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Movimentos Sociais / Crítica Histórica / 2010
Quando a história apareceu como área de conhecimento desgarrada da filosofia, nos idos do século XIX, o seu caminho para “cientificidade” passou pela formação de um método e teoria atrelado ao que os historiadores denominaram de “história positivista”. Genuinamente alemã, este modelo de pensar o passado não só exigia o uso de documentos (exclusivamente escritos e preferencialmente oficiais) como prioritários para a realização da análise de um fato, mas também elegia o mundo político como o locus central para se entender a realidade. Neste caso, a história de grandes personagens célebres (Luis XVI, Napoleão Bonaparte, D. Manuel e D. Pedro) e mais precisamente da elite econômica e política fora devassada pelos historiadores que seguiram o modelo rankeano.
No Brasil, tais instruções e / ou orientações foram absorvidas pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) que visando à construção de uma identidade nacional também “olhou para trás” buscando seus personagens mais “ilustres”. Assim, não foi por acaso que com a necessidade de demonstrar raízes mais profundas do sentimento do nativismo brasílico que a figura de Tiradentes tenha sido a eleita para corporificar estas expectativas. Neste caso, apesar de representar um episódio muitas vezes considerado como “libertino” e na época “crime de lesa-majestade”, Joaquim José da Silva Xavier fazia parte de um grupo: a elite das Minas. Para os membros do IHGB, ávidos por demonstrar que a independência não havia sido pensada em 1822 (sob os auspícios de D. Pedro I, um português) e sim em 1789, Tiradentes reunia todos os ingredientes necessários para servir de espelho e identificação para os criadores desse mito.
Mas, por outro lado, a população de uma maneira geral podia (e provavelmente) enxergava tal personagem muito distante de suas características sociais. Ou seja, apesar do esforço incomensurável (?) dos pensadores do IHGB em associar o movimento social como matriz da história nacional, sua identificação não representava ainda o bojo da população. Assim, é quase lícito afirmar que a história política quando se debruçou sobre os movimentos sociais (talvez sendo os primeiros a já fazerem isso, há de se ressaltar!) não conseguiram dar voz, fala e apelos aos personagens comuns, aos homens do cotidiano e aos episódios que tinham como figura justamente estes indivíduos.
Somente como a Escola dos Annales, no início do século XX, e com os trabalhos que tinham como base as teorias marxistas que a história dos movimentos sociais ganharia uma nova roupagem. Evidentemente, a mais importante e principal delas esteja relacionada a entender os conflitos, as revoltas, as revoluções, as devassas, os motins, as insurreições, as bernardas, as conjurações e as greves também levando em consideração o povo (neste caso, pensando também na própria metamorfose que o conceito de povo sofreu na virada das centúrias), o homem comum e o cidadão explorado e vilipendiado por um grupo, por um sistema, por uma pessoa ou por um comportamento social.
Tais críticas foram absorvidas até mesmo pelos historiadores políticos no terceiro quartel do Novecentos, quando “a nova história política” passava a entender que outros atores sociais também deveriam ser levados em consideração para a compreensão dos embates de uma sociedade. Indo além disso, não só a política fora repensada como a “cultura política” passava a fazer partes dos textos para compreensão das ações sociais, interconectada com os elementos econômicos, religiosos, comportamentais, religiosos e culturais. O resultado desta mudança de análise e até mesmo posicionamento teórico, redundou em investigações sobre as revoltas escravistas, as greves dos sindicatos, a interpretação das ONG’s, o papel dos movimentos culturais, os motins anteriores a insurreição mineira de 1789, a resistência indígena e dentre outras temáticas. Logo, o que se percebe é a ampliação e variabilidade temática dos estudos sobre os movimentos sociais nos tempos atuais, debate essencial em grande parte dos cursos de graduação e pós-graduação do país.
Assim, tendo em vista o cenário amplo, irrestrito, rico e diferenciado para esta temática, o presente número da revista Crítica Histórica tem por objetivo, em seu Dossiê, abri espaço para discussão desta temática. Para isso, seu primeiro artigo Os amotinados e seus algozes: A construção de imagens do homem rebelde na América Portuguesa (Séculos XVII-XVIII) escrito por Antonio Filipe Pereira Caetano analisa como os revoltosos na América Portuguesa eram vistos por aqueles que sofriam seus reveses, bem como pela coroa portuguesa, entendida como a reguladora das relações sociais e de poder nos dois lados do Atlântico. No fundo, a intenção também é entender como esses homens agiam e de que maneira usaram tais recursos como barganhas políticas para a construção do espaço ultramarino. Rumando ao século XIX, Anna Marie Buyers em Em Defesa da Honra: a Emancipação de Alagoas no Imaginário Institucional faz uma breve análise historiográfica sobre um dos episódios mais controversos e debatidos na historia alagoana, a Insurreição Pernambucana de 1817 que culminou na separação da comarca das Alagoas da capitania de Pernambuco. Expondo as versões sobre o fato, a autora demonstra a existência dos interesses de cada grupo institucional em fazer com que sua “verdade” prevalecesse sobre o movimento, contribuindo para dificuldades de interpretações, mas das vezes não fundamentadas em um corpus documental.
