Posts com a Tag ‘MOYA Maria Encarnación (Res)’
Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil – KOWARICK (NE-C)
KOWARICK, Lúcio. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo: Editora 34, 2009. Resenha de: MOYA,Maria Encarnación. Trajetórias e transições da questão social no brasil urbano. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.86, Mar 2010.
Na esteira da crise dos Estados de Bem-estar Social que seguiu às transformações econômicas orientadas pelo paradigma do neoliberalismo, a problemática da pobreza e das desigualdades ressurgiu como questão central em diversos países, com destaque para sua produção e reprodução no mundo urbano. Desemprego e precarização do trabalho, concentração espacial da pobreza, além da violência presente nesses espaços passaram a ocupar lugar central na agenda de governos, nas ações de organizações civis e, inevitavelmente, no campo de investigação das ciências sociais.
Em face das vertiginosas mudanças sociais, econômicas e político-institucionais em curso, e tendo por cenário dessas mudanças a cidade de São Paulo, Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil, do sociólogo e cientista político Lúcio Kowarick revela-se uma obra ímpar ao situar o leitor nas trajetórias e transições da problemática da pobreza e das desigualdades no Brasil urbano. Ou, nos termos do próprio autor, nos debates e embates em torno da questão socialque se configura em nossa atualidade urbana e que denomina vulnerabilidade socioeconômica e civil. Afilia-se, assim, à acepção conferida pelo sociólogo francês Robert Castel, para quem:
A “questão social” é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (o que em termos políticos se chama nação, para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência1.
Integrando história, sociologia e etnografia, Viver em risco oferece ao leitor uma profunda interpretação dos desafios enfrentados pela cidadania na sociedade brasileira. Desafios que dizem respeito às dificuldades históricas de expansão dos direitos, mas que hoje também se associam a restrições e a processos de destituição, particularmente dos direitos civis e sociais, no bojo das transformações em curso. Se na concepção moderna da cidadania, direitos civis, políticos e sociais são prerrogativas básicas para garantir a integração e a participação plenas numa comunidade nacional, promovendo em alguma medida maior eqüidade, Kowarick questiona a própria capacidade do Estado brasileiro de garantir a integridade física dos cidadãos, sobretudo daqueles que habitam os lugares onde se concentra a pobreza. O livro é resultado de ampla investigação que contou com a participação de graduandos e pós-graduandos da Universidade de São Paulo.
Desde os anos de 1970, Lúcio Kowarick é um dos mais reconhecidos especialistas nos estudos urbanos no Brasil e uma referência central no debate sobre pauperismo e desigualdades nas sociedades do “capitalismo periférico”. Em livros já clássicos como Capitalismo e marginalidade na América Latina (1975), Crescimento e pobreza (1975),A espoliação urbana(1979) , Kowarick desenvolveu conceitos influentes, como espoliação urbana, no interior de um quadro interpretativo que explicava o pauperismo e as desigualdades no mundo urbano como a “somatória de extorsões” resultante de processos econômicos e políticos. Essa noção, e o quadro interpretativo correspondente, foram revistos e atualizados ante as mudanças na realidade social, política e econômica brasileira,a emergência de novos atores e as próprias transformações no campo teórico e analítico das ciências sociais2.
A noção de vulnerabilidade socioeconômica e civil insere-se nesse contínuo processo de reatualização do pensamento do autor, construída a partir do diálogo com a literatura nacional e internacional, mas sobretudo a partir da análise de múltiplos dados quantitativos e do material qualitativo proveniente de pesquisa em profundidade realizada em bairros populares da cidade de São Paulo. O ensaio fotográfico de Antonio Saggese leva o leitor a um encontro sensível com as formas de moradia tipicamente associadas à pobreza, como também, hoje, à violência – cortiços das áreas centrais, loteamentos nas periferias e favelas -, revelando a precariedade que caracteriza para muitos o viver na cidade.
