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Escolarização, livros escolares e movimentos migratórios / Cadernos de História da Educação / 2019
A Itália, assim como Alemanha, Polônia e Espanha, para mencionar apenas alguns europeus, se constituíram em países de emigração e o Brasil de imigração, acentuadamente entre meados do século XIX e primeiras décadas do século XX. A presença de movimentos migratórios nos provoca a pensar a transnacionalidade e a necessária suspensão de recortes de pesquisa que se pautem exclusivamente no contexto das fronteiras nacionais. Pensar as relações entre processos de escolarização e produção de livros escolares, permenado pelo olhar dos movimentos migratórios é o intuito principal deste dossiê. Atentamos para as ideias que circularam por meio dos materiais escolares que foram produzidos em épocas distintas e com intuitos diferenciados. Compreendemos que no interior das escolas se encontram e confrontam culturas e, por meio de olhares históricos, é possível compreender a diversidade étnica, bem como a pluralidade de práticas e de itinerários. Tal movimento investigativo também é importante para os interessados em compreenderem a história das instituições escolares. Especial atenção reside nos materiais escolares produzidos pelo governo italiano e distribuídos entre imigrantes no contexto brasileiro.
Para tal, consideramos que os livros são portadores de valores morais, sociais e éticos, são expressões dos modos de pensar e compreender o que a educação escolar deve ensinar às novas gerações. Percorrer as páginas de manuais e livros escolares significa, para os historiadores da educação, compreendê-los na sua produção, interrogá-los na sua circulação, apropriação e nos modos como foram preservados e nos chegam até a contemporaneidade. Livros escolares podem ser pensados como guias que buscaram conduzir professores e alunos em suas práticas pedagógicas ao serem portadores de conteúdo, reveladores de intenções e projetos políticos de formação sociocultural. Os livros, quadros murais e impressos analisados nesse Dossiê são entendidos como mediadores culturais que permitem pensar concepções políticas para a educação escolar produzida pelo Governo Italiano para regular as escolas italianas do exterior, aqui investigadas especialmente aquelas do Brasil. Ou produzidos no Brasil para promover renovação pedagógica por meio de quadros murais ou ensino de disciplinas como a de Trabalhos Manuais. Atentar para a similaridade de algumas práticas e pensar como os materiais escolares, em especiais os livros e impressos escolares, são portadores e difusores de modos de ser, pensar e viver, constituem o fio condutor dos artigos aqui reunidos.
O primeiro artigo, “Patria, razza e civiltà. Le istruzioni per um’emigrazione di sucesso nei manuali scolastici di Geografia Italiani tra fine ‘800 e inizio’900” (Pátria, raça e civilização: as instruções para a emigração de sucesso nos manuais de Geografia italianos entre o final do 800 e início do 900) de Paolo Bianchini analisa um conjunto de livros escolares de geografia que circularam na Itália em escolas primárias e secundárias e que tratam a questão da emigração italiana, referindo o papel da escola e dos manuais escolares de geografia, em especial, na construção de conceitos centrais como pátria, raça e civilização, que ainda hoje são fortemente influenciados pelas imagens e ensinamentos constituídos nos séculos passados.
O segundo artigo do dossiê, intitulado “Uma impronta di italianitá”: os livros didáticos para escolas étnicas italianas no Brasil entre liberalismo e fascismo de Alberto Barausse aprofunda a análise do processo histórico das políticas empreendidas pelo Governo Italiano no processo de seleção dos livros escolares a serem produzidos e adotados nas escolas no exterior. Atenta para as dinâmicas e complexas relações de acompanhamento e desenvolvimento da escolarização, dos processos culturais e formativos, sobretudo identitários, dos colonos italianos no Brasil, entre a segunda metade do século XIX e a fim dos anos 30, do século XX. Considera que os livros didáticos foram, desde o começo da experiência da unificação italiana, um instrumento fundamental para as classes dirigentes que tinham por finalidade modernizar e, sobretudo, homogeneizar e uniformizar o ensino nas escolas em sentido nacional. Ressalta a italianidade como objetivo a ser difundido, como sentimento de interligação com a Pátria-Mãe, as estratégias mobilizadas variaram e o entendimento de italianidade também.
