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Soldados da Pátria – História do Exército Brasi leiro (1889-1937) – McCANN (AN)
McCANN, Frank D. Soldados da Pátria – História do Exército Brasi leiro (1889-1937). Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Resenha de: FERREIRA, Bruno Torquato. Anos 90, Porto Alegre, v. 17, n. 32, p. 327-333, dez. 2010.
Frank D. McCann é professor do Departamento de História da Universidade de New Hampshire e, nos anos 1960, como oficial da reserva do Exército americano, foi professor na Academia Militar de West Point. É autor de livros como Aliança Brasil-Estados Unidos (1937-1945) e A Nação Armada: ensaios sobre a história do Exército brasileiro.
Teve passagens por universidades brasileiras como professor visitante, tendo sido também agraciado pelo governo brasileiro com alguns títulos. McCann vem se debruçando sobre os problemas concernentes à atuação política dos militares há mais de trinta anos e a sua produção acadêmica nesse período, ao que tudo indica, também se concentra nessa temática. Ultimamente vem se engajando em um projeto de desenvolvimento de uma base de dados biográficos sobre os oficiais do Exército brasileiro no século XX (Brazilian Army Officers Project) e na elaboração de uma biografia de Pedro Aurélio de Góes Monteiro (p. 621). Soldados da Pátria faz parte de um projeto maior cuja intenção é investigar a história da instituição militar terrestre brasileira até o começo da década de 1990 (p. 10).
Dois aspectos importantes da obra, no tocante ao processo de pesquisa e redação, merecem ser mencionados. A primeira diz respeito ao uso abundante e original dos registros burocráticos produzidos pelo comando militar no período, já que, no seu modo de ver, um estudo sobre a formação da oficialidade do Exército deveria incluir a estrutura, a doutrina, os equipamentos e o treinamento dos homens dessa instituição como objetos de análise1, material este ainda pouco explorado pelos pesquisadores brasileiros. Sobre os estudos relacionadas à década de 1920 no Brasil, o próprio McCann é quem alerta aos interessados: A história de um Exército, dada a complexidade da instituição, requer um enfoque amplo. Além disso, não deve se ocupar apenas dos vencedores; precisa também falar de quem perdeu e por quê. Apesar da importância das rebeliões, há mais na história do Exército (p. 290) As rebeliões em si revelam muito das características culturais dos brasileiros naquela época; as amizades foram fatores não desprezíveis para a aderência ou não a um lado (revoltado) ou outro (legalista) nas vésperas dos sucessivos movimentos. Muitas vezes, era o posicionamento da maioria da guarnição o que determinava o comportamento dos oficiais (p. 361-362). Por outro lado, mesmo os legalistas, não delatavam os seus colegas conspiradores quando convidados a tomar parte nos movimentos (p. 622). Portanto, “conversar, escrever e até mesmo tramar eram tolerados até que alguma ação ocorresse” (p. 410). Além disso, muitos simpatizantes das conspirações deixavam de tomar parte nos movimentos sediciosos por lealdade aos seus comandantes legalistas: “Cabe ressaltar que os oficiais brasileiros não juravam obediência à Constituição, e sim a seus superiores, de modo que os laços pessoais tinham papel importante na manutenção da disciplina” pois tratava-se de um sistema “acentuadamente paternalista, influenciado pelas ligações pessoais de amizade” (p. 373). De fato, a pátria estava acima da Constituição, do Gabinete, do imperador ou do presidente: “O Exército brasileiro foi e ainda é, um baluarte contra as forças centrífugas regionalistas” (p. 11).
Talvez refletindo sobre suas próprias limitações analíticas a esse respeito o autor comentou: “Muitos estrangeiros tinham dificuldade para perceber, e ainda mais para aceitar, a importância da amizade na vida política pública brasileira” (p. 649). Contudo, essa tradição de conciliação chegou ao fim a partir da segunda metade da década de 1930, sobretudo após 1935, quando os sargentos e demais praças passaram a ser alvo de brutal repressão, sem falar dos constantes expurgos e ameaças de expurgos tornados constantes a partir de 1937, utilizados para chantagear e manter na linha os ocupantes da base hierárquica da instituição.