Viver em risco não se confunde com o “estado da arte” das discussões sobre pobreza e desigualdades em diversos países ou mesmo no Brasil, mas traz uma construção conceitual e interpretativa na qual, mediante a estratégia analítica dos “olhares cruzados”, o autor contrapõe lugares, instituições, representações e conflitos, de modo a indagar e delinear os contornos de nossa questão social. O leitor é agraciado com um relato histórico, sempre politicamente posicionado, de representações e práticas acerca da pobreza e das desigualdades, num momento em que essa problemática volta a ser central.
O livro é estruturado em duas partes. A primeira, “Olhares cruzados: Estados Unidos, França e Brasil”, é eminentemente teórica e inicia o percurso do autor no “campo teórico de investigação que diz respeito à vulnerabilidade socioeconômica” (p. 19), expondo em um primeiro momento as formas em que a questão social aparece nas sociedades norte-americana e francesa (cap. 1), para a seguir reconstruir essa problemática à luz da especificidade das questões que afligem a sociedade brasileira (cap. 2). Na segunda parte, “Sobre a vulnerabilidade em bairros populares: sociologia, história e etnografia”, o foco recai sobre os lugares e modos de morar e viver dos mais pobres na cidade de São Paulo e na violência que, nas últimas décadas, se concentrou nesses locais. O autor realiza uma reconstrução histórica e uma descrição detalhada dos três padrões que são tradicionalmente as alternativas de moradia dos mais pobres: o cortiço (cap. 3), a casa própria autoconstruída em loteamentos na periferia (cap. 4) e a favela (cap. 5). Os temas da habitação e da violência se entrecruzam ao final (cap. 6) com o objetivo de sintetizar a hipótese anunciada ao início do livro e que se afigura como a questão social enfrentada hoje pela sociedade brasileira:
[…] a violência, nos anos recentes, e de forma crescente, tornou-se um elemento estruturador da vida das pessoas,pois,não raras vezes, constitui fator de migração de um local para outro na escolha do local de moradia, além do cuidado em tomar medidas de segurança que minimizem os riscos de sofrer atos violentos (p. 20).
A questão social não se dissocia das formas históricas que a cidadania adquiriu em distintos contextos nacionais. Por essa razão, o papel desempenhado pelo Estado é central. Esse é o fulcro do capítulo 1, “A Questão da pobreza e da marginalização na sociedade americana e francesa”, no qual o autor contrapõe as trajetórias da questão social e seus dilemas nos Estados Unidos e na França. Como mostra, ao sofrerem os recentes impactos das transformações econômicas globais, ambos os países desenvolveram diferentes respostas político-institucionais, “em função das especificidades próprias de cada ambiente sócio-político nacional” (p. 29).
No caso estadunidense, a herança do racismo e a situação dos afro-americanos sempre ocuparam lugar central no debate público, nas ações governamentais e nas organizações civis, assim como na agenda da investigação das ciências sociais. Nos anos de 1960,no bojo das lutas anti-raciais, o dilema norte-americano desembocaria na lei dos direitos civis (1964) e em medidas de políticas de proteção social, no âmbito da hegemonia da visão liberal – o que significa uma visão progressista naquele país – num momento em que a presença do Estado e de políticas públicas que combatam a pobreza eram valorizadas e implementadas no interior da chamada War on Poverty. Na esteira da crise econômica que caracteriza os anos de 1970, o foco da atenção pública recai sobre os comportamentos “desviantes” da população afrodescendente empobrecida e concentrada nos guetos, designada como underclass [subclasse]. É o momento em que a balança política começa a pender para a direita.
Na obra que será referencial para o pensamento conservador, Losing ground, de Charles Murray, as políticas públicas de proteção social alavancadas e ampliadas nos anos de 1960, em especial o Aid to Families with Dependent Children (AFDC), são atacadas como causa de uma “cultura da dependência” – comportamentos opostos ao da sociedade mainstream, orientada pelos valores individualistas do “trabalho árduo, honestidade e responsabilidade pessoal”3. Kowarick lembra que apesar da dinamização do debate público e acadêmico a partir da publicação de The truly disadvantaged, obra do sociólogo William Julius Wilson que focaliza as conseqüências das mudanças macroeconômicas responsáveis pela maior concentração do desemprego entre os moradores dos guetos, a trajetória das políticas de proteção social nos Estados Unidos torna-se mais conservadora.
