf. neste volume: Adalberto de Paula Paranhos. Espelhos partidos: samba e trabalho no tempo do Estado Novo.

8. Cf. neste volume: Amaílton Magno Azevedo. Elogio das Ritmas negras e mestiças: tropicalismos acústicos na contemporaneidade.

9. Cf. neste volume: Henri de Carvalho. A obra de Ernesto Nazareth: síntese da particularidade histórica e da música brasileiras.

10. Cf. neste volume: Sérgio Estephan: Aníbal Augusto Sardinha: O Garoto e a Era do Rádio no Brasil.

11. Cf. neste volume: Carla Blomberg. Histórias da Música no Brasil e Musicologia: uma leitura preliminar.

12. Cf. neste volume: Cássio Tomaim. Entre Insultos e Nacionalismos: o documentário na crítica cinematográfica brasileira (1920-1950).

13. Cf. neste volume: Gilmar Rocha: “Eternos Vagabundos”: malandros, palhaços, e caipiras no mundo da Chanchada.

14. Cf. a seção Entrevista, neste volume.

15. Cf. nesta seção: Meize Regina Lucena Lucas. Por amor ao cinema: História, Crônica e Memória na invenção de um certo olhar.

16. Cf. neste volume: Eleonora Zicari Brito. A Música Popular Brasileira nos Conturbados Anos de Chumbo: entre o engajamento e o desbunde.

17. Cf. neste volume: Daniela Palma. Gramofones e Gadgets para os lares do Brasil: consumo, cultura e tecnicismo na Revista O Echo.

18. Antonio Maurício Dias da Costa e Edimara Bianca Corrêa Vieira. Na periferia do sucesso: rádio e música popular de massa em belém nas décadas de 1940 e 1950.

19. Cf. neste volume: Rita de Cássia Guimarães Melo. Lima Barreto: a criação da identidade dos remediados.

20. Cf. neste volume: Francisco Regis Lopes Ramos. José de Alencar: entre o romance e a história.

21. Cf. neste volume: Marina Haizenreder Ertzogue. Solidão, Narrativa e Imaginação no Fin-de-Siècle: história e sensibilidade através de crônicas.

22. Cf. neste volume: Kátia Rodrigues Paranhos. Arte e Experimentação Social: o teatro de combate no Brasil contemporâneo.

23. Cf. neste volume: Pedro Pablo Rodriguez. El Poema de 1810: José Martí ante las independencias hispanoamericanas.

24. BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. 19.ª reimpressão. Tradução Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 15.

25. Idem, Ibidem.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 43, 2011. Acessar publicação original [DR]

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