Alguns comentários são reveladores acerca da maneira como alguns americanos compreendem a realidade brasileira, em que pesem os incômodos que podem causar aos brasileiros mais ciosos ou mesmo aos padrões nacionais de cientificidade no tocante às humanidades. O episódio de 15 de Novembro, por ser pouco conhecido e investigado, foi descrito como um dos “aspectos bizarros da história brasileira moderna” (p. 28) ou “A história do Exército brasileiro é mais bem compreendida como um refl exo da complexa, intrincada e às vezes contraditória cultura nacional” (p. 9). O autor parece supor que não existe cultura “contraditória”2.
Em segundo lugar, chama a atenção do leitor mais atento a bibliografia utilizada, que demonstra existir nos Estados Unidos uma historiografia brasileira à parte, com a qual, diga-se de passagem e salvo exceções, a historiografia produzida no Brasil parece manter muito pouco contato, embora a recíproca não seja verdadeira. Temas como a proclamação da República, o conflito de Canudos, a Revolta da Vacina, o conflito do Contestado, a Revolução de 1930, a economia brasileira nas primeiras décadas do século XX entre outros assuntos foram e são largamente debatidos em universidades americanas e, em alguns casos, as pesquisas resultantes desses debates apresentam dados inteiramente originais3.
O autor, desde o começo, anuncia seu rompimento com as análises que interpretam as rebeliões militares como reflexos da política civil ou mesmo de determinismos classistas. Nesse sentido segue a trilha já palmilhada por autores brasileiros e brasilianistas como Edmundo Campos Coelho, José Murilo de Carvalho, John Schulz e Alfred Stepan. Seguindo os rastros desses mesmos autores também indica, que seu intuito inicial de entender o comportamento dos militares brasileiros no período de 1964-1985 levou-o “constantemente” de volta ao período 1889-1937, o qual começou a ver como “a sementeira de acontecimentos posteriores” (p. 10).
Não concorda, por outro lado, com a tese do “poder moderador” de Alfred Stepan (p. 14-15) e, neste ponto, se aproxima mais uma vez das abordagens de Carvalho e Coelho. Conclusão do autor: “O Exército não se tornou o moderador na década de 1890; seu poder era muito precário e muito cooptado. Antes da década de 1930, o Exército não possuía vontade institucional, a doutrina ou a capacidade para tal papel” (p. 14). A unidade doutrinária na formação dos oficiais seria alcançada apenas décadas depois, com a homogeneização da sua formação (p. 251). Acontece que na década de 1920, muitos sargentos foram comissionados em postos de oficiais, o que parece ter dificultado essa propalada unificação doutrinária. Sem unificação doutrinária como esperar que agissem de forma ordenada, coesa e coerente? Nesse sentido, o autor aponta a importância da ESAO e da ECEME4 na unificação doutrinária do Exército nos escalões médios e altos da organização no decorrer do século XX (p. 270). Por outro lado, na década de 1920 essa unidade ainda era incipiente, razão pela qual o autor atribui à falta de unidade doutrinária uma das principais causas da “disposição [dos jovens oficiais] de desrespeitar a hierarquia e rebelar-se (p. 276). Para McCann o Exército começou a se tornar moderador apenas a partir de 1937: “Vargas abriu a porta, e os generais entraram” (p. 547).
O grande caráter instrumental do Exército se revelou quando ele foi acionado para “manter na linha as massas, ou pessoas comuns” (p. 19). Assim podem ser compreendidos episódios como Canudos e Contestado, além da própria repressão aos comunistas e esquerdistas na década de 1930. Além disso, foi o principal instrumento de projeção política do Estado-nacional brasileiro. Esta leitura se estende para além dos limites cronológicos do Estado Novo, não obstante a autonomia institucional alcançada pelo Exército, que lhe potencializou um intervencionismo mais atuante (p. 552-553).
O Exército brasileiro, nesse último período, trilhou um caminho institucional que o transformou, de uma força miliciana, em uma organização de caráter nacional e relativamente ramificada pelo território brasileiro. Desempenhou importante papel civilizador – no sentido eliasiano – e constituiu uma espécie de ponta-de-lança do Estado no que diz respeito às necessidades de integração territorial e desenvolvimento de valores identitários relacionados a esse espaço, principalmente após o advento do serviço militar obrigatório. A esse respeito destaca-se a importância de intelectuais militares da estirpe de Alfredo Taunay e Euclides da Cunha como grandes formuladores da identidade nacional.
