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A construção do mundo histórico nas ciências humanas – DILTHEY (FU)
DILTHEY, W. A construção do mundo histórico nas ciências humanas. São Paulo: Editora da UNESP, 2010. Resenha de: KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.3, p.287-289, set./dez., 2011.
Sem uma vasta tradição de recepção e crítica no Brasil (e proporcionalmente pouco estudado mesmo na Alemanha, seu país natal), Wilhelm Dilthey (1883-1911) é apontado como um dos mais influentes pensadores na transição do século XIX para o XX. Filho de um pastor calvinista e criado no caldo de cultura aquecido por nomes como Bopp, Humboldt, Ranke, Ritter e Savigny, Dilthey lança as bases para uma análise muito lúcida sobre as ciências positivas em sua época. Tal exame preparou o terreno para autores que, mais tarde, seriam protagonistas da crítica às ciências nas primeiras décadas do século XX (é o caso de Spengler, com seu Decadência do Ocidente).
A influência de Dilthey sobre os seus contemporâneos se explica dado sua obra, desde muito cedo, ter se dedicado a um único escopo: a fundamentação das ciências humanas, fato que lhe garantiu antecipação e maturidade. Atestamos a precocidade de tal filosofia, cientes de que sua intenção já aparece na pauta do autor desde a juventude mais tenra, quando, no ano de 1850, com apenas 17 anos, Dilthey já acenava à necessidade de um movimento que tornasse possível “a constituição definitiva da ciência histórica e, por meio dela, as ciências do espírito”. Projeto filosófico entabulado na juventude, é este mesmo que vemos desenvolvido, com várias feições e de maneira pouco sistemática, nos trabalhos das décadas de 1890-1900, até às vésperas da morte do autor.
Em seus primeiros trabalhos, Dilthey toma Kant e Hegel por interlocutores (o segundo como alvo de contestação) e, apropriando-se do método hermenêutico de Schleiermacher, desenvolve algo que poderíamos chamar de “crítica da razão histórica”. Como a denominação anuncia, Dilthey visa a estender a intuição do projeto crítico kantiano ao domínio da história, passo que dependeria da determinação do estatuto do homem na constituição das ciências históricas. Assim, Dilthey investe na fundamentação das ciências do homem, da sociedade e da história, sabendo que é o âmbito da vida (isto é, um espaço vivencial total) que garante as percepções de um mundo constituído. Num outro período mais adiantado de sua obra, apostando no projeto de uma psicologia analítico-descritiva, Dilthey pretende uma fundamentação psicológico-gnosiológica das ciências (como nomeia seu comentador Eugenio Imaz). Em ambos os casos, contudo, está presente a preocupação em mostrar que as ciências do espírito, ou as assim chamadas ciências humanas, precisam estar fundamentadas num solo humano, para que, a partir daí, seus fenômenos possam ser compreendidos segundo um mundo vivenciado, não sendo mais abstrativamente explicados pelas ciências naturais, positivas.
Trazendo elementos tanto da temática da razão histórica quanto da psicologia, o ensaio A construção do mundo histórico nas ciências humanas é um trabalho de maturidade do filósofo. Também nele, Dilthey se mostra preocupado em estabelecer uma relação saudável entre as ciências da realidade histórico-social e as da natureza de modo que a primeira receba fundamentação adequada; é isso que se constata quando, já no início do primeiro capítulo, o filósofo propõe: “Nós precisamos procurar o tipo de relação existente nas ciências humanas com o estado de fato da humanidade” (p. 22). Essa afirmativa pretende mostrar o quanto dependemos de uma apreensão do lugar do homem na própria constituição da vida histórica, esta que, por sua vez, se engendra imediatamente a partir da percepção de uma conjuntura histórica específica.
Entendendo que as vivências humanas se manifestam e articulam essa rede histórica complexa, edificando um todo de referências (sendo estas tanto materiais quanto psíquicas), Dilthey anuncia que o presente fato nos defronta “com o problema acerca de como a construção do mundo histórico no sujeito torna possível um saber sobre a realidade espiritual” (p. 167). Sem dúvida, o tema do mundo histórico encontra no homem base para ser problematizado, pois o homem é o ponto de conexão de um determinado tempo e das visões de mundo que pertencem ao mesmo. Deste modo, o homem (e as vivências constituintes do estado de fato de sua humanidade) é o ser sobre o qual se assentaria primordialmente a vida histórica da totalidade.
Além dos tópicos referentes às vivências, abordados em nossa breve síntese, Dilthey ainda introduz em seu livro (entre a primeira parte e os diversos adendos que esboçam uma segunda) a exposição dos conceitos de hermenêutica, expressão, compreensão, interpretação e visão de mundo, todos decisivos ao projeto de sua fundamentação das ciências históricas e sociais.
Produto de um conjunto de conferências apresentadas na Academia Prussiana de Ciências, a obra foi publicada em 1910, e é contemporânea a outros ensaios de temática afim, entre os quais destacamos Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica (1907-08) (recomendado como entrada para leitura do outro). Por ter ficado inacabada, apenas composta por textos provisórios e indicações para prosseguimentos futuros, a obra em apreço possui caráter fragmentário (o leitor se deparará com ideias em aberto, com frases inconclusas e com o uso recorrente da expressão “etc.”, indicando pontos que ainda dependeriam de maior desdobramento conceitual).
Enfocando aspectos editoriais da publicação, A construção do mundo histórico nas ciências humanas é bem editorada e possui a elegante encadernação em capa dura típica da Coleção Clássicos UNESP.
A tradução (que orienta os propósitos desta resenha), assinada por Marco Antônio Casanova, cumpre com excelência a tarefa de trazer a obra de Dilthey ao português, mostrando-se, inclusive, a par dos cânones mais atuais dos estudos sobre o filósofo. Um exemplo disso está na adoção do termo “ciências humanas” para traduzir a expressão alemã Geisteswissenschaften (em vez do tradicional “ciências do espírito”). Essa plausível opção encontra precedente nas traduções de língua inglesa e endosso junto a especialistas, entre eles o exegeta alemão Matthias Jung que, em seu Dilthey uma introdução, assevera:
A tradução para o conceito de “ciências do espírito”, “ciências humanas”, expressa melhor a conexão de sentido da realidade sócio-histórica do que sua correspondente alemã, na qual a noção de “espírito” facilmente pode ser mal entendida como algo independente da lida com homens reais. O projeto diltheyano das ciências humanas deve ser livremente entendido não com um fim em si mesmo, mas como pertencente à conexão ampla de sua busca pelas possibilidades científicas de acesso à experiência necessária ao mundo da vida, a relação sujeito-objeto (Jung, 1996, p.8-9).
Não bastasse esse argumento, a opção também parece editorialmente acertada, uma vez que cria maior identidade com o público de alguns dos cursos universitários brasileiros, dos denominados cursos de ciências humanas.
Dotada de dois breves, mas substanciais, aparatos críticos, uma nota do tradutor e outra dos editores, a edição brasileira faz a cortesia de fornecer dados biobibliográficos do filósofo, como, por exemplo, a posição e importância do referido trabalho no panorama da obra. Esses subsídios favorecem, em muito, o acesso do leitor brasileiro a elementos do pensamento de Wilhelm Dilthey.
Referências
JUNG, M. 1996. Dilthey zur Einführung. Junius, Hamburg, 219 p.
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: kahlmeyermertens@gmail.com
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