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Ideias e práticas econômicas no mundo atlântico: liberdade, circulação e contradições entre os séculos XVII e XIX / Cantareira / 2020
Ao longo das últimas décadas, o mundo atlântico e seus desdobramentos no campo conceitual tem, cada vez mais, ganhado destaque nas produções historiográficas. Há uma ressignificação na abordagem usada, em detrimento de certa historiografia tradicional, que admitia o mundo atlântico como uma barreira geográfica e política. Esta nova interpretação historiográfica se vale das conexões. Passa a ser entendido, portanto, como espaço de trocas, circularidades e trânsito de pessoas e ideias. Esse movimento teórico-conceitual encontra expoentes na historiografia internacional e nacional a partir dos anos 1980 e, ainda hoje, apresenta caminhos oportunos a serem explorados. O objetivo do dossiê não é se pautar em uma única historiografia ou autor, mas abrir espaço para um conjunto de trabalhos que compõem esse movimento intelectual.
O rompimento com os paradigmas de categorias de análise inflexíveis, como, por exemplo, a dualidade antagônica metrópole-colônia, foi um passo importante para a adoção de uma perspectiva renovada. Mas ainda é preciso romper com a universalidade de conceitos que, muitas vezes, são mobilizados de forma acrítica. Na formação do mundo atlântico, as ações e ideias eram muito mais complexas do que os conceitos tradicionais podem sugerir. Compreendendo a complexidade das relações intelectuais e das práticas econômicas, mostra-se imperioso pontuar as singularidades a partir das quais se conformam as ideias para além da realidade social, política e econômica europeia ao longo do tempo.
Os interesses que permeiam as pessoas e instituições que formam este novo cenário de uma primeira globalização traz à tona novas formas de pensar inauguradas com o contato entre os povos e a ascensão de uma latente ordem comercial que começa a tomar forma e constituir os ditames das políticas construídas na europa e no comércio ultramarino. Contudo, é importante atentar que esmiuçar o pano de fundo das empreitadas coloniais, em seus diversos aspectos, não é mitigar o processo de brutal dominação ocorrido.
O objetivo do presente dossiê não é apresentar contribuições de determinada corrente historiográfica. Trata-se, na verdade, de reunir trabalhos que, a partir de perspectivas teóricas diversas, dialoguem entre si e, ao mesmo tempo, expressem a complexidade de abordagens no cenário atlântico. Os artigos presentes no dossiê apresentam variações de temas e abordagens que a História Política e a História Econômica podem oferecer. Compreender a multiplicidade de interesses que formaram os impérios e as rotas comerciais na idade moderna – em seu lado micro e macro – torna-se, portanto, a proposta central deste dossiê. O trabalho de Steven Pincus é uma referência nesta questão, pois mostra a ineficácia de se trabalhar com conceitos totalizantes, como o “mercantilismo” e compreender as disputas internas que ocorrem no interior deste.
As novas interpretações historiográficas acerca do atlântico nos permitem questionar o papel das colônias como simplesmente replicadoras das políticas, práticas econômicas e pensamentos originados no cenário europeu. O conceito de “histórias conectadas”, proposto por Sanjay Subrahmanyan, coloca em evidência as conexões e supera a falsa ambiguidade de uma historiografia eurocentrada.
O dossiê contém cinco artigos que articulam temas de economia, ideias econômicas, administração estatal, cultural material e redes de poder. E provém uma dimensão do que está sendo produzido no sentido de aprofundar o debate da história econômica.
O primeiro destes, de autoria de Alice Teixeira, “Cultura material e o cotidiano do trabalho no Estado do Grão Pará e Maranhão no final do século XVIII e início do século XIX”, investiga – a partir de inventário e relatos de viajantes – como se dava a relação construída entre a dinâmica do mercado externo e as populações locais nas empreitadas agrícolas da região.
O artigo propõe uma visão ampla sobre o comércio regional, atenta à agência dos indivíduos, por meio da descrição de seus objetos O artigo seguinte, “Comércio de cabotagem e tráfico interno de escravos em Salvador (1830-1880)”, de Valney Filho, traz importantes observações sobre o tráfico intra e interprovincial, articulando o comércio de cabotagem e as companhias atuantes nesta dinâmica. A pesquisa aponta para a complexidade das dinâmicas sociais e econômicas na comercialização dos escravizados, por meio de um intenso trabalho com fontes.
O artigo de Débora Ferreira, “Uma bandeira da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá vai aos domínios de Castela”, examinou, a partir de um estudo de caso, as redes de poder que compunham o cenário político e econômico colonial. Tratando da “bandeirinha sertaneja” em meados do século XVII, a autora demonstra as disputas de poder entre certos agentes e instituições que tinham interesse em negociações com a Coroa.
Diogo Gomes, por sua vez, no artigo “Rendas e encargos das finanças municipais: uma análise da atuação do Conselho Geral de Minas Gerais nos primeiros anos do Império do Brasil (1828-1832)”, propõe uma análise da atuação do Conselho Geral Províncias, especialmente em Minas Gerais. O autor mobiliza as atas do Conselho a fim de identificar as funções deste órgão administrativo e compreender sua atuação, enquanto instância intermediária entre as câmaras municipais e o poder central, diante de um novo sistema político estabelecido, com ênfase na dimensão econômica atribuída à cobrança de tributos pelos municípios e pelas províncias.
O artigo “A produção de café na Vila de São João de Itaboraí e sua comercialização em Porto das Caixas (1833-1875)” é escrito por Gilciano Costa. Trata-se de uma pesquisa de História Regional em que se pauta a formação socioeconômica de Itaboraí, por meio da cultura cafeicultora e seu comércio. A pesquisa empenhada apresenta fontes e dados diversificados de registros de época para remontar a trajetória do café na região.
Por fim, a entrevista realizada com o professor português, José Subtil, da Universidade Autónoma de Lisboa, partindo de sua trajetória acadêmica, elucida certos questionamentos concernentes às discussões historiográficas sobre as instituições e o aparelho jurídico e administrativo. Versa, também, sobre questões atuais da História enquanto conhecimento acadêmico, como a sua relação com o público e possíveis direcionamentos para a ciência histórica.