Do etno-historiador (?) Anthony F. C. Wallace McCann incorporou as categorias analíticas política dos apetites e política da identidade para se referir aos dois pólos que basilaram a conduta política da oficialidade brasileira nos 30 primeiros anos da República (p. 17).
A última se refere aos movimentos sociais e suas reivindicações, que podem colocar em xeque o domínio oligárquico e a primeira, por sua tonalidade clientelística, contribuía para a manutenção do status quo (p. 17-18). Nem mesmo o eterno legalista Estevão Leitão de Carvalho teria se mostrado imune aos apetites (p. 373). Com efeito, de acordo com McCann, o tenentismo foi um misto de política das identidades e dos apetites (p. 18). No entanto, reconhece que a principal luta dos tenentes nos anos 1920 era mais pelo controle do Exército do que por qualquer outro motivo (p. 339).
Foi uma época de fortes dissensões internas: clivagens horizontais e verticais opunham oficiais entre si e contra praças. Desse modo, o autor se propõe a explicar as razões internas das explosões de violência corriqueiras na evolução institucional do Exército, sobre tudo nas décadas de 1910, 1920 e 1930. São acontecimentos que revelam profundidades estruturais e, por isso, sua explicação não é auto-evidente, como foi o episódio das cartas atribuídas a Arthur Bernardes contra Hermes da Fonseca (p. 279). Entre as razões do descontentamento da oficialidade estavam questões profissionais vinculadas à insatisfação com a organização política do país, como promoções atrasadas, atrasos nos soldos, falta de equipamentos, inade quação dos armamentos, a estrutura política excludente, confl itos latentes com os membros da Missão Militar Francesa entre outros.
Assim sendo, McCann demonstra percepção acurada ao relacionar a explosão das rebeliões no período focado por suas investigações aos conflitos e problemas intra-organizacionais, alguns por razões comezinhas. Nesse sentido, reconhece, por exemplo, que a principal luta dos tenentes nos anos 1920 era mais pelo controle do Exército do que por qualquer outro motivo (p. 339)5. Tratava-se de um confl ito geracional, que tinha seus fundamentos nos bloqueios à progressão profissional dos mais jovens e nas diferenças de formação. Dessa maneira consegue iluminar e oferecer uma explicação plausível acerca da linha de experiência política que se iniciou com a crise conhecida como Questão Militar e que atravessou todo o primeiro terço do século XX até a crise dos anos 1930, que redundou na inauguração do Estado Novo em 1937. Ao mesmo tempo, a análise da experiência política da oficialidade do Exército nas décadas de 1920 e 1930 é usada como fator explicativo das condições que levaram ao regime de 1964-1985 (p. 12).
Muito ainda precisa ser respondido sobre o envolvimento militar na política brasileira, mas essa obra se revela salutar, instigante e incontornável para quem se interessa pelo entendimento do papel desempenhado pela oficialidade do Exército na construção do Estado nacional e da própria nacionalidade, entre outros aspectos. Sua obra merece atenção dos historiadores brasileiros, sobretudo porque, em que pesem as irresponsabilidades dos relativismos atual mente em voga, essa obra constitui um alento motivador para aqueles que ainda se ocupam com a história de verdade, e não com representações oníricas.
Notas
1 Ainda resta saber até que ponto o Exército foi uma instituição controlada de alto a baixo pela oficialidade. Chama atenção também o uso expressivo e constante de relatórios diplomáticos e de adidos militares para alcançar compreensão a respeito de aspectos da socialização, das condições de vida, da profissionalização e do ambiente político no interior do Exército.
2 Do mesmo modo, McCann revelou inocência metodológica ao expor sua intuição de que Vargas pretendia reconstitucionalizar o país em 1932 e só não colocou em prática esse projeto em função do movimento paulista ocorrido em julho daquele mesmo ano baseado unicamente nas evidências contidas no diário “secreto” do político brasileiro, publicado apenas em 1995, pois, de acordo com o Autor, “agora sabemos o que ele estava dizendo a si mesmo naquela época” (p. 419).
3 A respeito do conflito ocorrido em Canudos no final do século XIX merece destaque a informação de que o beato Antônio Conselheiro mantinha estreitas relações clientelísticas com alguns coronéis locais, membros do clero e inclusive com o próprio governador da Bahia na época (p. 64, verificar especialmente a nota 66).
