João Goulart: uma biografia – FERREIRA (RBH)

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 714p. Resenha de: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.63, 2012.

João Goulart, ou Jango, é um dos personagens mais controvertidos da história brasileira e, por que não dizer, dos mais trágicos também. Presidiu a um governo que mobilizou as esperanças de milhares de pessoas sob a promessa de reformar o Brasil e atenuar suas mazelas sociais, projetos que provocaram medo e insegurança em outros grupos sociais, os mesmos que o derrubaram do poder em 1964. Dono de imagem inevitavelmente polêmica, a suscitar tanto admiração quanto desprezo, a importância de Goulart no contexto que levaria ao golpe é inquestionável, pois suas ações e projetos, mas sobretudo a maneira como foram interpretados, desempenharam papel chave no processo.

O livro João Goulart: uma biografia, de autoria do professor Jorge Ferreira, constitui extensa e cuidadosa análise sobre o ex-presidente e traz contribuição inestimável ao estudo do controverso líder, bem como do contexto político em que atuou. Trata-se de trabalho de grande fôlego, com base em pesquisa abrangente que inclui entrevistas, memórias, documentos pessoais, registros da imprensa e consulta a numerosa bibliografia, resultando em obra de mais de setecentas páginas. Dado o escopo do trabalho, resenhá-lo adequadamente em poucas linhas torna-se um desafio. Adotando postura realista, preferiu-se aqui apontar alguns traços fortes da obra, como um convite ao leitor para ler o trabalho e formular seu próprio juízo.

Motivado pela percepção de que a memória sobre Jango está presa aos eventos de 1964, Ferreira procurou lançar luz sobre outros pontos da trajetória política do ex-presidente, de modo a permitir visão mais ampla. Moveu o autor, também, o desejo de ir além das apreciações críticas ao político gaúcho, dominantes na literatura e na memória, e revelar as qualidades positivas do líder que, aliás, explicam sua ascensão. A intenção foi produzir análise mais equilibrada sobre Jango, fugindo das críticas que o rotulam de populista e fraco e o acusam de responsável pela crise que levou ao golpe. Isso não significa que o autor tenha escamoteado as críticas a Goulart, pois, no seu texto, aparecem referências aos erros cometidos pelo ex-presidente, principalmente em 1964; mas ele tende a destacar mais traços positivos como lealdade (ao varguismo, em especial), talento para a negociação e sensibilidade social. Goulart foi de fato político hábil, fiel ao estilo de seu mestre, e por isso mesmo conseguiu fazer carreira rápida no campo varguista e trabalhista, com o detalhe de defender projeto social bastante mais avançado em comparação às ações adotadas por Getúlio. A obra oferece excelente análise da trajetória inicial de Goulart, justamente a fase menos conhecida da sua vida, começando pelos primeiros contatos com Vargas, de quem era vizinho em São Borja, e prosseguindo pelos laços construídos por Jango com os sindicatos e a esquerda. Merece destaque a análise sobre a construção do relacionamento entre Goulart e os sindicalistas, no início dos anos 1950, graças à sua atuação como ministro do Trabalho na tormentosa segunda metade do mandato constitucional de Vargas, bem como a análise de suas atividades como presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no mesmo período, as quais forneceram os pilares para toda sua carreira política.

Naturalmente, a biografia apresenta dados sobre a vida pessoal do político, como a explicação para o defeito na perna de Goulart, assim como suas aventuras amorosas com as mulheres. A propósito, os dois fatos tinham relação, as aventuras sexuais e o problema físico. Porém, Ferreira não se deixou levar pela atração fácil do escândalo e do espetáculo e, ainda que não tenha omitido informações úteis para o entendimento do personagem, tratou sua vida privada com sobriedade. Outro aspecto da vida privada de Jango analisado com propriedade pelo autor foi o talento empresarial do político gaúcho. Goulart herdou os negócios rurais do pai, mas ampliou consideravelmente a fortuna da família ao desenvolver notável faro para ganhar dinheiro, característica que seria muito útil na sua futura vida de exilado. Mas a biografia se concentra mais nos aspectos públicos da vida de Goulart, a sua atuação como líder que começou como afilhado político de Vargas e terminou no exílio, onde encontrou a morte, após tumultuado e inconcluso período como presidente.