Leonardo Cruz – Graduando IH / UFF E- mail: lacoliveira96@gmail.com
Matheus Basilio – Graduando IH / UFF E-mail: matheusfernandesgb@gmail.com
Matheus Vieira – Graduado IH / UFF E- mail: vieiramatheus@id.uff.br
CRUZ, Leonardo; BASILIO, Matheus; VIEIRA, Matheus. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.32, jan / jun, 2020. Acessar publicação original [DR]
Trabalhadores livres e escravizados no Mundo Atlântico / Revista Maracanan / 2019
O presente número da Revista Maracanan traz, primeiramente, o dossiê “Trabalhadores livres e escravizados no Mundo Atlântico”. Os estudos sobre os mundos do trabalho, produzidos no Brasil, têm passado por significativas transformações nos últimos anos.[1] Uma das mais significativas diz respeito às investigações incluírem, a partir principalmente dos anos 2000, os escravizados como parte fundamental da história do trabalho brasileira. Nesse sentido, as pesquisas ressaltaram a importância de questionar a formação da classe trabalhadora no nosso país como sendo composta unicamente por operários livres, homens, brancos, em sua maioria de origem europeia e apontam à necessidade de também serem analisadas as relações entre trabalhadores livres e escravizados, bem como as formas de organização e manifestação destes. Busca-se, assim, o diálogo necessário entre os historiadores da escravidão e os estudiosos das práticas políticas e culturais dos trabalhadores urbanos pobres e do movimento operário.[2]
Aliada a essa transformação na historiografia nacional, ressalta-se também uma mudança no cenário internacional, com a introdução da perspectiva da história global do trabalho. Essa propõe um conceito mais amplo de trabalhador, e expõe que o trabalho livre assalariado era apenas uma das formas de trabalho, que incluía ainda a escravidão. Outro ponto fundamental é apontar que os trabalhadores assalariados eram bem menos livres do que se supõe, e que as barreiras entre servidão e liberdade eram muito fluidas. A história global do trabalho busca ainda investigar a interação e conexão entre diferentes localidades.[3]
A ampliação do conceito de trabalhador possibilitou incluir aqueles e aquelas que labutavam fora das fábricas e haviam sido invisibilizados até então. Nesse sentido, o primeiro artigo deste dossiê trata das trabalhadoras ligadas ao serviço doméstico carioca na virada do século XIX para o XX, que, apesar da sua intensa participação no mercado de trabalho da cidade, não receberam atenção dos estudiosos até muito pouco tempo. O texto de Natália Peçanha apresenta uma multiplicidade de agentes – tais como libertos, livres, nacionais e imigrantes –, e aponta como as experiências deles se entrelaçavam no serviço doméstico em um momento histórico em que as noções de liberdade e de trabalho livre e assalariado ainda se conformavam.
Os debates em torno das relações entre trabalho livre e escravo também estiveram no cerne do surgimento da Escola Agrícola da Bahia, inaugurada em 1877, em São Bento das Lages, no interior da Bahia. Idalina Freitas, em seu artigo, promove um diálogo entre os estudos da escravidão, do pós-abolição e dos mundos do trabalho ao tratar do espaço da escola como o resultado de um projeto de instrução pública para o pós-abolição. A construção da escola e do seu projeto político envolveu a mão de obra livre e escravizada e a preocupação com a instrução pública voltada para o trabalho, principalmente no seu aprimoramento agrícola, visando a formação de um operariado agrícola modernizado e mais competente, contrapondo-se ao que seria a agricultura praticada por escravos e ex-escravos, entendida naquele momento como exercida de forma menos “profissional”.
Os dois últimos artigos têm a escravidão como ponto de partida para pensar os mundos do trabalho na sociedade do século XIX em dois locais: Alagoas e Rio de Janeiro. No texto de Fábio Castilho, a condenação à morte de um escravo é o ponto de partida para relacionar a representatividade da escravidão n’O jornal do Pilar, de Alagoas, em um contexto de avanço das ações abolicionistas, mas ainda marcado por violências e por leis que reforçavam o castigo físico e a pena de morte para os crimes cometidos por escravos. A condenação à morte ou penas mais violentas contra os escravizados que cometessem crimes ou revoltas foi resultado de ações escravas da década de 1830 e que marcaram a sociedade escravista. Na década de 1870, período estudado por Castilho, a unanimidade por esse tipo de execução já não existia e por isso o debate ocorreu no principal jornal da cidade, e analisado pelo autor, possibilitando uma visão sobre as relações escravistas de uma província distante da Corte. Castilho finaliza com a análise do Censo de 1872, e apresenta que os dados para a região possibilitam verificar que os escravos majoritariamente trabalhavam na agricultura e no serviço doméstico, tendo alguns poucos cativos realizado algum trabalho manual mais especializado.
Já o artigo de Iamara Viana & Flavio Gomes traz a representatividade do corpo africano diante do mercado de mão de obra escravizada no Rio de Janeiro na primeira metade do XIX. Entre tensões e expectativas sobre o uso dessa mão de obra para o trabalho escravo, os autores usam processos cíveis e outras descrições, principalmente nos jornais, para mostrar a complexidade do corpo africano e seu uso para o trabalho escravizado. Através da análise de uma rica documentação do Arquivo Nacional, referente aos africanos remetidos a casa de correção, eles conseguiram elencar características comuns a esses corpos que somados aos discursos médicos foi possível perceber a construção de uma retórica e outras normas para o uso desses homens e mulheres para o trabalho escravizado. Importante ressaltar que a descrição do corpo africano fez parte do processo de venda e anúncios de homens e mulheres para o trabalho escravo desde o XVIII e se intensifica no Brasil, principalmente nos anúncios de venda e de fugas de algum escravizado africano.
Finalizamos o dossiê com uma entrevista com Fabiane Popinigis, professora da UFRRJ e coordenadora do Grupo de Trabalho – Mundos do Trabalho (GT-MT). Nesta entrevista, debatemos principalmente a trajetória recente da historiografia dedicada aos mundos do trabalho no Brasil, cujo tema do presente dossiê, as relações entre trabalhadores livres e escravos, tem ganhado cada vez mais destaque.