4 Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e Escola de Comando e Estado-Maior do Exército respectivamente. Atualmente constituem cursos de pós-graduação equiparados aos níveis de mestrado e doutorado pelo Ministério da Educação.
5 O Autor parece acompanhar, nesse aspecto, a diferenciação proposta por Edmundo Campos Coelho que admitia a existência de um tenentismo político nas décadas de 1920 e 1930 em oposição ao tenentismo profissional, protagonizado pelos jovens turcos na década de 1910. O primeiro apresentava uma maior disposição para a luta contra a cúpula do Exército e a camada dirigente da República do que o segundo.
Bruno Torquato Ferreira – Atualmente é discente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná em nível de doutorado e professor do Ensino Fundamental no Colégio Militar de Campo Grande (CMCG). E-mail: brunotferreira@ig.com.br.
O mundo prodigioso que tenho na cabeça – Franz Kafka: um ensaio biográfico | L. Begley
Se existe um ‘significado inteligente’ a ser encontrado em ‘O veredicto’, Na colônia penal, A metamorfose, Amerika, O processo ou O castelo é a reação que essas obras provocam no leitor (BEGLEY, 2010, p. 240).
De que modo um romancista traduz sua ‘experiência de vida’ para a ‘criação literária’? Como compreender o movimento entre realidade, imaginação e romance? Por que ao reconstruir imaginativamente a realidade o romancista proporciona a possibilidade de refazer a própria experiência do vivido no leitor? Se essas perguntas são enigmáticas e instigantes para a grande maioria dos intérpretes dos romancistas modernos, para o caso de Franz Kafka (1883-1924) elas parecem ainda mais pertinentes, na medida em que seus livros se tornaram uma das chaves interpretativas dos ‘regimes totalitários’, das engrenagens dos sistemas burocráticos, e da própria Modernidade. Contudo, quando a questão é entender sua obra, seu pensamento e quem a produziu não existe nenhum tipo de consenso (ANDERS, 2007). Pelo contrário, ora se atribui a autor e obra uma mera reprodução dos sistemas, numa extensão global, de modo a fazer com que todos estejam encobertos por uma rede interconectada de ideologias, e que imporiam um efeito alienante constante (KOKIS, 1967), ora um delírio enigmático, formado por labirintos que em nada se aproximam da ‘realidade’, ou se o fazem é sempre de forma indireta (COSTA, 1983), ora manifestando a experiência traumática do autor, refeita em seus personagens (CALASSO, 2006), ora demonstrando a ‘visão de mundo’ teológica, produto do judaísmo de sua época (MANDELBAUM, 2003), ora criando a figura de um ‘anti-herói’, prisioneiro das organizações estatais e da burocracia, para as quais este não teria saída, muito menos o que poder fazer (NUNES, 1974), ou ainda, produtor de um projeto inconformista, ao mesmo tempo crítico da modernidade e de suas instituições, e insubmisso a elas (LOWY, 2005).
Não sendo indiferente a essas observações, Louis Begley tentou circunstanciar de que modo Kafka elaborou em suas narrativas ‘o mundo prodigioso que tinha na cabeça’. Para isso, o autor reviu a trajetória problemática do romancista com o pai; quais as relações que teria mantido com os judeus e interpretado suas histórias; de que modo viveu seus relacionamentos amorosos; como essa experiência é refeita na obra, produzindo uma nova experiência artística; e por que seus romances fincaram raízes profundas no Ocidente, por justamente conseguir pormenorizar as conseqüências da burocracia, das instituições e dos regimes totalitários, antes mesmo que estes alcançassem seu auge nos anos de 1930 e 1940. Em suas palavras:
O processo, com sua célebre primeira sentença – ‘Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum’ – e os trâmites movidos contra K. por um sistema judicial secreto, parecem prefigurar tão claramente a vida sob os regimes totalitários no século XX, com suas leis secretas e seu terror de Estado policial, que inevitavelmente os leitores se admiraram do descortino que Kafka teve da história e da política. Poderia esse romance, publicado em 1925 mas escrito entre o outono de 1914 e janeiro de 1915, portanto antes dos eventos seminais dos regimes bolchevique, fascista e nazista, ter sido uma profecia velada? Esse autor apolítico e reservado teria antevisto a chegada de uma catástrofe que ainda era invisível para grandes estadistas? Nada nos diários de Kafka, em sua correspondência ou nas recordações de seus amigos sugere isso. A resposta há de ser que a visão de Kafka, que consistia tão somente nas coisas tais como elas eram, revelou-se misteriosamente congruente com a realidade do futuro próximo. O amplo material que a formou incluiu: a experiência de Kafka como um súdito Habsburgo e, como estagiário no Tribunal de Praga, com a esclerosada mas ainda toda-poderosa burocracia do império e seus procedimentos labirínticos, ‘kafkianos’; o íntimo conhecimento da burocracia e da arcana regulamentação do Instituto de Seguro; o trato com vítimas de acidente de trabalho cujas reivindicações chegavam às suas mãos, e contra às quais ele às vezes era obrigado a litigar; o virulento e onipresente antissemitismo tcheco, que lhe ensinou lições inesquecíveis sobre o significado de ser rejeitado e desprezado por seus vizinhos; e, obviamente, tudo aquilo que ele censurava em seu pai: brutalidade, veleidade e injustiça (p. 213-14).
