Intrépidos Romeiros do Progresso: maçons cearenses no Império / Berenice Abreu

Visões e revisões já foram empreendidas no campo historiográfico, mesmo assim ainda se podem encontrar certos temas à margem destas produções, temas que não se ousaram elucidar devidamente. Cada vez mais historiadores vêm atentando-se para estas questões e produzindo estudos que abarquem estas áreas. É neste contexto que podemos inserir a obra Intrépidos Romeiros do Progresso: Maçons cearenses no Império da historiadora cearense e atual professora da UECE Berenice Abreu.

Fruto de sua dissertação de mestrado apresentada em 1998, Intrépidos Romeiros do Progresso foi publicado no ano de 2009, integrando a coleção Outras Histórias, organizada pelo Museu do Ceará. A autora também possui a obra Do Mar ao Museu: a saga da Jangada São Pedro (parte de sua tese de doutorado) publicada nesta coleção em 2001.

O livro aqui abordado trás à tona um tema que frequentemente passa, ou passou, ao largo das análises historiográficas brasileiras: a Maçonaria. Composto por quatro capítulos, o livro Intrépidos Romeiros do Progresso nos mostra como se desenvolveu a Maçonaria na província cearense durante o período imperial. Motivada pela atmosfera de mistério que envolve até hoje a instituição maçônica, Berenice resolveu analisar a sociabilidade maçônica nos anos de 1870, período de disputas travadas no campo político e intelectual entre maçons e membros da Igreja Católica cearense, como fruto da chamada Questão Religiosa.

Logicamente que ao analisar os aspectos que envolvem estas disputas, o estudo também engloba as práticas de inserção na sociedade e de divulgação de seus ideários, frutos da já mencionada sociabilidade vivenciada pelos membros da instituição maçônica, tendo como ponto partida (ou melhor, de chegada) a análise sobre o jornal Fraternidade, que veiculava em suas linhas as idéias defendidas pela Maçonaria. Berenice também analisa as representações simbólicas e ritualísticas nas lojas maçônicas por ela abordadas (a Fraternidade Cearense e a Igualdade e Caridade).

No primeiro capítulo, intitulado A Maçonaria alimentando utopias de liberdade e fraternidade universais, a autora nos apresenta o cenário em que se desenvolve a Maçonaria cearense no século XIX, onde encontramos a composição social dos maçons locais, caracterizados como um grupo de intelectuais emergentes que passaram a enxergar na imprensa um meio de propagar seus ideários, sua visão de sociedade e o papel da Maçonaria, inserindo-se aí a criação do periódico Fraternidade. Esta época também foi marcada pelo conflito desencadeado pela Questão Religiosa, eclodindo a luta entre maçons (divulgadores das idéias progressistas) e ultramontanos (membros da Igreja Católica e mantenedores do pensamento conservador). Destacamos aqui a peculiaridade, ressaltada pela autora, do contexto cearense desta disputa, tendo em vista vários clérigos católicos pertencerem à Maçonaria, onde apreendemos que esta disputa, mesmo tendo uma dimensão nacional, processou-se diferentemente em cada região.

Berenice nos fala ainda sobre as origens da Maçonaria (que surgiu com as corporações de ofício medievais), onde nos remete às vinculações que são feitas pelos maçons a um passado mítico, um passado inventado, tendo como função a legitimação de práticas, rituais e formas de pensar presentes. E aqui a autora nos lança uma idéia que irá desenvolver no último capítulo: o fato desta instituição propagar um discurso liberal-ilustrado e em seu seio ter uma carga de valores e práticas que a tradição impõe como absolutas.

