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Mulheres, Humor e Cultura de Massa / Tempo e Argumento / 2020
A emergência da história das mulheres e dos estudos de gênero é tributária dos movimentos de mulheres e feministas que se mobilizaram a partir dos anos 1960 nos Estados Unidos, na Europa e mesmo em países que viviam ditaduras, como é o caso do Brasil. A história das mulheres foi responsável por fazer o questionamento primeiro: onde estão as mulheres na História? A partir dessa pergunta, historiadoras como Natalie Zemon Davis (1997) e Michelle Perrot (1992; 2005; 2007) dedicaram-se a mostrar como o silêncio das mulheres na História não é um problema de fontes ou de ausência propriamente, mas sim uma questão política. Bonnie Smith (2003), procurando entender a construção da História como ciência no século XIX, aponta como ela foi construída como masculina em termos de teoria e métodos, negando o feminino, as mulheres e tudo que elas representam. A arte e a literatura fizeram movimentos parecidos, questionando seus campos de conhecimento. A escrita de novas páginas na História, contudo, encontrou limites que, de acordo com Joan Scott (1995), foram respondidos com a categoria gênero, capaz de pensar não apenas as negações da História, como o papel dela na própria construção do gênero.
Joana Maria Pedro e Rachel Soihet (2007) apontam o importante papel da história das mulheres, ao mostrar a parcialidade do conhecimento histórico, e destacam o desafio político historiográfico da categoria. O campo se fortaleceu. Gênero, categoria teórica / política distorcida na “ideologia de gênero”, é hoje responsável por investigações importantes, qualificadas e internacionalmente conhecidas na área de História. Criou-se um campo dentro da História que debate as relações entre homens e mulheres, o que alguns chamam de gueto. Georg Iggers (2010) aponta gênero como um dos principais desafios à historiografia do século XXI. Apesar da resistência à categoria e ao campo, a História tem incorporado gênero como tema transversal, como indicam Joana Maria Pedro (2011) e Carla Pinsky (2009).
As mulheres e a perspectiva de gênero, portanto, são uma questão permanente na História e isso vale para a história cultural do humor que, apesar do progressismo teórico e metodológico, segue em dívida com um dos principais movimentos do século XX, o feminista, e com um dos maiores desafios à historiografia do século XXI, os estudos de gênero.
O humor contribui para forjar laços de solidariedade, sociabilidades, reforçar relações de poder e dominação, atuar como instrumento de resistência política e social, dar visibilidade a grupos sociais colocados à margem da sociedade, fortalecer ou, ao contrário, minar padrões estéticos e de moralidade. Dito isso, não há dúvida que o humor interessa profundamente às mulheres e à História e, combinados, à perspectiva de gênero. É nesse sentido que este dossiê foi pensado, buscando colocar no cerne da reflexão histórica a relação entre as mulheres e o humor, especialmente os usos do humor por parte delas que, não raro, ao colocarem-se como protagonistas do humor e do riso lançam mão de gestos profundamente feministas.
Os artigos que compõem este dossiê são prova qualificada de que há um inexplorado universo de fontes que permitem reflexões sobre o humor das mulheres do ponto de vista de gênero, insinuando possibilidades que já não podem ser ignoradas. Há, de fato, uma mínima produção sobre mulheres humoristas, e os textos da sequência têm o importante papel de romper com esse silêncio ao preencher lacunas e fazer justiça. No entanto, mais do que isso, eles apontam a transversalidade da categoria gênero e o frescor que tal olhar lança à história cultural do humor, campo consolidado nos anos 1990 a partir da história cultural, mas ainda reticente aos desafios impostos pelos estudos de gênero à História. A partir das ideias e ideais de feminino e masculino, os artigos do dossiê Mulheres, Humor e Cultura de Massa oxigenam os estudos históricos sobre humor.
Na convocatória, priorizamos artigos que a partir dos campos dos estudos de gênero e da história do tempo presente discutissem o humor produzido por mulheres com foco especial na arte e nos veículos da cultura de massa. A resposta de pesquisadoras(es) indicou que a demanda por textos com foco no humor produzido por mulheres faz sentido, dado o número e a qualidade dos textos que integram o dossiê. No que se refere às fontes, a adesão das(os) pesquisadoras(os) indicou a predominância do humor gráfico e dos quadrinhos como objeto de interesse.
