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A História Secreta da Mulher-Maravilha | Jill Lepore
Quem não conhece a Mulher-Maravilha? Não importa que geração você faça parte, a super-heroína provavelmente faz parte do imaginário de sua infância e das referências de sua vida adulta. Seja pelos quadrinhos ou filmes e séries que representam a personagem. Não foi diferente no momento em que a Mulher-Maravilha apareceu pela primeira vez nos quadrinhos. Priscilla Ferreira Cerencio revela que os quadrinhos eram a principal forma de entretenimento de crianças e jovens adultos antes da televisão, especialmente nas classes mais baixas (CERENCIO, 2011: 12). Jill Lepore escreveu um best-seller que trata especificamente da História Secreta da Mulher Maravilha. Lepore é uma historiadora norte-americana, professora de História dos Estados Unidos na Universidade de Harvard e escritora da The New Yorker, onde contribui desde 2005. Escreve principalmente sobre história, direito, literatura e políticas americanas, o que não a impediu de escrever muito bem sobre a cultura pop.
O Batman começou a espreitar as sombras em 1939. A Mulher-Maravilha aterrissou seu avião invisível em 1941. Era uma amazona, nascida em uma ilha de mulheres que viviam afastadas de homens desde a Grécia Antiga. Ela fora aos Estados Unidos para lutar pela paz, pela justiça e pelos direitos femininos. (LEPORE, 2017: 11)
Logo no início de seu livro, Lepore explicita que, diferentemente dos outros super-heróis, a Mulher-Maravilha tem muito mais do que uma identidade secreta, ela tem uma origem secreta a qual vai além da mítica que percorre as histórias em quadrinhos. Todavia, o livro em questão não mostra essa origem. Conforme a autora, o livro foi um trabalho historiográfico: o resultado de anos de pesquisa em dezenas de bibliotecas, arquivos e coleções, incluindo documentos particulares do criador da heroína, William Moulton Marston — documentos que nunca foram revelados a pessoas fora da família de Marston. Lepore traz exemplos de suas fontes: jornais e revistas, a imprensa especializada, revistas científicas, tiras, gibis, arquivos, milhares de páginas de documentos manuscritos e datilografados, fotografias e desenhos, cartas e cartões-postais, fichas criminais, anotações rabiscadas nas margens de livros, depoimentos de tribunal, prontuários médicos, memórias não publicadas, roteiros rascunhados, esboços, históricos de estudante, certidões de nascimento, documentos de adoção, registros militares, álbuns de família, álbuns de recortes, anotações para palestras, arquivos do FBI, roteiros de cinema, as minutas cuidadosamente datilografadas dos encontros de um culto sexual e minúsculos diários escritos em código secreto. Estes documentos preenchem as páginas do livro, recheando a história com detalhes sobre a vida do criador e os motivos da criação da personagem.
A Mulher-Maravilha não é apenas uma princesa amazona que usa botas fabulosas. Ela é o elo perdido numa corrente que começa com as campanhas pelo voto feminino nos anos 1910 e termina com a situação conturbada do feminismo um século mais tarde. O feminismo construiu a Mulher-Maravilha. E, depois, a Mulher-Maravilha reconstruiu o feminismo — o que nem sempre fez bem ao movimento. Super-heróis, que deveriam ser melhores do que todo mundo, são excelentes para dar porrada, mas péssimos para lutar por igualdade. (LEPORE, 2017: 14)
O livro revela o quão a história da personagem é ligada a de seu criador: ao seu passado e às mulheres que amou – foram elas que inspiraram e até mesmo ajudaram a idealizar a personagem. Além disso, Lepore ressalta seu vínculo com a utopia feminista e com a luta pelos direitos das mulheres. A obra é estruturada em três partes, as quais são divididas pelos 30 capítulos e um epílogo. A primeira parte, Veritas, trata da vida de William Moulton Marston antes da formação de sua curiosa família. Já a segunda parte, O Círculo Familiar, tange a introdução de Marston no mundo dos quadrinhos, os antecedentes que inspiraram a personagem e como se constituiu a sua grande família. E, por fim, a terceira parte, Ilha Paraíso, refere-se mais especificamente a criação da super-heroína e sua influência na vida da família Marston e, por fim, o que acontece após o falecimento de seu criador.