Para alcançar esses objetivos, Begley toma como base as correspondências, os diários e os textos produzidos pelo autor. Com o intento de analisar como essa documentação foi produzida, como foi sendo articula, que relações estabeleceu com a obra, como exemplifica em:
Depois de mais uma sessão intensa de estudos no ano acadêmico de 1905-6, Kafka passou raspando nos exames de qualificação e em 16 de junho de 1906 recebeu o grau de doutor em direito. Já fizera um estágio não remunerado de dois meses no escritório de um advogado em Praga, e foi então estagiar durante o ano acadêmico de 1906-7 no tribunal de Praga, primeiro na área civil, em seguida na criminal. Esse treinamento era pré-requisito apenas para o ingresso no funcionalismo público da Áustria, e portanto desnecessário no caso de Kafka. No entanto, revelou-se uma dádiva, pois deu-lhe acesso a material que ele aproveitou quando escreveu sobre o tribunal em O processo. Ele adquiriria mais material valioso – a experiência pessoal no funcionamento da burocracia estatal – trabalhando para a empresa que o empregaria por toda a vida, uma seguradora semiestatal, de meados de 1908 até meados de 1922, e o usaria em O castelo e O processo (2010, p. 36).
E:
É bem comum que filhos incompreendidos de pais filisteus deixem a casa paterna, especialmente depois de, como Kafka, obterem um emprego que lhes permita um grau razoável de independência financeira. Escritores pobres demitiram-se de empregos seguros para atender ao chamado da Musa, enfrentando com bravura a penúria e coisas piores. Kafka não era desse feitio. Ele não abriu mão do Instituto de Seguro antes de seu médico declará-lo incapaz para o trabalho. Quando deixou Praga em setembro de 1923 e foi para Berlim, era um homem desesperadamente doente, e mesmo então manteve a ficção de que era apenas uma mudança temporária e de que logo retornaria (p. 51).
A mesma sensibilidade foi dedicada ao examinar como Kafka interpretou as práticas religiosas judaicas, e como elas serviram para que este pudesse pensar seu mundo. Para ele, “Kafka era um mestre da dialética e raramente se punha apenas de um lado em uma argumentação” (p. 80). Mas, o “purismo do alto alemão da prosa de Kafka, a austeridade de sua linguagem e as ocasionais singularidades de sua grafia e uso da língua também são produtos de sua educação praguense” (p. 78).
De igual modo se aplicou a investigar como foram seus relacionamentos e que experiências absorveu deles. Em suas palavras:
Com exceção dos momentos de triunfo nos quais ele escreveu suas melhores obras e, a partir de 1917, dos momentos que marcaram o avanço de sua doença, os eventos que se destacam na vida de Kafka são suas peripécias atrás de mulheres seguidas por frenéticas tentativas de escapar delas. Duas de suas amadas, Felice Bauer e Milena Jensenská, foram imortalizadas em cartas que ele lhes escreveu e quis que fossem destruídas. Outras foram importantes: Dora Diamant, a moça judia polonesa que se amasiou com Kafka no fim do verão de 1923; a pequena Julie Wohryzek, sua noiva durante um breve período que se seguiu ao término definitivo do relacionamento com Felice e se encerrou com a entrada em cena de Milena, em 1920; a jovem cristã por quem ele esteve brevemente enamorado durante uma temporada de duas semanas em um sanatório de Riva no outono de 1913; Hedwig Weiler, jovem estudante de Viena, que ele conheceu em Triesch no verão de 1907; e uma misteriosa e nunca identificada mulher madura que foi paciente no mesmo sanatório em que ele esteve internado em 1905 em Zuckmantel (p. 88).