Esse número da Revista também conta com três contribuições na seção de artigos livres. O primeiro, de Daniel Venâncio & Euclides Freitas, diz respeito à fundação do Oliveira Sport Club, do Oeste de Minas em 1916, e a relação entre a elite e os eventos festivos ocorridos no clube. O texto seguinte, de Sandro Gomes, trata das eleições para deputado federal entre os anos de 1915 e 1918 no Estado do Paraná no que se refere às campanhas e ao desempenho eleitoral dos candidatos ao cargo. O terceiro texto, por Francisco Monteiro & Amanda Leal, constitui-se enquanto uma exposição de metodologia da pesquisa e de organização de acervos, a partir do trabalho realizado com os manuscritos eclesiásticos guardados na Paróquia de Nossa Senhora da Vitória, Diocese de Oiras, no Piauí. O último texto da seção, de autoria de Nívia Pombo, é uma interessante análise sobre as nomeações portuguesas para os cargos administrativos nas conquistas portuguesas entre 1796 e 1803, o perfil dos que ocuparam esses postos e o impacto da valorização dos saberes universitários na escolha para o exercício do cargo. Finaliza o presente número a nota de pesquisa de José Lúcio Nascimento Júnior, referente ao Congresso Internacional de História da América realizado pelo Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro em 1922.
Notas
1.Para um panorama de quais foram essas mudanças, ver: BATALHA, Cláudio H. M. Os desafios atuais da história do trabalho. Anos 90, Porto Alegre, v. 13, n. 23-24, 2006.
2. A presença de análises sobre as relações entre trabalhadores livres e escravizados na historiografia do trabalho no Brasil recente foi debatida pelos seguintes textos: TERRA, Paulo Cruz; POPINIGIS, Fabiane. Classe e raça na história do trabalho no Brasil (2001-2017). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 66, 2019; NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à história social do trabalho no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 29, n. 59, 2016.
3. A principal obra a apresentar a proposta da história global do trabalho é: LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: Ensaios para uma História Global do Trabalho. Campinas, Ed. Unicamp, 2013. No que diz respeito a alguns desdobramentos dessa perspectiva, ver: DE VITO, Christian. New perspectives on global labour history. Introduction. Workers of the World, v. 1, n. 3, 2013
Renata Figueiredo Moraes – Professora Adjunta de História do Brasil, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Mestre e graduada em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: renatafm2003@yahoo.com.br CV Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 7422043520205798
Paulo Cruz Terra – Professor Adjunto de História do Brasil, do Instituto de História, da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense; graduado em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: pauloterra@gmail.com CV Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 3005228142189797
MORAES, Renata Figueiredo; TERRA, Paulo Cruz. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.21, 2019. Acessar publicação original
Movimentos migratórios no mundo Atlântico, séculos XIX e XX / História (Unesp) / 2017
O passado esquecido e o presente trágico
O presente número da revista História (São Paulo) está constituído por dois dossiês, vários artigos livres e resenhas de importância inequívoca para o enriquecimento da discussão historiográfica do Brasil e também no âmbito internacional.
O dossiê 1, foi organizado pelo professor Paulo Gonçalves da UNESP – Campus de Assis, sobre o título Movimentos migratórios no mundo Atlântico, séculos XIX e XX. É evidente a atualidade do fenômeno migratório, cada vez mais desafiador, dos grandes deslocamentos populacionais, vítimas de graves crises econômicas, guerras ou genocídio étnico em seus países. Não é preciso retroceder aos horrores do genocídio étnico realizado pelo Império Turco Otomano aos armênios ocorrido durante a Primeira Grande Guerra e nem mesmo ao massacre de Ruanda ocorrido em 1994 (PRUNER, 1999) ou ao holocausto ocorrido na Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Basta atentarmos para o conflito interno da Síria iniciado em 2011 que tem gerado uma enorme onda migratória de sírios e árabes, sem paralelo na história do Continente, desde a Segunda Guerra Mundial. Ou para o genocídio étnico dos rohingya em Myanmar, país budista liderado pela Nobel da Paz Suu Kyi que se escancara aos olhos dos organismos internacionais sem que nada de significativo aconteça. O presente dossiê propõe uma volta ao passado, discutindo os movimentos migratórios dos séculos XIX e XX com vistas à compreensão das catástrofes que estamos vivendo no século XXI. O passado tem que ser sempre lembrado para que os dramas contemporâneos não se transformem em banalidades que não afetam a sensibilidade dos governos, dos organismos internacionais e de nós mesmos. É assim que entendemos Hobsbawm quando diz que o ofício dos historiadores é cada vez mais importante, pois cabe a ele lembrar o que os outros esquecem (HOBSBAWM, p. 13).
É sob esta perspectiva que foram reunidos aqui artigos que discutem diferentes aspectos de grupos e indivíduos e suas experiências no plano das migrações transoceânicas. Os artigos aqui elencados evocam temas bastante atuais de investigação através enfoques teóricos e metodológicos diversos. Aqui são tratados temas relativos às desesperanças e frustrações de imigrantes das mais diversas partes do mundo ao chegarem ao Brasil e em outros países, e constatarem que nada do que lhes foi prometido era realidade. Em suas sociedades de adoção tiveram que se submeter à condição de trabalhadores semelhantes aos escravos africanos, enfrentando preconceitos e imensas dificuldades de inserção social. O tráfico de mulheres brancas para fins de prostituição também compõe este quadro de degradação humana. Um dos artigos aqui apresentado discute tal fenômeno delimitando o espaço temporal de fins do século XIX a inícios do século XX, mas sua autora adverte que experiências dessa natureza não se encerram no passado, mas se fazem sempre presente nos deslocamentos de massa que caracterizam a época contemporânea.