O texto “Scuole Italiane all´estero: livros de leitura para as escolas italianas no Brasil (São Paulo / SP, 1911 – 1931) de Claudia Panizzollo analisa um dos livros produzidos na Itália e publicado pela Editora Bemporad que circulou intensamente pelo Brasil. O livro Piccolo Mondo, letture per Le scuole elementar, de 1910, de autoria de Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni atravessou o oceano e chegou à Escola Principe di Napoli. Escrito para as escolas da península italiana circulou também nas escolas all’estero, e merece destaque a longevidade da publicação, sendo sua última edição no ano de 2011. Piccolo Mondo conforme Panizzollo apresenta uma preocupação com o ensino científico e valoriza as Ciências Naturais. O livro apresenta um conjunto de historietas que abordam temáticas voltadas à higiene, à saúde, à morte adulta e infantil e à nutrição, aos remédios e vacinas e às plantas. Na análise de Panizzollo, Romagnoli e Albertoni destinaram significativo espaço para o aprendizado da civilidade, buscando disciplinar as almas dos pequenos italianos ou seus filhos, por meio de coerção exercida sobre o corpo, além de impor à coletividade de crianças uma mesma norma de comportamento considerado adequado e aceitável, o que se faz por meio da transmissão de valores como bondade, caridade, paciência, trabalho, respeito aos mais velhos, ao mesmo tempo em que se busca distanciar as crianças do orgulho, do apego aos valores materiais, da preguiça, da cobiça, entre outros sentimentos. Em suas páginas emerge um projeto, ao mesmo tempo, civilizatório e de constituição da italianidade.
No quarto artigo, “‘E não nos deixeis cair em tentação’: livros de leitura religiosa do governo fascista para as escolas italianas no Brasil (anos 20 e 30 do século XX), Terciane Ângela Luchese atenta para a produção, a circulação e as estratégias de (con)formação postos em jogo pelos dois volumes do livro Letture di Religione, distribuídos gratuitamente aos alunos das escolas italianas do Brasil. Os livros foram escritos e compilados por Giuseppe Fanciulli, também conhecido como Maestro Sapone. Italiano nascido em Firenze, com formação em Filosofia, Psicologia e Direito, publicou inúmeros livros para as escolas italianas recomendados pelas comissões no período fascista abordando temáticas diversificadas como História e Leitura. As duas obras de Letture di Religione contavam com páginas inteiras ilustradas por Beryl Tumiati. Eram portadores de uma proposta educativa ligada à ideologia fascista que não deixou de considerar e construir a relação entre pátria (fascista), conduta moral, religião e família. O texto analisa as aproximações entre fascismo e catolicismo no contexto italiano e sua repercussão na produção e envio de livros escolares para as escolas étnicas italianas no Brasil, destacando-se que se trata de dois dos poucos manuais publicados para ensino religioso para as escolas italianas no exterior.
O quinto artigo, intitulado “O ethos do trabalho como signo de modernização pedagógica: artes de fazer prescritas na imprensa pedagógica (Minas Gerais, 1925 – 1934)” de Marcus Aurélio Taborda de Oliveira entrelaça a noção de economia moral, de Edward Thompson e trabalho desenvolvida por Hannah Arendt, para discutir a presença dos Trabalhos Manuais no contexto das Minas Gerais nas décadas de 1920 e 1930, tendo como referência a Revista do Ensino, publicada a partir de 1925, mas com destaque ao livro Trabalhos Manuaes Escolares, de Manuel Penna, de 1934. O autor considera que essas publicações representam como intelectuais e agentes públicos buscaram estabelecer parâmetros para a escola pública brasileira, objetivando renovar pedagogicamente a escola, a par da urbanização, industrialização e combate ao desprezo pelo trabalho manual no Brasil.