Ainda demonstra a importância que as correspondências tinham para o autor, principalmente, quando não obtinha resposta de suas cartas, e transparecer uma reação histérica e compulsiva ao escrever outras cartas procurando saber por que as anteriores não haviam sido respondidas. Preocupa-se em deixar claro quais as aproximações e os distanciamentos entre seus relacionamentos amorosos e a sua produção literária, em especial, no momento em que compôs partes de O processo, entre 1914 e 1915. Para ele:
A vida de Kafka comanda tão imperativamente o nosso interesse porque seus textos curtos e novelas estão entre as mais originais e magistrais obras da literatura do século XX. Sem eles, pouco restaria para que nos lembrássemos dele: esse homem reservadíssimo e introvertido teria sido apenas mais um judeu germanófono entre os 146 098 cristãos e judeus falantes do tcheco e do alemão que morreram na Tchecoslováquia em 1924, no mesmo ano que ele (p. 159).
Mas, ao se voltar mais diretamente para a obra, o autor indica: primeiro, de que modo Kafka a pensou e a articulou, em seguida, quais suas principais características e objetivos. No primeiro caso, detêm-se sobre ‘O foguista’, A metamorfose e ‘O veredicto’, indicando que um tema em comum entre esses textos diz respeito a maneira como os filhos, de uma forma ou de outra, além de estarem dependentes dos pais, sendo submissos a suas vontades, também seriam impotentes ao tentarem se rebelar ou procurar mudar o exercício dessas relações de dominação; as quais o autor pensou em até publicá-las em conjunto sob o título de Os filhos. Para o segundo ponto, vale indicar alguns pequenos exemplos. Para ele:
A família Samsa de A metamorfose fica horrorizada e em choque ao ver que Gregor transformou-se num gigantesco inseto, mas nem o pai nem a irmã evidenciam algo parecido com espanto. Na história de Na colônia penal, o explorador acha repugnante o sistema judiciário, mas nunca lhe ocorre indagar se poderia estar no meio de um pesadelo. Em O processo, a truculência de Josef K. segue o ritmo de sua crescente compreensão do bizarro funcionamento dos trâmites jurídicos, mas ele não contesta sua realidade. Em vez disso, diz ao Inspetor que não está ‘de modo algum muito surpreso’ com as estranhas circunstâncias de sua prisão. No mundo de Kafka, a história é o que é: a realidade é como é retratada (p. 178).
O universo argumentativo de Kafka se moveria formando diversos labirintos, em que, quase sempre, ninguém “houve e ninguém responde”, por que os “circundantes, se houver algum, se mostrarão tão indiferentes quanto o explorador de Na colônia penal, e igualmente pouco propensos a ajudar” (p. 202). E:
Semelhante nesse aspecto a ‘O veredicto’, O processo é um romance com um pé na tradição realista do século XIX. Lendo pela primeira vez o primeiro capítulo, poderíamos pensar que estamos entrando em um mundo ficcional aparentado com os de Gogol, Dostoievski e Flaubert. Essa impressão dissipa-se com o prosseguimento da leitura: percebemos que por trás dos cenários e eventos minuciosamente descritos opera uma força que os distorce e cria uma contrarrealidade. No centro da contrarrealidade estão os tribunais especiais, desconhecidos por K., e a constituição e a lei vigentes em seu país. Entretanto, praticamente todos os demais parecem estar a par do segredo: a sra. Grubach e a srta. Bürstner, os três funcionários que trabalham no banco de K., o tio de K. e o industrial, cliente do banco de K., que o encaminha ao pintor Titorelli. Isso sem contar os que são empregados periféricos dos tribunais, como a lavadeira e seu marido, e os que estão envolvidos nos trâmites da justiça: o advogado Huld e sua enfermeira e criada, Leni, e o comerciante Block, que também tem um caso pendente no tribunal. A ingenuidade e ignorância de K. são verdadeiramente espantosas (p. 218-19).