O professor André Figueiredo Rodrigues, da UNESP – Campus de Assis e o professor Germán A. de la Reza, da Universidade Autônoma Metropolitana do México foram os organizadores do dossiê 2, que abrigou artigos abordando o tema Livros, bibliotecas e intelectuais no mundo ibero-americano (séculos XVI ao XX). A temática proposta pelo dossiê atraiu a atenção de estudiosos nacionais e internacionais que abordam o assunto sob os mais variados aspectos. Recebemos artigos sobre a história, a posse de livros e as práticas de leitura no mundo Ibero-Americano que circularam nos dois lados do Atlântico e mesmo dentro do continente americano entre os séculos XVI e XIX.
A materialidade e a discursividade de autores e suas obras, acervos bibliográficos e documentais, a historiografia do livro no universo colonial, hábitos de leitura e informações e discussões sobre as fontes disponíveis foram alguns dos temas explorados pelos artigos publicados no dossiê. Ressalte-se a discussão sobre a metodologia de análise e interpretação de fontes documentais sobre os participantes do Movimento da Inconfidência Mineira e da Insurreição Pernambucana de 1817, desenvolvidas em seus artigos pelos professores André Figueiredo e Luiz Carlos Villalta,respectivamente. Mas estes são apenas dois exemplos dos trabalhos que discutiram com densidade e profundidade a proposta do dossiê.
Enfim, nas leituras dos artigos do dossiê 2 podemos encontrar discussões instigantes a respeito das práticas de leituras em suas diversas modalidades, ou seja, podemos constatar uma coleção indefinida de experiências de leitura enquanto liberdade interpretativa e enquanto prática criativa autônoma dos indivíduos (CHARTIER, p. 121-139).
Por fim, os artigos livres publicados por esta revista neste número são variados em seus tratos teóricos, metodológicos e temáticos. Deixamos aos leitores fazer sua própria apreciação ao invés de falarmos sobre cada um deles.
Queremos tributar nossos sinceros agradecimentos aos professores que organizaram os dossiês, aos pareceristas que não hesitaram em dar suas contribuições para que a revista preserve a boa qualidade oferecida aos leitores e aos autores que deram preferência à revista História (São Paulo) para a divulgação de seus trabalhos.
Referências
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990. [ Links ]
PRUNER, Gérard. The Rwanda Crisis History of a Genocide. 2. Ed. Kamplala Fountain Publishers Limited, 1999. [ Links ]
HOBSBAWM, Eric. A Era dos extremos. O breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. [ Links ]
José Carlos Barreiro
Ricardo Alexandre Ferreira
Editores
BARREIRO, José Carlos; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Apresentação [O passado esquecido e o presente trágico]. História (São Paulo), Franca, v.36, 2017. Acessar publicação original [DR]
Pós-abolição no Mundo Atlântico / Revista Brasileira de História / 2015
O reconhecimento de escravos e libertos como sujeitos históricos acabou por influenciar os estudos sobre o destino dos escravizados e seus descendentes em antigas sociedades escravistas após a abolição legal da escravidão. No Brasil, se a década de 1980 representou um marco para a historiografia da escravidão, podemos pensar que os anos 2000 foram decisivos para a historiografia sobre as formas, condições e concepções de liberdade no pós-abolição. A produção de livros e documentários, a realização de eventos nacionais e internacionais e a formação de grupos de pesquisa adjetivados pelos termos “pós-emancipação” e “pós-abolição”, de norte a sul do país, atestam a emergência de um destacado campo de investigação, comprometido em reconstituir trajetórias, processos e experiências de liberdade da população negra no Brasil e nas Américas após a proibição legal da escravidão.
Em vistas da amplitude do campo, surgem muitas questões. O que significa pensar o pós-abolição como problema histórico? Quais os significados e limites da revogação legal da escravidão nas antigas sociedades escravistas do Atlântico? É possível construir definições precisas sobre o que seria esse pós-abolição? Quais os significados da abolição formal da escravidão? Pós-abolição e pós-emancipação são sinônimos ou representam formas distintas de enxergar e pesquisar as experiências de liberdade e os significados legais da abolição da escravidão? Quando começa e quando termina o pós-abolição? Qual o lugar das experiências de tornar-se livre e do abolicionismo do século XIX? Como a politização da memória da escravidão e o estudo do tempo presente contribuem para delimitação dos seus limites cronológicos? De que formas o trabalho com diversas concepções, fontes e metodologias do campo questiona a tese clássica de que os negros teriam ficados “abandonados à própria sorte”, trazendo para o centro da discussão debates relacionados aos direitos de cidadania, mundos do trabalho livre, racialização, racismo, mobilidade social, migrações, relações de gênero, gerações, acesso à terra, educação e movimentos sociais negros e indígenas em abordagens locais, transnacionais ou comparativas?
Essas são algumas das indagações sobre as quais se debruçaram autoras e autores dos trabalhos publicados no dossiê temático “Pós-abolição no Mundo Atlântico”, que integra a presente edição da Revista Brasileira de História.
O dossiê se abre com “No ritmo do Vagalume: culturas negras, associativismo dançante e nacionalidade da produção de Francisco Guimarães (1904-1933)”, de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. A trajetória e a obra do personagem analisado são utilizadas como fio condutor para uma imersão no universo da cultura popular do período. O autor destaca a valorização da agência negra nas crônicas de Guimarães, o Vagalume, sobre a vida musical e recreativa do Rio de Janeiro. Pereira situa a produção do popular cronista e dramaturgo carioca como parte de um processo de disputa sobre a identidade brasileira que tem entre os seus resultados o estabelecimento do samba como “ritmo capaz de representar a nacionalidade”.
Dois dos artigos revisitam o tema clássico do campesinato negro no pós-abolição nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. Em “Revisitando ‘Família e transição’: família, terra e mobilidade social no pós-abolição. Rio de Janeiro (1888-1940)”, Carlos Eduardo Coutinho da Costa analisa mais de seis décadas de registros civis do município de Nova Iguaçu, identificando os impactos econômicos e demográficos da citricultura sobre as famílias negras rurais da província fluminense e suas estratégias de mobilidade social. Em “Sr. Sidão Manoel Inácio e a conquista da cidadania: o campesinato negro do Morro Alto e a República que foi”, Rodrigo de Azevedo Weimer aborda a agência política do campesinato negro do litoral norte do Rio Grande do Sul na luta por direitos cidadãos durante a Primeira República.