Com a substituição do AFDC pelo Personal Responsability and Work Opportunity Reconciliation Act (Prowora), o acesso ao benefício assistencial torna-se mais restrito e condicionado a contrapartidas por parte do indivíduo, como ter um trabalho. O objetivo, de matiz conservador, é combater o que se designa então como welfare dependency, isto é, tornar-se dependente dos serviços sociais. O autor conclui, assim, que a essência do debate nos Estados Unidos é “culpar ou não culpar a vítima” no interior de um processo de destituição progressiva de direitos sociais.
Na França, inversamente, a tradição republicana e jacobina que impregna as instituições francesas confere centralidade à ação do Estado no combate à pobreza e às desigualdades, independentemente da posição ocupada pelos diversos atores no espectro político. Kowarick retoma os percursos da questão social nesse país desde o pós-guerra, e principalmente as respostas institucionais aos efeitos da precarização econômica e social que, na década de 1980, atingem, sobretudo, os trabalhadores com baixas qualificações (franceses ou imigrantes) e os jovens das banlieues– termo próximo a “periferias” -, e, nos anos de 1990, também os trabalhadores mais qualificados. Os “bairros difíceis”, onde se concentram desemprego e atos violentos,tornam-se foco de diversas políticas públicas. Ao longo desses anos, multiplicam-se as ações governamentais e são criadas instituições como o Ministère de La Ville (1989), que coordena ações e reformas em âmbitos como educação, emprego e melhorias urbanas. Em 1991, o termo “exclusão social” aparece no interior do aparelho de Estado, e a “coesão social” é erigida como meta a ser atingida. Na França, não é a responsabilização do indivíduo que está em jogo,e o retrato francês parece menos desesperador quando comparado à situação estadunidense.
No campo das ciências sociais na França são múltiplas as noções desenvolvidas para apreender os processos de destituição em cur-so: “desqualificação social” (Serge Paugam), “desinserção” (Gaujelac), “desfiliação” (Castel). Lúcio Kowarick, no entanto, detém-se no conceito de desfiliação de Robert Castel ao considerar a obra deste autor como a de”maiorenvergadura histórica e teórica” (p.56):”Desfiliaçãosignifica perda de raízes sociais e econômicas e situa-se no universo semântico dos que foram desligados, desatados, desamarrados, transformados em sobrantes, em inúteis, desabilitados socialmente” (p.57).
O modelo formal desenvolvido por Castel é constituído por dois eixos – um econômico e outro social -,onde ganham centralidade os processos que levam à destituição do trabalho seguro e da participação em relações sólidas, que podem levar o indivíduo a transitar por quatro “zonas”: integração, vulnerabilidade social, assistência e desfiliação.
O contraste entre a forma como se configura a questão social nos dois países dá ensejo a uma observação crucial do autor:a questão social da atualidade nos países centrais pode ser balizada por processos mais ou menos intensos de desenraizamento que se associam ao papel do Estado na garantia de direitos de cidadania, o que se configura historicamente no interior de tensões e conflitos, segundo as especificidades políticas de cada contexto nacional.
No capítulo 2, “Sobre a vulnerabilidade no Brasil urbano”, o autor problematiza o caso brasileiro a partir de um denso ensaio acerca dos dilemas e dos bloqueios envolvidos na expansão dos direitos de cidadania no país, o que a seu ver representa o âmago de nossa questão social hoje. Se ao longo dos anos de 1980 e 1990 Kowarick avalia que houve a consolidação do sistema político democrático, isso teria ocorrido paralelamente à manutenção de um déficit em relação aos direitos sociais, econômicos e civis. O país viu crescer nas últimas décadas a vulnerabilidade socioeconômica em virtude do crescimento do desemprego e da expansão de formas precárias de trabalho, somados a um sistema público de proteção desde sempre restrito e incompleto. A vulnerabilidade civil perpetua-se graças à crescente incapacidade do Estado de controlar a violência da polícia e dos bandidos, que afeta, principalmente, os moradores dos bairros populares mais pobres.