Assim, “cada pessoa está completamente só”, e é “possível que Josef K. descubra essa verdade em seu último instante de consciência, e que o mesmo se dê com outras grandes vítimas da ficção de Kafka”; esse talvez “seja o segredo por trás da anomia do explorador” (p. 241). Em todo caso, para ele:
O castelo é um romance mais rico do que O processo na amplitude da narrativa, no desenvolvimento de personagens secundários cativantes e inesquecíveis (Frieda, Olga, Amália, as duas albergueiras da aldeia, Pepi e Bürgel, entre outros) e nas descrições da aldeia sem nome coberta de neve e dos interiores de estalagens e cabanas de camponeses que fazem lembrar as pinturas de Peter Bruegel. […] No centro do romance há uma busca incansável e inquietante: a de K., um andarilho, um estranho, cuja identidade limitase a uma inicial. Ele deixou uma terra distante de nome não mencionado, à qual talvez não lhe seja possível retornar. Ostensivamente, K. procura assumir o cargo de agrimensor da aldeia, para o qual as autoridades do castelo podem ou não tê-lo contratado. O castelo domina sobranceiro a aldeia aonde K. chegou, e abriga a toda-poderosa administração a serviço de seu senhor, o conde Westwest. Se K. realmente foi contratado pelo castelo, pode ter sido por engano. Entretanto, há uma versão diferente para a busca de K., que ele revela quando o romance está a meio caminho: K. gostaria de ter chegado à aldeia sem ser notado, sem alarde, para poder encontrar um bom trabalho estável como agricultor. Essa questão nunca é esclarecida, e as intenções de K. não se tornam claras. Mesmo o desejo mais modesto, porém, muito provavelmente teria sido negado (p. 229).
Ainda que esta seja a obra de Kafka que menos desafie “a credulidade do leitor”:
Há muitas ligações temáticas entre O processo e O castelo, o complexo, atravancado e comovente belo último romance de Kafka. Os dois protagonistas – Josef K. no primeiro, K. no segundo – lutam em um labirinto que às vezes parece ter sido concebido de propósito para frustrá-los e derrotá-los. Mais frequentemente, o oposto parece valer: não há um propósito; o labirinto simplesmente existe. Josef K. busca justiça, absolvição de um crime que ele desconhece e do qual o acusam. O objetivo de K. é menos certo (p. 228-29).
Portanto, movendo-se pela vida e a obra de Kafka, e pelas circunstâncias que a deram origem, o autor, embora refaça seus caminhos e estabeleça nexos de identificação plausíveis com outras leituras, como a de Hanna Arendt e de Walter Benjamin, não há como negar que, para ele, autor e obra estariam imersos num circulo de submissões ao sistema institucional e burocrático, cerceado por labirintos e efeitos alienadores. Kafka seria apolítico, o que talvez pareça ingênuo, dadas as suas ligações estreitas com o anarquismo, mesmo que não diretamente partidárias (LOWY, 2005). Ainda assim, seus méritos são evidentes. De leitura agradável e envolvente, este livro permite que o leitor sobrevoe e reencontre o ‘mundo prodigioso que’ Kafka tinha ‘na cabeça’.
Referências
ANDERS, G. Kafka: pró & contra. Tradução, posfácio e notas de Modesto Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2007 (1ª ed. 1951, e a nacional de 1969).
CALASSO, R. K. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
COSTA, F. M. Franz Kafka – o profeta do espanto. São Paulo: Brasiliense, 1983.
KOKIS, S. Franz Kafka e a expressão da realidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
LOWY, M. Franz Kafka: sonhador insubmisso. São Paulo: Azougue Editorial, 2005 (1ª ed. 2003).
MANDELBAUM, E. Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível. São Paulo: Perspectiva, 2003.
NUNES, D. Franz Kafka: vida heróica de um anti-herói. Rio de Janeiro: Bloch, 1974.
Diogo da Silva Roriz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pelo programa de pós-graduação da UNESP, Campus de Franca. Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos. E-mail: diogosr@yahoo.com.br
BEGLEY, L. O mundo prodigioso que tenho na cabeça – Franz Kafka: um ensaio biográfico. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: RORIZ, Diogo da Silva. O enigmático mundo de Franz Kafka (1883-1924). Caminhos da História. Montes Claros, v. 15, n. 2, p.143-148, 2010. Acessar publicação original [DR]