O último artigo, “Um olhar alemão para a escola brasileira: Carl Ernest Zeuner desenhando quadros murais (1963 – 1969)” de Maria Helena Camara Bastos analisa os suplementos didáticos ou quadros murais, encartados mensalmente e destacáveis, também denominados “Material Didático para as Classes do Curso Primário” e que circularam junto à Revista do Ensino no Rio Grande do Sul. Esses quadros murais foram desenhados pelo imigrante alemão Carl Ernest Zeuner, formado na Academia de Artes Gráficas de Leipzig / Alemanha e que chegou ao Brasil em 1922, radicando-se em Porto Alegre. Foi pintor, desenhista e ilustrador, permanecendo por quatro décadas na Livraria e Editora Globo. Na década de 1960, seus desenhos ilustraram os quadros murais, a partir das orientações da direção do periódico. A observação e experimentação visual possível pelos quadros murais produziram representações que puderam ser lidas e fomentaram uma formação moral, cívica, religiosa e patriótica.
Chartier (1990) afirma que o livro, mas também outros impressos como jornais e revistas, são materialidades que colocam em circulação ideias sobre os quais podemos questionar processos de produção, conteúdos e discursos de que são portadores. Podemos, a partir desses documentos perscrutar a distribuição e a apropriação em diferentes espaços e tempos, além de sua preservação. É em torno dessas questões e da compreensão dos movimentos migratórios e sua relação com a escolarização que os pesquisadores se articulam para pensar a História da Educação. No conjunto, os textos desse dossiê permitem compreender as políticas de seleção e produção de livros escolares pelo governo italiano e destinados às escolas no exterior, atentando para a circulação e a distribuição dos livros, bem como a compreensão, a partir da análise de alguns dos exemplares – vinculados à leitura, ao ensino histórico-geográfico, à ciências e à religiosidade – dos modos como se buscou educar os italianos e seus descendentes no interior das escolas étnicas italianas no Brasil, entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Também atenta para a inserção de Trabalhos Manuais na escolarização percebendo as relações cruzadas entre trabalho, economia moral e renovação pedagógica, além de atentar-se para a produção e a circulação dos quadros-murais na Revista de Ensino do Rio Grande do Sul, outra materialidade educativa do olhar que produziu representações e resultou do trabalho do imigrante alemão Carl Zeuner. Caminhos interpretativos cruzados sobre o passado da escola e suas materialidades em circulação e que buscaram educar, mobilizando memórias sobre processos identitários, civismo e patriotismo.
Referências
CHARTIER, R. (1990). A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Portugal: DIFEL.
Terciane Ângela Luchese – Universidade de Caxias do Sul (Brasil) https: / / orcid.org / 0000-0002-6608-9728 http: / / lattes.cnpq.br / 7640634913198342 E-mail: taluches@ucs.br
Alberto Barausse – Università degli Studi del Molise (Italia) https: / / orcid.org / 0000-0002-8326-046X E-mail: barausse@unimol.it
LUCHESE, Terciane Ângela; BARAUSSE, Alberto. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 18, n.2, maio / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]
Movimentos migratórios no mundo Atlântico, séculos XIX e XX / História (Unesp) / 2017
O passado esquecido e o presente trágico
O presente número da revista História (São Paulo) está constituído por dois dossiês, vários artigos livres e resenhas de importância inequívoca para o enriquecimento da discussão historiográfica do Brasil e também no âmbito internacional.
O dossiê 1, foi organizado pelo professor Paulo Gonçalves da UNESP – Campus de Assis, sobre o título Movimentos migratórios no mundo Atlântico, séculos XIX e XX. É evidente a atualidade do fenômeno migratório, cada vez mais desafiador, dos grandes deslocamentos populacionais, vítimas de graves crises econômicas, guerras ou genocídio étnico em seus países. Não é preciso retroceder aos horrores do genocídio étnico realizado pelo Império Turco Otomano aos armênios ocorrido durante a Primeira Grande Guerra e nem mesmo ao massacre de Ruanda ocorrido em 1994 (PRUNER, 1999) ou ao holocausto ocorrido na Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Basta atentarmos para o conflito interno da Síria iniciado em 2011 que tem gerado uma enorme onda migratória de sírios e árabes, sem paralelo na história do Continente, desde a Segunda Guerra Mundial. Ou para o genocídio étnico dos rohingya em Myanmar, país budista liderado pela Nobel da Paz Suu Kyi que se escancara aos olhos dos organismos internacionais sem que nada de significativo aconteça. O presente dossiê propõe uma volta ao passado, discutindo os movimentos migratórios dos séculos XIX e XX com vistas à compreensão das catástrofes que estamos vivendo no século XXI. O passado tem que ser sempre lembrado para que os dramas contemporâneos não se transformem em banalidades que não afetam a sensibilidade dos governos, dos organismos internacionais e de nós mesmos. É assim que entendemos Hobsbawm quando diz que o ofício dos historiadores é cada vez mais importante, pois cabe a ele lembrar o que os outros esquecem (HOBSBAWM, p. 13).