O contato dos intelectuais brasileiros com a Maçonaria e seus ideais iluministas baseados na Razão aconteceu na Europa, junto ao vários locais de sociabilidade que por lá se espalhavam: cafés, salões, sociedades secretas, universidades etc. Trazidas ao Brasil, tais idéias configuraram-se na luta pela emancipação política de Portugal, tendo membros da instituição maçônica atuando em algumas revoltas contra a Coroa. No entanto, Berenice vai além desta função ideológica da Maçonaria como difusora do ideário iluminista. Esta instituição representaria um local privilegiado de sociabilidade entre estes homens que ansiavam pôr em prática aquilo que haviam vivenciado em outras localidades. No cenário regional podemos situar a Faculdade de Direito de Pernambuco e o Seminário de Olinda como centros difusores das idéias liberais-iluministas e onde se formaram vários membros da intelectualidade cearense. Berenice ainda nos apresenta como se desenvolveram as primeiras lojas maçônicas brasileiras, bem como os momentos de cisões do Grande Oriente do Brasil.

O segundo capítulo, chamado A Maçonaria no Ceará e as Novas Elites urbanas, Berenice inicia relatando o processo de desenvolvimento das primeiras lojas maçônicas cearenses, onde tal surgimento atrelou-se ao próprio desenvolvimento econômico e urbano das cidades pioneiras: Aracati (com sua economia ligada à pecuária e ao charque) e posteriormente Fortaleza (cujo desenvolvimento se dá ligado ao comércio). Porém, o ponto principal para a criação das primeiras lojas está associado ao fato de ambas as cidades apresentarem uma vanguarda intelectual e política emergente, cuja formação se deu principalmente em Pernambuco. Esta vanguarda buscava um espaço de sociabilidade para a afirmação das idéias de progresso e civilização e para o debate político.

Neste contexto, a autora passa a analisar o surgimento, em Fortaleza, desta classe de indivíduos (comerciantes locais e estrangeiros, farmacêuticos, advogados, médicos etc.) que iria compor os segmentos da Maçonaria; indivíduos estes, possuidores de certo capital cultural, que pertenciam à elite e atuavam em vários âmbitos da vida pública local, vendo na irmandade maçônica um lócus para exercerem o debate político e estar em contato com os ideais iluministas. Neste ínterim, Berenice destaca a atuação de jornalistas e advogados que encontravam na Maçonaria um sentido (acima exposto) que posteriormente foi complementado por clubes e agremiações literárias. Tais profissionais tiveram sua atuação cristalizada principalmente na imprensa, local de disputas ideológicas e de divulgação de idéias, onde se insere o jornal Fraternidade, que segundo a autora surgia como um complemento do debate travado na loja maçônica.

O terceiro capítulo é nomeado Maçons e ultramontanos: o campo de combates, e trará com maior profundidade o embate que envolveu maçons e católicos no anos 70 do século XIX. Segundo Berenice, com eclosão deste conflito, que ocorria no campo intelectual, ambos os adversários viram a necessidade de uma demarcação bem definida de suas posições.

A Maçonaria, através do Fraternidade, enxergava-se como a guardiã dos ideais de liberdade, progresso e civilidade, sendo a única capaz de levar a humanidade à sua plenitude e de levar o Brasil à civilização; em contrapartida, atacava os membros da Igreja sob as pechas do conservadorismo, do fanatismo e do retrocesso; eram considerados os símbolos do absolutismo, sua presença em certas esferas da sociedade (administração de cemitérios, do casamento) era tida como perniciosa, por isso os maçons defendiam uma reforma jurídica da sociedade.

O eixo católico também tratou de delinear sua posição nesta luta, rebatendo as provocações e acusações veiculadas no Fraternidade através do periódico Tribuna Católica, jornal onde se defendiam os preceitos católicos. Neste último, os redatores criticavam as idéias “modernas” pregadas pelos maçons e apontavam contradições existentes naquela instituição, onde atacavam principalmente seu caráter secreto, em detrimento ao ideal de liberdade pregado. Relacionavam, também, a Maçonaria a movimentos conspiratórios e revolucionários e alertavam que esta instituição era contra a religião. Ora, em uma cidade que ainda resguardava características provincianas, com população ainda arraigada a uma mentalidade extremamente tradicional e católica, podemos ter a noção do peso de tais acusações.

Tal combate, como nos mostra Berenice, não se restringiu somente ao campo das idéias. A autora nos reporta às disputas que passaram ao âmbito das Irmandades Religiosas do Ceará, principalmente quando do início do processo de romanização e da eclosão da Questão Religiosa, onde a Igreja passou a vetar a participação de maçons na administração destas Irmandades. Os maiores embates foram travados nas Irmandades de São José e do Santíssimo Sacramento, que aglutinavam os membros mais ricos da capital da província.