A chamada deste dossiê, obviamente, contemplava os temas de pesquisa de suas organizadoras, historiadoras que exploram humor gráfico como fonte, mas por ocasião da construção da chamada do dossiê, vimos a necessidade de ampliar tal recorte e indicar como temas pertinentes os debates sobre humor no cinema, na rádio, na televisão, na literatura, no teatro. Todos os artigos submetidos, no entanto, versam sobre humor gráfico e quadrinhos, um indicativo da potência deste tipo de documento para a História, especialmente se tratando de história das mulheres e de uma perspectiva de gênero.
O caminho trilhado coletiva e espontaneamente indica que o humor gráfico e os quadrinhos são fontes privilegiadas para a reflexão sobre humor e mulheres, inclusive na contemporaneidade, momento em que a Internet é plataforma permanente de difusão do trabalho de cartunistas mulheres. Há quem diga, inclusive, que elas são maioria hoje. A adesão maciça ao humor gráfico e aos quadrinhos como fontes apontam, ainda, que há um universo de possibilidades de estudos sobre humor e mulheres na arte (literatura, cinema, teatro) e na imprensa (folhetos, televisão, rádio). Esperamos que este dossiê seja um pequeno passo nesta direção.
Composto por oito artigos, apresentados brevemente na sequência, o dossiê conta com a contribuição de pesquisadoras(es) brasileiras(os) e argentinas que lançam luz sobre cartunistas e quadrinistas do passado e do presente, sobre suportes impressos e digitais, sobre a produção nacional, latino-americana e europeia, e esmiúça experiências de pesquisa exaustivas e revisão necessária num campo que tem se construído no masculino. Os quatro primeiros textos informam-nos sobre a (in)disciplina das mulheres no uso do humor a partir de uma perspectiva feminista. Os quatro textos seguintes advertem-nos sobre as relações entre silêncio e História quando os sujeitos são mulheres e o assunto é história do humor gráfico e dos quadrinhos, alertando ainda para a potência da produção contemporânea e uso da Internet na transformação dessa realidade.
Maria da Conceição Francisca Pires, no artigo A defesa da interrupção voluntaria da gravidez nos cartuns “Abortinho” de Fabiane Langona (2015-2017), explora a apropriação de debates feministas por parte de cartunistas brasileiras, enfatizando especialmente às reações de hostilidade à série Abortinho, da cartunista Fabiane Langona, expressas por meio das redes sociais. A análise recai sobre os recursos visuais e discursivos da cartunista ao tratar do tema aborto como problema social e político no contexto de discussão do Projeto de Lei 5.069, de 2003, que propunha modificações na Lei 12.845, que versa sobre o atendimento integral e obrigatório a pessoas em situação de violência sexual. O texto elabora reflexão sobre o tabu que orbita em torno do tema aborto, mesmo pelo humor gráfico, que ora o aborda de maneira didática, ora em forma de denúncia ou como apresentação de uma demanda pública. De acordo com a autora, Fabiane Langona, através de sua personagem, lança mão de recursos imagéticos e discursivos, aderindo ao estilo grotesco para subverter e inverter padrões e colocar no centro da discussão a relação entre aborto e cidadania.
Estética e humor nos quadrinhos feministas: a reconquista política do corpo pelo riso na HQ “A origem do mundo” (2018), de Daiany Ferreira Dantas, explora conceitos como grotesco e o grotesco feminino – elemento importante da crítica feminista – para analisar estratégias de humor no quadrinho A origem do mundo: uma história cultural da vagina ou vulva vs. patriarcado, da quadrinista sueca Liv Strömquist, publicado em 2018 e traduzido para 22 línguas. O texto indica a existência de uma estética feminista produzida pelo riso a partir do uso da categoria gênero e da crítica feminista na problematização do corpo clássico. O corpo feminino é colocado em suspenso pela obra analisada, que conta uma história da genitália feminina através do estilo caricato de Strömquist. De acordo com a autora, esse caminho também vem sendo trilhado por cartunistas latinoamericanas como a argentina, Maitena Burundarena, e as brasileiras, Sirlanney e Gabriela Masson, que ressignificam o baixo corporal. Evidenciando o histórico “apagamento gráfico da imagem da vulva”, o artigo aponta como o quadrinho analisado repete e inverte discursos médicos, acadêmicos, religiosos, filosóficos e psicanalíticos sobre o corpo das mulheres tornando-os risíveis na reivindicação da integridade e do desejo do corpo feminino.