Deslocando o foco para a Bahia, Wlamyra Albuquerque também aborda as conexões entre pós-abolição e cidadania em “Teodoro Sampaio e Rui Barbosa no tabuleiro da política: estratégias e alianças de homens de cor (1880-1919)”. Colocando o foco na experiência escrava da família de Teodoro Sampaio, a autora demonstra as conexões, aproximações e distanciamentos das trajetórias contemporâneas de dois destacados atores políticos baianos atuantes no final do Império e no início da República. Oferece ao leitor, desse modo, um olhar inovador sobre o contexto de atuação política de negros e brancos nas décadas que se seguiram à Abolição.
Dois outros artigos retomam o debate historiográfico sobre continuidades e rupturas entre a experiência escrava e o movimento operário. André Cicalo, em “Campos do pós-abolição: identidades laborais e experiência ‘negra’ entre os trabalhadores do café no Rio de Janeiro (1931-1964)” revisita o tema no setor portuário carioca, trazendo uma contribuição inovadora no que diz respeito ao estudo da racialização da estrutura ocupacional no cais. O tema da racialização reaparece em “As heranças do Rosário: associativismo operário e o silêncio da identidade étnico-racial no pós-abolição, Laguna (SC)”, de Thiago Juliano Sayão, que analisa o ocultamento da raça ou cor na Sociedade Recreativa União Operária (1903), fundada por afrodescendentes vinculados à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na cidade de Laguna, em Santa Catarina.
A perspectiva comparativa entre as experiências das duas maiores nações que passaram pelo processo emancipacionista no século XIX está presente em dois trabalhos do nosso dossiê: “Os perigos dos Negros Brancos: cultura mulata, classe e beleza eugênica no pós-emancipação (EUA, 1900-1920)”, de Giovana Xavier da Conceição Nascimento, e “O legado das canções escravas nos Estados Unidos e no Brasil: diálogos musicais no pós-abolição”, de Martha Abreu. Nascimento analisa, por meio de textos e imagens publicados em revistas norte-americanas, a emergência, nas primeiras décadas do século XX, de uma “pigmentocracia” decorrente do sistema de segregação intrarracial com base na tonalidade da pele. Já Abreu parte dos trabalhos de Du Bois e Coelho Netto para refletir sobre as similaridades dos legados da canção escrava – ou “som do cativeiro” – nos Estados Unidos e no Brasil.
Uma entrevista inédita realizada por Hebe Mattos e Martha Abreu com Eric Foner, historiador pioneiro no estudo do pós-emancipação nos Estados Unidos complementa o dossiê temático desta edição.
O presente volume traz seis trabalhos avulsos. Dois deles apresentam resultados inéditos de pesquisas sobre o movimento operário brasileiro entre as décadas de 1960 e 1980: “Relações Igreja-Estado em uma cidade operária durante a ditadura militar”, de Alejandra Luisa Magalhães Estevez, e “Uma greve que pôs em risco a Segurança Nacional: o caso do açúcar e a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida”, de Felipe Augusto dos Santos Ribeiro. A atuação social e política de intelectuais, religiosos e organizações católicas constitui o campo temático comum de “Os ativos intelectuais católicos no Brasil dos anos 1930”, de Helena Isabel Mueller, e “A Revista A Ordem e o ‘flagelo comunista’: na fronteira entre as esferas política, intelectual e religiosa”, de Marco Antônio Machado Lima Pereira. Em “‘Vivemos identificados com a civilização, dentro da civilização’: autoimagens urbanas nos sertões da Bahia”, Valter Gomes Santos de Oliveira analisa textos memorialísticos, matérias jornalísticas e fotografias produzidos pela pequena intelectualidade sertaneja na Bahia do início do século XX. Já Vitor Marcos Gregório, em “A emancipação negociada: os debates sobre a criação da província do Paraná e o sistema representativo imperial, 1843”, analisa a relação entre a criação de novas unidades administrativas e as alterações no funcionamento do sistema político do país.
O volume se conclui com três resenhas. Em “Trabalho, história ambiental e cana-de-açúcar em Cuba e no Brasil”, originalmente publicada em inglês na revista Social History, a professora Aviva Chomsky analisa quatro livros recentes sobre temáticas similares, dois deles tratando do Brasil (The Deepest Wounds: A Labor and Environmental History of Sugar in Northeast Brazil, de Thomas Rogers, e This Land Is Ours: Social Mobilization and the Meanings of Land in Brazil, de Wendy Wolford), os outros dois sobre Cuba (Blazing Cane: Sugar Communities, Class, and State Formation in Cuba, 1868-1959, de Gillian McGillivray, e From Rainforest to Cane Field in Cuba: An Environmental History since 1492, de Reinaldo Funes Monzote). Por fim, Walkiria Oliveira Silva apresenta ao leitor What is History for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography, de Arthur Alfaix Assis, e Jean Rodrigues Sales comenta a muito aguardada biografia Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos, de Daniel Aarão Reis Filho.
Alexandre Fortes – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Instituto Multidisciplinar. Nova Iguaçu, RJ, Brasil. E-mail: alexfortes@globo.com
Hebe Mattos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Niterói, RJ, Brasil. E-mail: hebe.mattos@gmail.com
FORTES, Alexandre; MATTOS, Hebe. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.35, n.69, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]
Circulação de saberes no Mundo Atlântico: escrita da história, cultura letrada e cultura científica / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014
A chegada dos europeus ao Novo Mundo promoveu, desde os primeiros contatos que se estabeleceram com as populações nativas, a produção de uma extensa e diversificada gama de documentos oficiais, relatos de viagens, crônicas, tratados, desenhos, mapas, inventários de história natural e coleções de espécimes. Mais do que meras percepções da Europa acerca do mundo que a expansão marítima, a conquista e a colonização criaram, esta produção escrita, iconográfica e cartográfica evidencia tanto a circulação de ideias, pessoas, objetos, saberes e práticas, quanto as configurações étnicas e identitárias resultantes do intenso contato intercultural. Uma produção que aponta, portanto, para a intensa circulação de ideias e de conhecimentos entre a América, a África e a Europa ocorrida durante a Idade Moderna.