Outro campo a se destacar foi a política, onde no caso da Maçonaria, a defesa de partidos não acontecia abertamente, dada a heterogeneidade de seus membros. No caso dos católicos, acabou-se criando um partido próprio (Partido Católico no Ceará).

A educação (campo comumente de gerência da Igreja) também foi tema de discórdia entre católicos e maçons. Estes criticavam a educação realizada pelos ultramontanos por reforçarem a ignorância, os maus costumes e o fanatismo do povo cearense. Tal crítica insere-se no modo de pensar iluminista que os fazia acreditar que para a emancipação da humanidade era necessária a instrução da população. Percebemos que viam a educação, assim como os católicos, como modeladora da mentalidade do povo. Os maçons afirmavam seu caráter de vanguarda na instrução da sociedade através das escolas apoiadas ou criadas pela Maçonaria, das bibliotecas das lojas maçônicas e da participação em agremiações literáriocientíficas como a Academia Francesa.

O quarto e último capítulo intitula-se A cidade e a Loja maçônica. Ele nos trás uma discussão a respeito da simbologia resguardada pela Maçonaria. Aqui, Berenice enxerga a loja maçônica como um local de sociabilidade burguesa, local de promoção da Razão. E é justamente nestas lojas que se processaram as idéias emancipacionistas (no período colonial) e posteriormente os ideais de luta contra a Monarquia e a Igreja, ancoradas em seu caráter secreto. No entanto, ao lado dos debates e exercícios políticos e intelectuais, a loja possuía um forte caráter ritualístico (que ainda hoje existe). A ritualística perpassa desde a arquitetura e as salas existentes até reuniões, trabalhos, peças de arquitetura (discursos proferidos pelos irmãos maçons), vestimentas e gestos. Berenice vê tal ritualística como um meio coercitivo de que se utiliza a Maçonaria para moldar os indivíduos que ingressam em seus quadros, uma tradição que se cria com o objetivo de formar o cidadão ideal e legitimar as práticas utilizadas.

A autora encerra sua obra retomando toda a discussão desenvolvida nos capítulos anteriores com o intuito de reafirmar sua posição em relação à participação e atuação da Maçonaria nas principais questões políticas e sociais que se travaram no Ceará e especificamente na capital Fortaleza. Nesta cidade, a Maçonaria nos é apresentada como espaço fundamental dentro do processo histórico cearense no século XIX, cuja importância encontrava-se, sobretudo, na sua utilização enquanto local de sociabilidade que permitisse o debate político e a vivência dos valores iluministas e liberais.

Berenice nos remete, a partir da utilização do conceito de sociabilidade, a questões que remontam à atuação dos sujeitos no cotidiano dentro do processo histórico. É a partir deste conceito que a autora trabalha a difusão e o recebimento dos ideais maçônicos pelos membros da elite intelectual cearense.

Intrépidos Romeiros do Progresso é uma obra que se insere num contexto de renovação historiográfica (como já mencionei anteriormente) e que dá a devida credibilidade a uma instituição tão presente na sociedade e, paradoxalmente, tão pouco enxergada.

Possivelmente isto se deve ao seu caráter secreto e às pechas que lhe são atribuídas, muitas delas advindas dos embates travados contra a Igreja Católica a partir do final período Imperial. As disparidades entre estas instituições podem ser percebidas nas linhas do jornal Fraternidade citadas por Berenice (p. 99): neste trecho, os membros da Igreja são chamados de “Morcegos da Sachristia”, ou seja, seres que habitavam as sombras do pensamento intelectual, em oposição às “luzes” do pensamento iluminista veiculado pela Maçonaria; em contraposição, os maçons se definem como “Batalhadores das Idéias”, ou seja, uma vanguarda que luta pelo progresso moral e intelectual dos homens.