A obra quando assim resumida, perde em sua riqueza de detalhes. Todavia, a presente resenha se pretende curta e deve-se focar em apenas certos aspectos da obra. Neste caso, nos ateremos, especificamente, à relação da Mulher-Maravilha com o movimento sufragista e o movimento feminista, tratada em especial na primeira parte da obra. Sean Purdy chama as duas primeiras décadas do século XX de “Era Progressista”, momento em que os EUA se mostram como mais fortes que as antigas potências europeias, ou melhor, o maior poder econômico no mundo, graças a forte produção industrial e os grandes monopólios (PURDY, 2007: 173-276). As sufragistas e as feministas apareceram naquele momento como um movimento social em ascensão, ainda antes da Primeira Grande Guerra. Entretanto, foi justamente a partir deste evento que as mulheres conquistaram mais direitos e liberdades, uma vez que agora eram a maior parte da mão de obra. William Moulton Marston, criador e roteirista dos quadrinhos da Mulher-Maravilha, inspirou sua personagem especificamente nessas feministas.
Enquanto estudava em Harvard, William Moulton Marston tinha como uma grande influência o seu professor de filosofia, o Prof. George Herbert Palmer cuja falecida esposa foi sufragista. Palmer tinha como um de seus compromissos intelectuais e políticos principais a igualdade dos sexos, que segundo a autora, poderia significar uma forma de lembrar-se de sua esposa. Diante disso, é significativo que o professor que salvou a vida de Marston [2]
era também padrinho da Liga Masculina de Harvard pelo Sufrágio Feminino. Ademais, Zina Abreu explicita que a percepção, no século XVII, da sua ‘igualdade cristã’ levou as mulheres a se consciencializarem da sua desigualdade civil: se como cristãs tinham ‘almas iguais’, como cidadãs deveriam ser, tal como os homens, também detentoras de direitos naturais e inalienáveis (ABREU, 2002: 446), algo que explica os argumentos na citação a seguir:
O movimento sufragista nos Estados Unidos remonta a 1848, quando se deu a primeira convenção sobre os direitos das mulheres em Seneca Falls, Nova York (história que viria a ser contada na revista da Mulher-Maravilha [3]), onde as representantes adotaram uma “Declaração de Sentimentos”, escrita por Elizabeth Cady Stanton, que tinha a Declaração da Independência como modelo: “Consideramos as seguintes verdades evidentes por si mesmas: que todos os homens e todas as mulheres são criados iguais; que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.” Entre as exigências estava a de dar às mulheres “admissão imediata aos direitos e às prerrogativas que lhes cabem como cidadãs norte-americanas.” (LEPORE, 2017: 25)
A Liga Masculina de Harvard pelo Sufrágio Feminino foi constituída em 1910 e, em 1911, anunciou uma série de palestras. Lepore mostra que a Liga anunciou que sua próxima convidada seria a sufragista britânica Emmeline Pankhurst, a mesma que, no início do século XX, inspirou as sufragistas norte-americanas em sua entrada na militância. Pankhurst, feminista que sempre falava sobre as “correntes do patriarcado” foi impedida de palestrar em Harvard, mas acabou palestrando em um teatro muito próximo, o qual, segundo Lepore, lotou. O livro mostra que, trinta anos depois, quando Marston cria a super-heroína que luta pelos direitos femininos, tem como a sua única fraqueza a perda toda a força se um homem acorrentá-la.