É sob esta perspectiva que foram reunidos aqui artigos que discutem diferentes aspectos de grupos e indivíduos e suas experiências no plano das migrações transoceânicas. Os artigos aqui elencados evocam temas bastante atuais de investigação através enfoques teóricos e metodológicos diversos. Aqui são tratados temas relativos às desesperanças e frustrações de imigrantes das mais diversas partes do mundo ao chegarem ao Brasil e em outros países, e constatarem que nada do que lhes foi prometido era realidade. Em suas sociedades de adoção tiveram que se submeter à condição de trabalhadores semelhantes aos escravos africanos, enfrentando preconceitos e imensas dificuldades de inserção social. O tráfico de mulheres brancas para fins de prostituição também compõe este quadro de degradação humana. Um dos artigos aqui apresentado discute tal fenômeno delimitando o espaço temporal de fins do século XIX a inícios do século XX, mas sua autora adverte que experiências dessa natureza não se encerram no passado, mas se fazem sempre presente nos deslocamentos de massa que caracterizam a época contemporânea.
O professor André Figueiredo Rodrigues, da UNESP – Campus de Assis e o professor Germán A. de la Reza, da Universidade Autônoma Metropolitana do México foram os organizadores do dossiê 2, que abrigou artigos abordando o tema Livros, bibliotecas e intelectuais no mundo ibero-americano (séculos XVI ao XX). A temática proposta pelo dossiê atraiu a atenção de estudiosos nacionais e internacionais que abordam o assunto sob os mais variados aspectos. Recebemos artigos sobre a história, a posse de livros e as práticas de leitura no mundo Ibero-Americano que circularam nos dois lados do Atlântico e mesmo dentro do continente americano entre os séculos XVI e XIX.
A materialidade e a discursividade de autores e suas obras, acervos bibliográficos e documentais, a historiografia do livro no universo colonial, hábitos de leitura e informações e discussões sobre as fontes disponíveis foram alguns dos temas explorados pelos artigos publicados no dossiê. Ressalte-se a discussão sobre a metodologia de análise e interpretação de fontes documentais sobre os participantes do Movimento da Inconfidência Mineira e da Insurreição Pernambucana de 1817, desenvolvidas em seus artigos pelos professores André Figueiredo e Luiz Carlos Villalta,respectivamente. Mas estes são apenas dois exemplos dos trabalhos que discutiram com densidade e profundidade a proposta do dossiê.
Enfim, nas leituras dos artigos do dossiê 2 podemos encontrar discussões instigantes a respeito das práticas de leituras em suas diversas modalidades, ou seja, podemos constatar uma coleção indefinida de experiências de leitura enquanto liberdade interpretativa e enquanto prática criativa autônoma dos indivíduos (CHARTIER, p. 121-139).
Por fim, os artigos livres publicados por esta revista neste número são variados em seus tratos teóricos, metodológicos e temáticos. Deixamos aos leitores fazer sua própria apreciação ao invés de falarmos sobre cada um deles.
Queremos tributar nossos sinceros agradecimentos aos professores que organizaram os dossiês, aos pareceristas que não hesitaram em dar suas contribuições para que a revista preserve a boa qualidade oferecida aos leitores e aos autores que deram preferência à revista História (São Paulo) para a divulgação de seus trabalhos.
Referências
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990. [ Links ]
PRUNER, Gérard. The Rwanda Crisis History of a Genocide. 2. Ed. Kamplala Fountain Publishers Limited, 1999. [ Links ]
HOBSBAWM, Eric. A Era dos extremos. O breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. [ Links ]
José Carlos Barreiro
Ricardo Alexandre Ferreira
Editores
BARREIRO, José Carlos; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Apresentação [O passado esquecido e o presente trágico]. História (São Paulo), Franca, v.36, 2017. Acessar publicação original [DR]