Gustavo Magno Barbosa Alencar


ABREU, Berenice. Intrépidos Romeiros do Progresso: maçons cearenses no Império. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult, 2009. 187 p. Resenha de: Embornal, Fortaleza, v.1, n.2, p.1-5, 2010. Acessar publicação original. [IF].

 

Traços étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas – RATTS (BGG)

RATTS, Alex. Traços étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas. Fortaleza: Museu do Ceará; Secult, 2009. 23p. (Coleção Outras Histórias, 56). Resenha de: RIOS, Flávia Matheus. Boletim Goiano de Geografia. Goiânia, v. 29 n. 1, jan./jun., 2009.

O autor de Traços Étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas não poderia ser mais feliz quando escolheu para a capa do seu livro a pintura de uma menina Tremembé. Eis que a pin­tura da pequena Josiane, que na época só tinha seis anos de idade, parece à primeira vista construir uma flor, desenho comum feito por crianças da sua idade. Entretanto, a “ingenuidade infantil” nos surpreende com um belo detalhe iconográfico: no centro de nossa suposta flor nos deparamos com o desenho de um olho. Um olho atento e vivo.  O movimento plástico ultrapassa nossas primeiras impressões. Certamente a flor ainda está ali, mas agrega o olho à sua identidade. A flor agora é pensada na condição de algo que vê. Mais: pode ser agrupada – compartilha identidade – junto a todos seres que obedecem a mesma classificação: algo que vê. Exemplo: homem e flor podem ser o mesmo. Eis a primeira mensagem da pintura: aquilo que é heterogêneo, que inicialmente não compartilha as mesmas propriedades ontológicas, pode conviver e transformar-se, sem deixar de ser o que é. O homem e a flor são o mesmo e ainda assim, homem é homem e flor é flor.  Mas o desenho não termina aí. Do núcleo da flor, exatamente onde reside sua visão, parte um traço quase reto em direção ao canto direito, que se finda no que chamaríamos uma “pequena florzinha”. Nesse movimento a flor é pensada na condição de algo que gera. A florzinha é muito diferente daquela outra que nos vê, mas está ligada por um traço firme e objetivo ao olho que nos captura. Segunda mensagem: o que liga algo que vê e algo que gera a sua própria continuidade e permanência no mundo não é a aparência externa, e sim a própria visão.