Kowarick introduz a discussão do conceito de desfiliação à luz dessa problemática, mas não sem antes revisitar o que talvez possa ser considerado a mais importante tradição teórica e política desenvolvida no âmbito latino-americano: as teorias da dependência – elaboradas no marco da teoria marxista das classes sociais -, desenvolvidas num intenso debate intelectual-acadêmico acerca das possibilidades ou não de desenvolvimento das sociedades no interior do capitalismo.
De forma similar aos debates que hoje se centram na exclusão social, a noção de marginalidade social foi utilizada nesse âmbito para problematizar os processos de (des)inserção econômica dos contingentes populacionais de origem rural que, nos anos de 1960 e 1970, migravam para as cidades. Definida por Kowarick à época como formas de inserção marginal e intermitente no mundo do trabalho urbano, baseada na (super) exploração (Marginalidade na América Latina, 1975), a este processo o autor associou o que denominou como espoliação urbana: “ausência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que,conjuntamente com o acesso à terra,se mostram socialmente necessários à reprodução dos trabalhadores”4.
Não por acaso, o autor sugere paralelos entre a lógica do mercado de trabalho explicitada naquele contexto e as formas que este assume hoje, desta vez associadas à reestruturação econômica que deu origem a múltiplas formas de trabalho precário – em alguns casos conectadas a cadeias produtivas dinamizadas por alta tecnologia. Por outro lado, em se tratando do acesso à terra e à moradia na cidade, o autor destaca o crescimento das formas precárias de moradia, especialmente as favelas.
Tais questões são analisadas no livro por meio do conceito de desfiliação. Kowarick adverte, porém, que o uso dessa noção para problematizar a questão social brasileira contemporânea não diz respeito à crise da sociedade salarial, como na França, mas a “um vasto processo de desenraizamento do mundo do trabalho formal,na medida em que para muitos ele tornou-se informal, instável e aleatório” (p. 86). Não obstante, Kowarick considera o conceito mais adequado para pensar as conjunturas presentes, marcadas por processos de destituição de direitos sociais, do que para explicar conjunturas passadas, quando trabalho e moradia ainda representavam “vigorosas alavancas integrativas”, associadas ao acesso a serviços públicos na cidade – ou pelo menos à expectativa de sua chegada. Nas conjunturas mais recentes, para muitos a trajetória na cidade seria, antes, marcada por experiências de perdas e mesmo um processo de descenso social caracterizado pela impossibilidade de conquistar a casa própria ou mesmo a perda da condição de proprietário para morar em favelas, em razão do desemprego e do empobrecimento.
Por outro lado, a idéia de exclusão não é abandonada, mas passa a ser traduzida como a possível emergência de um princípio de exclusão social, instituído num conjunto de falas e de práticas calcadas em um imaginário social que associaria, hoje, a pobreza à delinqüência, estruturando “múltiplas práticas sociais de caráter defensivo, repulsivo ou repressivo” (p. 92).
Essa hipótese, delineada no início da obra, é desenvolvida ao longo da segunda parte, “Sobre a vulnerabilidade em bairros populares: sociologia, história e etnografia”, baseada em múltiplos indicadores quantitativos e na pesquisa em profundidade realizada junto a moradores de dois cortiços no Centro, dois loteamentos na periferia e numa favela da cidade de São Paulo. Os três primeiros capítulos que compõem essa parte do livro são preciosos por oferecerem ao leitor uma reconstrução histórica das três modalidades de moradia que se constituíram como alternativas possíveis para boa parte dos trabalhadores na cidade ao longo do século XX, em virtude dos baixos salários e da quase inexistência de políticas de habitação voltadas para as camadas populares.