Nesse percurso, Ferreira analisou os grandes eventos e processos políticos vivenciados por Jango nos anos 1950 e 1960, fase decisiva na história brasileira. No livro encontramos narrativas cuidadosas de alguns momentos importantes, como a passagem de Goulart pelo Ministério do Trabalho, a crise do governo Vargas e seu suicídio, a renúncia de Jânio Quadros e o movimento pela ‘legalidade’ (ou seja, pela posse do vice-presidente João Goulart), o comício de 13 de março de 1964 e outros acontecimentos às vésperas do golpe. O livro oferece informações e análises imprescindíveis ao conhecimento da nossa história política recente, aliás, pouco conhecida pelo grande público. Do período pós-1964 até a morte de Goulart, em fins de 1976, a biografia nos mostra os padecimentos da vida no exílio, dele e dos familiares, que viram as amarguras do desterro se associarem à angústia da insegurança, pois Uruguai e Argentina, países escolhidos por Goulart por sua proximidade com o Brasil, logo seriam convulsionados por episódios de violência política semelhantes aos experimentados no Brasil.

O autor demonstra certa simpatia/empatia pelo biografado, o que lhe permite analisar os objetivos políticos de Jango de maneira compreensiva, embora não indulgente. Mesmo que aponte algumas atitudes autoritárias do presidente, principalmente no controle do PTB, e não deixe de considerar o projeto pessoal de poder do político gaúcho, Jorge Ferreira nos mostra um Goulart sinceramente empenhado nas causas anunciadas em seus discursos. Ele desejava melhorar a vida dos mais pobres e reduzir a dependência externa (ou emancipar a nação, nos termos da época), e pretendia consegui-lo por meio de negociações e acordos, que evitassem rupturas revolucionárias. Não desejava questionar as bases do sistema capitalista, afinal era grande fazendeiro e negociante, mas queria construir modelo econômico menos injusto e mais ‘nacional’.

A análise do autor é convincente ao mostrar que o principal impulso do projeto político de Goulart era realizar reformas, e não utilizá-las para tornar-se ditador ou golpear as instituições. De fato, há poucos indícios de que Jango desejasse ou tenha planejado instituir um regime autoritário. Não obstante, o presidente aceitou e adotou uma estratégia de pressionar o Congresso Nacional para obter as reformas, fazendo uso de comícios e outros meios de pressão que deixaram no ar a dúvida sobre suas reais intenções e semearam confusão e intranquilidade no campo político. Os aliados de esquerda do ex-presidente fizeram movimentos mais agudos nessa direção, principalmente Leonel Brizola, com discursos agressivos dirigidos ao Congresso que podiam ser interpretados como ameaça às instituições liberais. Pessoalmente, Goulart repeliu sugestões de fechar o Congresso, porém, entre seus aliados nem todos pensavam assim.

Na correta avaliação de Jorge Ferreira, os principais erros de Goulart foram cometidos no front militar, e esses foram decisivos para sua queda. Ele confiou em oficiais pouco capazes que trouxe para seu círculo íntimo, e, no episódio da revolta dos marinheiros (março de 1964), chancelou uma solução para a crise totalmente favorável aos rebeldes, decisão considerada equivocada até por oficiais comunistas ligados ao governo. Com a libertação dos marinheiros, o presidente permitiu que a oficialidade o imaginasse favorável à quebra da hierarquia militar, e isso jogou contra o governo a maioria da corporação militar, até então neutra e na expectativa. Outro erro grave do presidente no campo militar e político foi sua atitude no episódio do pedido de estado de sítio, em outubro de 1963. Ele aceitou a sugestão dos ministros militares para solicitar ao Congresso a medida extrema, decisão incompreensível ainda hoje e surpreendente em vista da esperteza política do presidente. Como concordou com medida que não tinha apoio de nenhuma força política significativa, e que o deixou isolado tanto à esquerda quanto à direita, lançando insegurança e ansiedade em todos os quadrantes?

Por fim, vale destacar a análise de Jorge Ferreira sobre as razões para Goulart ter abdicado de resistência armada ao golpe, o que rendeu muitas acusações e críticas ao ex-presidente. Ao contrário de fraqueza, o autor viu no episódio a manifestação do cuidado de Jango em preservar o país de guerra civil, que possivelmente teria resultado em intervenção dos Estados Unidos. O desmoronamento do apoio militar ao governo e a fraca capacidade dos grupos de esquerda para arregimentar-se contra o golpe, apesar de honrosas e corajosas exceções, demonstram que as chances de vitória em caso de guerra civil eram poucas, e a decisão de Goulart bem pode ter poupado o país de violências ainda maiores. Mas é possível, também, que, além da violência da guerra civil, o presidente desejasse evitar outro desdobramento: a resistência armada poderia gerar radicalização esquerdista muito além do seu projeto político.

Enfim, trata-se de obra escudada em sólida pesquisa e análises consistentes, que se constitui em texto indispensável para os pesquisadores do tema e também para o público mais amplo. É produto maduro de historiador experiente, que passa a integrar o rol de leituras obrigatórias sobre a história política recente do Brasil.

Rodrigo Patto Sá Motta – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. Avenida Antônio Carlos, 6627, Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte – MG – Brasil, E-mail: rodrigosamotta@yahoo.com.br

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