A menina Josiane teria composto um auto-retrato? Ela que é algo que vê e entre os Tremembé tem seu lugar como algo que gera? Não sabere­mos ao certo. Mas a questão lançada pelo antropólogo Alex Ratts parece ser: quais as possibilidades de que a pequenina Tremembé possuía para perma­necer na história como algo que gera, mediante a visão atroz da especulação fundiária, migrações forçadas e encilhamento cultural impostos a todo o seu grupo étnico? Como manter o traço que unifica e transforma aquele algo que vê? Qual a relação entre tradição e criação cultural vivenciada por grupos étnicos que como índios Tremembé, quilombolas cearenses e comunidades negras urbanas, atravessam o dilema da expropriação das condições elemen­tares de existência social e cultural?  Esses são os dilemas enfrentados em Traços Étnicos, livro composto por artigos curtos escritos num período de amadurecimento intelectual e po­lítico entre 1992 e 2006. Ao longo de diversas temáticas, como mobilização política do ritual do Torém no processo de emergência étnica Tremembé, os impasses da comunidade do trilho com a especulação imobiliária em Forta­leza ou mesmo a apropriação de Zumbi de Palmares nas festas tradicionais da comunidade quilombola de Conceição dos Caetanos, o professor Ratts articula crítica social e análise antropológica na intersecção de dois conceitos basilares: cultura e espaço.  Na verdade, o questionamento das fronteiras disciplinares entre a an­tropologia e a geografia tem sido a marca registrada do autor enquanto aca­dêmico e militante do movimento negro. Por um lado, a tradição disciplinar de Franz Boas tem lhe permitido notar que “o olho que vê é o órgão da tra­dição”, o olho que tem um lugar e uma história, aquilo que se depreende da poética plástica de Josiane: a cultura enquanto flores ligadas por uma visão. Por outro, a geografia crítica, atenta tentativa de guetização política do que Milton Santos chamou de o “espaço do cidadão”, informa que os imperati­vos políticos da economia, da técnica, do racismo ambiental alteram os luga­res donde o órgão da tradição vê e neste caso, a visão é outra. Neste sentido, a luta de índios e negros pela terra, pelo direito à cidade e à identidade, ou seja, a emergência das identidades étnicas como variável significativa na economia espacial nordestina e brasileira nos mostra que “olho da tradição” é também o olho da indignação. O olho que tenciona as desigualdades atra­vés da re-criação de novos vínculos culturais e políticos, olho que indaga a terra da luz: “quanto dá de ti pra meu viver florir entre ares de verão?”  O desafio da construção identitária entre indígenas e negros cearenses é o desafio de fazer emergir na rede urbana de Fortaleza, bem como na estrutura fundiária de todo o Ceará, espacialidades alternativas e democráticas. Negros e índios no Ceará compartilham a experiência de serem “povos in­visíveis”, ambos tiveram suas imagens rasuradas nos discursos oficiais, que apresentavam o estado como resultante da mistura entre as raças.[1]  Ainda é comum se ouvir dos mais informados cidadãos cearenses que inexistem negros no estado e que os índios que restaram não são “autênticos”. Essa ideologia opressiva, versão cearense do mito da democracia racial, tem re­legado as comunidades indígenas e negras à completa invisibilidade até os dias atuais, privando-lhes de políticas públicas que resguardem seus direi­tos previstos pela Carta Constitucional de 1988.  Em hora oportuna, o Museu do Ceará realizou a presente publicação, escrito para um público amplo de variadas faixas etárias. Sem dúvida, en­contra-se nele um excelente material de apoio pedagógico para professores e alunos, tendo em vista as medidas atuais do país para garantir a obrigatorieda­de do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, assegurado pela lei federal de número 11.465/08. Esforços intelectuais como esses cultivam a emersão de negros e indígenas como delicadas flores cearenses para aqueles que nunca as tinham visto com esses contornos, esses traços. E olhos.

[1] No segundo capítulo do livro (p. 17), Alex Ratts apresenta um trecho do funesto relatório apresentado a Assembléia Legislativa Provincial por José Bento da Cunha Figueiredo em 9 de outubro de 1863, no qual afirmava: “Já não existem aqui índios aldeados ou bravios. […] Ainda hoje se encontra maior número de descendentes das antigas raças; mas acham-se misturados na massa geral da população, composta na máxima parte de forasteiros, que excedendo-os em número, riqueza e indústria, têm havido por usurpação ou as terras perten­centes aos aborígenes. […] Os respectivos patrimônios territoriais foram mandados incorpo­rar à fazenda por ordem cultural imperial, respeitando-se a posse de alguns índios.”

Matheus Gato de Jesus – Bacharel em Ciências Sociais pela UFMA, pós graduado em Sociologia pela USP.

Flávia Matheus Rios – Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo, pesquisadora em relações raciais do departamento de Sociologia da USP/CNPQ.

Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José | Virgínia A. Castro Buarque

Resenhista

Paula Virgínia Pinheiro Batista – Universidade Federal do Ceará.

Referências desta Resenha

BUARQUE, Virgínia, A. Castro. Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura, 2003. Resenha de: BATISTA, Paula Virgínia Pinheiro. Trajetos. Fortaleza, v.4, n. 8, 2006.

Acesso apenas no link original [DR]

Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart / Eduardo L. G. Amaral

“HÁ MUITO TEMPO DESEJO-LHE ESCREVER…”:

ITINERÁRIOS HISTORIOGRÁFICOS NA ESCRITA DE CARTAS

Poucas figuras proeminentes do cenário intelectual brasileiro no séc. XIX tiveram sua imagem pública tão dissecada quanto João Capistrano de Abreu. De fato, as peripécias e infortúnios que cercam a vida deste historiador cearense serviram de matéria a um número vultoso de estudos e publicações. Espírito reservado, temperamento forte, estilo irônico, inteligência aguda, compulsão pela leitura, aversão a homenagens e honrarias, desmazelo nos cuidados com a aparência pessoal são algumas das características que tornaram Capistrano uma fonte quase inexaurível de situações inusitadas, oscilando em movimento pendular, do cômico ao trágico. Durante muito tempo, suas correspondências com amigos, parentes e colegas forneceram uma cornucópia de curiosidades, ensejando a difusão de anedotário que hoje praticamente se funde à personalidade do escritor.