Lepore mostra no decorrer do livro que muitas das histórias dos quadrinhos da Mulher-Maravilha foram inspiradas em acontecimentos reais. Em uma das primeiras revistas da super-heroína, Marston teria se inspirado na greve dos operários da indústria têxtil em Lawrence, Massachusetts, em 1912, greve em que Margaret Sanger havia se envolvido – sendo ela uma das inspirações para a personagem. Outro exemplo é uma revista em que se inspira no acontecimento de 1910, em que o sindicato dos leiteiros teria colocado preços altíssimos no leite. Este quadrinho, publicado em 1942, torna-se uma propaganda antinazista, já que nele os altos preços do leite seriam consequência de uma conspiração alemã, para deixar as crianças norte-americanas mais fracas (LEPORE, 2017: 281). Purdy aponta que nos “tempos duros” da década de 30, houve uma mudança nas dinâmicas familiares, as quais tiveram que se adaptar à pobreza, ao choque social e ao desespero, causando grande tensão no ambiente familiar. As mulheres viram seu movimento ter duas repercussões: ao mesmo tempo, perdiam seus empregos para os homens, devido ao desemprego da Grande Depressão, e mais mulheres se inseriram no mercado de trabalho para aumentar a renda familiar (PURDY, 2007: 206).
As mulheres padeceram não somente pelas condições econômicas ruins, mas também vítimas dos estereótipos sexuais ligados a seu papel social. Nas fábricas, muitas perderam trabalho para os homens, aos quais foi dada prioridade nas poucas vagas existentes. Mesmo assim, em 1939, 25% mais mulheres estavam trabalhando do que em 1930, primariamente porque tinham que contribuir com a economia familiar e também porque os empregos femininos – professoras, funcionárias de lojas e secretárias – foram menos abalados pela Depressão do que os da indústria pesada. (PURDY, 2007: 208)
A década de 30, conforme Purdy, foi um momento intenso e próspero dos movimentos sociais, dado que a maioria da população se mostrava revoltosa com as circunstâncias. O impacto da crise econômica e as novas alternativas políticas chegaram a influenciar muito a indústria cultural, como o cinema. O historiador mostra que esta indústria se focou, principalmente, no escapismo. “O mundo hollywoodiano da fantasia cultivava a crença nas possibilidades de sucesso individual, na capacidade do governo em proteger cidadãos contra o crime e numa visão da América como uma sociedade sem classes” (PURDY, 2007: 213).
Em uma linguagem clara e objetiva, acessível ao público, Lepore conseguiu trazer sua pesquisa historiográfica, dando a atenção necessária aos movimentos sufragista e feminista do século XX, mostrando o quanto a super-heroína foi inspirada por elas. Não é nem mesmo necessário ter conhecimentos prévios para melhor entendimento do assunto, no decorrer da obra a autora consegue expor muito bem como estes movimentos influenciam tanto na criação da Mulher-Maravilha quanto as repercussões para a vida das mulheres do período.
Notas
2. Com 18 anos, Willian Moulton Marston, tentou se matar com ácido cianídrico, mas foi salvo pelo seu professor de filosofia.
3. Mais especificamente na revista nº5 de junho/julho de 1943.
Referências
ABREU, Zina. Luta das Mulheres pelo Direito de Voto: movimentos sufragistas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. In: Revista Arquipélago – História, 2ª série, VI, 2002. pp. 443-446.
BANTI, Alberto Mario. Wonderland. La cultura di massa da Walt Disney ai Pink Floyd. Roma-Bari: Laterza, 2019.
LEPORE, Jill. A História Secreta da Mulher Maravilha. Tradução de Érico Assis. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017.
PURDY, Sean. O Século Americano. In: KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007. pp. 173-276.
Nathália Santos Pezzi – Graduanda do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. Endereço para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0895456220435755
LEPORE, Jill. A História Secreta da Mulher-Maravilha. Tradução de Érico Assis. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017. Resenha de: PEZZI, Nathália Santos. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.1, p.146-153, 2019. Acessar publicação original [DR]