Essas alternativas são hoje designadas pelo autor como “modalidades de viver em risco na cidade” em virtude da onipresença da violência nesses espaços, perpetrada por bandidos e pela polícia, mas também pelas condições insatisfatórias, desgastantes e por vezes humilhantes com as quais os moradores se deparam. Cada um dos capítulos dedica um item ao relato etnográfico que revela o cotidiano dos lugares pesquisados e a percepção de seus moradores, considerados personagens desses diferentes cenários urbanos. As falas revelam, segundo as perspectivas dos moradores, as vantagens e as desvantagens de se morar nessas diferentes condições, assim como as desvantagens que sempre envolvem os “outros” lugares, associados à violência, à discriminação e à desordem.
No capítulo 3, “As áreas centrais e seus cortiços: dinamismos, pobreza e políticas”, destacam-se as origens e os percursos da moradia popular no Centro de São Paulo. No início do século XX, o cortiço é praticamente a única alternativa de moradia para os trabalhadores pobres; mas hoje ainda continua como uma modalidade de moradia dos mais empobrecidos.,tendo-se espalhado mesmo nas periferias.
No caso das áreas centrais, a perda de sua primazia para outras localizações da cidade a partir dos anos de 1960 e 1970 foi acompanhada de esvaziamento populacional, com a saída dos mais ricos e o abandono de casas e edifícios. Isso estimulou seu uso para um negócio que se revelou muito lucrativo: a habitação coletiva de aluguel, atraindo uma população mais empobrecida. Apesar da precariedade das condições de vida nesse tipo de moradia (que envolve problemas de higiene, uso coletivo de banheiros, cozinha e outros equipamentos, além da prevalência de espaços exíguos nos quais o acúmulo de moradores e a proximidade tendem a gerar conflitos, nas falas de seus moradores), “o Centro é perto de tudo”. Trata-se da grande vantagem de morar em cortiço na área central – ou “pensão”,termo mais usado:a concentração e a proximidade das oportunidades de trabalho, de serviços e de opções de lazer, apesar da desvantagem dos aluguéis abusivos. Mas suas falas também são atravessadas por visões valorativas acerca da moradia em outros locais, que procuram evitar: favelas são em geral referidas como lugar da criminalidade, e a periferia, ou “vila”, distante de tudo, é também o local onde impera a violência. Tais relatos, no entanto,contradizem por vezes a realidade exposta em outras passagens, em que violência e assassinatos também estão presentes.
Apesar da deterioração que caracteriza parte das áreas centrais, Kowarick lembra que o Centro vem sendo objeto de investimentos públicos e privados, por meio de programas que envolvem conjuntamente associações – menção especial à Associação Viva o Centro – e órgãos públicos. Como afirma o autor, “são vastas as potencialidades sociais e econômicas do Centro e os recursos públicos nele alocados para os próximos anos não são em nada desprezíveis” (p.160).Daí ser lugar de disputas e lutas pela apropriação do espaço, em que o poder público, municipal e estadual, têm papel chave para canalizar recursos e influir no mercado imobiliário. Nesse sentido, ganha significação a orientação política de cada gestão em termos dos interesses que nela se expressam.
A esse respeito, há um posicionamento claro de Kowarick, que critica as ações coletivas e públicas orientadas por uma visão higienista e segregacionista de recuperação do Centro. Ante estas políticas, a ação dos movimentos sociais e das assessorias técnicas que as apóiam orientam-se muito mais pela ampliação dos direitos de cidadania, ao lutar pelo acesso à moradia no Centro para as camadas populares. Kowarick também avalia as gestões de diferentes partidos que estiveram à frente da administração da cidade, considerando que nos governos do PT predominaria um estilo de gestão que denomina “Republicanismo de participação”,enquanto o PSDB se orientaria pelo “Republicanismo delegativo”. Cada estilo comporta seus riscos:
O risco do modo petista de governar reside em retardar as decisões, acabando por tornar a participação ineficaz ao gerar um conselhismo ratificador das iniciativas do poder executivo. O risco da concepção baseada na representação, em uma sociedade extremamente hierárquica e excludente como a brasileira, reside em exacerbar posicionamentos tecnocráticos que acabam por reproduzir o elitismo que está na raiz da segregação de nossas cidades (p. 160).