Felizmente, o epistolário de Capistrano vem sendo revisitado por críticos e historiadores ocupados em apreender ali traços relevantes de seus métodos de pesquisa, interesses intelectuais e interpretações da história do Brasil. Na verdade, percebe-se atualmente uma certa tendência a devassar as idéias de pensadores e artistas por meio dos vestígios dessa escrita íntima. Paroxismo do fragmento? Entronização do indivíduo? Estratégia do mercado editorial? Não há dúvida quanto ao peso desses ingredientes no entusiasmo lucrativo de publicar correspondências pessoais. Contudo, existe uma força latente que brota de tais documentos. Nas cartas é possível encontrar declarações afetuosas, relatos de cenas cotidianas, troca de confidências, mas também a expressão de convicções políticas, a opinião ajuizada sobre comportamentos e fatos públicos, o questionamento ou afirmação dos preceitos morais e dos códigos axiológicos que marcam uma época. Entre a

idiossincrasia do missivista e o quadro das relações sociais de determinado tempo e lugar, desenha-se um itinerário pontuado de tensões, receios, incoerências atinentes às possibilidades de ação do sujeito histórico imerso nas circunstâncias específicas de sua existência.

No que diz respeito à figura de Capistrano de Abreu, a pertinência historiográfica de investigar suas cartas é superlativa, dado o esmero peculiar que envidou no manejo deste gênero literário. Algumas facetas dessa complexa trajetória intelectual, por vezes expressa na narrativa paralela dos diálogos manuscritos, pode ser aquilatada com a leitura de Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart, de Eduardo Lúcio Amaral – volume 19 da Coleção Outras Histórias (linha editorial do Museu do Ceará). No livro se destaca a comunicação escrita, cultivada durante trinta anos (1892-1922), por dois expoentes da pesquisa histórica brasileira no séc. XIX, cujo encontro se dera em tempos de juventude, partilhando os mesmos bancos escolares na Fortaleza provinciana dos anos 1860. O autor observa que, à parte a conterraneidade, o respeito mútuo e a extrema dedicação à pesquisa documental, tinham ambos os historiadores pouco em comum. Capistrano se embrenhou arduamente na investigação empírica e na reflexão do passado nacional, alheio ao reconhecimento dos pósteros e à exaltação cívica. Studart, por seu turno, acreditava no papel civilizador do conhecimento e na elevação moral das camadas populares, quer pela instrução formal, quer pela virtude religiosa. O próprio título honorífico com que foi agraciado, outorgado pelo Vaticano – Barão de Studart –, indica a enorme diferença que separava os dois amigos: um enredado nas muitas confrarias e sociedades letradas em profusão nos alvores da república, o outro declaradamente arredio aos lugares de sociabilidade institucional, custoso que lhe era “pertencer à sociedade humana”.

No decorrer do trabalho, diversas questões de suma relevância são abordadas, como a intensa colaboração tecida entre Capistrano e Studart no andamento de suas pesquisas, a percepção de ambos sobre os primórdios da história do Ceará e a ênfase dada ao sertão e ao litoral como pólos da colonização do Brasil. Eduardo Lúcio salienta a opção metodológica de Capistrano por examinar as paragens interioranas, pois identificava ali o fluxo primordial das migrações e sedimentações provisórias que conformariam a dinâmica da sociedade colonial. Como a quase totalidade dos historiadores de sua época, Studart tomou direção oposta, pensando a história local e nacional com os olhos voltados para a costa litorânea, articulada a uma idéia conservadora de história, ainda submetida ao peso dos fatos grandiosos, dos atos do Estado português, dos personagens notáveis e das divisões administrativas.