Em ‘“El humor es una guerra que no produce muerte sino risa”: uma análise histórica do humor gráfico feminista latino-americano de Diana Raznovich (1990), Cintia Lima Crescêncio recupera cartuns de Diana Raznovich, publicados na revista latino-americana Fempress nos anos de 1996 e 1997, para refletir sobre a categoria de humor-guerra, proposta pela própria cartunista. Em tempos de negação do feminismo por medo de estereótipos, a artista argentina, também autora de livros e peças de teatro, apropriava-se do humor como instrumento de expressão artística, mas principalmente como instrumento de luta feminista. Para ela, o humor feminista era meio de “viver, sobreviver e lutar”. No artigo também são explorados textos e entrevistas da imprensa feminista da Argentina, do Chile e do Uruguai que insinuam a forte presença de Diana Raznovich nos debates feministas latino-americanos, como também uma preocupação com os usos e abusos do humor por parte da militância feminista. Em sua análise, a autora sublinha que o humor gráfico da cartunista argentina questiona modelos de feminilidade, critica estruturas injustas e patriarcais e flerta com o riso de si mesma, alargando as expectativas do humor convencional e do humor produzido por mulheres, inclusive por feministas.
O artigo de Vinícius Lebel, intitulado Marie Marcks: a visualidade do político e o Feminismo ilustrado na Alemanha (1963 – 2014), propõe refletir, através do método documentário de análise de imagens, sobre as obras mais representativas da desenhista alemã Marie Marcks. Por meio da problematização de charges que se ocupam da crítica à sociedade patriarcal, machista e conservadora, somos apresentadas(os) a uma importante voz do feminismo alemão. A artista foi responsável por “inserir um olhar feminino e feminista na arena pública alemã, construindo uma visualidade própria” entre as décadas de 1960 e 1980. O texto expõe a ação da artista no campo visual do político no movimento de publicizar nas páginas dos principais meios de comunicações do país a vivência das mulheres alemãs. Embora alvo de críticas por reproduzir a realidade das mulheres, sem apontar perspectivas de mudança, e mesmo por não ser filiada oficialmente a organizações feministas, o autor propõe que sua obra é plenamente feminista, em função da condição da artista, do seu conteúdo e de seu gesto político-feminista.
Mara Burkart, com o texto Trazos interrumpidos: Humoristas mujeres en la prensa de humor (Argentina, 1974-1984), informa-nos sobre a forte presença de mulheres no humor gráfico argentino, a partir da década de 1980, e faz um recuo no tempo para analisar as condições sociais da produção de humoristas mulheres entre 1974 e 1984 e os temas que mobilizavam as cartunistas Nelly Hoijman, Patricia Breccia, Lucía Capozzo y Marta Vicente, artistas que publicavam em uma imprensa dominada por homens. Ao propor a construção de uma nova história do humor gráfico, visto que identifica que a história das humoristas “está pendiente de escribirse”, e pautada na crítica feminista da história da arte, a autora analisa as experiências autorais e editoriais dessas mulheres no cartum. Identificando a riqueza e o valor da história do humor gráfico argentino, e apontando a invisibilização ou mesmo ausência das mulheres em suas narrativas, o artigo expõe e analisa o caso de cartunistas que tiveram experiências breves, “interrompidas” na imprensa de humor argentina. Sem assumirem-se feministas, as cartunistas apresentadas no texto apropriaram-se do direito de incursionar em um mundo dominado por homens, tematizando temas “femininos”, mas também explorando a fluidez das expectativas de gênero.
No artigo Nosotras contamos. Notas en torno a construir genealogía feminista en el campo de la historieta y el humor gráfico (Argentina, 1933 – 2019), Mariela Alejandra Acevedo apresenta um cenário de rejeição e apagamento das mulheres na história do humor gráfico e dos quadrinhos argentinos, que passou por mudanças a partir da emergência e fortalecimento dos movimentos feministas. A articulação desses dois contextos permitiu a emergência do coletivo Feminismo Gráfico, que se propunha a reunir materiais de autoras de quadrinhos e de humor gráfico entre as décadas de 1930 e 2018 a serem apresentados na mostra “Nosotras contamos. Un recorrido por la obra de autoras de historieta y humor gráfico de ayer y hoy”. O texto apresenta a proposta do projeto, construído a partir de uma genealogia feminista, explorando o conceito de “ginocrítica” para “recuperar las voces y experiencias de las mujeres cis y trans, lesbianas, travestis y personas no binarias que dejaron huellas en el recorrido”, e sugerindo uma aproximação entre o humor gráfico e os quadrinhos de modo a não fragmentar a produção artística de suas autoras. A autora apresenta-nos a jornada de pesquisa, organização e reflexão sobre a construção da mostra que ocupou as paredes da “Redacción Abierta de Latfem” em Buenos Aires, uma experiência acadêmica, histórica e feminista, compilada também em um site.