Este dossiê foi organizado, justamente, para divulgar os trabalhos de pesquisadores que, à luz das contribuições da História Social, Cultural e das Ciências, vêm refletindo sobre este intenso processo de circulação de ideias, saberes e práticas que se estendeu do século XVI ao XIX. Como o leitor poderá acompanhar nas páginas seguintes, os artigos que compõem este dossiê se debruçam sobre essa temática a partir de diferentes abordagens e refletem sobre sujeitos, espaços e tempos distintos, não descuidando de discutir sobre as diversas maneiras de se escrever a história destas incontáveis e intensas situações de interculturalidade. Situações que alimentaram um movimento contínuo de cruzamento e reposição de fronteiras territoriais, étnicas e políticas, que articularam diferentes estratégias individuais, coletivas e institucionais, e favoreceram diferentes fluxos de informações e de apropriações materiais ou simbólicas.
No primeiro artigo, intitulado Entre homens de saber, de letras e de ciências, médicos e outros agentes da cura no Brasil Colonial, Ana Carolina de Carvalho Viotti nos oferece uma ampla caracterização do período que antecedeu o estabelecimento da Corte portuguesa, evento que acabaria por introduzir e difundir o ensino e a prática essencialmente médica no Brasil do início do século XIX. De acordo com a autora, o período colonial foi marcado pela pluralidade de agentes e saberes curativos e pelo intenso intercâmbio entre as ideias advindas do Velho Mundo e as necessidades – e possibilidades – que os trópicos criavam aos que neles viviam.
O pão das Índias: o milho nos relatos de Diego Durán e José de Acosta é o título do artigo de Luís Guilherme Assis Kalil e Renato Denadai da Silva. Nele, os autores analisam textos produzidos pelo dominicano Diego Durán e pelo jesuíta José de Acosta, enfocando a compreensão que tiveram do universo indígena, em especial da relação estabelecida entre a alimentação e as crenças indígenas, tema ainda pouco explorado pela historiografia sobre as Américas. Kalil e Denadai da Silva não apenas identificam diversas representações do milho, como destacam seu papel de mediador na incorporação intelectual de um universo natural e moral distinto do dos europeus.
No terceiro artigo, intitulado Mediações culturais no além-mar: O padre Mamiani e os usos da Língua Kariri nas brenhas dos sertões, Ane Luíse Mecenas Santos aborda o papel de mediador cultural desempenhado pelo padre jesuíta Mamiani que, encarregado da conversão de indígenas Kiriri, grupo que não falava a língua geral e vivia nos sertões da Capitania de Sergipe Del Rey, escreveu, ao final do século XVII, uma gramática e um catecismo, através dos quais é possível reconstituir aspectos da cultura Kiriri, em especial, de suas manifestações de religiosidade.
Clio no Ultramar: elementos da historiografia portuguesa nas narrativas seiscentistas da “guerra holandesa” é o título do artigo de Kleber Clementino, para quem a historiografia portuguesa reverbera nas narrativas sobre a presença holandesa no Atlântico Sul (1630-1654), indicando que, embora as obras devam ser lidas em diálogo com seus contextos históricos específicos, as concepções de história e os elementos retóricos que as caracterizam se inspiram em um paradigma historiográfico enraizado na Península Ibérica.
No artigo seguinte, A escrita e o envio de cartas do governador-geral Francisco Barreto (1657-1663), Caroline Garcia Mendes destaca a importância da correspondência para a comunicação e para a administração portuguesa no além-mar no século XVII. A autora analisa, especificamente, as cartas enviadas pelo governador-geral Francisco Barreto a oficiais no interior do Estado do Brasil e para o Reino, entre os anos de 1657 e 1663, discorrendo sobre as redes de informação que se formaram entre a Europa e a América portuguesa no período.
Já Antonio Astorgano, em La difícil circulación de los libros devocionales del jesuíta mexicano José Ignacio Vallejo (1772-1788) analisa a trajetória desse padre da Companhia de Jesus, destacando sua atuação em colégios da Guatemala e da Itália. O autor explora suas relações pouco amistosas com personagens como Ventura Figueroa e, também, com o conde de Floridablanca, com o duque de Grimaldi e com José Nicolás de Azara, embaixadores junto à Santa Sé, vinculando-as às dificuldades de introdução e circulação de seus livros de devoção na América.
Também Marcelo Cheche Galves e Romário Sampaio Basílio, no artigo intitulado Saberes em circulação na América portuguesa: os estudantes maranhenses na Universidade de Coimbra (1778-1823), se dedicam à análise da circulação de impressos em São Luís do Maranhão e em Lisboa, no período de 1778-1823, com base na documentação da Real Mesa Censória, preservada pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Além de apontar para as razões da circulação de homens e livros em um momento de importantes transformações na Capitania, os autores referem a prática das remessas de impressos por estudantes maranhenses formados em Coimbra, destacando algumas das obras enviadas ou trazidas em suas bagagens.
O artigo Viagem ao Brasil: produção e circulação entre o público europeu do século XIX de Igor de Lima e Silva encerra o dossiê. O autor aborda a produção e a circulação da narrativa Viagem ao Brasil, do naturalista prussiano Maximiliano de Wied-Neuwied, que percorreu regiões do Brasil entre os anos de 1815 a 1817. A infinidade de informações sobre a fauna, a flora e os povos indígenas que Wied-Neuwied recolheu foi – após seu retorno à Europa – reunida e divulgada sob a forma de livro. Os dois volumes de Viagem ao Brasil foram lançados em 1821-1822 alcançando grande repercussão, com várias edições e traduções para vários idiomas. Lima e Silva se detém na análise dessas diferentes edições e traduções que a obra teve ao longo do século XIX, identificando e refletindo sobre as significativas alterações e sobre os efeitos da “imagem difusa” – e até deturpada – que elas ajudaram a difundir.
Na seção de artigos livres, o leitor poderá travar contato com duas produções de temáticas distintas, mas que acabam por fornecer um quadro sobre aspectos da economia e da cultura religiosa na América portuguesa do Antigo Regime – conferindo, em termos de conjuntura, um valor complementar aos estudos do dossiê.