Um dos pontos salientes do texto aborda a crítica metódica dos documentos, tal como desempenhada por Studart e Capistrano. Percebe-se ali a vivacidade e o engenho de ambos, especificamente em torno da verdadeira autoria de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. A questão há muito inquietava numerosos pesquisadores, uns postulando a existência real daquele que assinou a referida obra – André João Antonil –, outros julgando tratar-se de um pseudônimo. Debruçando-se sobre esse desafio, os dois historiadores cearenses chegaram, por caminhos diferentes, à mesma conclusão: Antonil era o anagrama aproximativo de João Antonio Andreoni, eminente jesuíta italiano do fim do séc. XVII e início do XVIII que atuou em terras brasileiras. Ao recuperar, nas cartas, o relato de tão notória descoberta, Eduardo Lúcio convida a uma revisão de preconceitos arraigados, notadamente entre os aspirantes a historiador. Pois não é incomum a rotulação prévia de muitos pesquisadores oitocentistas, assaz diversos uns dos outros, reunidos sob a alcunha desabonadora de positivistas, como a indicar que comporiam uma esdrúxula tribo de fetichistas do documento, imbuídos de ingênua passividade ante os registros que o passado nos legou. Ao contrário, avulta o esforço investigativo quanto à procedência e autenticidade dos vestígios de outras épocas, demandando criatividade, astúcia e imaginação no cotejo das fontes. Mais que isso: reitera-se o exame meticuloso dos testemunhos como um dever indeclinável à faina do historiador.

Se, atualmente, a noção de crítica documental sobrepuja largamente as preocupações estritas com o “teor de verdade” dos fatos e registros passados, há que reconhecer, sem adulação, os esforços das gerações precedentes de eruditos e pesquisadores no amadurecimento das práticas, métodos e conceitos que presidem a disciplina histórica. Implicitamente, este livro observa que o exercício, ponderado e conseqüente, da reflexão crítica deve também nos resguardar do julgamento cômodo – e anacrônico – de outras épocas segundo nossas próprias categorias de pensamento e valoração.

Uma questão teórica pertinente, tocada apenas de soslaio, ficará contudo reservada (assim espero) para estudos vindouros. Refiro-me às correntes antagonistas dispostas a devassar a história do Ceará, uma sob a égide da ocupação litorânea, outra pautado em apreender a dinâmica das migrações pelo sertão da capitania. Ao contrário dos debates tradicionalmente levantados, cuja meta era afiançar uma das hipóteses às expensas da concorrente, Eduardo Lúcio destaca que está em jogo mais que porfias de eruditos, ou mesmo nuanças de adequação da análise aos fatos. Vislumbrar a história local com olhos postos sobre o mar ou priorizando os rincões do interior tampouco sugere a potência do determinismo geográfico. Ocorre que ambas as vertentes interpretativas são orientadas por noções diferenciadas de documento – escolha metodológica que iria repercutir decisivamente no modo de enfeixar os acontecimentos em favor de uma dada narrativa histórica. Alguns contornos dessa discussão vêm aduzidos à luz de trechos das cartas trocadas entre Capistrano e Studart.

O autor sintetiza a extrema riqueza que se descortina no escrutínio dessa correspondência cheia de mesuras, mas visivelmente pontilhada por inquietações historiográficas: “As cartas de Capistrano para Studart são exemplares para a compreensão do seu processo de construção do conhecimento, já que a partir da rede de informações construída entre os dois historiadores vêm à tona as sutilezas do trabalho de pesquisa e a subjetividade de Capistrano de Abreu.”

Ressalte-se, contudo, que ao leitor o sentido inverso e complementar também é plausível, ou seja: acercar-se dos métodos de trabalho e da produção científica do Barão de Studart, não somente através das cartas, como pela consulta a outro estudo de lavra do mesmo autor – Barão de Studart: memória da distinção (Coleção Outras Histórias, v. 9). Ali se descobre a figura de grande projeção que se firmaria no panteão da intelectualidade cearense, reunindo ao mesmo tempo os atributos modelares que o tornaram referência indisputável nos segmentos letrados de então: filho de inglês, cavalheiro, médico, erudito, católico, abolicionista, pesquisador incansável.