A segunda “modalidade de viver em risco” é retratada historicamente e em sua atualidade no capítulo 4, “Autoconstrução de moradias em áreas periféricas: os significados da casa própria”. A autoconstrução da casa própria insere-se no conhecido padrão periférico de expansão urbana que teve papel central na produção do espaço da cidade, no que o autor classifica como verdadeiro laissez-faire urbano, que dominou a cidade de São Paulo desde os anos de 1940. Nesse capítulo, é retomado o processo tradicional de autoconstrução da casa própria nas periferias da cidade, modelo que continua a reproduzir-se em locais cada vez mais distantes da cidade.
A autoconstrução da casa própria em loteamentos de periferias distantes comporta muitos sacrifícios, que envolvem não só reunir recursos para seu empreendimento, mas também a distância do trabalho, implicando longas horas em transporte público. Mas os que se dirigiram a esta alternativa encontram nela vantagens significativas: um abrigo mais seguro não só em função da liberação do aluguel, mas também porque a casa é propriedade privada, bem que se valoriza com a chegada de infra-estrutura, serviços públicos e outras amenidades. O autor sugere que melhorias ocorreram, e muitas, renovando desigualdades que contribuem para reproduzir, nas diversas periferias, um tecido urbano muito heterogêneo – mesmo nas áreas que concentram pobreza.
Mas se esse processo de autoconstrução da casa própria continua expressivo,é porque se efetiva em locais cada vez mais distantes – nas franjas da cidade, nos “bairros-dormitório” de outros municípios da Grande São Paulo -, pois o preço da terra em localidades mais bem servidas tornou-se proibitivo para os que foram afetados pelo desemprego prolongado e pela precarização do trabalho, associada a rendimentos baixos e instáveis. Junto a outros fatores, esse processo assumiu também caráter predatório ao ocuparem-se densamente as áreas de mananciais, comportando um risco para a cidade como um todo.
Nas falas das personagens desse cenário de moradia, a casa própria aparece como uma conquista, que, a depender da experiência, envolveu lutas baseadas na organização local, no apoio e na assessoria de entidades de direitos humanos para a obtenção de serviços básicos e regularização da propriedade; ou, simplesmente, o investimento do grupo familiar-doméstico, com a ajuda de outros familiares, vizinhos ou amigos, e cada vez mais com a presença de pagamento a terceiros: com o desemprego e a precarização, a mão-de-obra “ociosa” tornou-se volumosa e mais barata. Em qualquer caso, é uma trajetória habitacional marcada por um início de muitas carências e sacrifícios, a casa sempre “por acabar”.
A violência aparece como algo onipresente, pois mesmo quando negada ou remetida para o passado por alguns, mostra-se parte do cotidiano nas falas, especialmente pelo medo dos assaltos e de sair para trabalhar de madrugada, quando ainda está escuro, assim como pela referência à ação violenta de traficantes e às rivalidades entre estes, aos homicídios, à “desova” de corpos nas proximidades e mesmo à experiência pessoal de alguém próximo e querido que foi vítima de assassinato.
Como mostra Kowarick, um dado interessante é o de que a autoconstrução da casa própria cresceu mesmo em conjunturas desfavoráveis, como os anos de 1990, substituindo em grande parte o viver de aluguel. Não obstante, o que mais cresceu em termos relativos na cidade foram as favelas. A questão das favelas é problematizada no capítulo 5, “Favelas: olhares internos e externos”.