Breno Almeida Vaz Lisboa, em seu artigo Engenhos, açúcares e negócios na capitania de Pernambuco (c. 1655 – c. 1750), procura pensar a economia açucareira da capitania pernambucana entre o fim do século XVII e o início do XVIII. A despeito da crise economia seiscentista, o autor constata que novos engenhos foram levantados nessa capitania entre as décadas de 1650 e 1750. Tal dado, segundo ele, aponta para o desenvolvimento de práticas comerciais paralelas que, por sua vez, ajudariam à indústria açucareira a contornar os problemas econômicos pelos quais passava.
Já o artigo de André Cabral Honor intitulado Origem e expansão no mundo luso da observação de Rennes: a mística-militante dos carmelitas turônicos ou reformados no século XVII e XVIII discute as ressonâncias da formulação das Constituições Carmelitas da Estrita Observância no contexto da América portuguesa. Vulgarmente denominadas de “Reforma Turônica”, tais constituições forneceram aos carmelitas calçados uma legislação que buscava conciliar a experiência mística à catequese. Segundo o autor, ainda que os seguidores dessa nova observância não tenham formado uma nova ordem religiosa, ela acarretou na divisão dos frades carmelitas que daria origem à Província Reformada de Pernambuco, no ano de 1725.
Os trabalhos publicados nesta edição oferecem, direta ou indiretamente, uma radiografia da cultura escrita no Mundo Atlântico. Uma cultura que participou na formação de modelos explicativos coevos (historiográficos, científicos, etc.); enriqueceu-se pela circulação de homens de letras e de seus escritos; reafirmou, validou e traduziu – através de práticas discursivas – políticas administrativas, espaços de domínio e padrões de sociabilidade.
Fechando esta edição, contamos com uma resenha crítica que analisa a obra recém publicada de Antônio Jorge Siqueira, Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades, de autoria de Márcio Ananias Ferreira Vilela.
Juntamente com o editor da Revista Clio e os autores dos artigos do presente número de 2014 – aos quais agradecemos pelas contribuições –, oferecemos este dossiê com a expectativa de que seus leitores dêem continuidade ao esforço de compreensão e de reflexão sobre as formas que a circulação de ideias e de conhecimentos entre América, África e Europa assumiu e sobre seus efeitos nas configurações sociais, culturais e políticas nas duas margens do Atlântico.
Eliane Cristina Deckmann Fleck – UNISINOS
Marília de Azambuja Ribeiro – UFPE
FLECK, Eliane Cristina Deckmann; RIBEIRO, Marília de Azambuja. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.1, jan / jun, 2014. Acessar publicação original [DR]
Circulação de saberes no Mundo Atlântico: escrita da história, cultura letrada e cultura científica / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014
A chegada dos europeus ao Novo Mundo promoveu, desde os primeiros contatos que se estabeleceram com as populações nativas, a produção de uma extensa e diversificada gama de documentos oficiais, relatos de viagens, crônicas, tratados, desenhos, mapas, inventários de história natural e coleções de espécimes. Mais do que meras percepções da Europa acerca do mundo que a expansão marítima, a conquista e a colonização criaram, esta produção escrita, iconográfica e cartográfica evidencia tanto a circulação de ideias, pessoas, objetos, saberes e práticas, quanto as configurações étnicas e identitárias resultantes do intenso contato intercultural. Uma produção que aponta, portanto, para a intensa circulação de ideias e de conhecimentos entre a América, a África e a Europa ocorrida durante a Idade Moderna.
Este dossiê foi organizado, justamente, para divulgar os trabalhos de pesquisadores que, à luz das contribuições da História Social, Cultural e das Ciências, vêm refletindo sobre este intenso processo de circulação de ideias, saberes e práticas que se estendeu do século XVI ao XIX. Como o leitor poderá acompanhar nas páginas seguintes, os artigos que compõem este dossiê se debruçam sobre essa temática a partir de diferentes abordagens e refletem sobre sujeitos, espaços e tempos distintos, não descuidando de discutir sobre as diversas maneiras de se escrever a história destas incontáveis e intensas situações de interculturalidade. Situações que alimentaram um movimento contínuo de cruzamento e reposição de fronteiras territoriais, étnicas e políticas, que articularam diferentes estratégias individuais, coletivas e institucionais, e favoreceram diferentes fluxos de informações e de apropriações materiais ou simbólicas.
No primeiro artigo, intitulado Entre homens de saber, de letras e de ciências, médicos e outros agentes da cura no Brasil Colonial, Ana Carolina de Carvalho Viotti nos oferece uma ampla caracterização do período que antecedeu o estabelecimento da Corte portuguesa, evento que acabaria por introduzir e difundir o ensino e a prática essencialmente médica no Brasil do início do século XIX. De acordo com a autora, o período colonial foi marcado pela pluralidade de agentes e saberes curativos e pelo intenso intercâmbio entre as ideias advindas do Velho Mundo e as necessidades – e possibilidades – que os trópicos criavam aos que neles viviam.
O pão das Índias: o milho nos relatos de Diego Durán e José de Acosta é o título do artigo de Luís Guilherme Assis Kalil e Renato Denadai da Silva. Nele, os autores analisam textos produzidos pelo dominicano Diego Durán e pelo jesuíta José de Acosta, enfocando a compreensão que tiveram do universo indígena, em especial da relação estabelecida entre a alimentação e as crenças indígenas, tema ainda pouco explorado pela historiografia sobre as Américas. Kalil e Denadai da Silva não apenas identificam diversas representações do milho, como destacam seu papel de mediador na incorporação intelectual de um universo natural e moral distinto do dos europeus.
No terceiro artigo, intitulado Mediações culturais no além-mar: O padre Mamiani e os usos da Língua Kariri nas brenhas dos sertões, Ane Luíse Mecenas Santos aborda o papel de mediador cultural desempenhado pelo padre jesuíta Mamiani que, encarregado da conversão de indígenas Kiriri, grupo que não falava a língua geral e vivia nos sertões da Capitania de Sergipe Del Rey, escreveu, ao final do século XVII, uma gramática e um catecismo, através dos quais é possível reconstituir aspectos da cultura Kiriri, em especial, de suas manifestações de religiosidade.