A leitura do texto de Eduardo Lúcio indica não ser este o resultado de investigação empírica previamente orientada. Deriva, sim, de análise centrada na fortuna crítica de Capistrano de Abreu, acrescida pela consulta de suas obras maiores, com especial atenção sobre a correspondência. Portanto, trata-se sobretudo de uma reflexão sedimentada em referências bibliográficas, a que vêm incorporar-se ponderações quanto aos possíveis sentidos da escrita da história, em fins do séc. XIX e alvores do XX.

“No princípio, era a pergunta” – essa a divisa de qualquer trabalho intelectual conduzido por historiadores. O opúsculo em questão, livre de pretensões biográficas e alheio a sínteses de vulto, traz na formulação de questionamentos o seu mérito: a que finalidades se presta o conhecimento histórico produzido naquele período? Quais os interditos duradouros que cerceavam a viabilidade de uma interpretação da época colonial menos subserviente à zona costeira e ao primado lusitano, mais atenta à ocupação lenta dos sertões? Como esses caminhos metodológicos divergentes influiriam nas futuras noções de história nacional? Sob que condições epistemológicas era plausível advogar a legitimidade de uma história local que remontasse à Colônia (como o projeto de história do Ceará defendido pelo Barão de Studart)? De que maneira a troca de cartas entre intelectuais pode se tornar um material elucidativo acerca dos rumos tomados pela historiografia brasileira? Qual o papel das celebrações e marcos cronológicos (a exemplo do “tricentenário do Ceará”) na consolidação de um modelo hegemônico de fundamentar, narrar e difundir a história? Indagações seminais, cujo enfrentamento poderá conduzir à aparição de novas pesquisas que tenham por objeto de estudo a própria criação historiográfica.

Com o lançamento de mais este livro, o Museu do Ceará reitera o compromisso com a reflexão crítica da história. Ao mesmo tempo, oferece ao leitor os contornos de duradoura interlocução privada, construída numa época em que os navios a vapor faziam as vezes de correio. Pródiga em descobertas eufóricas, estudos minudentes e recorrente solicitação de favores mútuos, a correspondência entre Capistrano e Studart nos sugere, acima de tudo, o empenho invulgar nas lides da pesquisa histórica e os tremendos obstáculos a serem vencidos. Registra, ainda, a notação de um outro ritmo, de comunicação e de vida, quando amigos distantes rascunhavam linhas para falarem de si ao outro, quando a ansiedade de uma carta por chegar exigia paciente expectativa, “à espera do próximo vapor”.

Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho


AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme. Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2003. Resenha de: SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.5, 2004. Acessar publicação original. [IF].

Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart | Eduardo Lúcio Guilherme Amaral

“HÁ MUITO TEMPO DESEJO-LHE ESCREVER…”:

ITINERÁRIOS HISTORIOGRÁFICOS NA ESCRITA DE CARTAS

Poucas figuras proeminentes do cenário intelectual brasileiro no séc. XIX tiveram sua imagem pública tão dissecada quanto João Capistrano de Abreu. De fato, as peripécias e infortúnios que cercam a vida deste historiador cearense serviram de matéria a um número vultoso de estudos e publicações. Espírito reservado, temperamento forte, estilo irônico, inteligência aguda, compulsão pela leitura, aversão a homenagens e honrarias, desmazelo nos cuidados com a aparência pessoal são algumas das características que tornaram Capistrano uma fonte quase inexaurível de situações inusitadas, oscilando em movimento pendular, do cômico ao trágico. Durante muito tempo, suas correspondências com amigos, parentes e colegas forneceram uma cornucópia de curiosidades, ensejando a difusão de anedotário que hoje praticamente se funde à personalidade do escritor. Leia Mais

Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José / Virgínia A. C. Buarque

Paula Virgínia Pinheiro Batista – Universidade Federal do Ceará.


BUARQUE, Virgínia A. Castro. Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura, 2003. Resenha de: Revista Trajetos, Fortaleza, v.4, n.8, p.287-300, 2005. Acesso apenas pelo link original. [IF].