Ivan Lima Gomes, no artigo Mulheres e (m) quadrinhos: caminhos e perspectivas historiográficas, identifica que as histórias em quadrinhos “permitem dar visibilidade de maneira única às lutas feministas do tempo presente”, o que tem ocasionado um amplo interesse acadêmico sobre o assunto. Atento a esse movimento, o autor propõe uma investigação e análise da atuação das mulheres no campo que inclui uma discussão sobre as pesquisas acadêmicas desenvolvidas no Brasil. Enfatizando o incontornável protagonismo feminista nas discussões públicas e políticas contemporâneas, expressas através da ampla utilização da Internet, o texto explora os usos das histórias em quadrinhos para tematizar e problematizar a história oficial, elaborando uma espécie de estado da arte do ponto de vista de gênero. Atestando a “indisciplina” dos comic studies, marcados por inegável diversidade, e indicando o silenciamento da história dos quadrinhos no que se refere à presença das mulheres, o autor apresenta-nos um caminho a ser trilhado por uma História que não tenha o silêncio das mulheres como possibilidade e que rume em direção a uma história feminista das HQs.
Marilda Lopes Pinheiro Queluz, no artigo Rir juntas é o melhor remédio contra os tempos temerosos: crítica e humor nas tiras de Thaïs Gualberto e de Fabiane Langona (2016-2018), reflete sobre o humor gráfico produzido por Thaïs Gualberto e Fabiane Langona e inspirado no período marcado pelo impeachment de Dilma Rousseffe pelo final do governo Michel Temer. A autora prioriza uma reflexão sobre a articulação entre esse contexto e as questões feministas que marcaram a conjuntura do golpe de 2016 a partir de duas cartunistas mulheres, com enfoque em uma “perspectiva de gênero”. Explorando tiras publicadas na Folha de S. Paulo, o artigo evidencia uma produção de humor gráfico contemporânea marcada por preocupações que interseccionam gênero, classe, raça e etnia, cujo motor do humor é o absurdo da desigualdade de gênero, bem como sublinham o riso sobre os estereótipos, as identidades nacionais e o cenário de intolerância e conservadorismo que marcam o contexto de produção das tiras analisadas. Entre distanciamentos e aproximações, as duas cartunistas, segundo a autora, provocam um riso dolorido ao colocar em relevo a história contemporânea do nosso país.
Referências
DAVIS, Natalie Zemon. Women on the margins: three seventeenth-century lives. Cambridge: Harvard University Press, 1997.
IGGERS, Georg. Desafios do século XXI à historiografia. História da Historiografia. Ouro Preto, número 04, p. 105-124. Março de 2010.
PEDRO, Joana Maria e SOIHET, Rachel. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 54, p. 281-300, 2007.
PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia. Topoi (Rio J.) vol.12 no.22 Rio de Janeiro, p. 270-283, Jan. / June 2011.
PERROT, Michelle Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
PERROT, Michelle. As Mulheres ou os Silêncios da História. Bauru, SP: EDUSC, 2005.
PERROT, Michelle. Os Excluidos da História: Operários, Mulheres e Prisioneiros. 2. Ed. Rio de Janeiro, Rj: Paz e Terra, 1992.
PINSKY, Carla Bassanezi. Estudos de Gênero e História Social. Estudos Feministas. v. 17, n. 1, Florianópolis: UFSC, p. 159-189, 2009.
SCOTT, Joan W. Gênero, uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, 16(2), p. 5-22, jul / dez. 1995.
SMITH, Bonnie G. Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica. São Paulo: EDUSC, 2003.
Cintia Lima Crescêncio – Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Três Lagoas, MS. lattes.cnpq.br / 3667508720087825. E-mail: climahist@gmail.com orcid.org / 0000-0002-2992-9417
Maria da Conceição Francisca Pires – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGH / UNIRIO). Rio de Janeiro, RJ. lattes.cnpq.br / 9397370787594051. E-mail: conceicao.pires@uol.com.br orcid.org / 0000-0001-8618-4151
Mara Burkart – Doctora en Ciencias Sociales por la Universidad de Buenos Aíres (UBA). Investigadora adjunta del Consejo Nacional de Investigaciones en Ciencia y Técnica (CONICET). Buenos Aires – ARGENTINA. E-mail: uba.academia.edu / MaraBurkart / urkartmara@gmail.com orcid.org / 0000-0003-3197-7458
Organizadoras
BURKART, Mara; CRESCÊNCIO, Cintia Lima; PIRES, Maria da Conceição Francisca. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.12, n.31, 2020. Acessar publicação original [DR]