Clio no Ultramar: elementos da historiografia portuguesa nas narrativas seiscentistas da “guerra holandesa” é o título do artigo de Kleber Clementino, para quem a historiografia portuguesa reverbera nas narrativas sobre a presença holandesa no Atlântico Sul (1630-1654), indicando que, embora as obras devam ser lidas em diálogo com seus contextos históricos específicos, as concepções de história e os elementos retóricos que as caracterizam se inspiram em um paradigma historiográfico enraizado na Península Ibérica.
No artigo seguinte, A escrita e o envio de cartas do governador-geral Francisco Barreto (1657-1663), Caroline Garcia Mendes destaca a importância da correspondência para a comunicação e para a administração portuguesa no além-mar no século XVII. A autora analisa, especificamente, as cartas enviadas pelo governador-geral Francisco Barreto a oficiais no interior do Estado do Brasil e para o Reino, entre os anos de 1657 e 1663, discorrendo sobre as redes de informação que se formaram entre a Europa e a América portuguesa no período.
Já Antonio Astorgano, em La difícil circulación de los libros devocionales del jesuíta mexicano José Ignacio Vallejo (1772-1788) analisa a trajetória desse padre da Companhia de Jesus, destacando sua atuação em colégios da Guatemala e da Itália. O autor explora suas relações pouco amistosas com personagens como Ventura Figueroa e, também, com o conde de Floridablanca, com o duque de Grimaldi e com José Nicolás de Azara, embaixadores junto à Santa Sé, vinculando-as às dificuldades de introdução e circulação de seus livros de devoção na América.
Também Marcelo Cheche Galves e Romário Sampaio Basílio, no artigo intitulado Saberes em circulação na América portuguesa: os estudantes maranhenses na Universidade de Coimbra (1778-1823), se dedicam à análise da circulação de impressos em São Luís do Maranhão e em Lisboa, no período de 1778-1823, com base na documentação da Real Mesa Censória, preservada pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Além de apontar para as razões da circulação de homens e livros em um momento de importantes transformações na Capitania, os autores referem a prática das remessas de impressos por estudantes maranhenses formados em Coimbra, destacando algumas das obras enviadas ou trazidas em suas bagagens.
O artigo Viagem ao Brasil: produção e circulação entre o público europeu do século XIX de Igor de Lima e Silva encerra o dossiê. O autor aborda a produção e a circulação da narrativa Viagem ao Brasil, do naturalista prussiano Maximiliano de Wied-Neuwied, que percorreu regiões do Brasil entre os anos de 1815 a 1817. A infinidade de informações sobre a fauna, a flora e os povos indígenas que Wied-Neuwied recolheu foi – após seu retorno à Europa – reunida e divulgada sob a forma de livro. Os dois volumes de Viagem ao Brasil foram lançados em 1821-1822 alcançando grande repercussão, com várias edições e traduções para vários idiomas. Lima e Silva se detém na análise dessas diferentes edições e traduções que a obra teve ao longo do século XIX, identificando e refletindo sobre as significativas alterações e sobre os efeitos da “imagem difusa” – e até deturpada – que elas ajudaram a difundir.
Na seção de artigos livres, o leitor poderá travar contato com duas produções de temáticas distintas, mas que acabam por fornecer um quadro sobre aspectos da economia e da cultura religiosa na América portuguesa do Antigo Regime – conferindo, em termos de conjuntura, um valor complementar aos estudos do dossiê.
Breno Almeida Vaz Lisboa, em seu artigo Engenhos, açúcares e negócios na capitania de Pernambuco (c. 1655 – c. 1750), procura pensar a economia açucareira da capitania pernambucana entre o fim do século XVII e o início do XVIII. A despeito da crise economia seiscentista, o autor constata que novos engenhos foram levantados nessa capitania entre as décadas de 1650 e 1750. Tal dado, segundo ele, aponta para o desenvolvimento de práticas comerciais paralelas que, por sua vez, ajudariam à indústria açucareira a contornar os problemas econômicos pelos quais passava.
Já o artigo de André Cabral Honor intitulado Origem e expansão no mundo luso da observação de Rennes: a mística-militante dos carmelitas turônicos ou reformados no século XVII e XVIII discute as ressonâncias da formulação das Constituições Carmelitas da Estrita Observância no contexto da América portuguesa. Vulgarmente denominadas de “Reforma Turônica”, tais constituições forneceram aos carmelitas calçados uma legislação que buscava conciliar a experiência mística à catequese. Segundo o autor, ainda que os seguidores dessa nova observância não tenham formado uma nova ordem religiosa, ela acarretou na divisão dos frades carmelitas que daria origem à Província Reformada de Pernambuco, no ano de 1725.
Os trabalhos publicados nesta edição oferecem, direta ou indiretamente, uma radiografia da cultura escrita no Mundo Atlântico. Uma cultura que participou na formação de modelos explicativos coevos (historiográficos, científicos, etc.); enriqueceu-se pela circulação de homens de letras e de seus escritos; reafirmou, validou e traduziu – através de práticas discursivas – políticas administrativas, espaços de domínio e padrões de sociabilidade.
Fechando esta edição, contamos com uma resenha crítica que analisa a obra recém publicada de Antônio Jorge Siqueira, Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades, de autoria de Márcio Ananias Ferreira Vilela.
Juntamente com o editor da Revista Clio e os autores dos artigos do presente número de 2014 – aos quais agradecemos pelas contribuições –, oferecemos este dossiê com a expectativa de que seus leitores dêem continuidade ao esforço de compreensão e de reflexão sobre as formas que a circulação de ideias e de conhecimentos entre América, África e Europa assumiu e sobre seus efeitos nas configurações sociais, culturais e políticas nas duas margens do Atlântico.
Eliane Cristina Deckmann Fleck – UNISINOS
Marília de Azambuja Ribeiro – UFPE
FLECK, Eliane Cristina Deckmann; RIBEIRO, Marília de Azambuja. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.1, jan / jun, 2014. Acessar publicação original [DR]