Chegando ao início do século XX, Filipe Pinto Monteiro nos traz A Santíssima Trindade nos Sertões: Severino Tavares e a Gestação do Movimento Messiânico-Milenarista de Pau de Colher (Casa Nova, Bahia, 1934-1928), onde tenta inserir seu personagem beato no rol dos episódios conectados com aqueles ocorridos com o Padre Cícero Romão Batista (no Ceará) e José Lourenço Gomes da Silva (Caldeirão dos Jesuítas), praticamente ocorridos ao mesmo tempo. Desta feita, a intenção é fazer um estudo comparativo apresentando as aproximações e as divergências entre o ocorrido em Pau de Colher e as outras localidades nordestinas. Ainda discutindo movimento social, Igreja Católica e religiosidade, Celia Nonata da Silva em “Os pobres herdaram a terra”: Conflitos rurais e a Igreja Católica no Brasil na Segunda Metade do Século XX analisa de que maneira as Conferências de Medellín e Puebla alteraram a forma de pensar dos líderes religiosos e camponeses na luta pela terra, construindo discursos que resgatam o papel missionário e de luta da Igreja nos sertões brasileiros que remontam ao século XIX.
Afastando-se da discussão religiosa, mais ainda permanecendo no debate da problemática da terra, Edson Hely Silva discute em Os Índios Xucurus e as Ligas Camponesas (Pesqueira / PE, 1961) de que maneira os ameríndios lutam para a garantia de seus espaços invadidos por proprietários de terras locais. Com uma farta documentação (oral e escrita) o texto demonstra também como havia um discurso forjado pelas autoridades de manipulação dos índios pelos grupos comunistas da época, desprezando o entendimento de que os mesmos já se enquadravam na condição de trabalhadores assalariados e explorados pelos proprietários de terra. Finalizando o dossiê, mas incluído na seção Documentação, Alberto Vivar Flores nos prestigia com a transcrição da entrevista do General Emiliano Salazar Zapata para o Diário Nova Era, em 1911, momento em que revelava os bastidores da Revolução Mexicana (1910). Tal documento torna-se oportuno neste momento, justamente em que o episódio completa seu centenário de aniversário e ainda é considerado por muitos como um dos pilares da discussão sobre a reforma agrária, a valorização dos indígenas e a ampliação dos direitos e liberdades na América Latina.
Nos artigos de fluxo contínuo Loiva Canova avalia em As Representações de Antônio Rolim de Moura Sobre a Paisagem no Interior da América Portuguesa no Século XVIII como este funcionário através de uma viagem que percorreu o Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso em meados do Setecentos não só descortinou o cenário maçoeiro como analisa a impressão da fauna, flora e aspectos da morfologia destes espaços ultramarinos. Enquanto isso, Marcos Guedes Vaz Sampaio em Padrão dos Investimentos Britânicos e a Modernização Conservadora na Economia Baiana Oitocentista explora como a infra-estrutura baiana (sobretudo a de transporte) foi ventilada pela inserção de capital norte-americano na segunda metade do século XIX, o que não implicou em alterações nos mecanismos produtivos da agricultura, mas apenas reforçando sua condição agro-exporadora. Saindo do mundo da história econômica e flertando com a história cultural, Diogo Cesar Nunes em História, Linguagem e Literatura: Dilemas e Perspectivas da Historiografia Contemporânea ousadamente nos apresenta como a crítica ao contextualismo e apologia a interpretação contribuíram para redefinições teóricometodológicas na própria histórica que possibilitaram uma sobrevivência e maior aproximação entre a História e a Literatura.
Ainda na discussão sobre teoria, José D’Assunção Barros em seu texto Os Tempos da História: do Tempo Mítico às Representações Historiográficas do Século XIX faz uma análise historiográfica sobre as diversas interpretações sobre o tempo ao longo da História que perpassa desde a antiguidade até fins do século XIX, buscando compreender como essa relação tempo-história se forjou em concepções e representações. Já Gabriel Magalhães Beltrão propõe em A Continuidade da Abordagem Positivista Acerca do Folklore na Obra de Théo Brandão uma análise sobre olhar sobre o conceito de folclore em um dos principais representantes desta área no Estado de Alagoas. Neste caso, a intenção também é entender como o positivismo intervém nas construções epistemológicas no fenômeno folclórico. No debate sobre política pública e educação, Caio Penko em Multiculturalismo e Direitos: do marco legal à política pública interpreta como as alterações previstas na Lei 11.645 / 08 deflagrou uma ação diferenciada na educação brasileira visando tratamentos diferenciados as minorias étnico-raciais, elementos constituintes das novas políticas governamentais de reconhecimento social e minimização das diferenças étnicas.
Encerrando esta seção, Ticiane Oliveira de Sales nos desafia a compreender a relação entre história e patrimônio em Práticas Urbanísticas e Preservação Patrimonial no Brasil onde discute como o debate de preservação do patrimônio tem se desenvolvido na formação social do país, principalmente mediante ao crescimento urbano e os impedimentos que o desenvolvimento das cidades acarreta para a manutenção patrimonial.
Por fim, na seção Resenhas João Vinicius Bobek em Distinção e Divulgação: a civilidade e seus livros nos apresenta uma análise da obra Leitura e Leitores na França do Antigo Regime do Antigo Regime de Roger Chartier como uma alternativa para a compreensão do perfil cultura dos homens do Antigo Regime.
Logo, como se pôde observar este número da Revista Crítica História privilegiou não só uma discussão diversificada dos movimentos sociais (temática de nosso dossiê) como também ampliou possibilidades teóricas, metodológicas e de temáticas em seu conteúdo complementar. Função esta que tem como principal objetivo continuar contribuindo para um debate aberto e plural no meio historiográfico nacional.
Antonio Filipe Pereira Caetano – Conselho Editorial
Maceió, dezembro de 2010
CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Editorial. Crítica Histórica, Maceió, v. 1, n. 2, dezembro, 2010. Acessar publicação original [DR]