Favelas não são mais ocupações totalmente ilegais, tampouco totalmente desprovidas de infra-estrutura e serviços.Nos anos de 1980, políticas de urbanização alcançaram esses espaços e teve início o processo de regularização da moradia. Isso ajudou a consolidar a favela como alternativa de moradia na cidade para os mais pobres e, como no caso dos loteamentos,deu origem a um mercado imobiliário informal ativo.Essa seria uma das razões por que,segundo o autor, já não representam lugar de moradia provisória, um “trampolim” para situações melhores. Mas seu crescimento seria também evidência de processos de mobilidade descendente, pois muitos chegam em virtude da perda da capacidade de pagar aluguel, ou mesmo porque forçados a vender a casa própria.
As favelas multiplicaram-se, mas são muito diversas, não só entre si, como internamente. Isso tem sido cada vez mais evidenciado, na última década, por estudos que contemplam a expansão das melhorias tanto em termos de infra-estrutura e serviços,como das características socioeconômicas de seus moradores5.
Nos relatos das personagens desse cenário, morar em favela representa vantagens específicas. Entre elas ,a ausência de taxas normais ou de impostos,e a possibilidade de reverter isso em economias para realizar melhorias na moradia que, apesar disso, não oferece a segurança da casa própria. Além disso, tanto a favela como seus moradores são alvo de profunda discriminação, ponto destacado por Lúcio Kowarick. Não é necessariamente nas favelas que se concentram os índices de criminalidade; apesar disso, mais do que em qualquer outro lugar, é nesse espaço que os olhares externos tendem a associar pobreza e criminalidade. Nas falas, no entanto, a criminalidade está presente, e os conflitos entre traficantes são um medo e uma ameaça constantes para os moradores; uma convivência inevitável, que estabelece a “lei do silêncio” e a desconfiança entre vizinhos. Além disso, há o desrespeito e a violência por parte da polícia, vista de forma ambivalente.Por essas razões, muitos querem sair da favela.
Nas “Considerações finais” (“Vulnerabilidade socioeconômica e civil em bairros populares”), Kowarick retoma os vários argumentos e evidências apresentados nos três capítulos anteriores, juntamente com falas (desta vez, despersonificadas) que contrastam as vantagens e as desvantagens de cada modalidade de “viver em risco”. No item final,”Violência e Medo”,o autor reforça a hipótese de que a violência é atualmente um elemento estruturador do modo de vida nos diferentes espaços: “Assim, a violência passou a ser um elemento que também estrutura o cotidiano das pessoas,demarcando espaços,selecionando horários e forjando atitudes e comportamentos defensivos que visam diminuir os riscos” (p. 299).
A partir das experiências de se “viver em risco” Lúcio Kowarick vincula a vulnerabilidade socioeconômica ao que denomina experiências do desrespeito: “um reconhecimento social denegado, baseado em formas sistemáticas de violação de direitos básicos de cidadania” (p. 301).
O livro de Lúcio Kowarick oferece ao leitor a oportunidade de refletir de modo abrangente acerca das continuidades e descontinuidades de nossa questão social nas últimas décadas, e que tornaram São Paulo um cenário urbano bastante diferente do que fora entre os anos de 1950 e 1970. Não obstante as mudanças positivas em alguns aspectos, o percurso da cidadania no Brasil é pontuado por contradições e descompassos, e as trajetórias e transições descritas trazem para o centro da problematização os atuais impasses à sua expansão:a violência e o medo disseminado, as restrições à capacidade do Estado em atuar como agente garantidor de segurança física e proteção social.
Notas
1 CASTEL, Robert. “Introdução”. In: As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Trad. Iraci D. Pole-ti. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1998, p. 20. [Links]
2 Essa trajetória é explicitada em KOWARICK,Lúcio.Escritos urbanos.São Paulo: Editora 34, 2000.[Links]
3 MURRAY, apud KOWARICK, Viver em risco, op. cit., p. 38.
4 Kowarick. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.[Links]
5 A esse respeito, ver SARAIVA, Camila e MARQUES Eduardo.”A dinâmica social das favelas na Região Metropolitana de São Paulo”. In: MARQUES, Eduardo e TORRES,Haroldo.São Paulo: segregação, pobreza e desigualdades sociais. São Paulo: Senac, 2005. [Links]
Maria Encarnación Moya– doutoranda no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap).