História da Loucura |  Revista Mosaico | 2021

O NOSSO CHAMADO

O nosso conhecimento da linguagem, sobretudo quanto ao modo como Wittgenstein (1979) a estudou desde Investigações filosóficas, responde por regras de usos das palavras que vão bem além da semântica. Dessa maneira a comunicação se apresenta como um jogo em uma dada comunidade linguística e constrói, inconscientemente da parte dos sujeitos falantes, sua gramática ou as regras de usos das palavras e dos sinais comunicativos. As regras, entretanto, não são fixas, estão em processo contínuo de alteração e ataques sem que nenhum sujeito determinado tome essa decisão (CARVALHO, 2006).

Ora, a expressão ‘História da loucura’, que nomeia o presente Dossiê da Revista Mosaico, é recente e tem regras de uso ainda em processo de invenção. A própria construção do Dossiê foi um laboratório dessa construção. Razão pela qual esta apresentação requer cuidados teóricos especiais. O primeiro desses cuidados é a retomada do texto de Chamada do Dossiê. Leia Mais

Cidades, História e Territórios | Revista Mosaico | 2021

O Dossiê Cidades, História e Territórios reúne pesquisas que versam sobre os temas pertinentes à ocupação territorial e como as relações entre os patrimônios materiais e imateriais expressam memórias, patrimônios culturais edificados e imateriais e os modos de apropriação e ocupação de territórios. Os artigos foram organizados a partir de três eixos principais, elencando abordagens transversais que permeiam as características sociais e culturais desses espaços e seus territórios, retratando sujeitos e representações sociais presentes ao longo da história.

Desse modo a composição do dossiê temático abrange nove artigos, que foram sistematizados a partir da compreensão das ações e transformações humanas que, em um determinado espaço, definem relações de poder, seja por disputas ou domínios territoriais, os quais, por sua vez, permitem elucidar também permanências que se expressam por um espaço social. Outros domínios das relações entre homem e espaço estão presentes nos artigos que envolvem espacialidades que abarcam, por vezes, práticas discursivas para delimitação de espaços e suas expressões culturais, relevando identidades, memórias e artefatos que, em conjunto, articulam. Leia Mais

Arqueologia e Paisagem / Revista Mosaico / 2020

Os estudos sobre a paisagem se constituem hoje em um dos campos mais prolíficos e vibrantes da Arqueologia. Sua origem remonta à década de 1920 (ANSCHUETZ et al., 2001, p. 157), época em que se consolidaram os principais métodos e técnicas da disciplina, muitos deles ainda hoje empregados. Na sua trajetória, surgiram abordagens clássicas que influenciaram gerações de arqueólogos, do estabelecimento dos estudos sobre padrões de assentamento (WILLEY, 1953) à sua consolidação por meio de abordagens processuais (BINFORD, 1980) e funcionalistas (CLARKE, 1977); das abordagens distribucionais (DUNNELL, 1992) ao estudo das paisagens vividas e simbólicas (TILLEY, 1994; THOMAS, 2001). Essa trajetória, muito diversa, é uma prova indiscutível da sua energia, bem como do seu grande fôlego teórico e metodológico.

É admirável o projeto de perseguir uma definição ou paradigma que dê conta de abordar a paisagem pela Arqueologia da paisagem (ANSCHUETZ et al., 2001; ASHMORE, 2004) ou pela Geoarqueologia (GOLDBERG; MACPHAIL, 2007). É, todavia, inegável, e para além desse projeto, que é justamente dessa diversidade, em certo sentido difusa, que emana a sua vitalidade. É dentro desse entendimento que o dossiê Arqueologia e Paisagem foi organizado. Sua proposta fundamenta-se na ideia de que é a partir dos seus variados percursos que se abrem possibilidades para novas ideias, percepções e diálogos. Tendo isso em mente, nosso objetivo foi reunir trabalhos envolvendo a paisagem por meio de abordagens arqueológicas, sem que tivéssemos um compromisso estrito com recortes regionais, temporais, teóricos ou metodológicos. Traz essa proposta a vontade de transpor fronteiras tradicionalmente estabelecidas e, com isso, nos fazer olhar para o lado. Nossa crença é que a partir desse tipo de experiência podemos encontrar outras maneiras de interpretar as interações das pessoas com a paisagem.

Dos textos aqui reunidos, e levando em conta essa proposta, emergem alguns pontos que merecem ser destacados. O primeiro, bastante evidente no conjunto, diz respeito à capacidade da Arqueologia da paisagem para operar, seguindo uma prática corrente na Arqueologia, em conjunto com uma enorme variedade de campos dsciplinares. Alinham-se neste dossiê discussões desenvolvidas na interface com a geociências, botânica, arquitetura, museografia, etnologia e conservação.

É igualmente relevante a diversidade em termos dos conceitos empregados, que neste volume são claramente multidirecionais. Em Paisajes geoculturales de la region Este de Uruguay, Caffa, por exemplo, emprega o conceito de ‘paisagem geocultural’, de modo a buscar manifestações do binômio cultura / ambiente na região de Laguna Merín, Uruguai, tendo como foco a evolução geomorfológica da ecozona que favoreceu a ocupação e mobilidade dos grupos humanos. Em Bitucas e a materialização do equívoco: Qurna e suas paisagens potenciais, Pellini utiliza o conceito de ‘paisagens múltiplas’, no sentido de voltar-se às percepções locais de paisagem e, com isso, reconhecer mundos e experiências outros e alternativos à cosmovisão ocidental. Em Caminhos que levam à Glória: Villa Aymoré – apontamentos arqueológico-paisagísticos de um sítio histórico, Macedo e Andrade utilizam uma matriz conceitual denominada ‘arqueologia histórico-paisagística, que é voltada à análise de espaços edificados e baseada na capacidade da paisagem para produzir sentidos. Ao lado do uso desses conceitos, identifica-se neste dossiê análises clássicas e contemporâneas sobre a paisagem, com discussões que incluem temas como economia, território, mobilidade, constituições simbólicas, memória, poder, entre outros.

Destaca-se entre essas análises a capacidade para revelar práticas, processos e formas de constituição social insuficientemente explorados até aqui ou envolvendo sujeitos antes invisibilizados. Esse, por exemplo, é o caso das discussões realizadas por Pellini, que expõe o afastamento forçado da população qurnawi, que vive em Qurna, Egito, com vistas a atender interesses turísticos associados ao passado faraônico. Em A floresta como esconderijo: arqueologia da paisagem na mata Atlântica do Rio de Janeiro, Oliveira, Patzlaff e Scheel-Ybert revelam algumas das práticas associadas aos carvoeiros, que integrando os extratos menos favorecidos da sociedade brasileira nos séculos 18 e 19, tiveram suas trajetórias invisibilizadas nas fontes documentais. Nesse caso, esses autores se valem da grande capacidade da Arqueologia da paisagem para pensar a constituição de experiências espaciais ligadas a segmentos ou classes sociais particulares no Mundo Moderno (MROZOWSKI et al., 1989; SHACKEL; PALUS, 2006; O’KEEFE, 2009).

Este dossiê abre-se também para a proposta de utilizar a Arqueologia da paisagem e a Geoarqueologia como um laboratório voltado ao desenvolvimento de abordagens regionais. Em A paisagem como elemento de análise: mesopotâmia dos rios Araguaia e Peixe, Goiás, Rubin e colaboradores apresentam alguns dos resultados de um projeto sobre as populações pré-coloniais do Brasil Central, examinando por meio de um ensaio teórico e de natureza exploratória, as alternativas interpretativas do estudo paisagístico dessa região. Considerando elementos advindos das fontes orais, arqueológicas, geoarqueológicas e etnográficas, buscam identificar percursos possíveis, com vistas ao desenvolvimento de novas interpretações dessa paisagem.

Um ponto de interesse em relação aos estudos da paisagem e que, no caso deste volume, merece ser destacado, diz respeito à possibilidade de construções no tempo longo, o que em última análise nos estimula a olhar com atenção as complexas relações estabelecidas entre pessoas, o espaço e o tempo. Esse é o caso, por exemplo, do trabalho de Gonçalves, Abreu e Pereira intitulado Arrábida, território da espiritualidade: geologia, arqueologia e arte, no qual apresentam a longuíssima e impressionante trajetória do gênero Homo na Cordilheira da Arrábida, Portugal, e sua relação com essa paisagem ao longo do tempo. Em Aproximación geoarqueológica en los ciclos de poblamiento y abandono del Cauca medio colombiano, Echeverri estabelece uma correlação entre atividades vulcânicas, formação das paisagens, manejos de plantas e o povoamento inicial do médio curso do Rio Cauca, Colômbia, em um contexto em que eventos sísmicos também estão presentes.

Nas análises apresentadas neste dossiê, e ainda levando em conta a perspectiva do tempo, é relevante assinalar também as interpenetrações entre memória e paisagem, ou entre os elementos a eles relacionados. A paisagem pode inscrever processos de esquecimento e lembrança, pertencimento e negação, apropriação e controvérsia, aversão e afeto (DUNCAN; LEY, 1993; VAN DYKE; ALCOCK, 2003; JONES, 2007; KOHL et al., 2007). Isso implica diretamente a forma como se organiza, por intermédio da paisagem, o patrimônio material de uma dada sociedade, e interessa aqui notar que um dos fios condutores desses processos é o tempo. Pode-se perceber nas contribuições de Macedo e Andrade, bem como de Pellini, que a Arqueologia da paisagem não se apresenta apenas no sentido de revelar processos encobertos, mas também como uma ferramenta para a transformação, na medida em que é capaz de oferecer à sociedade elementos para novas formulações ligadas à memória. Em Museu, cultura material e gravura rupestre: a construção da paisagem no universo das coisas polidas, Marques, Veríssimo e Santos apresentam uma perspectiva também de interesse. Seu texto envolve o estudo de artefatos líticos pré-coloniais usados para polimento, encontrados na Serra Azul, Ceará, e que foram deslocados da paisagem, na medida em que alguns deles foram retirados do seu lugar de origem e expostos em um museu local. O estudo feito pelos autores, que é fundamentado em uma perspectiva simétrica, aponta para uma possibilidade interessante, na medida em que abre-se para a criação de uma narrativa que pode permitir inscrever lugares, artefatos e seus produtores em um mesmo regime de memória, sem perder de vista as suas trajetórias no tempo presente.

Associa-se ainda ao tempo as inúmeras relações entre as variantes que compõem um dado ambiente e a conservação de sítios arqueológicos. Em Paisagem, gravuras, problemas de conservação: um olhar sobre o sítio Poço da Bebidinha, Lage, Lage e Nascimento desenvolveram um estudo sobre a paisagem do Cânion do Rio Poti, situado entre o Ceará e o Piauí, e onde se localiza o sítio Poço da Bebidinha. A proposta dos autores na análise dessa paisagem foi entender os problemas de conservação que agem sobre esse tipo de sítio com o intuito de enfrentá-los.

Uma questão de ordem teórica ligada à relação cultura-natureza merece ainda ser contemplada, sobretudo em função da sua importância crescente na disciplina. Atualmente, dois desafios têm se apresentado aos estudiosos da paisagem na Arqueologia, sobretudo em algumas regiões das Américas. O primeiro desafio, que gradualmente vem sendo rompido, envolve o uso diferencial de paradigmas teóricos nas arqueologias histórica e pré-colonial, uma vez que, na primeira, têm predominado abordagens com uma orientação humanista, subjetivista e contextual, geralmente abrigadas no amplo guarda-chuva da arqueologia pós-processual, enquanto na segunda, têm predominado abordagens com uma orientação positivista, objetiva e cientifica. O segundo desafio, intimamente conectado a esse problema e cujas bases são claramente ontológicas, envolve, por um lado, uma preferência da Arqueologia histórica por análises envolvendo a denominada ‘paisagem social’, que geralmente está limitada ao ambiente edificado e onde quase que invariavelmente a cultura parece triunfar sobre a natureza. Por outro lado, na Arqueologia pré-colonial verifica-se uma predileção por análises voltadas ao que poderia ser denominado de ‘paisagem natural’ e que, muitas das vezes, dão aos elementos presentes no meio-ambiente um peso mais decisivo, na medida em que eles geralmente aparecem influenciando ou complicando certas práticas culturais ou sociais (SOUZA; COSTA, 2018).

A dicotomia cultura / natureza está não apenas presente na origem da Antropologia enquanto área do conhecimento, mas também no fulcro da constituição moderna (COLLINGWOOD, 1945; LATOUR, 1991). Seu enfrentamento na arqueologia passa, por exemplo, pelas escolhas que têm orientado os estudos sobre a paisagem nos termos acima expostos, o que, no nosso entendimento, precisa ser desafiado, em benefício de todos. Parte do problema reside no fato que, independente do contexto ou período que está sendo tratado, cultura e natureza se inter-relacionam de uma forma recíproca, permeável e sempre mutante. Para seu enfrentamento, faz-se necessária a compreensão de que a experiência na paisagem envolve, fundamentalmente, interações amplas entre as pessoas e o mundo. Conforme pontuado especialmente por Ingold (2000, 2011), nossa experiência na paisagem é um processo de coprodução que ocorre por meio de transformação mútuas e contínuas. Nos termos por ele colocados, o mundo é um local de misturas e entrelaçamentos. Nos cabe, portanto, analisá-las, não em termos de influências ou trocas, mas de constituições recíprocas, essencialmente híbridas.

No que se refere a essas questões, este dossiê oferece alguns elementos muito interessantes para repensarmos o que até aqui temos praticado. O trabalho realizado por Oliveira e colaboradores, por exemplo, traz para a Arqueologia histórica uma vertente, ainda que bem conhecida na Arqueologia pré-colonial, pouquíssimo explorada nesse campo e que inclui o estudo de espécies vegetais. Quando examinada de perto, a vegetação, ou em termos mais abrangentes, a ‘paisagem natural’, mostra-se para o caso dos contextos históricos, assim como em outros tantos, como um mosaico ecológico de usos pretéritos e, a nosso ver, parte indissociável da experiência moderna. Igualmente importante é a perspectiva assumida por alguns autores que levam em conta a ideia de coprodução entre pessoas e coisas, como nas discussões elaboradas por Rubin e colaboradores no seu trabalho sobre a paisagem dos rios Peixe e Araguaia, e Marques, Veríssimo e Santos, na sua análise sobre a Serra Azul.

Convidamos então os leitores a percorrerem este dossiê. Nossa proposta, em especial, é que façam isso pensando para além dos seus interesses de pesquisa mais imediatos. Estamos certos de que assim procedendo irão encontrar novas e produtivas possibilidades para pensar a paisagem por meio de uma perspectiva arqueológica.

Referências

ANSCHUETZ, Kurt F.; WILSHUSEN, Richard H.; SCHEICK, Cherie L. An archaeology of landscapes: perspectives and directions. Journal of Archaeological Research, v. 9, n. 2, p. 157-221, 2001.

ASHMORE, Wendy. Social Archaeologies of Landscape. In: MESKELL, Lynn e PREUCEL, Robert W. (ed.): A companion to social archaeology. Oxford: Blackwell, 2004. p. 255-271.

BINFORD, Lewis R. Willow smoke and dog’s tails: hunter-gatherer settlement systems and archaeological site formation. American Antiquity, v. 45, n. 1, p. 4-18, 1980.

CLARKE, David L. Spatial archaeology. London, Academic Press, 1977.

COLLINGWOOD, Robin G. The idea of nature. Oxford, Claredon Press, 1945.

DUNCAN, James S.; LEY, David. Place / culture / representation. London, Routledge, 1993.

DUNNELL, Robert C. The notion site. In: ROSSIGNOL, Jacqueline; WANDSNIDER, LuAnn (ed.). Space, time and archaeological landscapes. New York: Springer, 1992. p. 21-42.

GOLDBERG, Paul; MACPHAIL, Richard. Practical and theoretical geoarchaeology. Oxford, Blackwell, 2007.

INGOLD, Tim. Being alive: essays on movement, knowledge and description. London, Routledge, 2011.

INGOLD, Tim. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling & skill. New York, Routledge, 2000.

JONES, Andrew. Memory and material culture. Topics in contemporary archaeology. Cambridge, Cambridge University Press, 2007.

KOHL, Philip L.; KOZELSKY, Mara; BEN-YEHUDA, Nachman. Selective remembrances: archaeology in the construction, commemoration, and consecration of national pasts. Chicago, University of Chicago Press, 2007.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro, Editora 34, 1991.

MROZOWSKI, Stephen A. et al. Living on the Boott: health and well being in a boardinghouse population. World Archaeology, v. 21, n. 2, p. 299-319, 1989.

O’KEEFE, Tadhg. What landscape means to me. Landscapes, v. 10, n. 1, p. 123-130, 2009.

SHACKEL, Paul A.; PALUS, Mattew. Remembering an Industrial Landscape. International Journal of Historical Archaeology, v. 10, n. 1, p. 49-71, 2006.

SOUZA, Marcos André Torres de; COSTA, Diogo Menezes. Introduction: historical archaeology and environment. In: SOUZA, Marcos André Torres de; COSTA, Diogo Menezes (ed.). Historical Archaeology and Environment. New York: Springer, 2018. p. 1-15.

THOMAS, Julian. Archaeologies of place and landscape. In: HODDER, Ian (ed.): Archaeological theory today. Cambridge: Polity Press, 2001. p. 165-186.

TILLEY, Christopher Y. A phenomenology of landscape: places, paths, and monuments. Oxford, Berg, 1994.

VAN DYKE, Ruth M.; ALCOCK, Susan E. Archaeologies of memory. Malden, Blackwell, 2003.

WILLEY, Gordon R. Prehistoric Settlement Patterns in the Virú Valley. Bulletin. Ethnology, Bureau of American. Washington D.C., 1953.

Marcos André Torres de Souza – Doutor em Antropologia por Syracuse University, EUA. Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás. Graduado em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro. Professor Adjunto do Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (PPGArq). Pesquisador do CNPq. E-mail: torresdesouza@yahoo.com

Julio Cezar Rubin de Rubin – Doutor em Geociências e Meio Ambiente pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2002). Graduado em Geologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1988). Professor Adjunto I na Pontifícia Universidade Católica de Goiás dos cursos de graduação em Arqueologia e Biologia e dos Mestrados em Ciências Ambientais e Saúde e História. E-mail: rubin@pucgoias.edu.br


SOUZA, Marcos André Torres de; RUBIN, Julio Cezar Rubin de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.13, n.2, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Descobrindo padrões em mosaicos | Ruy Madsen Barbosa

Por trás da beleza, da complexidade e das cores dos mosaicos, encontram-se as relações geométricas, os padrões, a matemática. No livro Descobrindo padrões em mosaicos, Ruy Madsen Barbosa revela os conceitos que estruturam a pavimentação do plano, fazendo emergir a matemática oculta desses padrões.

Repleto de definições, fórmulas, ilustrações, demonstrações e um pouco de história, o livro possibilita uma leitura em vários níveis de profundidade, sendo igualmente atraente para leitores curiosos sobre o assunto com para matemáticos. Os conhecimentos apresentados no livro permitem ao leitor não só descobrir como também desenvolver seus próprios padrões visuais, aplicáveis em projetos de pavimentações ou até mesmo de padronagens, tornando essa leitura de interesse para arquitetos e designers. Leia Mais

Novas perspectivas da religiosidade popular / Revista Mosaico / 2020

Milton Nascimento na bela canção: Nos bailes da vida sugere que “todo artista tem de ir onde o povo está”. A frase fica bonita se aplicarmos a nós, os estudiosos e intelectuais, àqueles que gostam de investigar a sociedade brasileira. Ali poderíamos encontrar os verdadeiros sujeitos históricos. Entretanto, a missão é demasiado difícil de ser cumprida. Com alguma experiência nesse campo, se aprende a lição de que, de fato, o povo nunca está onde a gente espera.

Os estudos sobre o povo e dos aspectos populares surgiram, obviamente, interligados. A construção das nações modernas levou à invenção de uma natureza popular, que normalmente era encontrada no interior do país, nas pessoas sem erudição, de vida simples e não contaminadas com a agitada vida urbana. Deste modo, transformado em coletivo singular, foi fundamental para o surgimento dos estados democráticos, encarnando a alma de cada nação e a quem o governo representaria.

Esse substantivo, conjugado por regra singularmente, o povo, podia ser também um adjetivo utilizado para caracterizar uma cultura, uma religião, uma festa, um costume. Tanto de um como de outro modo, as operações que originaram tal recorte do social se tornaram invizibilizadas, como se o popular fosse realmente encontrado objetivamente.

Paralelamente, quando o tema avançou academicamente, a noção de popular passou a ser comumente evocada como o que supostamente se opõe a algo oficial, ou erudito. Tal distinção parece denotar que, tanto de um lado, quanto do outro, a cultura e a religião / religiosidade são estáticas, pertencentes a uma determinada classe de indivíduos e incomunicável (quando não vista, recorrentemente, como deformada) em relação à sua antítese.

No prefácio à edição inglesa de sua obra magna O queijo e os vermes, de 1976, Carlo Ginzburg reclamou da imputação de tais interpretações por críticos à sua obra. Em sua defesa, o autor da micro-história italiana evocou o famoso estudioso russo Mikhail Bakhtin, afirmando que:

entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (exatamente o oposto, portanto, do “conceito de absoluta autonomia e continuidade da cultura camponesa” que me foi atribuído por certo crítico (2006, p. 10).

Tais embates interpretativos demonstram, sobretudo, o quanto os conceitos de popular, e, ainda mais especialmente para o presente volume da revista Mosaico, a religião popular, estão longe ainda de obter consenso. Todavia, o esforço teórico e historiográfico da reflexão, tanto sobre os conceitos, como, principalmente, os sujeitos que a compõe e que lhe dá vida, faz-se indiscutivelmente necessário.

É nesta direção que os trabalhos reunidos aqui, nesse dossiê, demonstram a necessária crítica aos essencialismos e uma ruptura com os preconceitos elitistas incorporados na noção de religião popular, apresentando, discutindo e repensando conceitos, sujeitos e as mais diversas clivagens das manifestações populares.

Assim, é possível que os / as leitores / as percebam duas direções complementares nos artigos do presente volume: por um lado as devoções e sincretismos da religiosidade popular evidenciam a multidimensionalidade das festas religiosas, das entidades a quem se submete devoção e mesmo das ações práticas (que também são resistências políticas) decorrentes dos sentimentos religiosos.

No âmbito das festas e das mestiçagens culturais, há dimensões indiscutivelmente importantes na composição histórica, dos rituais e das experiências vividas nos quadros da religiosidade popular brasileira. Deste modo, Marcos Manoel Ferreira abre nosso número analisando o sincretismo afro-brasileiro numa das festas religiosas mais populares do sertão as congadas. Em seu artigo intitulado Congada de Catalão (GO): o sincretismo da festa popular na perspectiva dos devotos, Ferreira busca analisar os diversos níveis de compreensão e percepção do sincretismo religioso contido nas festas de congada da cidade de Catalão.

Ainda na esteira de mapear os caminhos do sincretismo religioso, Daniel Precioso nos apresenta uma discussão sobre o processo de adaptação de símbolos da devoção católica à cosmogonia africana, mostrando como crioulos (negros descendentes de africanos escravizados e nascidos no Brasil) fechavam seus corpos por meio do uso de bentinhos, de escapulários católicos. Em seu artigo intitulado Os bentinhos como patuás: o processo de africanização de um objeto devocional católico no Brasil escravista, Precioso regressa aos séculos XVIII e XIX para analisar a construção de uma prática popular afro-brasileira por meio da ressignificação de um objeto devocional.

Para fechar as reflexões sobre a africanidade na religiosidade popular brasileira, Paulo Petronilio Correia analisa a controversa e multifacetada figura de Exu no imaginário do Candomblé e da Umbanda. Essa tem sido a entidade mais lembrada pela frequente demonização, feita pela tradição cristã às religiões de matriz africana. Os sentidos encruzilhados receberam uma análise substancial das complexas características que a devoção popular afro-brasileira construiu, apontada no artigo Exu: o imaginário individual e coletivo do candomblé.

Ainda cruzando religiosidade popular, devoção e festa, três artigos do presente número voltam sua análise agora para o âmbito da matriz religiosa católica, a que tem sido hegemônica e numericamente mais importante na sociedade brasileira. Em Ultramontanismo e catolicismo popular em Goiás no início do século XX: caracterizações e problematizações, Robson Gomes Filho discute os problemas historiográficos da atribuição ao movimento católico oitocentista do ultramontanismo de se pretender superar ou suprimir o denominado catolicismo popular. Para tanto, Gomes Filho analisa a autobiografia de Dom Eduardo Duarte Silva, principal nome do ultramontanismo em Goiás no início do século XX, e os escritos de Francisco Wand, sacerdote redentorista que viveu em Goiás no mesmo período. Suas reflexões trazem à tona as dificuldades, limitações e necessidades de reflexões e debate historiográfico tanto sobre o movimento ultramontano no Brasil, quanto sobre o próprio conceito de catolicismo popular.

Na sequência, Karine Monteiro da Silva apresenta-nos uma valiosa reflexão sobre os mitos de origem e adaptações eclesiásticas sobre a devoção ao Divino Pai Eterno em Goiás. Temos analisado em seu artigo o princípio básico da mais importante romaria e da maior festa religiosa da região centro-oeste: a devoção ao Divino Pai Eterno. Suas origens míticas enredam uma dimensão não apenas teológica (o mistério da Trindade), mas sobretudo psicológica, por meio da qual o artigo Interpretando o Divino Pai Eterno em Trindade envereda-se.

No trabalho A memória nos guia: trajetos e trejeitos de uma festa religiosa no povoado do Bacalhau – Goiás, Eduardo Gusmão de Quadros e Raquel Miranda Barbosa discutem a devoção à Nossa Senhora da Guia em um pequeno povoado localizado às margens da antiga capital goiana, a Cidade de Goiás. Em sua análise, os autores demonstram como a referida devoção forneceu ao povoado uma identidade singular, bem como o modo como tal identidade, cuja referência física é a capela histórica local, ainda conservada, mas que encontrou limitações para adentrar nas políticas patrimoniais do poder civil e religioso vilaboense.

Para finalizar nosso número, Lenir Candida Assis, Fabio Lanza e José Wilson Assis Neves traduzem a reflexão do campo devocional para a luta política, em uma sólida e importante análise acerca da dimensão mística pertinente à militância do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em artigo intitulado A relação entre mística, religiosidade e política no processo de mobilização social do assentamento Eli Vive (MST-Londrina, PR), os referidos autores demonstram como o âmbito político-ideológico, nem de longe, se aparta das tradições da religiosidade popular.

Portanto, os movimentos religiosos, especialmente classificados como populares, demonstram um pequeno retrato do que tem sido a identidade nacional brasileira. O desafio de refletir analiticamente sobre nosso povo deve incluir, necessariamente, conhecer as tradições e costumes que tem cultivado religiosamente. Ali temos uma fonte de recursos simbólicos e de força espiritual para enfrentar, cotidianamente, os desafios da sobrevivência.

Referência

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras,

Robson Gomes Filho – Universidade Estadual de Goiás. E-mail: robson.gomes.filho@gmail.com

Eduardo Gusmão de Quadros – Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: eduardo.hgs@hotmail.com


GOMES FILHO, Robson; QUADROS, Eduardo Gusmão de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.13, n.1, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Mito, arquétipo e arte nas Performances Culturais / Revista Mosaico / 2020

Neste momento, em que estamos escrevendo a apresentação de um dossiê temático que há muitos meses nos ocupa e a humanidade está passando por uma pandemia grave, de proporções inimagináveis a nós todos há pouco menos de um mês atrás, temos que valorizar mais ainda o humano que existe em todos nós, e que desde tempos imemoriais atua como uma força propulsora de ações e pensamentos que, de uma forma ou outra, representa nossas dinâmicas mais profundas. Embora muitas epidemias tenham existido durante o trânsito da humanidade na superfície terrestre, essa em especial nos atinge quando somos todos adeptos de tecnologias virtuais instantâneas e podemos tanto difundir mais rapidamente doenças, ideias e ajudas, como transitar nos mundos pessoais e coletivos ao mesmo tempo. De forma simbólica, o mundo se aproximou, mas também é certo que as ajudas humanitárias viajam mais rapidamente de um lugar a outro. Pensar hoje o mote desse dossiê é pensar na atualidade de alguns mitos, expressões de dinâmicas arquetípicas, e dar vazão a uma das áreas humanas que mais ‘salvam’ o nosso espírito neste momento: a arte. Obviamente que os textos do dossiê não tratam desta pandemia, mas deixamos aqui uma pista para o leitor: pense esta época como o descortinar de problemas escondidos para debaixo do tapete da humanidade e das nações e que não mais poderemos negar daqui por diante. Várias dinâmicas arquetípicas e assuntos coletivos estão em pauta, como a questão do meio ambiente, a pobreza, a ganância, a solidariedade, o binômio saúde-doença e, não menos importante, a questão do amor (por si, pelo outro, pelo coletivo…).

O dossiê “Mito, arquétipo e arte nas Performances Culturais”, coordenado pelos doutorandos Luana Lopes Xavier, Ivan Vieira e pela professora Dra. Nádia Maria Weber Santos, do PPG em Performances Culturais da UFG, congrega 13 breves ensaios (12 nacionais e um internacional), relacionados à temática. Foi pensado inicialmente a partir da disciplina homônima cursada por mestrandos e doutorandos do Programa Interdisciplinar citado, em 2018-2. Porém, o dossiê vai além, uma vez que seu mote interdisciplinar dialoga perfeitamente com inúmeras disciplinas, o que fica óbvio a partir dos artigos publicados, configurando-se, assim, num campo de pesquisa profícuo em que a disciplina História é muito próxima de nossas discussões.

A reflexão principal deste conjunto de textos passa por apresentar e interpretar os diversos sistemas simbólicos em que se inserem os processos imagéticos contidos nas Performances Culturais. Estes sistemas são nomeados como mitologias ocidentais e orientais, contos de fada, folclore, cosmogonias e mitologias religiosas, astrologias, alquimia e outros sistemas culturais da representação humana. Os ensaios apresentam e discutem alguns sistemas simbólicos, incluindo os símbolos universais, isto é, arquetípicos, relacionando-os às temáticas e aos objetos de pesquisa de seus autores. As discussões teóricas dos textos são direcionadas a autores das Performances Culturais bem como a teóricos estudados na disciplina e aprofundados nos artigos, como o filósofo neo-kantiano Ernst Cassirer, o pensador da psique, original e revolucionário no século XX, Carl Gustav Jung e alguns historiadores, como por exemplo, Roger Chartier. Alguns conceitos são explorados pelos autores na inter-relação com seus objetos de estudo, entre eles: sistemas simbólicos, imagens míticas, mitologema, arquétipos e símbolos arquetípicos. Partindo da indagação “como pensar as imagens arquetípicas na produção imagética contemporânea e qual a relação entre imagem, ação e Performance”, os ensaios, embora breves, percorrem o caminho da tentativa de interpretação de algumas destas imagens, correlacionando sempre psique individual e psique coletiva.

Seria profícuo, aqui, esclarecermos, mesmo que rapidamente, nossos motes conceituais. Por Arquétipos, entendemos, a partir da definição feita pela psicologia junguiana, os constituintes (juntamente com os instintos) do inconsciente coletivo. Aparecem de forma mais pura nos contos de fada, mitos, lendas e folclore. Etimologicamente, a palavra arquétipo origina-se no grego archḗ (ἀρχή) e significa início, origem e num sentido mais amplo também arcaico, primitivo, primordial, elementar; e týpos (τύπος), cujo sentidos são impressão ou marca. Arquétipo é, assim, uma marca primordial do humano, dentro do humano (e não fora, não metafísica, como o querem alguns críticos da teoria…). É, sim, a disposição estrutural básica para produzir uma certa narrativa mítica. Ele é, além de “pensamento elementar”, também fantasia e imagem poética elementar, uma emoção elementar, um impulso elementar dirigido a alguma ação típica (situações típicas de vida). As dinâmicas arquetípicas, expressas simbolicamente na produção imagética da humanidade, revelam os dramas humanos mais típicos presentes em todas as sociedades.

Os mitos são a primeira expressão das formas arquetípicas e a linguagem essencial pela qual o conhecimento humano se manifestou por longos períodos, antes que a humanidade desenvolvesse o pensamento filosófico ou científico. Originalmente, a palavra mŷthos (μῦθος) descrevia qualquer tipo de relatos ou narrativas referentes ao presente e ao passado. Esta palavra se cristalizou na preferência de Homero e mais tarde os filósofos antigos preteriram os mŷthoi dos mitógrafos em favor de uma outra palavra: lógos (λόγος). O esforço era feito para desvencilhar a construção narrativa da Filosofia daquela realizada pela Mitologia.

Os filósofos categorizaram o mito e separaram a sua narrativa em funções, dentre as quais podemos destacar a função cosmológica ou teogônica, associadas ao ritual e ao culto religioso; a função etiológica, adequada a seu uso sociológico; a função mística, adquirindo um caráter consolatório para uma humanidade sem condições de desenvolver o pensamento filosófico; ou a função androgógica, estabelecendo uma relação de ensino e aprendizagem entre o mito e o indivíduo. Contudo, a maioria dos artigos reunidos nesse dossiê se interessam pelo que Mircea Eliade chamou de “mito vivo”, quer dizer, o mito que independente da função desempenhada se inseria num contexto de comunicação simbólica com as pessoas de um determinado lugar e contexto. Somente o “mito vivo” desempenha a última função do mito, que é a função psicológica belamente detalhada em muitos aspectos na obra de Carl Gustav Jung. O “mito vivo” apresenta a cada indivíduo da sociedade os modelos para a conduta humana e os velhos caminhos, percorridos uma e outra vez, pelos deuses e heróis da cultura na qual o indivíduo está inserido.

E mesmo na contemporaneidade, onde o mito parece ter perdido sua função explicativa e orientadora, ainda podemos sentir a sua força e perenidade quando descobrimos sua interação com as imagens simbólicas emanadas dos arquétipos. Afinal, os mitos contados e recontados, tantas vezes desde a aurora dos tempos, na infância da humanidade, cristalizaram em si as forças arquetípicas que até hoje conduzem o psiquismo humano.

A arte pode juntar-se a ambas definições acima. Nela encontramos possibilidades de romper com concretudes pré-estabelecidas, de nos reconhecer dentro de nossa condição humana. Somos sujeitos no mundo porque estabelecemos relações simbólicas e culturais que nos circundam.

A arte tem nos mostrado o espírito do nosso tempo e é por meio dela que podemos, sem necessidade racional, compreender a situação atual e os limites da própria existência. Somos corpos sensíveis e reincorporamos símbolos na medida em que criamos o tempo todo; a necessidade de criar se instaurou no ‘aqui e agora’ e é tempo de pensar o sentido da vida e a necessidade da arte. Nesse viés, frente ao capitalismo excessivo de nossa época e aos precipícios que a racionalidade nos impõe, por que não recorrermos a discussões sobre a natureza humana?

A arte, assim como os mitos, ou seja, o simbólico, nos propicia entrar em contato com as camadas primeiras, com as questões fundamentais. Ou seja, nos redirecionam ao ‘ser bruto’ e nos ligam indefinidamente à vida.

Desta forma, alguns exemplos práticos e analíticos foram pensados pelos autores, em suas temáticas e objetos de pesquisa, dialogando sempre com autores importantes. O que une a todos, assim como aos três conceitos sugeridos é a questão simbólica, sendo o símbolo a melhor forma de exprimir um estado de coisas que não pode ser expresso por outra coisa melhor do que por uma analogia.

Por fim, gostaríamos de agradecer à editora da Revista Mosaico da PUC de Goiás, Thais Marinho, que aceitou nossa ideia de publicar este dossiê. A proximidade do PPG de História da PUC Goiás, que esteve presente na formação deste PPG em Performances Culturais da UFG, nos é ainda muito cara e relevante. A disciplina História é um das que está na base desta área de diálogos interdisciplinares, assim com o Teatro, a Antropologia e as artes em geral. Agradecemos, também a todos autores, que se esmeraram em produzir ensaios que refletiram nossas preocupações em discutir o simbólico, através dos mitos, das tradições locais, arquetípicas e ou dentro dos mais diversos campos artísticos.

E que este momento de incertezas quanto à vida humana que estamos passando nos faça crescer em humanidade e em reflexões sobre o que realmente importa daqui para a frente em termos de coesão de propósitos para transformar o mundo em algo melhor.

Ivan Vieira Neto – Professor Assistente do Curso de História da Escola de Formação de Professores e Humanidades da PUC Goiás. Discente de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Universidade Federal de Goiás. E-mail: vieira. pucgoias@yahoo.com

Luana Lopes Xavier – Doutoranda em Performances culturais (UFG). Mestre e Bacharel em Filosofia (UFG). Universidade Federal de Goiás. Universidade Federal de Goiás. E-mail: luanafilosofia@gmail.com

Nádia Maria Weber Santos – Doutora em História (UFRGS). Médica, psiquiatra junguiana desde 1986. Bolsista de produtividade em Pesquisa do CNPq. Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais (UFG). Universidade Federal de Goiás. E-mail: nnmmws@gmail.com


VIEIRA NETO, Ivan; XAVIER, Luana Lopes; SANTOS, Nádia Maria Weber. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.13, n. especial, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Congadas: Memória e Tradição Afro-Brasileira / Revista Mosaico / 2019

Esse volume da Revista Mosaico reúne diversos artigos que discutem a religiosidade popular, a partir de seu viés afrodescendente, tendo como palco as irmandades católicas, dentre elas as negras. Os artigos perpassam pelos diversos festejos populares nascidos ou ressignificados no Brasil-colônia e, que trazem em seus ritos vestígios da África negra, fundidos com o catolicismo lusitano dentre eles; as Congadas, os Congos as folias, suas indumentárias, seus capacetes, coroas e patuás. Para tanto, antes de apresentar os artigos que compõem esse dossiê, se faz necessário algumas reflexões sobre quem são os reis negros reverenciados durante os festejos de congada, congo e outros folguetos, apresentados neste dossiê; e sobre os resultados da diáspora africana em terras brasileiras, no que tange à religiosidade popular e seus desdobramentos para o afro-catolicismo.

Um dos muitos resultados da diáspora africana é a presença de reis negros nas Américas, representantes de grupos étnicos específicos, presentes no interior de quilombos e de irmandades católicas negras. Nessas irmandades também os reis negros se tornam referências daquilo que no Brasil, tempos depois, resulta nos festejos das Congadas. Os estudos das situações em que existiram esses reis nas Américas esclareceram como africanos e europeus interagiram no contexto da colonização americana sob um regime escravista, criando novas perspectivas para se reescrever a história desse período dando voz a outros protagonistas do processo de construção da nação brasileira.

Ao abordar o papel dos reis na diáspora brasileira, Soares (2006) afirma que, na cosmogonia Iorubá [1], a monarquia é uma instituição criada por Deus. O autor cita o exemplo de Xangô [2], que representa a figura do grande rei divinizado após sua morte. Seus atributos são: força, poder, justiça e virilidade. Nos ritos do Candomblé, a realeza é dramatizada e materializada em determinados signos distintivos como o cajado, o cetro e a coroa. A atribuição de títulos de reis e rainhas a pais e mães de santo do Candomblé e Umbanda demonstra as ressignificações pelas quais os termos reis e rainhas passaram nas novas terras. Perceptíveis são o prestígio e a relação dos reis com o sagrado, ressaltando a importância e a consideração desse termo e da relação desses reis com seus súditos reais e imaginários (SOARES, 2006). Essa relação entre rei e súditos, vivenciadas em terras brasileiras pelos primeiros africanos escravizados, é uma tentativa de os africanos reinventarem seu país nessas novas terras, buscando, mesmo de forma empírica, transpor sua cultura para aquela realidade subalternizada (SOUZA, 2002).

Esses reis que vieram durante o período escravocrata contribuíram para uma transposição cultural vivenciada dentro dos Quilombos e das irmandades negras. Nesses espaços, esses reis buscavam exercer sua liderança e reconstruir sua identidade, mesmo que de forma simbólica. A transposição simbólica é comunicada por meio da cultura, entendida como um sistema simbólico orientador das ações humanas. Segundo alguns pesquisadores como Mauss (2003), Brandão (1985), Geertz (1989), Laraia (2006), dentre outros, é a capacidade de o ser humano simbolizar a experiência vivida que diferenciou o homem das outras espécies. Os objetos empíricos, sons, gestos, rituais, instrumentos de trabalho e alimentos não são apenas respostas às necessidades básicas do ser humano, eles comunicam mensagens e possibilitam interações entre pessoas (GEERTZ, 1989). A cultura funciona em uma comunidade de maneira análoga ao sistema linguístico. Como conjunto de expressões sonoras, vocalizadas, a língua é decodificável apenas pela comunidade de fala. Da mesma forma, as ações humanas orientam-se pelos códigos informados pela cultura (GEERTZ, 1989 apud SIMONI, 2017).

Nesse contexto, a cultura afro-brasileira, eixo deste dossiê é tributária da concepção de cultura como linguagem simbólica. Dessa maneira, concebe-se a cultura afro-brasileira como um sistema simbólico orientador das práticas sociais referenciadas em princípios ancestrais africanos. Esses princípios, conforme esclarecem Mintz e Price (1992), funcionaram na diáspora como elementos de uma sintaxe. Os referenciais simbólicos são acionados de maneira seletiva e contextual, em um ambiente mutável. As práticas culturais afro-americanas, embora orientadas pelos referenciais africanos, não são, portanto, reproduções ou cópias da África nas Américas, mas reelaborações de caráter dinâmico, flexível, plástico e em constante mutação, a exemplo dos cortejos e batuques introduzidos nas Américas pelos africanos. Há outras manifestações culturais e religiosas nascidas nas Américas que possuem origem africana como, por exemplo, a música, a dança, a língua, além dos saberes e fazeres perceptíveis nos comportamentos recriados de acordo com cada região das Américas (MINTZ; PRICE, 1992).

A cultura afro-brasileira é rica em música e dança que se estruturam a partir de duas matrizes básicas africanas, Congolesa e iorubana. A primeira (Congolesa) sustenta a espinha dorsal dessa música, que tem no samba sua face mais exposta. A segunda (iorubana) molda, principalmente, a música religiosa afro-brasileira e os estilos dela são decorrentes de folguedos, a exemplo de Congadas, Folias, Afoxés e também dos Candomblés, Umbanda e suas diversas ramificações religiosas. Alguns desses estilos são marcados por cortejos de rua, como Afoxés, Congadas, Folias, Folguedos que preservam, em seus instrumentos, a musicalidade e a dança desses dois grupos africanos (LOPES, 2004 apud SIMONI, 2017).

Os Folguedos são festas de caráter popular cuja principal característica é a presença de música, dança e representação teatral. Grande parte dos folguedos possui origem religiosa e raízes culturais dos povos que formaram nossa cultura (africanos, portugueses, indígenas). Contudo, muitos folguedos foram, com o passar dos anos, incorporando mudanças culturais e adicionando às festas novas coreografias e vestimentas, máscaras, colares, turbantes, fitas e roupas coloridas (REIS, 1996). Quanto as Folias se destacam as do Divino Espírito Santo e a dos Reis Magos, ainda assim a mais popular é a dos três reis magos, que consiste na dramatização de rua em que é representada a viagem bíblica dos três reis magos, que ocorre entre o natal e o dia 6 de janeiro (Dia de Reis).

Quanto aos Afoxés, consistem em um cortejo de rua criado para homenagear os Orixás [3] femininos e está diretamente ligado aos rituais do candomblé (SOUZA, 2006). O candomblé é uma religião dos orixás formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições de povos Iorubá também chamados de Nagô, com influências de costumes trazidos por grupos Fons, aqui denominados Jejes, e residualmente por grupos africanos minoritários. O candomblé Iorubá ou Jeje-nagô agregou, desde o início, aspectos culturais originários de diferentes cidades iorubanas, originando-se diferentes ritos ou nações de candomblé, predominando em cada nação tradições e nomes das cidades ou região: Queto, Ijexá, Efã (LIMA, 1984, apud SILVEIRA, 2003). A história escrita em nosso território registrou a presença e a fecundidade desses ritos, e a preponderância das crenças de origem Iorubá. Como assegura Souza;

Outro conjunto importante de práticas e crenças mágico-religiosas de matrizes africanas que germinou no Brasil foram os candomblés, sendo do século XIX as primeiras referências a eles. Apesar de o termo candomblé pertencer à língua banto, no Brasil se refere a cultos religiosos de origem iorubá e daomana. Neles, as principais entidades sobrenaturais são os orixás, quando a influência iorubá, também chamados de voduns, quando na casa de santo a influência maior é daomeana. Na Bahia, os iorubás também ficaram conhecidos como nagôs, e os daomeanos como jejês (SOUZA, 2006, p. 115).

Os cortejos de rua ligados à religiosidade de matriz africana apresentam algumas caraterísticas que se difundem, mesmo quando os mesmos têm como base os santos católicos, um destes são os Afoxés ou candomblés de rua, termo usado para designar cortejos religiosos que saem as ruas em devoção aos Orixás quase sempre femininos. Esses cortejos são ressignificados, por vezes, nos cortejos de folias e congados. O Cortejo / afoxés sempre ligados às casas de santo, enquanto as folias e Congadas estão ligadas diretamente às irmandades e aos santos devocionais e à igreja católica, ainda assim ambos se difundem em partes dos ritos indumentárias.

Em se tratando de irmandades, essas constituíram-se no período escravagista, tendo sido mantidas por escravos e libertos. Tinham como característica a realização de ajuda mútua de empréstimos e adiantamento para as alforrias de escravizados. Essas irmandades tinham a particularidade de escolher os seus “reis e rainhas Congos” durante as festas em homenagem aos seus santos de devoção (VASCONCELOS, 1996). Dentre as irmandades negras, as que mais se destacaram foram aquelas em devoção a Santa Efigênia, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, São Elesbão, São Bento. Não há um registro exato do início dessas devoções, mas alguns registros informam que, desde 1639, as devoções a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito são vivenciadas no Rio de Janeiro (SOARES, 2000 apud SIMONI, 2017).

Pertencer a uma irmandade de pretos era para os negros escravizados a fomentação dos cerimoniais de Congada que, hoje, são vistos por pesquisadores como redutos de fusionismo afro-cristão (SOUZA, 2012). Nesses cerimoniais os negros atualizavam crenças africanas por intermédio de uma codificação cristã, e continuam usando tal codificação para, agora, tirar da marginalidade social essa manifestação de fé e cultura afros.

Nos bastidores das irmandades, sob a barroca expressão católica, essas pessoas encontravam um espaço alternativo para a perpetuação de valores, disposições emocionais, orientações existenciais, concepções sobre a pessoa, formas de expressão, gestualidade etc., próprias das culturas africanas, aspectos esses que se imbricavam indissociavelmente à sua religiosidade. Desse modo, com muita frequência, as irmandades encobriram práticas que não se ajustavam aos cânones e regras da teologia católica: os calundus, os congados, dentre outros (PARÉS, 2007, p. 111).

Era durante os festejos que os negros introduziam parte de suas práticas religiosas. Algumas manifestações afro-religiosas surgiram e se consolidaram resguardadas pelas condecorações (a exemplo dos brasões, patuás, alguns conhecidos como Bentinhos) e fé cristã imposta pelos dominadores, em um misto de catolicismo popular e cultos afro, aqui concebidos como afrocatolicismos. Esse catolicismo popular faz parte do que os cientistas da religião como Azzi (1977) chamam de religiosidade popular. A esse respeito Brandão (1986) discorre que as religiões descritas como populares são o catolicismo rústico do campesinato, o pentecostalismo tradicional, as modalidades arcaicas e atuais de cultos afro-brasileiros e os cultos messiânicos.

Burke (1989), por sua vez, afirma que os africanos contribuíram para o surgimento das religiões populares, entre elas, o catolicismo popular, nascidas do processo de aculturação vivenciado por africanos, indígenas e europeus em terras brasileiras; o autor em seu estudo acerca da cultura popular na modernidade discute sobre os conceitos de popular e elite, separadamente, mas recusa uma concepção polarizada entre eles: A fronteira entre as várias culturas do povo e as culturas das elites (e estas eram tão variadas quanto aquelas) é vaga e por isso a atenção dos estudiosos do assunto deveria concentrar-se na interação e não na divisão entre elas

[…] bi-culturalidade das elites, suas tentativas de ‘reformar’ a cultura popular, sua ‘retirada’ delas e finalmente sua ‘descoberta’, ou mais exatamente ‘redescoberta’ da cultura do povo (BURKE, 1989, p. 21).

Diante deste enunciado, e com ênfase nas diversas formas da religiosidade popular nascida como resultado do processo diaspórico dos africanos no Brasil, concebemos e apresentamos este importante dossiê que se propõem a discutir temas como este em uma perspectiva histórica cultural discorrendo sobre memórias, tradições e religiosidades afrobrasileiras. O mesmo está dividido em duas partes: a primeira gira em torno das formas e expressões das religiosidades populares; a segunda parte aborda a questão das religiosidades afro descendentes, envolvendo as irmandades, as congadas e os reinados no Brasil.

Os artigos da primeira parte abordam a formação das festividades católicas praticadas no Brasil desde o período colonial, salientando a importância desses festejos para formação identitária nacional, assim o artigo A religiosidade nos distritos de souzânia e interlândia: estudo de caso das folias do divino de autoria de Luan Felipe Coelho e Poliene Soares Bicalho, parte dos festejos em homenagem ao Divino Espírito Santo para compreender a formação sociocultural dos distritos de Souzânia e Interlândia, para tanto, trabalham com observação in loco e entrevistas. Partem de autores que abordam o conceito de cultura, a exemplo de Larraia (1986) e Santos (1994), perpassando pelo conceito de sagrado, profano e espaços sacralizados de Eliade (1992), de identidades de Stuart Hall (1986) e, de religiosidade popular, folias e romarias tendo como base Brandão (2004), além da história de Goiás e memórias goianas trabalhadas por Chaúl (2011). O artigo também expõe, a partir das representações, as estratégias e negociações cotidianas que permitiram a “existência simbólica” de elementos da cultura africana e seus descendentes nas festividades, isso fica implícito nas descrições do ritual. O artigo, por fim, apresenta originalidade, é fluido e coeso, o que torna a leitura, além de instrutiva, prazerosa.

Ainda, seguindo as Folias, o segundo artigo sob o título A materialidade da fé: sacralização dos objetos nas folias de reis de Itaguari – Go, do autor Igor Junqueira lança um olhar sobre a materialidade do sagrado nas Folias de Reis de Itaguari no estado de Goiás, o autor apresenta a permanência deste festejo local como forma de resistência cultural frente aos processos modernizadores que adentram o município reconhecido como polo têxtil. O festejo é apresentado nesse artigo através das crenças, costumes e tradições que acontecem no município durante os festejos da folia de Reis. O autor percebe uma dicotomia na representação dos objetos, de um lado os retrata como demarcadores das colonialidades “do poder” e “do saber”, e os evidencia como materialidades ativas, marcadoras de identidade cultural, em oposição ao pensamento colonial em expansão relacionando-os a um saber popular muito distinto, repleto de particularidades que denotam uma tradição pautada no catolicismo popular, onde a materialidade é eleita pelo autor como chave para compreensão desses festejos.

A segunda parte do dossiê versa sobre religiosidades afrodescendentes: irmandades, congadas e reinados no Brasil. Os artigos que compõem esse tópico expõem, a partir de algumas das diversas expressões afro-católicas nascidas no país, representações, estratégias, e negociações que permitiram a permanência física e simbólica das religiões de matriz africana nos festejos e rituais católicos. Expõem, assim, o “fracasso” dos colonizadores em excluir as heranças históricas cultural dos povos africanos na formação da identidade brasileira com ênfase na religiosidade. No primeiro artigo sob o título: Congadas e reinados celebrações de um catolicismo popular, africano e brasileiro; o autor Marcos Antônio Fontes de Sá apresenta uma análise das origens dos festejos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, apontado algumas das variações estruturais e ritualísticas dessa devoção em vários estados, o autor tem como eixo central de análise seus dez anos de pesquisa e documentação fotográfica; suas pesquisas ressaltam, nesses festejos, a relevante presença da cultura dos povos conhecidos como Bantu desde a origem, até os ritos atuais.

O diferencial deste artigo está na riqueza das imagens apresentadas e na análise do autor sob a presença da cultura Bantu nos festejos; através das imagens o autor apresenta as variações das vestimentas adornos e rituais vivenciados em cada cidade / estado apresentado; o autor, em primeira instância, nos convida a conhecer a cosmovisão dos povos Bantu, sua relação e devoção com os “mortos” chamados ancestrais; as riquezas dos cultos, a visão do processo de” travessia” do atlântico vivenciada pelos escravizados, tanto a simbólica quanto real. O autor surpreende com a análise através de um gráfico da “Kalunga” e sua relação com os espelhos usados como adorno pelos devotos dos santos pretos, relacionando-os a um portal que liga os dois mundos vivos / mortos. O texto, como todos os outros deste dossiê, merece uma leitura minuciosa pela riqueza das pesquisas apresentadas e pelos diálogos apresentados pelos autores.

O segundo artigo desse tópico sob o título de Fé e festividades nas irmandades negras no interior do Brasil (Re) afirmação identitária afrodiaspórica de autoria de Rosinalda Côrrea da Silva Simoni e Noeci Carvalho Messias, parte das pesquisas de doutorado das autoras realizadas em tempos e estados diferentes. Apresenta as reflexões e o entrelaçamento do contexto histórico de nascimento e perpetuação das irmandades negras e seus festejos nos espaços estudados. As autoras apontam em suas reflexões a importância das irmandades e festejos para seus praticantes, como uma manifestação de fé e de (re) afirmação identitária no processo diásporico. Na reflexão sob as influências africanas na formação das irmandades negras as autoras partem da obra de Mary Karasch (2000) para salientar que estas associações eram as instituições socioreligiosas mais relevantes do início do século XIX; seguindo o diálogo para o contexto regional elas citam Moraes (2006), e sua reflexão sobre religiosidade como fator de profundo enraizamento social entre os habitantes dos Guayazes.

Em seguida as autoras apontam as irmandades como espaço de resistência sócio cultural ao sistema de opressão vigente no período respaldadas em pesquisas de alguns africanistas a exemplo de Páres (2007), Munanga (2012), e Souza (2012). No tópico seguinte dialoga-se com os conceitos de sincretismo religioso no Brasil apresentando o mesmo como elemento primordial para se compreender a construção cultural identitária dos afrodescendentes, dentre elas as identidades religiosas. Assim, o artigo apresenta um passeio sobre o Brasil setecentista e o nascimento dos festejos dentro das irmandades, com ênfases nos conflitos e perseguições sofridas pelos adeptos. Neste contexto é apresentado também as estruturas das festas e os cortejos que a compõem, além da reflexão sob os reinados africanos e suas representações nos festejos comemorativos. O artigo, que teve como uma das bases as memórias e as oralidades, tem nas entrevistas transcritas e diálogos um de seus diferenciais, partindo das narrativas coletadas as autoras discorrem sobre a importância das memórias familiares para consolidação dessa manifestação de fé que perpassa a identidade cultural dos grupos envolvidos.

E por fim, o último artigo deste dossiê, Memória e Identidade na festa em Louvor a nossa senhora do Rosário de Cleber de Souza, retrata os processos de evocação das memórias e suas relações na constituição da identidade cultural dos (as) congadeiros (as) na festa de Nossa senhora do Rosário e São Benedito da João Vaz. Tendo como eixo norteador a memória de um dos mestres desse grupo o autor navega pelas memórias do grupo buscando refletir sob a importância da memória desse indivíduo para construção e manutenção de memória coletiva do grupo, tendo como foco as práticas corporais e os cânticos o texto apresenta a “criação” e manutenção das danças toques e sua influência nos rituais festivos dos santos negros. Em suma a partir das narrativas e nas reflexões apresentadas por esse artigo podemos perceber que para esse grupo as memórias e identidades são negociadas e tensionadas no cotidiano das adversidades materiais durante a produção da Festa da João Vaz, ao mesmo tempo em que a sobrevivência se dá pelas redes de solidariedade que reforçam os laços afetivos entre eles.

Ressalta-se apenas que os dois últimos artigos se debruçam sobre o mesmo grupo de congada e em ambos o que ficou em evidência foi que aos olhos da história local (Goiânia) as Congadas aparecem como coisa do passado, deslocadas do tempo, para os congadeiros a prática do congado é local de construção e fortalecimento de laços socioculturais, com memória e tradição disseminadas pelo fundador e por seus discípulos que todos os anos reverenciam seus ancestrais africanos e afrodescendentes através de seus rituais onde os cânticos entoam palavras de origem Bantu e suas batidas fazem alusão aos cortejos ainda vivenciados por grupos africanos até a atualidade.

Ao compartilhar esta publicação com a sociedade as organizadoras e autores / colaboradores acreditam poder contribuir para o processo continuado do debate sobre a religiosidade popular com ênfase nos festejos ligados ao afro catolicismo dentre eles e de forma especial as Congadas.

Boa Leitura!

Notas

1. Um dos grupos étnicos trazidos para a América brasileira no período escravocrata (MUNANGA; NILMA, 2004).

2. Segundo a mitologia, Xangô teria sido o quarto rei da cidade de Oió, que foi o mais poderoso dos impérios iorubás. Depois de sua morte, Xangô foi divinizado, como era comum acontecer com os grandes reis e heróis daquele tempo e lugar, e seu culto passou a ser o mais importante da sua cidade, a ponto de o rei de Oió, a partir daí, ser o seu primeiro sacerdote (PRANDI, 2001).

3. Etimologicamente, Orixá ou Orisá origina do iorubá “orí”=cabeça, “sá”=deus. O Orixá seria a princípio um anscestral divinizado que em vida estabelecia vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza como trovão (Xangô) e o vento (Iansã) (VERGER, 2002).

Rosinalda C. da Silva Simoni – Aluna do pós-doutorado em História da PUC Goiás. Consultora Educacional / Arqueóloga.


SIMONI, Rosinalda C. da Silva. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.12, n.2, jul. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Materializando a História: o Passado Humano através da Cultura Material / Revista Mosaico / 2019

PARTE I – A HISTÓRIA DO PASSADO HUMANO ATRAVÉS DA MATERIALIDADE CULTURAL

A História se manifesta nas sociedades humanas, principalmente, na forma de documentos escritos, de representações imagéticas e como oralidades interpessoais ou coletivas. Como um produto da ação humana seus fatos marcam gerações posteriores, desde tempos imemoriais até o nosso contemporâneo. Nesta longa trajetória, nem sempre os suportes físicos de determinados eventos perduram, e a história se limita a traços do que foi, ou do que aconteceu. Portanto, nesse dossiê focamos no aspecto mais duradouro destes registros temporais e humanos: o material.

Para a história a materialidade é um testemunho que concretiza um fato, ou seja, a parte documental de um evento do passado que pode ficar guardado em um arquivo até ser recuperado no presente. Muitas vezes separada da história, a arqueologia por muito tempo foi vista como uma forma ilustrativa de investigação do ocorrido e que contribui à medida que propicia “novas” leituras sobre o que já se sabe, seja de uma forma confirmatória, complementar ou contraditória. Na visão tecnicista, a arqueologia também foi considerada ora como ciência auxiliar ora como provedora de um saber independente, mas que se apropria dos aspectos individuais, ou dos coletivos sociais na sua forma materializada de cultura. A arqueologia por sua vez, representa o acesso a um tempo remoto ou despercebido que não é possível por outro tipo de “documento”, tem acesso às materialidades totalmente desvinculadas das memórias vivas.

A arqueologia, possibilita, igualmente, o alcance a particularidades da alteridade humana independente do contexto temporal em que seu objeto de estudo está vinculado.

Concebemos a materialidade enquanto elemento de subjetividade humana que não se manifesta somente nas categorias resultantes das intervenções humanas, expressa por exemplo, naqueles objetos que estão inseridos em cadeias de gestos, compartilhando comportamentos técnicos advindos de tradições culturais (GENESTE, 1991; LEROI-GOURHAN, 1964). Numa perspectiva mais ampla, a materialidade também se constitui por componentes físicos não necessariamente modificados por comportamentos antrópicos, mas que estão ou estiveram em interação com os grupos sociais.

Se buscarmos uma correlação entre materialidade e cultura material, vemos que a primeira é mais ampla, compreendendo também o sentido dos elementos que não foram, pelo menos num primeiro momento, culturalmente determinados. A segunda é constituída por símbolos com potencial para agenciar o modo pelo qual grupos humanos, ao longo dos tempos organizam e avocam a própria vida social.

Os estudos de culturas materiais na arqueologia e história têm se modificado ao longo do tempo, acompanhando as mudanças de paradigmas de suas áreas. No Brasil, na década de 1980, Meneses (1983) em sua obra clássica “A cultura material no estudo das sociedades antigas” alertava sobre a importância da cultura material como fonte para a historiografia brasileira. Trazendo como exemplo os estudos clássicos de Grécia e Roma, onde demonstra primeiro a primazia da mentalidade sobre a materialidade e depois o uso meramente ilustrativo ou didático da segunda. O argumento principal da tomada de posição dos historiadores para com a cultura material era de que estas constituíam apenas uma parcela aleatória e redundante do fenômeno histórico. Porém, como destaca o autor, estes mesmos argumentos não são também suscetíveis aos documentos escritos, a principal fonte de informação dos historiadores?

Por outro lado, a cultura material era considerada mais um valor real do que representativo, e que ao contrário do texto foca-se no cotidiano social mundano, e não na excepcionalidade do seu registro.

Por cultura material poderíamos entender aquele segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos. Assim, o conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificações da paisagem, como coisas animadas (uma sebe, um animal doméstico), e, também, o próprio corpo, na medida em que ele é passível desse tipo de manipulação (deformações, mutilações, sinalizações) ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar, uma cerimônia litúrgica) (MENESES, 1983, p. 112).

Sobre essa questão, trazemos também as considerações de Rede (2012) que pondera adequadamente que a suposta superioridade da cultura material e a sua não intermediação ideológica deve ser considerada à luz dos contextos em que os objetos se encontram; ressaltando os seus limites, presentes igualmente em qualquer fonte histórica.

Outro autor que também discute o distanciamento entre o estudo da cultura material e a sociedade brasileira é Funari (1992 / 1993) que ao tratar o tema da educação apresenta a materialidade como fonte de aprendizado crítico sobre as realidades sociais. Entretanto, conforme destaque do autor, o “fazer” arqueológico também sempre esteve sujeito ao seu tempo e, no Brasil às suas políticas. Como legado a arqueologia brasileira de certos períodos favoreceu muito mais o status quo dominante, do que a consciência e autorreflexão, seja dentro ou fora das instituições oficiais.

O quadro de Pedro Américo representando D. Pedro e seu séquito no momento da chamada “Proclamação da Independência”, montados em cavalos e não em mulas, como era o caso (Zanettini 1991:5), consiste num falseamento que não deveria ser escondido do grande público, mas, ao contrário, explicitado com a comparação com evidências arqueológicas relacionadas tanto ao séquito imperial como à vida do povo comum à época. Pobres, nativos e escravos, a grande maioria excluída desse passado oficial, não deveriam ser deixados de lado… (FUNARI, 1992 / 1993, p. 23).

Azevedo Neto e Souza (2010) reforçam as particularidades da cultura material, destacando sua idoneidade e pluralidade, no sentido de tratar sobre diferentes contextos sociais, alcançando não somente práticas e comportamentos de grupos dominantes, como também possibilitando dar “vozes” às minorias étnicas e demais grupos subalternos, também protagonistas da história do Brasil. Como um dos primeiros estudos situacionais, nesta perspectiva, destacam-se as pesquisas sobre os Quilombos no Brasil, iniciados na década de 1980 com Magalhães e Funari (COSTA, 2010).

Portanto, ao ocupar-se do estudo das práticas cotidianas, a arqueologia, por meio das evidências materiais, desafia os artifícios utilizados pela classe dominante para mascarar as relações de poder, na medida em que oferece aos grupos subalternos e explorados o resgate de seu passado arqueológico para estabelecer uma história da resistência em oposição a uma história da dominação (AZEVEDO NETTO; SOUZA, 2010, p. 70).

Entretanto, Lefebvre (1991) percebe a diferença tênue entre o físico e o mental, seja na forma de uma impressão mental da realidade ou na sua apreensão pela experiencia sensorial. Considera a falsa dicotomia entre o material e o seu aspecto imaterial, construída a partir da lógica ocidental, para enaltecer a superação humana da natureza. Estamos de acordo com o referido autor e ampliamos essa questão, baseando-nos em Tilley (2008) que entende que as expressões tangíveis e intangíveis embora sejam diferentes, não são antagônicas e que, numa relação dialética, se fundem numa expressão cultural mais ampla.

Sem a pretensão de apresentar um contexto temporal denso sobre os caminhos percorridos pelos estudos de cultura material em arqueologia e história ao longo do tempo, selecionamos algumas abordagens consideradas pertinentes, buscando um diálogo entre elas.

A MATERIALIDADE NA HISTÓRIA

Como uma das primeiras experiências do protagonismo material na história, temos o Materialismo Histórico elaborado por Marx e Engels já no final do século XIX. Como metodologia de análise historiográfica que vê na trajetória humana uma relação de expropriação e apropriação da materialidade por diversos segmentos sociais. Nessa perspectiva, a cultura material também se apresenta como uma consequência do fazer humano inconsciente, e que segundo Marx e Engels “Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2001, p. 20).

Esta abordagem economicista com orientação materialista na história ficou adormecida até o advento da Escola de Annales na década de 1920. No entanto, nuances desse movimento extrapolam a França, onde na Alemanha, por exemplo, os estudos de cultura material, de alguma forma, se mantinham “vivos”:

Em 1919, em plena guerra civil, portanto, Lênin assina o decreto que institui a Academia de História da Cultura Material da URSS. Nesse acontecimento está inscrito o essencial dos fatos e das conotações que concernem à noção de cultura material: sua emergência tardia, sua evidente colusão com o materialismo histórico e a importância que lhe atribuem os marxistas, seu aparecimento num país socialista, suas relações privilegiadas com a história (PESEZ, 1990, p. 177).

Os Annales surgem como uma ruptura crítica e de renovação do fazer historiográfico positivista ou tradicional, que entre outras coisas, adiciona novas fontes ao fazer historiográfico, como a cultura material. Com uma abordagem interdisciplinar também busca em outras ciências, como a arqueologia, um fundamento de discussão, que mais tarde, nas últimas décadas do século XX, vai ser ampliada pela própria Nova História e Nova História Cultural ao criticar a oficialidade dos documentos e na importância dada à história “total”. No entanto, essa proposição à materialização tardou a ser efetivamente concretizada na história, resultante do forte enraizamento do pensamento ocidental, marcado pelo dualismo, material (técnica) e imaterial (ideias) (CRESWELL, 1989).

Para Bloch (2002), outro importante expoente dos Annales, a cultura material se explica por si, não precisa ser interpretada, é o fato histórico de forma nua e crua. A expressiva massa de informação não-escrita se coloca diante da observação histórica, como parte de um dado que não mais se repetirá. Porém, não totalmente inacessível, pois a pesquisa pode revelar formas de compreensão até então não conhecidas. E portanto, a cultura material como dado histórico é considerada sempre atual.

Como um elemento estrutural da história, a cultura material, se encaixa também no que Braudel (1965) chama de história das “longas durações” que junto com outros elementos “imóveis” como a própria natureza, acabam por formar verdadeiros modelos atemporais do comportamento humano. Quase em um apelo matemático, Braudel relaciona o imutável como a fisicalidade ou a estruturação da própria história, que transfere o social para o científico. Da mesma forma, a cultura material é tida como o “andar de baixo da casa”, onde no nível acima é construído o econômico.

Arqueologia e história ao trabalharem, ainda que não exclusivamente, com a história de “longa duração”, tem dentre seus objetivos, a busca da materialidade para medir o tempo não como um fim, mas como meio. Assim, a partir do pensamento ocidental, tradicional, tal medição significa o controle dos indivíduos sobre a natureza, que se concretiza na geração dos calendários que, a exemplo de regras e leis, acumulam e transferem poder; de outro, pode-se considerá-la a partir da perspectiva de agência material, considerando que as coisas, incluindo o tempo, também exercem agência sobre a natureza, assim como sobre o comportamento humano.

Esse interesse pela medição do tempo perpassa por diversos momentos da história humana, começando em tempos pretéritos com manifestações rupestres (CAMPOS, 2009) e, de forma mais detalhada Le Goff (1990) relaciona as clepsidras, ampulhetas, relógios de sol, e depois, sendo aperfeiçoados com relógios de torre, pêndulos, relógios de pulso, e cronômetros.

Outro protagonismo que a cultura material adquire para a historiografia foi com a Micro História, proposta na década de 1980. Objetivando o particular, este olhar vai utilizar diversas fontes, entre elas a cultura material, como acesso ao privado e cotidiano de segmentos não presentes na historiografia oficial. Como exemplo em sua obra Montaillou, Emmanuel Le Roy Lauderie faz o que chama “arqueologia” de uma pequena aldeia dos Pirineus, no começo do século XIV. Trabalhando questões como o corpo, infância, casamento, morte, trocas culturais, relações sociais, religião e magia através dos relatos materializados na forma de documentos da inquisição.

A Nova História Cultural, por sua vez, também vai fazer uso das fontes materiais, mas sem se prender a uma cronologia específica. Monumentos vão ser, num primeiro momento, os principais pilares desta materialidade que exerce uma grande influência sobre as memórias coletivas. Realizada desde o século XIX, a História Cultural passou por diversas fases, mas sua principal articulação foi com a antropologia. Não sendo, portanto, essencialmente um campo de prática exclusivo dos historiadores, a História Cultural, assim como a Arqueologia, atua num espaço multi e interdisciplinar.

Para Burke (2005), a cultura material sempre esteve presente na pesquisa historiográfica, entretanto sem um devido protagonismo. Trabalhos referenciais como o de Norbert Elias sobre a história do garfo (ELIAS, 1994) ou mesmo de Braudel sobre o movimento dos objetos (BRAUDEL, 1995), também possuem suas críticas. Evidentemente é, porém, após a década de 1990 que a História Cultural vai efetivamente se interessar com a materialidade enquanto fonte fidedigna da historiografia, incluindo, por exemplo, a história do próprio livro como objeto (CHARTIER, 1988). Entretanto a maioria destes estudos focalizou no uso da trilogia – alimentação, vestuário e habitação – tendo a materialidade como receptáculo desta informação.

A MATERIALIDADE NA ARQUEOLOGIA

Ao contrário da história, a cultura material para a arqueologia sempre foi a sua principal fonte de estudo, desde a sua formalização no final do século XIX. Porém, seus estudos nem sempre foram conduzidos da mesma forma, ou com os mesmos objetivos. Novamente sem o intuito de exaurir essa trajetória ou de compartimentar as abordagens, discutindo-as de forma estanque, focaremos no presente texto, em aspectos específicos no que tange a materialidade da arqueologia e os estudos em cultura material.

Gonçalves (2007) ao analisar a proximidade da antropologia e arqueologia no início do século 20, avalia o papel dos objetos etnográficos enquanto categorias etnocêntricas que também fundamentaram os paradigmas evolucionistas e difusionistas do século XIX, baseados nos grandes esquemas universais de evolução social. Os estudos de cultura material advindos desse contexto concebiam os objetos enquanto categorias passivas e indicadoras dos estágios de evolução do grupo a que pertenciam. Tais estudos, desenvolvidos no âmbito da consagrada escola “Histórico Culturalista”, possuía um caráter estritamente indutivo e ambiental determinista que reforçava a dualidade ocidental, calcada na divisão entre o cultural e o natural.

O contexto pós II Guerra Mundial contribuiu para a entrada em cena de um novo olhar arqueológico sobre a cultura material, contemporâneo aos estudos voltados ao sentido simbólico do consumismo (MILLER, 1987). Neste contexto os estudos de cultura material em arqueologia agora com um viés neo-evolucionista, procuravam na normatividade dos vestígios, não mais somente a sua ordenação, mas sua explicação. Nesta perspectiva, a cultura material era o registro estático representante de um sistema cultural dinâmico em processo de adaptação ao seu meio circundante. Com um fazer positivista, hipotético-dedutivo e nomotético, a escola “Processualista” também via a cultura material e a natureza em lados distintos, conectadas pelos diferentes subsistemas, onde o meio tinha uma influência decisiva sobre a cultura,

Uma reação a esta perspectiva se concretiza com a abordagem “Pós-Processualista” estimulada pelo movimento linguistic turn, que impactou diversas áreas do conhecimento. Os objetos, de uma condição estática, passaram a ser entendidos como categorias dinâmicas, que estão entrelaçadas (entanglement) a outros elementos inclusive não humanos; eles são resultantes de ações humanas individuais, conscientes e reflexivas. Trata-se de uma postura pós-modernista que atribuía uma teia de significados à cultura material, que deveria ser lida particularmente como um “texto”. Nessa perspectiva, a cultura material torna-se um elemento agenciado pelas subjetivações das relações sociais do passado e, também, no presente (HODDER, 2012).

Esse posicionamento frente à materialidade humana propiciou, segundo Rede (2012) um fecundo diálogo com outros autores, como Bordieu e Gidden, com a ‘Teoria da Prática’; também se aproximou da Nova História Cultural, propiciada, principalmente, pela perspectiva enfática nos discursos e nos fenômenos representacionais; importante ainda destacar a relação de proximidade da arqueologia com a história a partir dos estudos de patrimônio cultural (MENESES, 1984).

DISCUSSÕES ATUAIS SOBRE A MATERIALIDADE

Nos estudos de arqueologia na contemporaneidade o debate não se encerra no caráter intangível da cultura material, que fundamentou as densas discussões entre “cultura material” e “cultura imaterial”, todavia, têm se voltado a partir de novas ideias sobre as relações entre natureza e cultura.

Neste panorama há uma busca pela superação da influência resistente dos dualismos cartesianos, ampliada a outros tipos de oposições binárias para além do material / imaterial, como: natureza / cultura, sujeito / objeto, presente no modelo hilemórfico da lógica ocidental (GONZÁLES-RUIBAL, 2007). Segundo Andrade (2016, p. 25), tais oposições além de consequências reducionistas trazem também uma intenção ideológica. Nesse sentido, as abordagens têm-se deslocado, gradativamente, dos conceitos de cultura material para o de materialidade (INGOLD, 2007).

Nesta perspectiva, entende-se que os objetos culturais e as ações humanas em sentido amplo, assim como os elementos do mundo natural, embora considerados de naturezas distintas, estão imbricados. Os estudos nesta linha, baseados em Latour (2012) buscam “trata de recuperar lo natural em lo humano” (GONZÁLES-RUIBAL, 2007, p. 285). Nessa conexão, ainda que se considere a cultura e a natureza como campos distintos, são entendidos como equivalentes e, por isso, exigiriam dos / as especialistas atitudes simétricas. Nesse percurso, não somente as pessoas agem sobre os objetos, mas esses também atuam sobre os comportamentos dos indivíduos e da sociedade (TILLEY, 2004), numa relação denominada de “agência material”.

Sentir a pedra é sentir o seu toque nas minhas mãos. Existe uma relação reflexiva entre os dois. Eu e a pedra estamos em contato um com o outro através do meu corpo, mas esse processo não é exatamente o mesmo que tocar meu próprio corpo porque a pedra é externa ao meu corpo e não faz parte dele. Tocar na pedra é possível porque tanto o meu corpo como a pedra fazem parte do mesmo mundo. Existe nesse sentido uma relação de identidade e continuidade entre os dois. No entanto, há também assimetria e diferença a pedra não é senciente e, embora eu seja tocado pela pedra, ao tocá-la, não há a mesma relação de reversibilidade que no caso de minha mão esquerda tocar minha mão direita, uma ação que poderia ser revertido com a mão direita tocando minha mão esquerda. No entanto, podemos afirmar, como Gell (1998), que coisas, como pessoas, possuem agência porque nos afetam fisicamente, ajudam a estruturar nossa consciência (TILLEY, 2004, p. 17).

Trazemos ainda a abordagem desenvolvida a partir da década de 1980 que, dentre outras características representou um “retorno” à materialidade (virada material). Ela teve importante repercussão, principalmente na antropologia, arqueologia e história. Seguindo as perspectivas de Gell (1998), Tilley (2008), buscava-se retirar dos objetos seus valores sociais, para isso foram priorizadas as relações entre indivíduos / sociedades e objetos, assim como as trajetórias (contextos) pelo qual os objetos passaram ao longo de suas vidas. Esse campo referenciado como “biografia das coisas” tem como obra de referência “A vida social das coisas”, organizado por Arjun Appadurai (2008).

Neste panorama de busca das trajetórias dos objetos, mas seguindo outra perspectiva epistemológica, trazemos os estudos em arqueologia acerca das materialidades advindas de longa antiguidade, onde além de não contarmos com as memórias vivas, também não há possibilidade de correlação entre os objetos desses períodos e os atuais. Segundo Ramos (2016, p. 57) trata-se de materialidades cujos produtores “só nos legaram uma parte de sua humanidade: aquela que é produtora de subjetividade não necessariamente verbal, a saber, a materialidade plasmada no registro arqueológico”. Considerando os estágios diferenciados de preservação da materialidade humana ao longo do tempo, consideram-se aqui os artefatos de natureza mineral (os objetos líticos).

Segue em perspectiva os estudos em “antropologia das técnicas” que desvia do estudo dos objetos enquanto substâncias inertes no tempo e no espaço, mas considerando-os como campos epistêmicos de poder heurístico capaz de apreender sutilezas da alteridade humana em tempos pretéritos. Assim como pressupõe o caráter ativo da cultura material, considerando que os fenômenos técnicos não são considerados como reflexo da cultura, mas como elementos participantes dela (FOGAÇA; BOËDA, 2006). Nessa abordagem, ancorada nos estudos de memórias (BERGSON, 2008) e de evolução tecnológica (SIMONDON, 1989; STIEGLER, 1998; BOËDA, 2013) o passado e seus objetos são considerados a partir de três níveis de memórias: viva, parcelar e esquecida. Nos dois primeiros há uma co-relação tecnológica e funcional plausível entre os objetos do passado (por exemplo, as pontas de projétil obtidas de contexto arqueológico) e aqueles advindos de grupos tradicionais dos quais dispomos de informações históricas ou antropológicas e mesmo de objetos modernos, como flechas produzidas a partir de pontas metálicas.

Todavia, há objetos onde esta conexão não é possível, neles as informações técnicas, de função e de funcionamento estão alojadas no nível da memória esquecida.

O fato de decretar o objeto morto faz com que não nos interroguemos de nenhuma forma sobre o modo de analisá-lo. Apenas alguns objetos que se dão a « ver » como as pontas de flecha ou os bifaces vão receber uma atenção particular, diferentemente da análise tipológica que leva em consideração o conjunto dos objetos. Essa situação de exclusão às expensas de uma única categoria de peças características e conhecidas em nosso mundo mostra que a análise técnica exaustiva de todo objeto não existe. Isso conduz, evidentemente, a situações paradoxais nas quais aquilo que não é reconhecido não é considerado. A exclusão pode, ainda, ir mais longe chegando à negação do caráter antrópico. […] Nosso trabalho consiste em compreender os mecanismos intrínsecos a essas mudanças os quais nos permitem entender os objetos tal como eles nos aparecem e, além disso, entender de onde eles são provenientes e qual é seu potencial de evolução. Trata-se de uma percepção do objeto através de seu potencial evolutivo (BOËDA, 2013, p. 233, 234).

Ascender às parcelas dessa memória esquecida implica num posicionamento epistemológico distinto do modelo hilemorfico e da concepção instrumental dos objetos e segue para além da perspectiva producional (tecnologia cultural, cadeia operatória LEROI-GOURHAN, 1964, TIXIER et al., 1980). Nessa perspectiva consideram-se que as tecnicidades estão constituídas no comportamento humano e, por isso, possuem uma história de movimento que acompanha a trajetória da humanidade, numa perspectiva de co-evolução (STIEGLER, 1998; BOËDA 2013), acessíveis a partir das intenções funcionais próprias de cada sistema tecnológico de produção e de funcionamento dos objetos técnicos (instrumentação e instrumentalização, RABARDEL, 1995; BOËDA, 2013).

Para finalizar, sem esgotar a questão, outra perspectiva instaurada na contemporaneidade investiga as relações da cultura (material) e da natureza baseada no conceito de “coisa” (INGOLD, 2012, p. 27); considerada não exatamente como uma fusão de elementos, mas resultado de “combinações variadas”, as quais são consideradas ativas e criativas na medida em que geram novos materiais (organismos) que serão misturados à outros, “num processo infinito de transformações”. Assim, de acordo com o referido autor, há uma preocupação em entender os elementos sem separá-los de seus ambientes, nesse sentido, organismos da natureza e da cultura estão fluídos, entrelaçados entre si e considerados partes do meio, se movimentam como entidades abertas e impulsionados pelos “fluxos de substâncias que lhe dão vida”.

[…] eu mostrarei que os caminhos ou trajetórias através dos quais a prática improvisativa se desenrola não são conexões, nem descrevem relações entre uma coisa e outra. Eles são linhas ao longo das quais as coisas são continuamente formadas. Portanto, quando eu falo de um emaranhado de coisas, é num sentido preciso e literal: não uma rede de conexões, mas uma malha de linhas entrelaçadas de crescimento e movimento (INGOLD, 2012, p. 27).

PARTE II – CULTURA E HISTÓRIA: O PASSADO HUMANO ATRAVÉS DA SUA MATERIALIDADE

O dossiê Materializando a História: o passado humano através da cultura material aborda diversos estudos arqueológicos como artefatos do tempo. Nesta perspectiva, o presente dossiê visa fomentar discussões acerca da materialidade presente em diferentes sociedades e períodos temporais. O dossiê está dividido em três principais temáticas, a primeira trata da representação imagética da cultura material, versando sobre a relação entre a materialidade e colonialidade; a segunda versa sobre a cultura material histórica de natureza edificada enquanto lugares de memória e como paisagem, assim como bem patrimonial que requer ações preservacionistas; por fim, a terceira temática está relacionada as materialidades presentes em tempos pretéritos, onde não há registro de memória viva ou de qualquer fonte documental de período histórico, cujos sentidos são acessíveis pelas tecnicidades presentes nas intenções humanas.

Os artigos da primeira temática tratam da representação imagética da cultura material, versando sobre a relação entre a materialidade e colonialidade. Assim, o artigo Recipientes atribuídos aos africanos e a seus descendentes nas obras de Debret como reveladores de colonialidades e agenciamentos de autoria de Clarissa Ulhoa, analisa os recipientes retratados em 50 obras do pintor francês, Jean Baptiste Debret, realizadas nos anos oitocentistas. Os objetos da análise foram discutidos no texto por meio do conceito de colonialidade, definido por Aníbal Quijano (2010) e de agência, por Lorand Matory (1999). A autora, ciente da influência dos discursos eurocêntricos na obra do artista, fundamentados nas lógicas ocidentais expressadas pela perspectiva cartesiana, “branca e cristã”, e ao mesmo, conhecedora do potencial da cultura material africana, Ulhoa utiliza-se dos aportes teóricos de agência para tratar da resistência dos africanos e seus descendentes manifestada nas materialidades retratadas nas telas de Debret. A materialidade analisada pela autora vem das representações dos recipientes, das vestimentas e dos próprios corpos dos negros escravizados. A autora percebe uma dicotomia na representação dos objetos, de um lado os retrata como demarcadores das colonialidades “do poder” e “do saber”, exibindo o aspecto deplorável do sistema escravista colonial e, de outro, evidencia os recipientes como materialidades ativas, marcadoras de identidade cultural, de oposição ao pensamento colonial em expansão. O artigo, por fim, tem a originalidade de se utilizar de representações oitocentistas para (re) ativar no leitor o pensamento crítico sobre a “faceta colonial da expansão capitalista e de seu projeto cultura” que se mantem ao longos dos anos (ASSIS, 2014, p. 613) e, dentre outros aspectos, atua na exclusão das heranças históricas e culturais dos povos africanos e supressão do projeto de humanidades dessas etnias. O artigo também expõe, a partir das representações, as estratégias e negociações cotidianas que permitiram a “existência física e simbólica” dos africanos e seus descendentes até os dias atuais.

O gênero como categoria de análise para pensar a continuidade das relações coloniais de poder foi o tema do artigo A garota carioca: colonialidade de gênero em imagens, redigido por Isabela Marques Fuchs. A autora baseia-se no conceito de colonialidade de gênero, proposto por Maria Lugones (2014) para refletir sobre o feminismo decolonial. Tem como objeto de estudo a representação imagética da garota carioca em um cartão-postal, considerado como materialidade histórica e cultural onde circula “um sistema de ideias e imagens de representação coletiva”. Os estudos decoloniais de gênero rechaçam a imposição binária da colonialidade (humanos / não-humanos ou mulher / homem) imposta ao longo dos anos e criada para treinar e domesticar o(a) colonizado(a), se fundamentando na premissa de dominação onde, segundo a autora, “o homem domina o corpo da mulher, colocando-a em eterno estado de sujeição e obediência”. Tais estudos também se fundamentam nas articulações das categorias corpo, sexo, gênero e raça que, para além da evidência biológica, propõem a ampliação e fluidez das posições de gênero onde as “concepções múltiplas ou duais, são reconhecidas e funcionam de modo assimétrico, mas não são hierárquicas e “nem sempre se reduzem a dois pares” (GOMES, 2018). Para firmar a continuidade das relações coloniais na contemporaneidade, a autora transita entre representações imagéticas do presente (cartão postal) e do passado (obra do século XVI, de Jan van der Straet, sobre o encontro de Vespúcio com uma indígena sem roupa). O texto discute sobre a representação do corpo da indígena como de outros corpos femininos presentes em diferentes suportes físicos e disponíveis em tecnológicas diversas, como uma manifestação do poder masculino. A autora, baseando-se em Mignollo (2017, p. 4) entende que o estereótipo da garota carioca, assim como das mulheres latino americanas, está relacionado com a própria América Latina que de forma perniciosa foi “inventada, mapeada, apropriada e explorada”.

A segunda temática versa sobre a cultura material histórica de natureza edificada enquanto lugares de memória e como paisagem, assim como bem patrimonial que requer ações preservacionistas. Entendendo a cultura material na sua ampla diversidade de suporte e, considerando igualmente o seu intrínseco aspecto intangível, apresentamos o artigo de Glenda C. Bittencourt Fernandes, denominado Cultura material e arqueologia no contemporâneo: o caso da Capela Pombo em Belém / Pará / Amazônia. O texto apresenta as histórias e materialidades da Capela Pombo, datada do século XVIII e considerada como o primeiro espaço religioso de caráter privado da cidade de Belém. A Capela de propriedade da família Pombo e, atualmente da Universidade Federal do Pará, representa um “lugar de memória” (NORA, 1993) da cidade de Belém, acionada constantemente por memórias individuais e coletivas que de forma ativa e dinâmica se interconectam. E, como tal, a Capela pode ser considerada como um fenômeno que envolve tanto a ordenação de vestígios materiais, como possibilita (re)leituras, a partir da socialização dos envolvidos. A autora (participante indireta da história da Capela) ao confidenciar sua relação pessoal e familiar com o objeto, aciona sua memória (individual) para transitar entre o passado, presente e o futuro da Capela Pombo. Ao mesmo tempo, num processo dialético, o texto busca a memória coletiva, plural para ressignificar sua percepção contemporânea sobre a edificação. Assim, Capela Pombo tem sua história redigida em documentos, mas a partir da sua materialidade outras histórias têm sido construídas ao longo de sua existência, assim como a própria materialidade tem sido transformada. Baseando-se em Costa (2010, p. 12) a autora percebe que “[…] mesmo estando com suas portas fechadas e parecendo invisibilizada ela tem o poder de “suporte de Informação” que estabelece com o sujeito uma “relação sensorial”.

Ainda nessa segunda temática, o artigo intitulado As transformações na paisagem: o mercado municipal da Cidade de Goiás, redigido por Marcelo Iury, Cristiane Loriza Dantas e Fernanda F. Cruvinel de Oliveira, apresenta a dinâmica da paisagem urbana da Cidade de Goiás, com foco no Mercado Municipal, edifício histórico, localizado às margens do Rio Vermelho e tombado em 1987. Segundo os autores, ao longo dos séculos XIX e XX o Mercado e suas adjacências sofreram várias transformações em sua estrutura física advindas de processos naturais, como enchentes do rio Vermelho, intensificadas por ações antrópicas, assim como modificações intencionais referentes à ampliação e / ou reestruturação do edifício. O artigo fundamentado no conceito de paisagem (Boado, 1991) e de lugar de memória (NORA, 1993), considera o mercado e suas adjacências como lugares de referências culturais da sociedade vilaboense do passado e da atualidade. A pesquisa embora tenha sido metodologicamente amparada por diversas fontes documentais, tem na materialidade compreendida pelo contexto do Mercado a base de identificação das transformações da paisagem daquele local.

Já os autores Mary Anne V. Silva e Ruber Paulo A. Rodrigues com o artigo Arte tumular e patrimônio: o cemitério Santana como expressão de cultura material na cidade de Goiânia, discorrem sobre a materialidade do cemitério Santana, localizado em Goiânia, Goiás, inaugurado em 1940 e patrimonializado no ano de 2000. O texto se orienta na perspectiva da cultura material e patrimônio, assim como está amparado nas discussões contemporâneas sobre espaços cemiteriais. A materialidade do cemitério Santana é considerada pelos autores como categoria de amplo potencial investigativo que atua para além da sua fisicalidade; a entende como categoria ativa e conectada a diversos segmentos, nela estão presentes momentos históricos culturais e religiosos específicos da sociedade goiana e nacional, assim como a sua materialidade em sentido amplo é também responsável por agenciar os sujeitos sociais. O texto além de expor a importância do acervo arquitetônico do cemitério, expresso principalmente pela art déco, também traz à discussão as problemáticas relacionadas às limitações das ações preservacionistas e de conservação dessa edificação histórica e cultural.

O artigo A casa do grito: o poder do museu casa e da mediação cultural no processo de elaboração da memória, de autoria de Luciano Araujo Monteiro, também trata de uma edificação histórica, patrimonializada na década de 1970 e situada no Parque da Independência, em São Paulo. A Casa do Grito foi investigada, dentre outros aportes, a partir de sua materialidade o que possibilitou tratá-la, para além de sua relevância histórica, sendo também considerada como um “lugar de memória”, de cultura, de arte e que conserva uma técnica construtiva tradicional. A Casa do Grito foi implementada como espaço museológico e, segundo o autor, os trabalhos de restaurações e escavações arqueológicas permitiram identificar o uso doméstico e, ao mesmo tempo público dessa edificação em seus tempos históricos; é considerada na atualidade como um símbolo nacional, constituído por memórias sociais de caráter coletivo, as quais têm ao longo dos tempos emitido diversas significações ao local.

Para finalizar essa temática, temos o artigo Conjunto arquitetônico do Carmo do Recife: estudo da documentação do arquivo central do IPHAN, redigido por Ricardo de Aguiar Pacheco que apresenta uma reflexão crítica sobre o papel das políticas públicas e seus atrelamentos a segmentos de outra natureza, como o valor histórico e cultural presentes nas materialidades históricas tombadas pelo IPHAN. O conjunto arquitetônico é composto pela Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Convento e Igreja de Nossa Senhora do Carmo do Recife, localizados no centro histórico da capital pernambucana e tombado pelo IPHAN como bem cultural em 1938. O autor ao investigar a documentação arquivada sobre tais edificações constatou que o reconhecimento patrimonial daqueles bens foi justificado a partir dos significados culturais atribuídos a essas edificações. O artigo está embasado em reflexões atualizadas sobre as políticas públicas, assim como, na relevância das memórias sociais (coletivas), construídas ao longo do tempo para legitimar o processo de reconhecimento ou tombamento dos objetos culturais como bens patrimoniais.

Por fim, fechamos o dossiê com artigo referente à terceira temática, intitulado Diagnose tecno-funcional de amostragem lítica datada do início do Holoceno médio no Sítio arqueológico GO-JA-01: características da estrutura de lascamento em presença, redigido por Marcos Paulo M. Ramos e Sibeli A. Viana. O artigo trata de um tema emblemático para a ocupação humana sulamericana em tempos pretéritos, a saber, os registros arqueológicos de período referente ao Holoceno médio (entre cerca de 8.000 anos a 4.000 anos antes do presente). Este horizonte ocupacional está encapsulado entre ocupações mais remotas (Holoceno antigo), detentoras de esquemas producionais de ferramentas líticas bem conhecidos na literatura e ocupação mais recente (Holoceno recente) de grupos ceramistas, igualmente bem investigados pela literatura. A materialidade dos objetos do período intermediário (Holoceno médio) foi tomada pelas pesquisas anteriores à década de 2000 como “simplista”, segundo os autores do artigo isso foi decorrente principalmente da ‘ausência’ de instrumentos morfologicamente bem definidos. A partir da materialidade lítica do sítio arqueológico GO-JA-01, localizado da região sudoeste do Brasil, os autores com base em estudos em ‘antropologia das técnicas’ (BOËDA, 2013), buscaram apreender sutilezas da alteridade humana em tempos pretéritos presentes nos esquemas técnicos de produção de ferramentas daquele sítio. O artigo também apresenta com acuidade as bases teóricas e metodológicas utilizadas, o que colabora com o fortalecimento das pesquisas, tendo em vista serem reduzidas as publicações em língua portuguesa sobre a abordagem empregada.

Referências

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Sibeli A. Viana – Professora efetiva do Programa de Pós-Graduação em História e de Graduação em Arqueologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Líder do Grupo de Pesquisa em Patrimônio Cultural. Coord. do Núcleo de Arqueologia da PUC Goiás / IGPA. Vice-presidente da Comissão Povoamento Americano / UISPP E-mail: sibeli@pucgoias.edu.br


VIANA, Sibeli A.; COSTA, Diogo Menezes. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.12, n.1, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Práticas Culturais e Identitárias: entre o Oriente e o Ocidente (Século V-XV) / Revista Mosaico / 2018

As vivências entre os mundos oriental / ocidental se constituem em um campo inesgotável e complexo de análise. Se por um lado as guerras aceleraram este distanciamento, por outro as aproximações foram várias; incentivadas pelas peregrinações e trocas culturais intensas, que garantiram a flexibilidade identitária e a elaboração de novos significados e parâmetros. O presente dossiê tem a pretensão de contribuir com esta discussão, englobando interpretações diversas, que contemplam a temática proposta. No primeiro artigo, de autoria de Janira Feliciano Pohlmann a autora reflete sobre a ambiguidade das noções de heresia e ortodoxia, no contexto do século IV, em que diferentes correntes cristãs da antiguidade romana pretendiam solidificar sua atuação em todo o Império. A autora procura responder à seguinte questão: Como os hinos compostos por Ambrósio de Milão, ajudaram a edificar a ortodoxia nicena? Na sequência Cynthia Maria Valente apresenta alguns momentos de disputas entre o Império Bizantino e o Reino Visigodo de Toledo, tendo por ponto de partida a expansão bélica bizantina no norte da África. Estas relações de antagonismo e disputas acirradas marcariam a história da região. O texto de Roseli Martins Tristão Maciel busca traçar um panorama acerca das diversas visões sobre a Lepra da antiguidade à Idade Média, com destaque para a construção teórica acerca da doença, presente em escritos de origem judaica e cristã.

Com destaque às aproximações identitárias entre oriente e ocidente, Elaine Cristina Senko Leme e Mariana Bonat Trevisan, discutem as concepções relativas à sexualidade entre estes espaços distintos. Para tanto, fazem um paralelo entre a obra do muçulmano Muhammad al-Nafzawi, Os Campos Perfumados, e o Leal Conselheiro, de autoria do rei português D. Duarte. Sobre a herança árabe na medicina e cozinha medieval aragonesa, Renato Toledo Amatuzzi discute as influências de alguns alimentos de origem árabe na dietética real, com destaque para o açúcar, frutas cítricas, as especiarias e o arroz, por meio das receitas culinárias e prescrições médicas. Ainda no âmbito da Baixa Idade Média Ibérica Hugo Rincon Azevedo, resgata as crônicas de Fernão Lopes e Gomes Zurara. Nelas apresenta evocações do poder régio por meio de cerimônias simbólicas de exaltação, consideradas fundamentais nas estratégias de legitimação da Casa de Avis no século XV. Usando método comparativo Célia Daniele Moreira de Souza, resgata obras consideradas como espelho de príncipes, que tiveram por função o aprimoramento da arte de governar. Escolhendo duas fontes de estilos diferentes, estas contribuem para aproximações discursivas possíveis, entre oriente e ocidente.

Fechando o dossiê o artigo de Juliana de Mello Moraes e Maria Cláudia de Faveri Luz discute o papel das denunciantes, motivações e conteúdo das acusações. Mapeando seu perfil sócio- ocupacional, bem como as relações de conflito que as envolviam, destacam também aquelas suscitadas / reforçadas pela presença do inquisidor.

Adriana Mocelim – Doutora e Mestre e em História pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em História pela UFPR. Professora na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: drikamocelim@yahoo.com.br

Renata Cristina de Sousa Nascimento – Doutora em História pela UFPR. Docente efetiva na Universidade Federal de Goiás, Universidade Estadual de Goiás e na Pontifícia Universidade Católica (PUC- Goiás). E-mail: renatacristinanasc@gmail.com


MOCELIM, Adriana; NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.11, n.2, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Crenças e Representações Religiosas na Cultura Contemporânea / Revista Mosaico / 2018

Há espaço para crenças religiosas no mundo contemporâneo? Pergunta evidentemente retórica, pois basta abrir os olhos e direcionar os ouvidos para ver e ouvir a multiplicidade de crenças religiosas, presentes em templos, procissões, rituais, programas radiofônicos e televisivos, cursos de graduação e pós-graduação etc., que estão à nossa volta e / ou fazem parte da nossa vida. Contudo, essa efervescência religiosa não era o esperado pelos grandes nomes das ciências sociais do século XIX. Para Marx, a religião iria simplesmente desaparecer na sociedade comunista, juntamente com todas as outras formas de alienação humana. Augusto Comte e, em menor escala Émile Durkheim, acreditavam que a religião iria se racionalizar, tornando-se explícito o fato de ser meramente uma construção humana. Max Weber nunca afirmou que a religião iria desaparecer, mas com a sua famosa análise sobre o desencantamento do mundo, depreende-se que a fé religiosa se refugiaria nos recônditos da vida privada.

A despeito dessas análises dos fundadores das ciências sociais, o contexto do início do século XXI demonstra claramente que as crenças religiosas não desapareceram nem se tornaram mais racionalizadas. Pelo contrário, o que se percebe é o vigor de práticas religiosas seculares que se perpetuam e desenvolvem às margens das religiões institucionalizadas. O poder, o dinheiro e a organização hierárquica das grandes religiões não conseguiram sufocar a espontaneidade das diversas formas de religiosidade. O leque é amplo, e as práticas e os conteúdos englobam matizes populares e alternativas, bem como conservadoras e tradicionais ‘modernizadas’.

Em um mundo marcado por tecnologias inovadoras, por um domínio avassalador da economia de mercado e por uma sociedade altamente urbanizada e individualizada, os indivíduos podem encontrar espaços de relativa autonomia para cultuar seus santos devocionais, participar de rituais antigos, organizar procissões e manter suas crenças ancestrais. A racionalidade científica não se mostrou incompatível com a fé religiosa, pois conhecer os fundamentos básicos da física, da biologia, da astronomia e das ciências humanas não resulta, necessariamente, na ampliação do ateísmo. Ainda há espaço para a crença no milagre, para os rituais simbólicos de preces coletivas, para as práticas ancestrais. Contudo, nesse ‘caldo’ há também espaço para o mercado da fé, da remodelação hierárquico-institucional de rituais, de ‘domesticação’ do que poderia se tornar expressão autônoma de fé e religiosidade.

O Brasil, nesse contexto, constitui um grande laboratório para o estudo da religiosidade, especificamente popular. Apesar de ser um país de referência do vigor das religiões institucionalizadas, como o catolicismo, o protestantismo e o espiritismo kadercista, pululam várias manifestações religiosas populares. Religiosidade popular é aquela que não é plenamente institucionalizada, que se localiza nas margens, que se mantém pela tradição oral, que não obedece plenamente a hierarquia sacerdotal. Portanto, há numerosos exemplos de festas, rituais, movimentos devocionais e espiritualidades que emergiram dentro, nas fronteiras ou nas margens da liturgia oficial dos cultos religiosos institucionalmente dominantes. Assim, tanto o catolicismo romano, como o protestantismo histórico, no contato com as crenças e práticas religiosas de origem africanas ou ameríndias, sofreram alterações ou adaptações litúrgicas acarretadas pela especificidade do meio cultural brasileiro.

Marx, Weber, Comte e Durkheim, apesar da indiscutível genialidade analítica, como sempre subestimaram o vigor das práticas e das representações populares. O mundo contemporâneo não se tornou inteiramente secular e racionalizado. Assim, pode-se construir e observar espaços para a multiplicidade, para o colorido, para a sonoridade, para as ambiguidades das crenças populares. A existência desse dossiê é uma tentativa de mapear essa complexa existência e efervescência de crenças e expressões religiosas no Brasil, em fragmentos de sua diversidade.

Vários foram os textos submetidos à Revista Mosaico, respondendo à Chamada deste Dossiê Temático. Autoras e autores de diversos lugares e experiências compartilharam parte de seus resultados de pesquisa. Pareceristas foram convidados(as) a participar deste trabalho, fizeram suas avaliações, comentários e sugestões. Nossa gratidão a cada qual por tudo isto!

Os artigos, aqui apresentados, dão uma resposta à pergunta colocada no início. Haverão outras, mas que não chegaram a nós. Aqui, trata-se de perspectivas de experiências e expressões do catolicismo popular e de algumas oriundas do mundo evangélico e neoesotérico. Acolhemos uma contribuição que trata de representações de gênero na cultura musical, que, afinal, também reflete concepções religiosas, às vezes muito distantes daquilo que almejamos para um mundo mais justo em suas relações nas mais diversas esferas.

Josimar Faria Duarte, em Festa de Devoção a Santa Rita de Cássia, em Viçosa / MG, analisa memórias e identidades regionais por meio da religiosidade popular e eclesial, que reúne grande parte da população da cidade e suas autoridades civis e religiosas. A festa e seus rituais permitiram observar as relações sociais em termos de agregação e de memória coletiva, fazendo parte da construção de uma identidade cultural popular coletiva.

Saindo de Minas para Tocantins, antigo norte goiano, Weberson Ferreira Dias, Maria de Fátima Oliveira apresentam parte da historiografia regional das comemorações religiosas, em artigo intitulado Revisitando a Historiografia sobre Festas Religiosas na Região do antigo Norte de Goiás. Tratam especificamente da Romaria do Senhor do Bonfim, em Natividade (TO), que permeia cultura e cotidiano de moradores(as), dando sustentação social para superação de dificuldades cotidianas. Desta forma, experiência religiosa fornece subsídios para análise histórica das relações socioculturais.

Seguindo a viagem, com Márcio Douglas de Carvalho e Silva chegamos ao Piauí, em O Sagrado e o Profano na Dança de São Gonçalo: etnografia de um ritual de pagamento de promessa. O ambiente rural, no município de Campo Maior, apresenta-se por meio da dança e dos cânticos em forma de ritual, no qual se fez possível analisar elementos sagrados e profanos como parte deste ato religioso, bem como compreender melhor as agruras sofridas pelos campesinos.

Voltando das cantigas e danças nordestinas, retornamos a Goiás, numa perspectiva histórica sobre A Congregação do Santíssimo Redentor em Goiás (1894-1925), de Andréia Márcia de Castro Galvão. Apresenta e analisa a vinda dos Redentoristas a Goiás, no final do século XIX, como estratégia para enfrentar mudanças legislativas e para controlar as práticas leigas que mesclavam expressões religiosas medievais e mágicas com elementos portugueses, africanos e indígenas. O fortalecimento do poder clerical e a sacralização dos locais de cultos católicos faziam parte do projeto ultramontano, que investia em missões e comunicação na propagação da sua fé, diminuindo o poder das irmandades leigas.

Desta dinâmica faz parte a representação simbólica de Deus-Pai, na Festa ao Divino Pai Eterno: representações do patriarcalismo em Panamá (GO), de Eloane Aparecida Rodrigues Carvalho. Preceitos católicos doutrinais entrelaçam-se com hábitos cotidianos de quem participa desta festa religiosa por meio de novenas, confissões, procissões, batismos e missas. Compreender indícios e resquícios do patriarcalismo presente nos elementos simbólicos e ritualísticos é o objetivo do artigo.

Entre catolicismo tradicional e popular, desponta a missão e a estratégia da Igreja Assembléia de Deus no contexto quilombola no norte de Goiás, em Minaçu, apresentadas por Lusinaide Cordeiro de Sales Lima Marques, em seu artigo A atuação da Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Minaçu, no Quilombo do Riachão. Tecendo elementos históricos da comunidade e das instituições religiosas, a adesão à ‘nova fé’ pentecostal foi vista em perspectiva identitária como processo de tradução cultural. Destaca-se expressões e percepções de pertencimento da comunidade a essa outra experiência de fé.

Adentrando a capital brasileira, no centro de Goiás, nova dinâmica de crença e religiosidade é tematizada por Pepita de Souza Afiune, em seu artigo Do Oriente ao Ocidente: a Sociedade Teosófica Brasileira e o Neoesoterismo em Brasília. Do contexto histórico do surgimento do Orientalismo e da Nova Era, ela adentra o século XX com o estudo da Sociedade Teosófica Brasileira e justifica sua sede em Brasília por causa das várias crenças de caráter utópico e mí(s)tico atribuídas à fundação da nova capital brasileira. Entrelaçando mudanças culturais e socioeconômicas e profecia do pé. Dom Bosco, apresenta novas religiosidades que ali se fixam por causa da crença de terem encontrado a terra prometida.

Encerramos esta viagem, fechamos o dossiê com artigo que, mesmo não tratando diretamente de Crenças e Representações Religiosas, apresenta algo do que está no âmago de muitas práticas aqui apresentadas: culturas patriarcais que, mesmo sendo reelaboradas, não conseguiram superar relações assimétricas de poder. As autoras Alexandra Ferreira Martins Ribeiro, Rebeca Oliveira Araújo e Beatriz Polidori Zechlinski tratam de ROSA: as representações de gênero na composição de Pixinguina. Composta na década de 1920, a letra da música contém representações de gênero que referem práticas culturais em relação ao amor, ao casamento e à ordem social e apresentam Rosa como a mulher ideal em pureza, calma, maternidade, beleza e rainha do lar, boa dona de casa. Também isso é bastante característico das expressões religiosas apresentadas neste dossiê.

Religião como sistema de crenças e valores e religiosidades como expressão do mesmo são contextualmente experimentadas e vivenciadas. As percepções de que as novas manifestações de religiosidades desafiam e questionam antigas e fixas instituições religiosas precisam ser aprofundadas com uma crítica que ultrapassa fronteiras temporais e que, dizendo respeito a culturas, também se ocupa com culturas religiosas. Estas estão em todos os lugares e espaços de conhecimento, e podem ser transformadas, pois não são estáticas ou naturais. Haverá de se ir além da crítica aos clássicos cientistas sociais. Haverá de se transpor as justificativas legitimadoras e muitas vezes ingênuas para o surgimento de novas religiosidades e suas práticas. Haverá de se buscar perceber se e em que proporções estas mesmas contribuem para superação de injustiças, violências, conservadorismos e desrespeitos em busca de construirmos um mundo heterotópico, onde diferenças não são desqualificadas e assimetrias são transformadas em justas porções de uma caminhada de construção de culturas de paz que brota da justiça.

Neste sentido, de partilha e desafio, de inconformismo e alento, de perplexidades e completudes, desejamos a você, que agora se ocupa conosco, uma leitura proveitosa, de reflexão e prospecção!

Ivoni Richter Reimer – Pós- doutora em Ciências Humanas (UFSC). Doutora em Filosofia / Teologia (Universität Kassel). Docente na PUC Goiás. E-mail: ivonirr@gmail.com

Eliézer Cardoso De Oliveira – Pós-doutor pelo Programa de Ciências da Religião da PUC Goiás. Doutor em Sociologia (UnB). Professor no curso de História e no Mestrado em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado da UEG em Anápolis (GO). Bolsista do Programa de Incentivo a Pesquisa da UEG. E-mail: ezi@uol.com.br


REIMER, Ivoni Richter; OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.11, n.1, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Gênero e Negritude / Revista Mosaico / 2017

Nesse dossiê estão presente análises que refletem as experiências históricas provenientes dos processos de escravização dos africanos e as formas cotidianas como se desenrolaram seus modos de sociabilidades que se constituíram por meio dos modos de ser e fazer de diferentes grupos sociais, cruzados e mediados pelos gênero, negritudes e / ou processos de racialização.

Desse modo, o texto assinado por Poliene Soares dos Santos Bicalho, Maria Cristina Campos Ribeiro A História e a identidade dos africanos e seus descendentes na Terra Brasilis: da escravidão ao movimento negro, rediscute o processo histórico de construção da identidade do negro no Brasil desde a sua chegada como escravo até a atualidade, perpassando diferentes momentos e perspectivas; bem como observa e analisa as bases do racismo e como a academia / educação abordou tais questões.

Perseguindo a compreensão do caminho construído pelos descendentes dos africanos aqui no Brasil, o artigo “Filhos do cativeiro – crianças ingênuas em Villa Bella de Morrinhos (Goiás, 1872-1888)”, de Pedro Luiz do Nascimento, demonstra a permanência da família escrava na região sul de Goiás bem como a participação de mulheres cativas no desenvolvimento econômico regional.

A participação das mulheres negras no processo formativo econômico das cidades brasileiras é marca de exemplaridade do papel exercido por elas e é demonstrado na escrita do artigo de Martha Maria Brito Nogueira, intitulado “Empoderamento das mulheres negras: cultura, tradição e protagonismo de Dona Dió do acarajé na ‘lavagem do beco’”, o artigo inspirado na perspectiva da história cultural contribui para desconstruir as ideologias racistas e sexistas que invisibilizam a presença das mulheres negras nos diversos espaços da sociedade, em especial no campo cultural, procurando mostrar a suas ações para promover e estabelecer novos posicionamentos. Para tanto, analisa a trajetória de Dona Dió do Acarajé, mulher negra, de descendência quilombola que sobressaiu em várias manifestações populares na cidade de Vitória da Conquista nas últimas décadas do século XX, tornando-se símbolo da cultura negra.

As reflexões trazidas no artigo acima colocam em evidência a discussão presente no texto “Educação em Direitos Humanos: história, gênero e etnia”, de Maria Cláudia Machado Barros, propõe estabelecer uma consciência histórica para a abordagem de promoção dos valores e relações que promovam o reconhecimento do outro, na promoção da igualdade de direitos, associados ao reconhecimento da diversidade.

Os artigos aqui apresentados são contribuições que levantam questões epistemológicas e políticas; elaboram maneiras e perspectiva de ampliação dos estudos da história social e cultural das redes em que os sujeitos estão envolvidos.


MOREIRA, Núbia Regina. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.10, n.2, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Sobre Coisas e Trajetórias / Revista Mosaico / 2017

O dossiê Sobre Coisas e Trajetórias tem como ambição trazer ao centro da cena aquilo que tomamos como as miudezas de nossa vida: o mundo dos objetos, enquanto constituintes dos tramados do nosso cotidiano e, portanto, assumidos aqui como coisas de importância, mesmo na possível e, a rigor, falsa banalidade de seus usos. Resultado da história humana em suas diferentes ordens de relações, das amigáveis às conflituosas, os objetos são expressivos, mas, para além disso, ao ganharem corpo e comporem o mundo da vida ajudam a acionar sentidos e modos de conduta. Uma dialética se faz operar na relação com essas coisas, enquanto modos de objetivação, pelos agentes que lhe conferem vida e significados cambiáveis. Tais figuras-síntese funcionam como uma espécie de atalho que permite que uma história se presentifique e contribua, como elo de continuidade, a que ela se perpetue. No entanto, seria simplista tomar os objetos enquanto este elemento de memória apenas pelo seu potencial de rastro e arquivo. A partir do manejo das coisas no mundo prático, atualizamos, mudamos, acrescentamos significados aos objetos, fazendo com que seu potencial de síntese se estabeleça não apenas no momento de sua produção (da produção do objeto), mas ao longo da dinâmica de seus usos, a despeito da possível fixidez de sua forma. Assim, à figura, somos obrigados a correlacionar a figuração dos significados dos objetos, enquanto estrutura que remete ao processo incessante de articulação de significados (no plural) que são conformados na prática, isto é, na própria relação com as coisas, não carecendo, portanto, de um momento reflexivo de atribuição de significados a elas. A dialética se dá, portanto, no processo hermenêutico de significação das coisas através e a partir de seu manejo em diferentes contextos, e não apenas quando tomamos as coisas como objeto para racionalizações. É, pois, na produção, no uso e nas trocas que os objetos ganham vida, e isso diz respeito às diferentes épocas e lugares.

A consolidação do capitalismo e sua expansão planetária fez com que os objetos se tornassem alvo de preconceito enquanto coisas “boas para pensar”, sendo relegados quase exclusivamente à condição de mercadorias fetichizadas, produtos sem alma da desalmada produção capitalista e que ainda seriam alçados à condição de gatilhos à alienação. Ora, mesmo tal temática nos evoca a importância de problematizar as coisas, em seu caráter de mercadoria, no lugar que assumem enquanto objeto de desejo, expressão de estilos de vida, depositários da felicidade humana, moeda nas negociações de significados, fetiche. O conjunto de artigos que compõe este dossiê expõem inelutavelmente a centralidade do debate das coisas como mercadorias, mas, ao mesmo tempo, articulam esta dimensão a uma série de outras que remetem aos complexos processos sócio- históricos de atribuição de significados a elas, isto é, às coisas enquanto produtos simbólicos. Ciência, magia / religião, higiene, beleza, modos de comercialização e publicização das coisas, modernização são acionados a fim de evidenciar a importância sócio-histórica das coisas e, para tanto, diferentes objetos são tomados: desde remédio, cerveja, absorvente feminino, roupa (na forma da moda e da indumentária religiosa) ao próprio corpo tornado objeto. O mote por excelência é posto na circulação das coisas e de seus significados, enfim, na trajetória dos objetos em sua articulação com as trajetórias humanas ao longo da história.

O artigo “O que não tem remédio midiatizado está: beleza e poder na publicidade de medicamentos do início do século XX” traz interessante discussão a respeito da publicidade de medicamentos, pensada para além de mera estratégia de divulgação de certa ordem de produtos. O autor, Moacir Carvalho, busca compreender o modo como tais peças publicitárias fazem dialogar o científico e o mágico-religioso no contexto brasileiro de início do XX, na medida em que o profissional médico necessitava angariar espaço ocupado ainda no período pelos diferentes profissionais populares de cura, a exemplo de curandeiros, que detinham o reconhecimento enquanto prática de cura legítima. Assim, ciência e magia se interpenetram, é o argumento do autor, na constituição de um mercado consumidor de medicamentos que teriam caráter quase mágico pelo alívio dos sofrimentos que conseguiam proporcionar. É por esta seara que o autor envereda ao fazer avançar a leitura na percepção de que se trata de um novo modo de vida em construção, ligado ao moderno, ao técnico e ao civilizado, e a que se liga o consumo do produto em questão, cuja função, pois, ultrapassa a possibilidade de cura. Consumir medicamentos em lugar de ervas serviria como indicador de um novo modo de vida, o civilizado, que se deseja construir, como projeto político nacional, em contraposição ao chamado mundo atrasado do campo e das curas rituais. No entanto, ao fazer isso, criam-se, via publicidade, novas ritualizações que fazem do medicamento um elemento simbólico a ser narrativamente articulado nas peças publicitárias através dos textos e das imagens. A base do argumento sustentado pelo autor converge para a polêmica afirmação da agência dos objetos, no caso do medicamento, a um só turno resultado de sínteses complexas e conformador de condutas.

Thiago Rodrigues, no artigo “Identidades Sociais em Dias de Modess”, por sua vez, também busca compreender a relação entre um bem de consumo e modernização do Brasil a partir da análise de material publicitário. Para tanto, toma como ponto de partida o ingresso dos absorventes higiênicos no mercado brasileiro e o desenvolvimento de seu uso a partir das transformações nacionais, na direção de uma desejada modernização, e das mudanças no modo de vida feminino. Assim, articulam-se três planos de interpretação acionados simultaneamente e sintetizados nas mensagens publicitárias de Modess na revista carioca Querida, dirigida ao público feminino de classe média, e tomadas pelo autor como eixo de sua problematização. Assim, à imagem de Modess referem-se a imagem desejada de nação e sua inserção no mercado capitalista das coisas modernas, bem como a autoimagem dessas mulheres, potenciais consumidoras, cujo modo de vida estava se transformando e ganhava expressão em comportamentos, anseios e aparências.

O artigo “Trajetória e sentidos da cerveja: das origens europeias à formação do Brasil moderno” traz à baila a questão de como uma bebida ancorada em forte tradição na Europa se torna símbolo nacional no Brasil. O autor, Matheus Lavinscky, segue o percurso histórico do produto para, a partir de seu processo de comercialização e consumo, compreender o modo de inserção da bebida no Brasil e sua rápida associação a uma concepção de moderno e modernas práticas de lazer vinculadas em especial ao segmento popular. Assim, assume como tese e conclusão que a cerveja não institui novos comportamentos e sim, em termos weberianos, se afina àquilo que são as aberturas do presente, potencializando-as e sendo potencializada por elas, mesmo no modo como o consumo de cerveja sobrepuja a posição da cachaça como referência de gosto, algo compreensível apenas à luz da interpretação das relações estabelecidas entre diferentes povos na concorrência pela conformação de um mercado consumidor de cerveja, por um lado, mas igualmente pelo percurso vivido pelo Brasil neste concerto internacional.

Tomando o contexto de século XIX, “Caminhos do objeto: a afirmação do leilão e os primeiros capítulos de uma história do comércio no Brasil oitocentista” busca problematizar e descrever o desenvolvimento de um dos modos de circulação / comercialização de mercadorias no Brasil do período: o leilão. Não apenas isso, a autora Carolina Fernandes aponta que os leilões se apresentaram como mecanismo recorrente à efetivação da circulação das mercadorias no Brasil, em especial aquelas advindas de importação, o que levou a que determinados modelos de organização e exercício da atividade ganhassem relevo por estas terras. Assim, não havia um único modelo, mas o que imperou no Brasil se apresenta como expressão e consequência das relações especialmente estabelecidas com a Inglaterra no quesito trocas comerciais. E, neste sentido, diferentes objetos eram leiloados, desde utensílios e alimentos até escravos, entendidos como objetos. A disposição das “coisas”, do leiloeiro e dos potenciais compradores foram analisados pela autora a partir de diferentes ordens de gravuras feitas sobre o Brasil e outros países, como Espanha. Assim, Carolina Fernandes apresenta um interessante quadro da atividade de leilões no Brasil oitocentista em seus produtos comercializados, gravuras, anúncios, bem como no modo (predominante inglês) de exercício da atividade.

Por sua vez, ”Beleza Pura: uma abordagem histórica e socioantropológica das representações do corpo e beleza no Brasil” parte da concepção de que o corpo foi tornado objeto e capital no percurso das interações, o que potencializou não apenas o trabalho (controle) sobre o corpo enquanto decorrência do processo civilizador ocidental, como a mercantilização de produtos e serviços ligados a esse controle / trabalho em contexto capitalista. Assim se justificaria a valorização da aparência física como um gosto sócio-historicamente construído, mas naturalizado, a fazer com que esses consumidores entendam tal trabalho como necessidade e prazer. Os autores Silvio Benevides e Vanessa Rodrigues, contudo, enfatizam as dinâmicas de poder envolvidas em tal processo, e não apenas suas variações históricas na definição do belo / feio e do corpo. Isto é feito ao pensar e discutir o corpo negro e a perspectiva decolonial, uma vez que, se retoma processos históricos, o faz à luz da tentativa de responder a uma questão do hoje que envolve jovens de maioria negra.

Já o texto “Vestir-se à Boa Morte: apontamentos sobre o vestuário em irmandades negras religiosas na região recôncava da Bahia” traz aquilo que cobre o corpo como mote de discussão. Trata-se da indumentária religiosa usada pela Irmandade da Boa Morte em Cachoeira e São Gonçalo dos Campos, ambas cidades da Bahia. Wilson Penteado Júnior e Vanhise Ribeiro tomam a indumentária enquanto expressão de significados, no caso sagrados e históricos, associados aos modos de vida de suas usuárias e às próprias transformações no contexto religioso-social. Isto é, apesar de se tratar de indumentária entendida como tradicional, a roupa da irmandade da Boa Morte permanece na medida em atualiza seus significados, quando não seus modos de cuidado, seus apetrechos e mesmo seus usos. O seu forte cariz expressivo ganha plena evidência na assunção de se tratar da roupa de Nossa Senhora, o que de acordo com os autores pode ter sido aspecto acionado apenas recentemente na defesa da indumentária contra ataques externos, bem como em sua relação com as Negras de Partido Alto. Mais do que isso, a dificuldade do cuidado, que poderia ser entendido como momento de sacrifício, em forte associação com o sofrimento de Cristo, de sua mãe Maria e dos negros escravizados trazidos ao Brasil, transmuta-se na emoção da redenção do sofrimento no uso de roupa de pompa em momento solene numa inversão simbólica que faz do escravo senhor. No caso, que faz da escrava uma senhora que bravamente resiste às inúmeras adversidades.

Por fim, em “As mãos que fazem o trançado – identidade e memória na produção de moda em Salvador-BA na virada para os anos 2000” Salete Nery toma não a roupa religiosa, e sim aquelas produções vinculadas à dinâmica capitalista de conformação dos objetos ligados à composição da aparência pessoal: a moda. O objetivo é, na contramão da concepção da singularidade do fazer criativo, buscar compreender como o tema da identidade (baiana) foi se tornando e foi tornado elemento de articulação de diferentes produções de moda na Bahia na passagem para o XXI como resultado da atuação de diversos agentes em contexto que, inclusive internacionalmente, parecia favorável à valorização das expressões locais-tradicionais-afro, mesmo em suas reelaborações contemporâneas na forma de produtos voltados ao mercado.

Assim, os diversos textos que conformam o dossiê apresentam diferentes facetas a partir das quais o mundo das coisas / as coisas no mundo podem ser tomadas como objeto de rica problematização.

Maria Salete Nery – UFRB

Organizadora do dossiê Sobre Coisas e Trajetórias


NERY, Maria Salete. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.10, n.1, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Coleções, museus e patrimônios das culturas negras / Revista Mosaico / 2016

O título desta apresentação poderia ser As Cores do Silêncio e os Gostos do Silenciamento, empreendendo duas sinestesias para insinuar temáticas como a questão racial, os silêncios da história, a poética e a política da memória. Debate que força passagem quando pensamos nas heranças africanas diluídas no Atlântico e manifestas em coleções, museus e patrimônios ou, em outros termos, como essa gama de expressões integrou um processo de produção de sentidos silenciados (ORLANDI, 2007).

São esses sentidos que atravessam o presente dossiê da Revista Mosaico. Os bens culturais de matriz africana foram e são constantemente silenciados em algumas práticas que legitimam ações sobre qual leitura do passado e o monopólio do direito de falar sobre o passado. São colocados em silêncio constitutivo (quando uma prática ou palavra silencia outra) e como silêncio da censura (o que é proibido de ser dito ou expresso) (ORLANDI, 2007). Situação que ganha potência quando analisada nas tramas em torno do campo do patrimônio – compreendido como um campo de poder, que prioriza determinados repertórios culturais e cujo conflito é o motor – e o modo como essas tensões reverberam na escrita da História.

A questão é que são esses mesmos mecanismos seletivos que iluminam percursos, nomes e legados, os utilizados para a invenção do anonimato, a fabricação da desimportância, a instituição de vazios e silêncios. Por isso, investigar presenças consiste em um estudo das ausências, fruto de uma engenhosa operação. Dessa forma, os silêncios podem sinalizar “não sua inexistência de fato, mas sua presença como parte do ‘inenarrável’, estando situadas, por constrições várias, ‘fora do acontecimento’” (FANINI, 2009, p. 16). Interditos que são reconhecidos como rastros, indícios que possibilitarão ler os testemunhos a contrapelo, problematizando as intenções de quem os construiu.

Portanto, o intuito do dossiê foi reunir artigos que problematizassem questões ligadas às coleções, aos museus e aos patrimônios das culturas africanas e de sua diáspora visando refletir sobre os usos plurais das coleções, as políticas da memória e as diferentes escritas da História, das Ciências Sociais e da Museologia, priorizando trabalhos teóricos e estudos de caso que abordassem as culturas negras em suas diferentes dimensões. Pretendeu, assim, acolher reflexões sobre colecionismo, cultura material, trajetórias de vida, saberes, discursos e relações de poder com enfoque para as expressões culturais afro-brasileiras, bem como para as políticas de patrimonialização daí resultantes evitando naturalizar ausências, subrepresentações e exotismos (SANTOS, 2005).

Do mesmo modo, o intuito foi colocar em circulação experiências diluídas ou tidas como insignificantes no processo de elaboração da memória coletiva, a partir de uma política de memória em que se formariam vozes em dissonância ou vozes em falsete na escrita da Nação. Esse rememorar cria espaços excêntricos que permite imaginar alternativas de ser e de saber: “da mesma forma, aponta para a abertura de um lugar crítico que lhes permite interrogar, redefinir e afirmar uma memória que se instaura a partir da tensão entre a pluralidade tonal e a singularidade das vivências” (BEZERRA, 2007, p. 37).

No caso das expressões culturais da diáspora negra no Brasil isso ganha ressonância quando percebemos “a repetição de lugares comuns, conceitos e preconceitos, reduzindo e desqualificando a força e a presença de matrizes africanas na construção de nossas formas de vida, trabalho sensibilidades etc.”, cujas bases “sofrem deslocamentos e desviam pontos de confluência transculturais”, perdendo de vista “negociações, transformações, incorporações e inovações nas sociabilidades de tempos e espaços brasileiros” (CUNHA, 2006, p. 1-2).

Se reconhecermos os silêncios em torno da Coleção de Magia Negra, as tensões que envolveram o tombamento do Terreiro da Casa Branca, em Salvador (BA) (VELHO, 2006), e que é recente entre nós, especialmente a partir do registro do patrimônio intangível, a salvaguarda das expressões culturais de matriz africana e de outros povos constitutivos de nossa identidade, é inegável a importância que o silenciamento enquanto categoria analítica assume no campo das políticas patrimoniais brasileiras. Talvez, por isso, constitua uma das questões centrais que atravessam os artigos deste dossiê temático.

Essa problemática é inaugurada no artigo “Acepção de ruídos: (re)produção e arquivamento da Coleção Perseverança do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas”, de autoria de Débora Rejane Viana Sobral. Tendo como objeto as tramas acionadas pelo catálogo ilustrado da coleção constituída a partir das perseguições e repressões às casas de Xangô em Alagoas no início do século XX, o texto analisa a construção dos discursos sobre os artefatos de origem afro-brasileira, as lacunas e os limites na fabricação da coleção e o modo como a instituição detentora do acervo manipula e se legitima através do uso dessa informação. Desse modo, o silenciamento não foi imposto apenas por ocasião do “Quebra de 1912” que obrigou os terreiros a exercerem um “candomblé em silêncio” (RAFAEL, 2004), mas assume outras dinâmicas nos processos de musealização e tratamento da informação em torno desses artefatos.

O artigo “Mulheres negras e a discussão de gênero na construção das narrativas nos museus de Salvador”, de Joana Angélica Flores Silva, apresenta significativas provocações. Visando perceber a representação das mulheres negras nos museus históricos da primeira capital do país, problematiza como em determinadas exposições de longa duração é reincidente uma imagem colonizadora da mulher branca sobre a imagem colonizada da mulher negra. Dessa forma, além de refletir sobre outras narrativas que evidenciem de forma não discriminatória a participação de distintos sujeitos nos espaços de memória, também contribui para que possamos percorrer os silenciamentos que transformam as mulheres negras em silêncios dos “silêncios da história”, para dialogarmos com a expressão de Michelle Perrot (2005).

Ainda com relação às práticas de poder instituídas na intersecção entre raça e campo de produção simbólico tendo como eixo os museus e suas reverberações, o texto “A transitoriedade de um objeto: os balangandãs dos séculos XVIII e XIX e suas ressignificações na contemporaneidade”, de Sura Souza Carmo, compara a joalheria afro-brasileira que integra a coleção do Museu Carlos Costa Pinto, em Salvador-BA, e as peças que são atualmente comercializadas na capital baiana. Entre interessantes questionamentos destaca a construção da exoticidade em um museu elitista da cidade de Salvador e o silenciamento sobre protagonismo da mulher negra na Bahia escravocrata e as invenções da liberdade. Nesse aspecto, ao silenciar a violência, a exposição museológica empreenderia outra violência, reforçando determinadas imagens etnocêntricas sobre o lugar da mulher negra dos séculos XIX e XX e, assim, contribuindo para determinados protocolos de leitura estigmatizadores no século XXI.

Situações que também podem ser evidenciadas na arte pública de matriz africana. Em “O silêncio dos atabaques? Arte pública de matriz africana e memória topográfica em perspectiva”, artigo de minha autoria, utilizo as categorias memória topográfica e arte pública para analisar as estratégias de silenciamento como uma forma de poder e de produção de significados no campo de produção simbólico. Citando diferentes exemplos, demonstro como a destruição da arte pública relacionada a essas expressões culturais de matriz africana, especialmente às religiões afro, se torna metáfora e metonímia do racismo e da intolerância religiosa na “batalha das memórias” que fabrica e imortaliza saberes, expressões, celebrações e lugares significativos para a memória nacional e local.

O artigo “A presença das culturas negras na arte moderna em Salvador e o discurso de baianidade”, de Neila Dourado Gonçalves Maciel também articula arte e expressões de matriz africana. Tendo como recorte o modernismo baiano empreendido por Carybé entre 1950 e 1970 problematiza a invenção da “baianidade”, juntamente com a literatura, música e outras linguagens discursivas. Nesse aspecto, demonstra as contradições na arte que torna visível determinadas memórias urbanas, especialmente relacionadas ao cotidiano de uma parcela da população negra, e, ao mesmo tempo, contribui para a invisibilidade dos sujeitos tornados objetos de discurso. Surge aquilo que a autora compreende ser uma estratégia visando forjar uma “frequência harmônica para narrativas dissonantes”.

Essas tensões também são explicitadas em outras expressões artísticas, a exemplo da literatura. O artigo “Literatura machadiana: um dos patrimônios culturais do Brasil e elemento de memória da população negra oitocentista”, de Murilo Chaves Vilarinho, explicita na obra de Machado de Assis alguns aspectos do quotidiano da população negra do oitocentos no Rio de Janeiro, destacando os impactos da escravidão e da Abolição da Escravatura por meio do olhar do escritor. Compreende, assim, que a literatura possibilita recompor os rastros apagados e relegados ao esquecimento, demonstrando a expressão estética como representação do real e como significativo documento que contribui para repensarmos a escrita da História.

Estratégia que também é analisada no texto “Cantilenas de Goiás: memória, gênero e patrimônios das culturas negras na obra de Regina Lacerda”, de Paulo Brito do Prado. Ao articular as adoções temáticas da autora goiana e as estratégias de mediação no espaço literário, analisa as táticas em prol de registrar, em seu projeto criador, determinadas memórias de mulheres negras e fragmentos das culturas afro-brasileiras. O artigo destaca na obra de Regina Lacerda, a despeito de seu lugar de fala e de certa visão etnocêntrica, fortes permanências das culturas indígena e afro-brasileira na fabricação da Cidade de Goiás como “berço da cultura goiana”. Além disso, sublinha como sua literatura e seus estudos no campo do folclore reverberam (como uma cantilena) o lugar das mulheres e dos legados africanos, personagens e práticas que preenchem o cotidiano de Goiás e que, na maioria das vezes, foram e são silenciados no concerto de vozes dissonantes que compõem a sinfonia da História.

O texto escolhido para encerrar o dossiê, “Capoeira e identidade negra na pós-modernidade: algumas considerações”, de Márcio Nunes de Abreu, parte de uma recente provocação feita pelo sociólogo Muniz Sodré ao admitir o capoeirista Mestre Camisa, mais “negro” do que muitos dos negros que conhecia. O trabalho discute os limites da subjetivação e da identificação cultural entre identidades dominantes e subalternas, indagando, a partir dos referenciais de Stuart Hall, os paradoxos da identidade cultural na pós-modernidade. Questões que atravessam os artigos anteriores e que reverberam o fortalecimento de identidades locais e a criação de novas identidades, com uma ampla gama de variações e identificações, mais políticas, plurais e diversas, ampliando o espectro de cores, sons e de gostos e resistindo às tentativas de silenciamento.

Este número da Revista Mosaico publica ainda três artigos livres cujas temáticas de algum modo reverberam os debates do dossiê, ao privilegiarem análises sobre discurso, diferença e poder. Isso pode ser observado nos textos “Trilhas da imaginação: compreendendo a construção histórica e social do ‘exotismo amazônico’ por uma leitura ecossistêmica comunicacional”, de Rafael de Figueiredo Lopes e Wilson de Souza Nogueira; “A interferência Norte-Americana na política interna brasileira: o caso do jornal A Noite”, de Pedro Henrique R. Magri; e “Histoire de La Folie: uma proto-análise teórico-metodológica do ponto de vista histórico”, de Ronivaldo de Oliveira Rego Santos.

Referências

BEZERRA, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007.

CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Teatro de memórias, palco de esquecimentos: culturas africanas e das diásporas negras em exposições. Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.

FANINI, Michele Asmar. Fardos e fardões: mulheres na Academia Brasileira de Letras (1897-2003). Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009.

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô Rezado Baixo: um estudo da perseguição aos Terreiros de Alagoas em 1912. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Canibalismo da memória: o negro em museus brasileiros. Revista do Patrimônio, n. 31, 2005.

VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Mana, n. 12, 2006.

Clovis Carvalho Britto

Organizador


BRITTO, Clovis Carvalho. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.9, n.2, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Resistência e Dominação nas Relações Sociais Contemporâneas / Revista Mosaico / 2016

Um dossiê e uma dupla proposta

É com grande satisfação que trazemos ao público o dossiê temático Resistência e Dominação nas Relações Sociais Contemporâneas. A proposta, intencionalmente ampla, buscou contemplar em seu escopo trabalhos que de alguma maneira dialogassem com aspectos vinculados aos processos de dominar e resistir. Essas duas ações, a de dominar e a de resistir, são entendidas aqui como inerentes à nossa configuração social, fundamentalmente contraditória e conflituosa. Ao final deste trabalho, esperamos ter cumprido a missão de exibir um quadro com as novas perspectivas e ideias acerca dos temas clássicos da história social, assim como novas maneiras de se pensar a construção histórica sobre outros tantos novos temas.

Esta pretensão, por outro lado, decorre do entendimento comum de que está em curso certa renovação na historiografia no âmbito de temáticas, objetivos e técnicas de análise com a finalidade de aprofundar o conhecimento a respeito de como determinados sistemas sociais se constituem e se reproduzem em suas dinâmicas espaços-temporais. Uma nova vaga do tempo que, apesar de não mais fortemente constrangida pelos imperativos políticos das polarizações passadas, continua a demandar do historiador sensibilidade para perceber conflitos em locais antes insuspeitos, assim como altivez para alcançar aquilo que força os olhos visão adentro dos objetos. Tal situação cria um clima propenso a estudos que se esforçam em “desvelar” novos prismas que contribuam para criação e aprofundamento de olhares diferentes sobre as relações de trabalho, movimentos sociais, relações econômicas e de classe, estratégias de dominação e de resistência, constituição e disciplinamento do espaço urbano e da vida cotidiana, temas pretendidos para o dossiê, tal como elencado na sua chamada pública.

No pano de fundo destas questões, subjaz, por outro lado, uma compreensão inicialmente não confessada, mas que urge vir a público no momento onde este número temático se torna objeto de escrutínio de seus leitores. É notório como nos últimos 20 anos a produção historiográfica brasileira tem trilhado os caminhos de uma maior profissionalização, impulso este decorrente da grande pressão exercida pela expansão e pelo alargamento dos vários programas de pós-graduação em âmbito nacional. Esta situação inaugura uma série de novas tendências que, dentre as mais positivas, merece destaque o aumento do volume de publicações na área de história, elemento acompanhado de uma maior preocupação e cuidado com as técnicas empregadas para esta produção. A contrariedade inerente a qualquer processo social nos faz perceber que esta mesma situação também enseja o risco de corporativização do pensamento e das reflexões sobre a área. Este tópico merece um exemplo para sua ilustração.

Imaginemos – nos como investigadores em uma casa repleta de espelhos. Alguns maiores, outros menores, todos com alguma distorção do objeto original. Dependendo do ângulo do observador, o objeto – entendido aqui como sinônimo de universo social – só pode ser apreendido através das muitas imagens refletidas por eles. Estas imagens são parte significativa da matéria-prima da história, já que o ângulo do historiador o obriga a trabalhar com imagens que ficaram gravadas nestes espelhos. A outra parte é a experiência do investigador, que sabe que quase sempre os espelhos gravados refletem aspectos parciais do objeto, que o distorcem, muitas vezes simultaneamente em menor e maior grau.

Gerações de investigadores pensam e realizam registros sobre as múltiplas formas de ter uma compreensão mais precisa sobre o objeto gravado nos espelhos, fazendo com que o próprio ato de refletir se torne parte significativa do conjunto de investigadores daquelas imagens. Na ausência do objeto original refletido e gravado nos espelhos, alguns cedem ao impulso de se dedicar exclusivamente ao estudo das imagens gravadas nos espelhos, perdendo de vista o próprio objeto original. Outros irão além, professando abertamente a inexistência de um objeto original, tornando o processo de pensar a melhor forma de entender o objeto original em um exercício de investigar os investigadores da imagem do objeto gravado no espelho. Este não é um problema em si, pois não duvidamos tratar- -se de uma chave possível de entendimento da humanidade que pode anteceder o ato de investigar.

Apesar disso, entender o objeto, o universo social, é também parte deste conjunto de questões, e quando se abdica desta área se perde uma parte importante daquilo que justificava o investimento social em se ter investigadores profissionais de objetos. Quando se chega a este ponto é que se fecha o círculo próprio ao corporativismo, tornando necessário criar barreiras institucionais para que outros, mesmo não especializados na área, não possam investir sobre o antigo campo de investigação abandonado. Como na observação prosaica do longevo historiador Hobsbawm, apesar de só termos os nossos sentidos para apreender o mundo e de isto fazer parte da reflexão do campo, não devemos em condições normais deixar de acreditar que sim, há uma montanha lá fora e que ela existe, independentemente de nós.

Os artigos deste dossiê têm em comum esse entendimento da pesquisa histórica para a qual gostaríamos de chamar a atenção. Todos buscam, de alguma forma, investigar os objetos originais para além (ou apesar) das imagens marcadas pelo espelho da fortuna historiográfica. Em que pese toda a tradição de crítica da sociedade, e autocrítica de suas próprias técnicas e métodos, a perspectiva da história social que mobiliza as pesquisas que tratam das relações de resistência e dominação neste dossiê se direciona a pensar o passado e seus processos como exercício constante de reconstrução e reavaliação dos problemas e, portanto, da busca por uma concretude dos próprios objetos. Longe de serem artigos “empiristas”, são trabalhos que, iniciais ou bastante avançados, e mesmo aqueles resultados de pesquisas já concluídas – como é o caso do artigo Memórias da exploração: uma análise da constituição da consciência política dos trabalhadores das empresas recuperadas na Argentina – se lançam abertamente sobre as fontes a partir de percursos investigativos que têm em comum a afirmação de uma relação constante entre os sujeitos sociais (os atores, as instituições), e estruturas não menos concretas, que apontam para determinados processos históricos.

Essa perspectiva, tradicionalmente atribuída a um determinado modo de fazer história entre os chamados historiadores sociais, entretanto, não se restringe aos chamados historiadores profissionais. Nesse ponto chamamos a atenção, por exemplo, para o artigo Poéticas de resistência: a representação do Outro nas fotografias de Claudia Andujar e Miguel Rio Branco do artista visual Rafael Castanheira, encontrado entre os artigos livres deste número e que cumpre esse itinerário de investigação e autorreflexão diante dos traços do passado que portam o seu objeto, no caso as fotografias de Claudia Andujar e Miguel Rio Branco e os relatos desses fotógrafos sobre os seus trabalhos. Percorremos um exercício de busca por um contexto histórico correspondente ao objeto ao mesmo tempo em que o autor estabelece contato direto com suas fontes a partir da sua especialidade, que é a análise das fotografias com base em procedimentos próprios da análise de imagem, ambiente intelectual tão caro à própria historiografia contemporânea.

O dossiê, tendo em vista essa relação com o universo social, se apresenta formalmente a partir da variação temática fornecida pelo conjunto dos artigos, distinguidos entre pensamento social, instituições e trabalhadores. O artigo Dominação e resistência nos Estados Unidos dos anos 1960: Zbigniew Brzezinski entre duas eras escrito por Rejane Carolina Hoeveler, abre o dossiê com tema original e ao mesmo tempo crucial à compreensão do posicionamento do governo dos EUA em relação a sua população e aos demais países, especialmente os da América Latina durante a Guerra Fria. O artigo se debruça sobre a atuação do ideólogo Brzezinski, alto funcionário de Estado no período, destacando em suas ideias a expressão de uma reformulação do discurso político que visava não apenas a impulsionar a ação expansionista e hegemônica dos EUA na segunda metade do século XX, mas, também fundamentar esse mesmo discurso como ferramenta ideológica de dominação de classe. Brzezinski elaborou a ideia de uma sociedade próxima, a nova “era tecnetrônica”, sem conflitos de classe e tensões sociais, como uma sociedade harmônica e caracterizada pela despersonalização do poder econômico, ao mesmo tempo em que há maior preocupação com a “preservação dos valores humanos”, e defendeu, diante dessa sociedade, a busca contínua pela contenção dos conflitos.

Ainda entre os artigos que se voltam à história intelectual, na sequência temos o texto de André Vargas, O posicionamento político de Henrique Galvão exilado no Brasil (1961-1965), que tem como objeto a atuação de Henrique Galvão no período em que se asilou no Brasil. Antigo administrador colonial a serviço de Salazar na década de 1930, Galvão se voltou contra o governo e, após liderar um levante com o sequestro do paquete (barco) Santa Maria, se exilou no Brasil. O autor português colaborou, então, com artigos antisalazaristas para o jornal “O Estado de São Paulo” já a partir de 1961, tratando dos temas do colonialismo, da política colonial de Salazar e dos movimentos de independência dos países africanos que estavam sob o domínio português. São esses textos as principais fontes de André Vargas.

Dentre os diversos pontos de discordância com seus colegas da Oposição a Salazar – entre eles Humberto Delgado foi a personalidade de maior destaque –, Galvão continuou a afirmar o nacionalismo que marcava seus escritos da década de 1930 e, mesmo que contra Salazar, sempre defendendo a permanência do jugo colonial sobre os países que ainda não eram independentes de Portugal. Defendia, para isso, a perspectiva de uma ação civilizatória necessária frente aos povos tribais da África, não preparados ainda para a independência. O artigo expressa bem o que chamamos a atenção no início desta apresentação, em termos de uma necessária revisita a objetos originais considerados esgotados pela historiografia profissional. Estamos diante de um tema, e um objeto, há muito cristalizado pela historiografia portuguesa, que tradicionalmente sublinhou a fase opositora de Galvão ao regime de Salazar, seu trabalho pela retomada democrática de Portugal.

Em seguida temos os artigos que tratam da dominação no campo institucional. O artigo New Deal e origens do Eximbank, de Thiago Reis Marques Ribeiro , apresenta a formação do Export-Import Bank (Eximbank) durante o governo de Roosevelt nos EUA, os debates internos entre ideólogos e assessores do presidente, iniciados com a implementação da política do New Deal. O percurso entre as fontes bibliográficas e documentação, realizado de maneira muito sólida pelo autor, apontam para o crescimento da perspectiva financeira por trás das políticas de expansão e domínio econômico norte-americano, com reflexos decisivos na formação de instituições centrais no capitalismo brasileiro, como o financiamento da Companhia Siderúrgica Nacional CSN e da Companhia Vale do Rio Doce. O tema das relações econômicas entre Brasil e Estados Unidos, embora muito citado, tanto pela historiografia, quanto por uma bibliografia política e militante, é pouquíssimo estudado, sendo quase sempre tratado de forma apriorística. Trata-se de um objeto de pesquisa inédito, o que destaca sua relevância para o dossiê.

O artigo A autonomia dos trabalhadores russos e os bolcheviques: 1917 – 1921, de Danilo Mendes de Oliveira, faz a passagem para o tema da resistência dos trabalhadores, mas, ainda tratando os aspectos institucionais da relação dominação-resistência. O assunto tratado é um clássico da historiografia mundial, a Revolução Russa, e é perseguido com coragem pelo autor, que se debruça sobre uma questão específica e controversa na tradicional historiografia marxista, que diz respeito aos primeiros momentos da revolução e o problema da autonomia dos trabalhadores e sua relação com os bolcheviques entre 1917 e 1921. O autor, mesmo que através apenas das fontes bibliográficas, elabora um itinerário crítico a respeito dos comitês de fábrica, da Oposição Operária e da Revolta de Kronstadt, problematizando como a questão da autonomia foi tratada pelo Partido Bolchevique. Notamos no artigo como os bolcheviques, por meio da repressão estatal e da implantação da gestão nas fábricas, impediram que a ideia de controle operário direto evoluísse. Esta é uma questão que nunca perde a sua urgência e atualidade para o campo da política e da resistência dos trabalhadores, que corresponde ao histórico distanciamento entre vanguardas políticas e base de trabalhadores durante qualquer processo de contenda política. Notamos aí o deslocamento do campo da resistência para o da dominação, amparado estruturalmente pela institucionalidade que a Revolução rapidamente proporcionou.

Na sequência, Matheus Germano nos apresenta os resultados preliminares sobre as estratégias cotidianas de resistência dos trabalhadores na década de 1940 com o texto Para além de jagunços e coronéis: trabalho e cotidiano em Catalão-Go de 1940. A abordagem dialoga com as proposições metodológicas de variação de escala e investigação da história regional e “dos de baixo”, formuladas na história social durante a segunda metade do século XX como estratégias de pesquisa que visassem restabelecer o diálogo entre o sujeito e a estrutura, entre o sincrônico e o diacrônico, perdidos pelo forte investimento na ideia de totalidade do estruturalismo. Aqui teríamos elemento de uma história profissionalizada, que a princípio poderia afastar os leitores não introduzidos, porém, a apresentação desta e de tantas outras pesquisas que se preocupam em ter esses aspectos em mente, invariavelmente nos fornece quadros históricos marcados por releituras e reinterpretações de grandes temas, por exemplo o trabalhismo na Era Vargas que é o caso do artigo em questão, que só poderiam ser proporcionadas a partir do trabalho com a diversificação das fontes.

O uso das fontes judiciais e relatórios de polícia utilizados por Matheus Germano proporciona essa construção, sem deixar de lado os elementos processuais de um contexto maior, de reelaboração das estratégias de dominação do patronato diante a legislação trabalhista, que por sua vez também se torna ferramenta cotidiana – ainda que fragmentada no caso abordado pelo autor – de resistência de trabalhadores das charqueadas de Catalão-GO. Ficamos na expectativa de conferir o resultado final do pesquisador, que pretende avançar com as leituras consideradas clássicas sobre o tema em Goiás, estabelecidas por autores como Luis Palacín Gomes, Nasr Chaul e Barsanulfo Gomide Borges.

O artigo Notas sobre nacionalização, autonomia e controle operário em Portugal (1974-1975), de Tales dos Santos Pinto, também se insere no campo de investigação a respeito da resistência dos trabalhadores, mas, em um sentido metodológico e temático diverso do apresentado por Matheus Germano. O artigo, também resultado preliminar da pesquisa do autor, apresenta algumas experiências de organização dos trabalhadores na Revolução Portuguesa (1974-1975) em grandes empresas, observando o processo de nacionalização e de controle operário da produção, relacionando com a autonomia dos trabalhadores mobilizados. O autor parte da análise de entrevistas presentes no jornal Combate, importante veículo comunicacional da militância durante a revolução, além de estabelecer o diálogo com a bibliografia pertinente. Da mesma forma que o texto de Danilo Mendes de Oliveira sobre a relação entre os trabalhadores russos e os bolcheviques, o texto se volta às experiências autônomas de ocupação das fábricas próprias do dinamismo inicial do processo revolucionário, mas que são minadas e impossibilitadas pelo Estado que se forma a partir das vanguardas políticas da Revolução. Trata-se de um objeto inédito, embora a Revolução já tenha sido extensamente estudada.

O último artigo do dossiê, Memórias da exploração: uma análise da constituição da consciência política dos trabalhadores das empresas recuperadas na Argentina (anos 1990 e 2000), de Renake Bertholdo David das Neves, tem a mesma preocupação apresentada por Tales dos Santos Pinto: como se formam e o porquê de falharem as experiências de resistência do trabalhador baseadas em auto- -organização e autogestão do processo produtivo. Ainda que partam de processos históricos distintos, essa reflexão marca a luta dos movimentos sociais internamente, e se colocam como assunto para debate incontornável, tanto no âmbito acadêmico quanto no mundo militante. Nesse artigo sobre as empresas recuperadas, a autora toma por objeto o caso da Argentina nos anos 1990, onde houve mais ocorrências desse tipo de experiência na América Latina. Expressões de uma consciência de classe em pleno desenvolvimento, segundo a autora, a recuperação das empresas se apresentou como alternativas ao desemprego e avanço das políticas de flexibilização das leis trabalhistas.

São esses esforços de investigação e interpretação dos autores com seus objetos, sempre buscando refletir sobre os mecanismos de dominação e resistência, que justificam a segunda proposta deste dossiê. Pensar os dias atuais – marcados pela constante ameaça às conquistas da resistência dos trabalhadores no mundo contemporâneo, bem como pela eficiente forma de se reformular a dominação – a partir da compreensão da nossa realidade como resultado histórico de fenômenos políticos construídos a partir de relações sociais concretas e que, portanto, são passíveis de serem investigadas e questionadas.

Ao final, apresentamos ainda uma breve e instigante entrevista com Benito Bisso Schmidt, professor do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS na linha de pesquisa que leva o mesmo nome que este dossiê, “Relações sociais de dominação e resistência”, e ex-presidente da ANPUH nacional. São tratadas na entrevista questões acerca da profissionalização do trabalho do historiador; questões sobre o lugar da biografia enquanto método na história; um pequeno histórico do Grupo de Trabalho “Mundos do Trabalho”; e tantos outros assuntos, fechando o presente dossiê com a perspectiva de que o tema escolhido enseje um debate estimulante e necessário tanto aos profissionais da história quanto ao público em geral.

Luiz Felipe Cezar Mundim – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne

Rodrigo Oliveira de Araújo – Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense

Organizadores


MUNDIM, Luiz Felipe Cezar; ARAÚJO, Rodrigo Oliveira de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.9, n.1, jan. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Algumas reflexões: formar para pesquisar, pesquisar para formar no ensino de história / Revista Mosaico / 2015

O dossiê que ora apresentamos, intitulado Algumas reflexões: formar para pesquisar, pesquisar para formar no ensino de história, visa estimular as reflexões sobre o Ensino de História, tendo como aspecto central a pesquisa no campo da formação.

As discussões acerca do ensino de história vêm ganhando corpo e densidade nos últimos tempos, a partir de importantes reflexões e pesquisas, fruto do trabalho de estudiosos e pesquisadores. Para isso, reunimos jovens professores-pesquisadores, oriundos de diferentes instituições brasileiras, com suas formações, concepções, práticas e histórias particulares, os quais pesquisam e ensinam na área de metodologias e práticas de ensino. O caráter cooperativo desse dossiê permitirá agregar pesquisadores – conhecedores da articulação entre os saberes históricos e pedagógicos, a didática, a metodologia e as práticas de ensino – em um esforço de superar a fragmentação da produção dos trabalhos em educação, criando condições que contribuam para se pensar a problemática, a partir da realidade regional e local e das suas articulações com a globalidade.

A produção da pesquisa na área do ensino de História, da prática dos docentes e do seu cotidiano escolar nos motivou a elaborar o dossiê. Ao propormos essa temática, queremos não só a compreender, como também avaliar seus avanços, seus impactos e contribuir para a formação teórica e epistemológica dos pesquisadores sobre o ensino de História. Introduzir a discussão sobre a investigação na prática educativa, notadamente na formação do professor de História, consubstancia um desafio e importante esforço para romper com uma discussão apenas afeita ao universo bacharelesco. Nesse sentido, entendemos que a investigação, no interior das formações, ganha relevo, também, na produção de novos conhecimentos. Todavia, a discussão da pesquisa na formação do docente de História ainda é um espaço a se consolidar, um desafio que não podemos dar por concluído.

Em sendo assim, juntamente com a Revista Mosaico, colocamos o atual número à disposição do público interessado em temas ligados ao ensino de História. Os textos apresentados oferecem aos leitores um variado leque de temas que se entrelaçam, permitindo o estabelecimento de conexões de forma articulada e contribuindo com a produção do conhecimento no âmbito do ensino e da formação docente. Para pensarmos a relação pesquisa e ensino é imprescindível que uma e outra estejam estreitamente relacionadas, visto que elas se constituem pilares do fazer docente.

Ana Carla Sabino e Raquel da Silva Alves, no artigo O relatório do estágio supervisionado: diálogos entre a prática de ensino e a formação do historiador que abre o presente dossiê, apresentam-nos as habilidades mobilizadas pelos alunos do curso de licenciatura em História da Universidade Federal do Ceará, na realização da disciplina de Estágio Supervisionado, a partir da utilização das fontes e dos relatórios das práticas docentes desenvolvidas nas escolas de educação básica da cidade de Fortaleza. Para tal, as autoras consideram os saberes docentes e profissionais do professor de História da educação básica – em permanente diálogo com o professor da disciplina / atividade de estágio – e a cultura escolar das instituições onde se situa o ofício do historiador, como fonte e objeto para a pesquisa e a aprendizagem da didática e da prática de ensino de História, dimensionando, socialmente, a escrita sobre os saberes e o seu caráter formativo na escola.

No artigo Por uma Cartografia dos Saberes Docentes: o PARFOR e o agenciamento de novas subjetividades no ensino de História, Andreza de Oliveira Andrade traz uma reflexão em torno da construção de saberes mobilizados para o ensino de História e de sua didática. Busca, por conseguinte, fazer dessa reflexão um exercício de cartografar alguns caminhos que levam à vivência das experiências de ensino e formação de estudantes da graduação em História, na Licenciatura ofertada pelo Plano Nacional de Formação de Professores (PARFOR), em cidades do interior do Rio Grande do Norte, atendidas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Angela Ribeiro Ferreira no seu texto convida-nos a pensar A relação teoria e prática nos currículos de formação de professores de História no Brasil, um recorte de sua tese defendida em 2015, em que analisa o discurso expresso nos Projetos Pedagógicos de Cursos (PPC) dos cursos de licenciatura de História de diversas regiões do Brasil, sobre a indissociabilidade entre ensino / pesquisa e teoria / prática, diante da ampliação da carga horária obrigatória de prática de ensino, com a Resolução CNE / CP 2 / 2002. A autora nos alerta, em seu instigante texto, que a Resolução, ao dissociar a prática da formação, reforça nos PPC a dicotomia entre teoria e conteúdo e a prática profissional.

Carlos Augusto Lima Ferreira apresenta, em seu artigo Pesquisa quantitativa e qualitativa: perspectivas para o campo da educação, uma reflexão teórica dos métodos de investigação qualitativos e quantitativos e suas principais problemáticas e, ainda, como esses se apresentam nos campos do conhecimento. Apesar de historicamente ser um tema marcado por debates entre os pesquisadores “quantitativistas” e “qualitativistas”, temos experimentado um crescimento do número de abordagens que se utilizam dos dois métodos para a pesquisa. O autor evidencia as perspectivas de utilização de ambas, nos estudos referentes à educação, especialmente, na área da formação de professores.

Elaine Lourenço, em seu texto Formação e Atuação de Professores: o jogo dos currículos convida- -nos a refletir sobre diferentes currículos de formação de professores do curso de História da Universidade Nove de Julho, no decorrer da primeira década do século XXI, confrontando o percurso formativo de alguns de seus alunos com sua posterior atuação em sala de aula. Para tal, escolheu o caminho da História Oral, como uma metodologia que tem ganhado cada vez mais visibilidade e que permitiu dar voz ao professor, ao mesmo tempo em que proporcionou inúmeras informações relevantes para o entendimento dele como um sujeito, com uma trajetória e modos de vida, facilitando a compreensão de suas experiências vividas.

Juliana Alves de Andrade descortina O fazer-se ao torna-se professor de História: a pesquisa como elemento articulador da prática docente, socializando e problematizando as experiências vivenciadas entre os anos 2014-2015 na disciplina Prática de Ensino de História I, ofertada no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. A autora nos apresenta em seu texto as estratégias utilizadas na disciplina, evidenciando a pesquisa, como componente articulador das atividades pedagógicas, assim como o efeito dessas ações sobre a prática pedagógica dos futuros professores de História. Ao partir dessa perspectiva, o texto nos mostra que se tornar professor de História, hoje, só pode ser compreendido pelo processo histórico de como se formar (fazer-se) professor de História no Brasil. Dessa maneira, ao adotar como corpus de análise os relatórios dos estudantes, nas atividades de observação, os documentos oficiais (Projeto Pedagógico de Curso (PPC) do Curso de História), anotações individuais das aulas e os planos de intervenção pedagógica, a autora nos convida a pensar sobre o sentido e o valor da formação de docentes de História.

Lademe Correia de Sousa, por sua vez, no estudo Ensino e Pesquisa: História Local através da produção de Jornal apresenta as atividades desenvolvidas, no Projeto PIBID / História, na Universidade Federal do Oeste do Pará, com a História local associada ao estudo do meio. Para a autora, essas duas estratégias de aprendizagem mantêm relações muito próximas entre si, pois tanto o estudo do meio, quanto a História local objetivam viabilizar um contato direto dos discentes com um contexto e seu passado, num cruzamento entre História, memória e patrimônio cultural. Além desses aspectos, a autora também traz, em seu texto, uma discussão quanto às relações entre o saber acadêmico e o saber escolar, que serviram de inspiração para o desenvolvimento do Projeto PIBID. Para ela, a escola não pode ser vista como um espaço onde o saber ensinado é mera simplificação do saber acadêmico, mas, sim, como um local em que o conhecimento pode ser construído com um saber próprio, lugar portador de uma cultura escolar, não mais como um espaço de reprodução, mas sim de produção de conhecimento.

Marcella Albaine Farias da Costa, com o trabalho Tecnologia, temporalidade e História digital: interpelações ao historiador e ao professor de História busca analisar como as narrativas históricas contemporâneas se veem ampliadas, modificadas e desafiadas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação, que influenciam e transformam a forma de ensinar História nos espaços escolares. Assim, a autora busca situar o debate da chamada História digital, aprofundando-se nos estudos sobre temporalidade e tecnologia, pois a problemática da História digital e os desafios dela advindos abarcam questões relativas à produção do conhecimento histórico e à sua recontextualização didática, envolvendo, portanto, os que estão no meio acadêmico e os que militam no espaço escolar. Ao considerar esses aspectos, a pesquisadora nos alerta que tanto a dimensão do ensino, quanto a da pesquisa na referida área estão, perceptivelmente, afetadas e com desafios importantes a enfrentar neste começo de século.

Mônica Martins da Silva trata de questões relevantes acerca da temática afro-indígenas no texto Formação de Professores de História e práticas de pesquisa: experiências de implementação das leis 10639 / 03 e 11645 / 2008 por meio do Estágio Supervisionado. O artigo apresenta reflexões sobre a formação inicial de estudantes de História nas disciplinas de Estágio Supervisionado, incorporando a pesquisa na formação, articulada à produção de materiais didáticos para a educação básica, a partir de novas abordagens sobre a História dos povos africanos, afrodescendentes e indígenas, em diálogos com as leis 10639 / 03 e 11645 / 08, construídos a partir da inter-relação teórica e metodológica entre conhecimento histórico escolar e produção historiográfica. O ensino de História desses povos ganhou um novo impulso com a legislação que definiu a obrigatoriedade desses temas nos currículos da educação básica. Por certo, a temática afro-indígena tem englobado a escola e necessita ser incorporada no e pelo cotidiano escolar nas diferentes disciplinas do currículo, rompendo com as amarras pedagógicas que excluem e, muitas vezes, cerceiam qualquer possibilidade de ser respeitada e valorizada no âmbito escolar. Para a autora, apesar de essa questão ser uma preocupação recorrente, as leis 10639 / 2003 e 11645 / 2008, desde sua promulgação, apresentam normas e orientações que definem o papel dos currículos escolares na inclusão de conteúdos específicos sobre esses grupos, na perspectiva de uma educação afirmativa, propiciando meios para a formação de cidadãos atuantes, democráticos, tolerantes e capazes de lutar pela construção de uma sociedade inclusiva, que valorize as diversidades culturais, as quais nos formam um país multiétnico e pluricultural.

Nadia Gaiofatto Gonçalves envereda pelos caminhos da produção acadêmica sobre a formação de professores de História no Brasil em sua Pesquisa na formação de professores para o ensino de História: produção acadêmica (1970-2014), em que analisa como o ensino de História foi abordado em periódicos acadêmicos de Educação, de Ensino e de História, a partir dos anos de 1970, marco inicial dos Programas de Pós-Graduação, até o ano de 2014. Para a autora, esta pesquisa pode ser compreendida como um estado da arte ou estado do conhecimento. Sua fonte foram periódicos acadêmicos nacionais, constantes no Qualis – CAPES, com classificação mínima entre A1 e B3, das áreas de Educação, História e Ensino. Ao assumir os artigos dos diversos periódicos para o seu trabalho de pesquisa, a autora mostra-nos que o princípio formativo para professores vem se configurando como uma tendência nas proposições, embora ainda de forma tímida, mesmo na produção sobre formação de professores para o ensino de História. E essa tendência decorre e dialoga com referenciais teóricos que vêm ganhando força na produção educacional no Brasil, a partir do final do século XX, relacionados ao professor reflexivo e aos saberes e práticas docentes, bem como se reporta a referências que têm se fortalecido gradativamente no campo do ensino de História, a partir do início do século XX, derivados da Educação Histórica ou da Didática da História.

Por fim, Susane Rodrigues de Oliveira analisa em seu texto A Formação de Professores-Pesquisadores no curso de História da UNB: uma análise da proposta curricular e das atividades de estágio supervisionado, os fundamentos e os modos de efetivação da proposta curricular de formação de professores-pesquisadores no curso de licenciatura em História da Universidade Nacional de Brasília. Para isso, analisou a estrutura curricular estabelecida pelo Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso que vem caminhando, gradativamente, na busca da articulação do ensino e pesquisa na formação de professores. A autora considera que muito ainda precisa ser feito, a fim de que se mude o quadro atual do ensino de História, no Brasil, e, também, para que as atividades de pesquisa no contexto escolar, exercidas por professores em formação inicial e continuada, possam ter ainda mais apoio, estímulo, reconhecimento e suporte adequados, gerando uma aproximação horizontal e transformadora entre a universidade e a escola.

Além desses artigos que compõem o dossiê a Revista Mosaico apresenta três artigos em sua seção temas livres, a saber: Militarização das Escolas Públicas do Estado de Goiás: uma reflexão sob os olhares de Gloria Anzáldua e Michel Foucault de Leandra Augusta de C. M. Cruz em co-autoria com Maria do Espírito Santo Rosa C. Ribeiro; Jogos do Sensível na História da Mídia: o Caso da Rádio Iguaçu- AM 670, de Edgar Cesar Melech e de Albertina Vicentini, Apontamentos sobre o regionalismo em literatura hoje.

De nossa parte, não objetivamos no dossiê resolver toda problemática acerca da formação de professores, bem ao contrário, esperamos que este seja um espaço para pensar, repercutir e levantar questões enfrentadas pelos professores, no âmbito da universidade, da escola e fora dessas instituições visando às mudanças nas práticas docentes.

Esperamos que esses artigos possam ampliar o debate nos campos do Ensino de História, da educação e da formação docente. Dessa forma, convidamos o leitor a se deixar “seduzir” pelos textos aqui apresentados. Excelente leitura!

Carlos Augusto Lima Ferreira – Professor Doutor. Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS

Editor deste número


FERREIRA, Carlos Augusto Lima. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.8, n.2, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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História e historiografia de Goiás / Revista Mosaico / 2015

A revista Mosaico abre o ano de 2015 com um dossiê acerca da história e da historiografia de Goiás. Essa inserção é fundamental, pois a história regional costuma ser considerada uma filha “desprestigiada” de Clio. Mas, invertendo esse preconceito comum, e rompendo com aqueles que a praticam sem assumir, esclarecemos que consideramos os estudos regionais a base da pesquisa e do ensino em História.

A crítica ao eurocentrismo de nossos programas escolares e dos currículos de graduação é demasiado conhecida, mas a inversão para um conhecimento histórico contextualizado, relevante para o ambiente onde se vive, ainda não é fácil. Este número, portanto, assume a tarefa de fornecer subsídios para uma reflexão crítica em que o local é o lugar privilegiado para a percepção do global.

O primeiro trabalho apresenta uma perspectiva renovada para abordar a história religiosa goiana. Faz um quadro do trabalho clerical no século XVIII, sem cair na interpretação de cunho mais institucional e eclesiástico, nem tratar dos desvios, tão observados na historiografia mais recente. A valentia pode ser algo esperado do comportamento masculino, mesmo de sacerdotes, ou pode ser mal vista. Dentro dessa ambiguidade, os autores Eliézer Cardoso de Oliveira e Eduardo Gusmão de Quadros apresentam casos onde padres extravasam os princípios da convivência social “civilizada” e atuam com coragem e braveza nas relações sociais.

O segundo artigo busca relacionar o passado e o presente ao tratar dos estudos sobre os quilombolas, em especial dos denominados Kalungas, na história goiana. Fernando Bueno Oliveira e Maria Idelma Vieira D´Abadia apresentam aspectos que delinearam as representações desse grupo, construídas academicamente, e como eles “resistem” as descrições que foram feitas.

O artigo seguinte trata do importante governo de Luis da Cunha Meneses em Goiás, antes dele ser transferido para as Minas Gerais e se tornar imortalizado pelas Cartas Chilenas. A época coincide com a “viradeira” na Metrópole, quando várias medidas pombalinas foram rejeitadas, ao mesmo tempo em que a economia mineradora apresentava grande decréscimo. Então, Alan Ricardo Duarte Pereira estuda de modo instigante as dificuldades de articular esses níveis administrativos. O governador precisava reconstruir redes de respeito e de confiança, levando em consideração os interesses locais e a reordenação do sistema colonial em consonância com a administração da nova rainha.

O dossiê de história goiana encerra com um estudo acerca da medicina popular. Léo Carrer Nogueira tratou da compreensão dos estudos históricos sobre as práticas de benzimento, com dados mais específicos para dois municípios goianos. Vê não apenas a “resistência” desses homens e mulheres ao projeto cientifico da modernidade, mas também aponta para uma perspectiva de respeito e de integração desses saberes enquanto fonte relevante para a superação dos problemas cotidianos.

Os artigos que se seguem tratam de temas além do espaço-tempo goianos. O primeiro aborda o imaginário feminino na obra São Bernardo, de Graciliano Ramos. Vânia Borges Arantes aprofunda o ethos do mundo e das relações de gênero nessa interessante obra literária, realizando um cruzamento do método da análise do discurso com os estudos históricos.

Cada vez mais importante, o tema do terrorismo é estudado por José Roberto Bonome e Fernando Lobo Lemes. O artigo ressalta o afastamento necessário dessas práticas e o ensino transmitido pelas religiões, em particular, pelo Islã. Defende, ainda, que um cuidado interpretativo é necessário, além do conteúdo emocional que as ações terroristas evocam.

O conceito de Brasil Colonial tem sido criticado há algumas décadas, apesar de sua circulação ainda irrestrita. Partindo dessa premissa, Caio Cobianchi da Silva e Karla Maria Silva revisitaram tal noção em autores clássicos como Caio Prado Júnior e Fernando Novais, contrastando-a com a atual perspectiva em voga de inserir o Brasil no Império Português. Para os autores, esse conceito amplia e enriquece muito mais as perspectiva de estudo.

Por fim, o numero encerra tratando da relação do cinema com a política estadunidense atual. Mário Roberto Ferraro, partindo do paradigma indiciário, analisa o filme O Mestre dos Mares: o lado mais distante do mundo (EUA, 2003). Defende que, além dos aspectos mercadológicos, evidentes na produção hollywoodiana, os interesses geopolíticos do império se apresentam nessas produções. É ler e verificar os indícios apontados.

Eduardo Gusmão de Quadros

Fernando Lobo Lemes

Organizadores


QUADROS, Eduardo Gusmão de; LEMES, Fernando Lobo. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.8, n.1, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Aspectos do Império Português no Brasil / Revista Mosaico / 2014

A proposta do dossiê Aspectos do Império Português no Brasil tem como objetivo estimular o aprofundamento das reflexões no campo da história e da historiografia sobre o Império português no Atlântico Sul, através da compreensão a respeito da experiência colonial ocorrida especialmente na América Portuguesa, entre os séculos XVI e XIX.

Nas últimas duas décadas a historiografia sobre os impérios coloniais europeus tem passado por importantes reflexões e releituras, fruto do trabalho de estudiosos e pesquisadores que atuam nos mais variados centros de pesquisa e universidades situados na Europa, África, Ásia e Américas. A partir de então, o estudo sobre a expansão dos Impérios ibéricos e, sobretudo, os entrelaçamentos deste fenômeno com as transformações das sociedades no Novo Mundo sofreu o impacto promovido pelas recentes interpretações historiográficas, recolocando a temática dos impérios coloniais e, particularmente, do Império português, a partir de novas e variadas perspectivas. Assim, a compreensão renovada das formas de avaliar os diversos aspectos das colonizações modernas na América e na África portuguesas ocupa, atualmente, uma posição central na agenda dos estudiosos sobre o assunto.

No caso específico do Brasil, durante o chamado período colonial (que se estende, grosso modo, entre os séculos dezesseis e dezenove), trata-se de decifrar a história da expansão do Império português na América, em suas mais variadas vertentes, cuja consequência foi a constituição de um mundo novo, embalado por relações sociais complexas que definem as diversificadas estratégias pelos quais se assentaram os elementos fundamentais que marcaram os avanços da sociedade europeia ocidental moderna no interior dos sertões do continente americano.

Visando contribuir diretamente com este debate, cujos pressupostos têm estimulado a compreensão sobre a realidade do mundo moderno e contemporâneo, é que, por iniciativa dos editores a Revista Mosaico, colocamos o presente dossiê à disposição do público interessado no assunto.

O conjunto dos textos apresentados oferece a possibilidade de reflexões transversais que conectam aspectos distintos da história do Império português no Brasil. No primeiro artigo do dossiê Um lugar fora do mapa: a Colônia do Sacramento, Paulo Possamai reavalia a importância do papel e do lugar da Colônia do Sacramento no processo de colonização da região platina no contexto da América portuguesa, ultrapassando e problematizando as fronteiras de uma interpretação da história do Brasil fundamentada essencialmente na perspectiva dos Estados nacionais.

No segundo artigo, Culto Mariano no nordeste de Minas: uma herança do Império português nas representações dos romeiros da festa de Nossa Senhora da Abadia do Andrequicé, Maria Célia da Silva Gonçalves e Margareth Vetis Zaganelli tratam da perpetuação da identidade do homem do sertão através da expressão de sua religiosidade no nordeste de Minas Gerais, durante o século XIX. Através do estudo das representações associadas aos milagres atribuídos à Nossa Senhora da Abadia no vilarejo Andrequicé, festeiros e fiéis são percebidos como os guardiões da memória e da história local.

O terceiro texto, Deserções e privilégios: a guerra ao sul da América, retoma o ponto de partida geográfico do primeiro, para tratar de outro assunto: diante das novas diretrizes de organização e defesa militar inauguradas na segunda metade do século XVIII, Christiane Figueiredo estuda as resistências ao recrutamento militar no Brasil, durante as guerras que tiveram lugar no sul do continente americano. Ao fazê-lo, põe em evidência não apenas os limites dos poderes da Coroa portuguesa nos espaços coloniais, como também as estratégias adotadas pelos atores da sociedade colonial assentada, em sua escala local, em modelos de organização corporativos.

Mas a compreensão do Império português no Brasil passa pela percepção de suas dimensões oceânicas, cujos entrelaçamentos sociais e culturais transcendem o quadro de uma história interpretada tão somente a partir de suas fronteiras e limites territoriais. Assim, a importância do continente africano ilumina as reflexões do quarto artigo do dossiê. Em Jogo de reis: política internacional do Reino do Congo no Atlântico entre os séculos XVI e XVII, Frederico Ferreira apresenta a trajetória de contatos diplomáticos envolvendo embaixadores do Reino do Congo com portugueses, holandeses, espanhóis e representantes da Igreja Católica, revelando a necessidade de se estudar as interconexões entre os povos do Atlântico, ampliando o horizonte de debates ligados às histórias nacionais e / ou regionais.

No artigo seguinte, Bandeiras, mitos e história nos sertões da América portuguesa, José Roberto Bonome e Fernando Lemes, retomam o movimento dos bandeirantes paulistas associando-o ao processo de expansão econômica e às lutas ligadas ao imaginário, no interior de um universo cultural permeado por mitos indígenas, que envolvia, ao mesmo tempo, disputas políticas e ideológicas e a expectativa de enriquecimento rápido, num mundo de enfrentamento e aventura nos sertões desconhecidos da América portuguesa.

Em seguida, a importância da cidade colonial é destacada no estudo de Avanete Pereira Sousa em Trânsitos mercantis de uma cidade capital (Salvador, séc. XVIII). Importante núcleo urbano na Bahia do século XVIII e espaço privilegiado no processo de organização política, administrativa e econômica da América portuguesa, Salvador constitui-se em importante centro de convergência e articulação regional, mesmo após a perda da condição de capital da colônia, em 1763, com a ascensão do Rio de Janeiro. Neste aspecto, o texto ressalta a centralidade de Salvador ao dominar uma extensa rede de transações mercantis, demonstrando que a conectividade da cidade com os diferentes espaços se dá essencialmente através do campo econômico.

No último texto do dossiê, A “Vida da Madre Jacinta de São José”: uma reflexão em torno dos modelos hagiográficos, William de Souza Martins analisa o manuscrito «Vida da Madre Jacinta de São José» onde o frade carmelita João dos Santos registra as atividades de Jacinta Rodrigues Aires, nome de batismo de uma importante beata que viveu no Rio de Janeiro no século XVIII. Além de comparar relatos distintos sobre as atividades de Jacinta, o autor discute elementos ligados às narrativas de esquemas hagiográficos que ocupavam papel de peso nos escritos de vida de Jacinta e de outras mulheres que viviam nas regiões coloniais ou na Europa durante o século XVIII.

Os artigos livres que acompanham o dossiê tratam de temas distintos, mas igualmente interessantes. No primeiro deles, Quilombos brasileiros: alguns aspectos da trajetória dos negros no Brasil, Giselda Shirley da Silva e Vandeir José da Silva propõem pensar sobre as comunidades remanescentes de quilombos na contemporaneidade buscando entender historicamente a questão dos quilombos no Brasil e a sua reconfiguração a partir da Constituição de 1988. No artigo seguinte, Lila Spadoni e Ludimila Machado Jorge, no artigo Efeitos da estruturação da memória coletiva sobre a implicação pessoal: responsabilização por crimes cometidos no período da ditadura militar, procuram demonstrar, a partir de um estudo experimental, a influencia da estruturação da memória sobre a implicação pessoal relativa a acontecimentos contemporâneos na história do Brasil, como, no caso em questão, o periódo da ditadura militar. A análise dos resultados põe em cheque a suposta imunidade brasileira às tentações totalitárias ou sobre o preparo das gerações atuais para defender a democracia. Finalmente, Cláudia Glênia de Freitas, no último artigo da série, Uma abordagem teórica sobre a globalização e o Estado Nação, comenta aspectos teóricos sobre o processo de globalização, com ênfase nos aspectos jurídicos e sociais, indicando os modos através dos quais esse paradigma globalizador vem sendo incorporado pelo Estado Nação que, por sua vez, encontra-se, atualmente, em progressivo declínio.

Esperamos que os textos apresentados neste dossiê possam alargar a reflexão e o debate nos campos da história e da historiografia do Brasil e do Império português no Atlântico Sul. Desejamos a todos uma boa leitura!

Fernando Lobo Lemes – Professor Doutor. Universidade Estadual de Goiás – UEG

Christiane Figueiredo Pagano de Mello – Professora Doutora. Universidade Federal de Ouro Preto | UFOP Editores deste número


LEMES, Fernando Lobo; MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.7, n.2, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Discurso religioso e seu referente / Revista Mosaico / 2014

A revista Mosaico retoma sua edição com um dossiê temático acerca do discurso religioso e seu referente. O núcleo deste dossiê advém de trabalhos apresentados no mini simpósio acerca da questão no VIII Simpósio Nacional de História e Historiografia, realizado na Universidade Federal de Ouro Preto em 2014.

Não é fácil pensar acerca desta problemática. O antigo positivismo que possuía uma ideia, basicamente, reflexiva da realidade – na qual a mente reproduz fielmente os dados externos – há muito tempo foi colocado em xeque. Contudo, após a crise dos paradigmas dos anos setenta e oitenta, as soluções enquadradas no epiteto “epistemologia pós-moderna” não criaram caminhos profícuos para o conhecimento histórico.

No caso particular dos que investigam a historia religiosa, nenhuma das correntes acima citadas é conveniente. Na primeira, a referência dos discursos e das práticas dos sujeitos religiosos é anulada como algo não pertinente aos métodos científicos de investigação. Por outro lado, as teorias que apontaram a importância do elemento discursivo como constituinte do saber defenderam a elipse do aspecto referencial deste conhecimento.

Portanto, a tendência tem sido avançar por caminhos menos radicalizados e mais plurais de acercamento dos fenômenos religiosos. Se o domínio da realidade e / ou divindade escapa por entre as palavras, não se deve afirmar dogmaticamente sua mudez e / ou inexistência. Afinal, esta força denominada de “sagrado” continua a movimentar as pessoas por todo o globo, sustenta diversas instituições, faz surgir movimentos políticos e modifica intermitentemente a sociedade.

O dossiê inicia abordando um mestre do discurso, aquele que é considerado o maior pregador da língua portuguesa: o padre Antônio Vieira. O artigo de Milton Moura demonstra as estratégias utilizadas pelo sacerdote para ressignificar as experiências temporais e como, para isso, ele se apropria de textos sagrados.

Para o cristianismo, os textos considerados mais sagrados são os Evangelhos, fonte do conhecimento acerca de Jesus. Na liturgia católica, ainda hoje, a assembleia se coloca de pé em reverência para escutá-los. O segundo artigo do dossiê, escrito por Andre Caes e Wesley Alves, trata destes livros, mas não dos que foram incorporados na tradição e passaram a compor a Bíblia Sagrada. O estudo aborda o imaginário criado sobre os evangelhos “apócrifos”, fazendo inclusive uma pesquisa de campo para captar as representações sociais que se projetam sobre tais textos.

Outro trabalho que articula o conhecimento histórico com a realidade contemporânea é o estudo sobre o Caminho de Santiago. Fruto de uma grande pesquisa internacional e interdisciplinar, o artigo aponta a importância dos saberes religiosos, bem como do conhecimento histórico, para os peregrinos que durante todo o ano afluem para aquela cidade espanhola.

O artigo seguinte aborda um limite discursivo, o silêncio e as vozes sobre o morrer no Goiás oitocentista. A pesquisa de Deuzair José da Silva aprofunda nos aspectos simbólicos dos rituais que visam exercer algum tipo de controle sobre o destino da alma. Demonstra como eram importantes os gestos, as falas, o mover das crenças diante da proximidade inelutável do fim.

Os pecados deviam ser confessados periodicamente para que se obtivesse o perdão. Para facilitar, a igreja fez uma lista dos mais comuns, classificando-os em veniais, mortais e capitais. Contudo, sugere Albert Drummond, alguns deles foram transformados em virtudes pela sociedade capitalista. O autor analisa historicamente o tema da preguiça, os valores que lhe foram atribuídos, suas características básicas conforme cada época, concluindo com o que chama de “paradoxo”: na sociedade que coloca o trabalho como centro da vida, a preguiça tornou-se extremamente valorizada.

Ainda abordando aspectos do mundo moderno, o último texto do dossiê dialoga com a teologia ao tratar dos sentidos da palavra deus no pensamento de Paul Tillich. A “morte de Deus” decretada pelo Zaratustra nietzschiano pode ser aceita, sem necessariamente acabar com a vida religiosa, defende o autor Otávio B. Rodrigues da Costa. Portanto, o artigo retrabalha historicamente as noções de secularização e de laicidade, de modo a averiguar as condições de sustentabilidade do discurso teológico nos dias atuais.

Os artigos livres inseridos neste numero tratam de tema bem distintos. O primeiro faz uma introdução à semiótica proposta por Charles Pierce. A meta principal dos autores, Alessandro Aguiar e Eduardo Quadros, é romper com certo medo dos historiadores em dialogar com ciência dos signos e, ao mesmo tempo, demonstrar que esta perspectiva é bem mais “historicizável” que a tradição europeia proveniente de Saussure. O artigo aprofunda a aplicação das categorias piercianas para a análise das fontes fotográficas.

O artigo seguinte aborda o poder dos discursos médicos sobre o corpo das mães. Para Georgiane G. Heil Vázquez, as concepções religiosas acerca da maternidade foram readaptadas aos saberes médicos, fonte importante de poder e controle no século XX, gerando princípios dogmáticos sobre o que seria o normal / saudável e o que seria desviante / doentio. A autora demonstrará, inclusive, que a simples ação de parir será relacionada ideologicamente ao progresso da nação brasileira.

Por fim, a pesquisadora Heliane Prudente estuda a questão do emprego e do desemprego no Brasil atual, enfatizando a problemática situação da juventude goiana para a entrada no mercado de trabalho. O artigo apresenta, com diversos dados, uma série de desafios para construção de nosso futuro, de modo a conscientizar acerca da nefasta herança histórica que deverá ser superada.

A comissão editorial


Comissão editorial. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.7, n.1, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Práticas jurídicas, políticas e literárias / Revista Mosaico / 2013

A relação entre os historiadores e suas fontes tem sido objeto de debate intenso no âmbito da historiografia atual. O objetivo do dossiê práticas jurídicas, políticas e literárias é estabelecer um mosaico de reflexões sobre tal questão, por meio de trabalhos que versam acerca dos múltiplos temas relacionados a essa problemática, e que tem por objeto de análise fontes sobre o mundo antigo e medieval. Este é constituído por textos de vários pesquisadores oriundos de diversas universidades brasileiras que trabalham com esta temática, usando fontes várias como hagiografias, discursos literários e jurídicos.

Na segunda parte deste número da Mosaico, encontramos dois artigos que compõe com a reflexão sobre o mundo medieval, apresentando formas diferenciadas de interelação entre Filosofia, Literatura e o Direito. Por fim indicamos duas resenhas de obras atuais e bastante pertinentes que versam sobre o mundo antigo, medieval e o limiar da Idade Média. Esperamos que este número da Revista Mosaico encontre abrigo também entre novos leitores.

Renata Cristina de Sousa Nascimento – PUC Goiás

Ivoni Richter Reimer – PUC Goiás

Editoras deste número


NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa; REIMER, Ivoni Richter. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.6, n.2, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Cultura (s) e as Diásporas Africanas nas Américas / Revista Mosaico / 2013

– Há muito que lhe queria dizer isto, Mwadia Malunga:

você ficou muito tempo lá no seminário, perdeu o espírito

das nossas coisas, nem parece uma africana.

– Há muitas maneiras de ser africana.

– É preciso não esquecer quem somos.

– E quem somos, compadre Lázáro, quem somos?

– Você não sabe?

A epígrafe que abre o dossiê traz um fragmento da obra “O outro pé da sereia” do escritor angolano Mia Couto (2009, p. 113), Dela destacamos a frase de Mwadia Malunga: “Há muitas maneiras de ser africana”. Para Mia Couto o conceito de africanidade não é o exótico e nem a folcorização da identidade, “mas antes, significa revalorizar as temáticas históricas e antropológicas; considerar os problemas éticos e explorar as tendências linguísticas do continente” (D’ANGELO, 2013, p. 197).

Nessa perspectiva a literatura ocupa um espaço singular. Carmen Lucia Secco (2003), por exemplo, destaca o ensaio como um gênero de grande importância, principalmente “no que se refere ao universo cultural africano, pois se oferece como espaço discursivo capaz de repensar a África, permitindo a recuperação de vozes e histórias do passado obliteradas ao longo do processo colonial” (SECCO, 2003, p. 273).

Historicamente podemos situar o recorte temporal (1920-1950) como o despertar da “consciência negra” veiculada pelo “Renascimento Negro” norte-americano, pelo Indigenismo Haitiano, pelo Negrismo cubano, pela Negritude de língua francesa. É nesse período, segundo Carmen Lucia Secco (2003, p. 274), que acorre uma significativa produção discursiva de vertente ensaística na área da filosofia, história, sociologia e política que se insurge contra a ordem colonial que oprimiu, por séculos, os negros do continente africano e os obrigou à diáspora.

No campo historiográfico contemporâneo observa-se um avanço na perspectiva da descolonização da História da África. Fato que reforçou novos vieses interpretativos. A novidade é a difusão de uma “antropologização” dos conceitos historiográficos. Além disso, aponta Muryatan Santana Barbosa (2008) que numa perspectiva africana, autores como Akinjogbin et al. (1981), vêm postulando uma ressignificação conceitual de categorias como poder e território, que passam a ser estabelecidas segundo seu sentido cultural nativo: akan, ibo e Joseph Ki-Zerbo. Boubou Hama (1980), no mesmo sentido, reclama pela compreensão singular de história e fazer histórico das próprias sociedades africanas (BARBOSA, 2008).

Nessa perspectiva, concluímos com outra passagem do escritor angolano.

Às vezes pergunto-me. De onde vem à dificuldade em nos pensarmos como sujeitos da História? Vem, sobretudo, de termos legado sempre aos outros o desenho de nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso clínico. Agora são ajudados a sobreviver no quintal da história (COUTO, 2009, p. 31-2).

Fazemos também nossas as inquietações de Mia Couto.

No Dossiê “Cultura(s) e as diásporas africanas nas Américas” publicamos estudos realizados em regiões nas duas margens do Atlântico com a intenção de contribuir para o conhecimento das culturas afro-atlânticas.

Abre o dossiê o artigo ”Entre africanidades y africanismo: fiestas publicas en Cartagena de Indias, Colombia” da autora colombiana Laura de la Rosa Solano. Nesse artigo ela aborda as transformações das manifestações culturais negras nas festas públicas em Cartagena de Índias, cidade que foi por muito tempo o maior porto do tráfico atlântico de escravos. O artigo investiga os blocos afros que desfilam na Festa da Independência e analisa as referências de matriz africana na questão identitária.

O segundo artigo apresentado por Dernival Venâncio Ramos e Márcio Araújo de Melo, intitulado “Edouard Glissant e a narrativa da descolonização” aborda a relação entre a narrativa negra caribenha e o processo de descolonização do Caribe nas décadas de 1950 e 1960. Nas obras do autor martinicano situa-se a legitimação da narrativa do processo de descolonização política das colônias europeias nas Antilhas.

No próximo artigo atravessamos o Atlântico até Angola. Cássio Santos Melo analisa em “Castro Soromenho e seus contos na Lunda do final da década de 1920” a fase inicial da obra do escritor angolano Castro Soromenho. O texto encaminha a discussão da relação entre literatura e etnografia, pois as obras analisadas dizem respeito a essa narrativa cuja temática se refere à cultura dos povos da Lunda, onde o autor viveu final da década de 1920.

O texto “Notas sobre a História da escravidão em Goiás”, por Allysson Fernandes García, discute as teses da escravidão benigna ou escravidão violenta em obras de referência sobre o tema da escravidão em Goiás, situando-as dentro das grandes linhas interpretativas sobre a escravidão.

No penúltimo artigo do dossiê, “Breve balanço da questão fundiária das comunidades Negras brasileiras”, Adelmir Fabiani faz um balanço da situação fundiárias das comunidades quilombolas brasileiras, bem como as lutas pelo seu reconhecimento. O autor discute a ambiguidade da posição do Estado que reconhece as comunidades, por um lado, mas não entrega os títulos das terras às comunidades, deixando-as fragilizadas quanto a problemas como pobreza.

Dois artigos sobre manifestações culturais e religiosas afro-brasileiras encerram esse dossiê. “Comunidade quilombola Lagoa da Pedra, Arraias (TO), e seu patrimônio imaterial” de Wolfgang Teske que aborda, através da Folkcomunicação, o modo como as populações quilombolas ressignificam suas práticas culturais, no caso a Roda de São Gonçalo, ao serem impactados por mensagens midiáticas.

O artigo “Os antigos que trabalhavam perfeitamente morreram: a memória da Umbanda em Araguaína – TO” de Sariza Oliveira Caetano Venâncio e Mundicarmo Ferretti aborda o significado da memória da “comunidade de santo” para os primeiros dirigentes dos terreiros, além de trazer uma história da Umbanda na região revelando suas conexões com os processos migratórios para a Amazônia a partir de 1960.

Na sessão de artigos livres, o texto “Compadre, sábado nós vamos lá no rio: espaço e natureza através de memórias dos ribeirinhos no Araguaia”, por Monise Busquets e Marina Haizenreder Ertzogue, aborda a memória de ribeirinhos do assentamento Falcão, (Araguatins–TO) e a relação de pertencimento com o rio Araguaia diante da construção de usinas hidrelétricas.

Em “O sertão de Goiás na Literatura de viagem” Daiany Ribeiro Teixeira investiga, através dos relatos de viajantes europeus no século XIX, a representação de sertão no imaginário dos viajantes que percorreram parte do território do Tocantins que pertencia à Goiás.

O artigo “Festas do Divino Espírito Santo em Portugal e Além-mar”, de Poliana Macedo de Sousa, estuda as festas religiosas em Portugal e sua difusão no Brasil e especificamente na cidade de Natividade, Tocantins, numa abordagem histórica e cultural da festa e de seus personagens.

No artigo que finaliza esse número da revista: “O sujeito virtual nas mídias sociais: contribuições da análise do discurso para a compreensão dos Fake”, Plábio Marcos Martins Desidério trata da categoria: “sujeito virtual” e analisa os fakes nas mídias sociais procurando contribuir para o conhecimento do modo como os discursos circulam nas mídias sociais.

Incluso nessa edição, a resenha de Gihane Scaravonatti da obra “O leão e a joia” do escritor nigeriano Wole Soyinka, relacionada com o tema do dossiê apresentado nesse número.

Referências

COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

______. E se o Obama fosse africano? E outras intervenções. Lisboa: Caminho, 2009.

BARBOSA, Muryatan Santana. “Eurocentrismo, História e História da África.” Sankofa 01, Revista de História da África e de estudo da diáspora africana. São Paulo, NEACP / USP, Junho de 2008. https: / / sites.google.com / site / revistasankofa / sankofa-01 / eurocentrismo-historia-e-historia-da-africa. Acesso em 06 / 08 / 2013.

D’ANGELO, Biagio. “Como recuperar o tempo pedido?” Todas as Letras. São Paulo: v. 15, n.1, 194- 204, 2013.

SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. “O entre-lugar do ensaio no contexto literário africano de língua portuguesa.” Scripta, Belo Horizonte, v. 7, n. 13, p. 272-285, 2º sem. 2003.

Dernival Venâncio Ramos

Marina Haizenreder Ertzogue

Editores deste número


RAMOS, Dernival Venâncio; ERTZOGUE, Marina Haizenreder. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.6, n.1, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Modernização e Religiosidade / Revista Mosaico / 2012

Os intercâmbios entre a religiosidade e a modernização são intermitentes. Entretanto, inspirados pela produção teórica europeia, os dois campos foram colocados muitas vezes em oposição. A religião, nesta perspectiva, precisaria decrescer para que a modernidade emergisse. A “lei” da secularização, ou do desencantamento do mundo, foi considerada inexorável em diversas áreas, como se fosse sinônimo de progresso. Em certo sentido, tal concepção tornou-se a filosofia da historia de muitos pesquisadores do campo religioso.

A observação dos movimentos religiosos na virada do século levou muitos a repensarem tal vertente interpretativa. Da oposição chegou-se à confluência e, até, à ideia de que, sim, a modernidade produz religiosidade. Claro, que os sujeitos que projetam culturalmente os sentidos sociais, classificados como religiosos ou não, modernos ou tradicionais, são integralmente os mesmos, inseridos em redes cada vez mais indeterminadas de trocas. O dossiê temático apresentado por este numero da Revista Mosaico reflete esta problemática de pesquisa.

O tema da secularização e da laicidade, tão central, é colocado como foco de discussão pelos dois artigos iniciais. O primeiro, escrito por João Miguel Teixeira de Godoy, aborda o tema a partir da historiografia eclesiástica e da concepção providencialista da história. Conclui que a sacralidade e o mítico estão presentes em diversos lugares considerados insuspeitos pelos teóricos da modernidade. Adentra, ainda, na análise da memória social, analisando algumas versões acerca da fundação da cidade de Campinas, em São Paulo.

Já o segundo artigo, se aproxima do tempo contemporâneo e se afasta em termos geográficos. Nele, Tarcísio Amorim Carvalho investiga o papel das confissões religiosas no espaço público europeu, comparando as decisões recentes dos governos francês e inglês acerca da laicidade política, bem como do pluralismo étnico-religioso. O tema da imigração, a noção de pertença, as identidade nacionais e, por conseguinte, os direitos humanos são analisados com erudição pelo autor, apontando como cada tradição político-filosófica embasa uma postura distinta quanto a convivência pacifica entre os grupos.

No terceiro artigo deste dossiê, a relação entre ciência e religião é abordada por Alfredo Bronzato da Costa Cruz a partir da relação pessoal entre dois pesquisadores: o jesuíta João Alfredo Rohr e o antropólogo Luiz de Castro Faria. A historia da arqueologia brasileira é ali tratada, bem como as politicas de preservação histórica, demostrando-se como ambas foram envolvidas por questões religiosas. O foco na atuação do Conselho Estadual de Cultura de Santa Catarina e na luta pela valorização patrimonial dos sambaquis em nada desmerece o escopo maior dos tópicos abordados pelo autor.

Os dois trabalhos seguintes nos levam a adentrar no mundo protestante. O primeiro deles, escrito por Ismael Fuckner analisa como a Igreja Adventista do Sétimo Dia no Brasil tem enfrentado as mudanças rápidas do mundo moderno. Esse grupo religioso é caracterizado socialmente por certos costumes tradicionais, como o cuidado com a alimentação e a guarda rigorosa do sábado enquanto dia santificado. Realizando o estudo de caso com uma comunidade em Belém do Pará, ele demonstra as adaptações que têm sido possíveis nas operações de manutenção identitária feitas pelo grupo.

O outro artigo, escrito por Bertone de Oliveira Souza, apresenta uma avaliação metodológica das principais tendências da historiografia protestante, exemplos do pluralismo religioso e científico em vigor na sociedade brasileira. A constituição de um campo de pesquisa, circundado por tantos debates e pré-conceitos, não é inocente. Neste artigo, a modernidade é um pressuposto do que os cientistas tem visto e escrito em suas produções.

Encerra o dossiê temático o trabalho de Eduardo Gusmão de Quadros acerca do tempo messiânico e do tempo secularizado que fora estabelecido pela historiografia. O autor analisa a noção de futuro em autores bem diferentes em termos de estilo e de época como Antonio Veira, Walter Benjamin e Enrique Dussel. Defende, por fim, que a noção de tempo aberto deve permanecer importante, tanto na hermenêutica do conhecimento histórico quanto na construção de uma teoria crítica.

O número inclui dois artigos livres, não relacionados com a temática central do dossiê. O primeiro, escrito por Deusa Maria Rodrigues Boaventura, trata da história de Goiás e demonstra como a politica indigenista foi central no processo de organização administrativa do território. A autora percorre o século XVIII desvelando a lógica dos aldeamentos indígenas e seus objetivos que estão muito além dos catequéticos e civilizatórios.

O segundo texto discute a questão da Linguagem e do Sentido, explorando as ideias deste pensador original que foi Henri Bergson. Rodrigo Tavares Godoi discute a teoria bergsoniana do conhecimento enquanto visão crítica da ciência, como era pensada nos finais do século XIX. Ele demonstra, inclusive, suas semelhanças e diferenças com o grande crítico da civilização científica que foi Nietzsche.

Por fim, apresentamos uma resenha do trabalho de doutoramento do professor Eduardo Sugizaki, da PUC Goiás, feita pelo professor Jean-Claude Dupont, da Universidade Julio Verne, na França, A temática da história de uma doença tropical é exigente quanto a formação transdisciplinar e a abordagem do autor merece o destaque pela inovação proposta nas páginas de seu trabalho.

O número encerra, como de praxe, divulgando as dissertações defendidas no Programa de Mestrado em História da PUC Goiás no segundo semestre de 2012.

Uma leitura proveitosa a todos!

A Comissão Editorial


Comissão Editorial. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.5, n.2, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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História Indígena no Brasil: diálogos interdisciplinares / Revista Mosaico / 2011

A partir dos anos 1990, a história indígena vem se solidificando, sendo escolhida como tema de dissertações e teses dos programas de pós-graduação em nosso país, tendência que também se verifica na América-Latina. Desde então, tem havido publicações de inúmeros trabalhos acadêmicos, completos ou sob a forma de resumos, em anais de eventos científicos, ou ainda como livros, capítulos de livro e artigos em periódicos. Uma das características presentes na maioria dos trabalhos científicos sobre a temática indígena no campo da História é o diálogo interdisciplinar necessário com a Antropologia, a Arqueologia, a Linguística, a Educação, entre outras. Temos deixado de delegar especialmente ao campo da Antropologia a responsabilidade sobre o passado dos diferentes grupos étnicos em nosso país, e nos temos permitido, através de um caminho interdisicplinar, realizar pesquisas históricas diferenciadas sobre o referido tema. Esse diálogo contínuo e o uso de diferentes fontes históricas, assim como de variadas temporalidades, permite-nos negar a tese do historiador oitocentista Francisco Adolfo Varnhagen de que para os índios não haveria história, mas apenas etnografia. O mais importante é que uma das preocupações da historiografia recente sobre história indígena é não construir mais uma imagem do índio genérico, ou apenas de vítima dos primeiros contatos com os não indígenas na América portuguesa, “dizimados” e “assimilados”, ou seja em processo de desaparecimento. Ao contrário, Silvia Porto Alegre assevera que, nos últimos anos, os campos da História e da Antropologia revelaram que cada grupo indígena tinha um caráter étnico de posicionamento frente ao não indígena nas diferentes regiões brasileiras. E, mesmo que negados no plano discursivo, os grupos étnicos continuavam e continuam existindo e estão cada vez mais organizados politicamente, afirmando a sua etnicidade. O recorte da etnicidade entendido como fenômeno político é importante porque revela que as práticas políticas integracionistas criadas desde o Antigo Regime até o Brasil república não conseguiram fazer “desaparecerem” os povos indígenas até os dias atuais.

Diante do exposto, é com grande satisfação que a revista Mosaico dedica este dossiê à história indígena no Brasil, em que foram selecionados textos de autores de vários estados brasileiros que optaram por manter diálogos interdisciplinares, seja na perspectiva teórico-metodológica, seja na perspectiva das fontes documentais. Textos que trazem aportes para mergulharmos nas diferentes formas de relações interétnicas entre povos indígenas e colonizadores, assim como nas agências indígenas, nas questões culturais, religiosas e políticas, enquanto sujeitos históricos que souberam se reinventar nos espaços criados pelos interesses dos não indígenas ao longo da história do Brasil.

Juciene Ricarte Apolinário


APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.4, n.2, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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História e Idade Média / Revista Mosaico / 2011

O dossiê “História e Idade Média” reflete a ampliação temática da Revista Mosaico, que acompanha o grande aumento do interesse pelos estudos medievais, fato este comprovado pelo número de pesquisas presentes nos diversos programas de pós-graduação do Brasil. Dentro desta perspectiva, os artigos que compõem a primeira parte da Revista, o dossiê, apresentam um variado leque de possibilidades de análise e de discussão sobre temas relativos ao medievalismo.

Na segunda parte deste número da Mosaico, encontramos três artigos que trabalham com a perspectiva da interlocução entre História e Direto; são eles: “Os últimos anos da escravidão e a tensão social em processos crime: ações de escravos e senhores”, de Murilo Borges Silva; “Percorrendo os caminhos do Direto Civil Brasileiro”, de Rita de Cássia de Oliveira Reis; e “História e tutela jurídica do meio ambiente no Brasil: limites e efetivação”, de Jean-Marie Lambert, Roberta Elaine de S. N. Barros e Thiago Martins Barros.

Este volume é constituído por textos de vários pesquisadores oriundos de diversas universidades como UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), UFPR (Universidade Federal do Paraná), UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso), UFG (Universidade Federal de Goiás), PUC-GO (Pontifícia Universidade Católica de Goiás), UEG (Universidade Estadual de Goiás) e UC (Universidade de Coimbra).

Esperamos que este número da Revista Mosaico encontre abrigo também entre novos leitores.

Renata Cristina de Sousa Nascimento

Dirceu Marchini Neto

Os Organizadores

NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa; MARCHINI NETO, Dirceu. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.4, n.1, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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História, Literatura e Fronteiras / Revista Mosaico / 2010

O presente número da Revista Mosaico, do Programa de Mestrado em História, Cultura e Poder da PUC Goiás, tem como tema-chave História, Literatura e Fronteiras, tema sugestivo e atual, que releva as relações que a História e a Literatura vêm travando desde os anos 60 do século XX, especialmente no tratamento da Literatura como fonte da História e das sensibilidades. O número assinala com muita competência essa perspectiva, principalmente na dominante da formação dos estados nacionais da América Latina, dado que pelo menos três artigos assinalam essa dimensão: o de Cléria Botelho da Costa, professora do Programa de Pós-Graduação em História da UnB, que aborda alguns aspectos da obra poética de Castro Alves dedicada aos escravos e à escravidão no Brasil do século XIX, a qual, segundo a autora, rompeu os cânones do imaginário da determinação biológica da cultura pertencente à elite imperial, ao cantar o negro escravo dentro de um projeto de formação de um estado nacional de homogeinização que o ignorava. Para ela, Castro Alves exerceu, na construção da identidade nacional, uma forma de se contrapor ao projeto colonialista, muito embora suas marcas românticas e nacionalistas; o de Horst Nitschack, coordenador do Centro de Estudios Culturais Latinoamericanos (Cecla) da Universidad del Chile, que discute a contribuição, durante o processo de formação dos Estado-Nações europeus, das literaturas emergentes nacionais à criação de um espaço público, indispensável para a integração de distintos atores e comunidades culturais dentro de suas fronteiras e para o diálogo com outros estados-nações, muito embora também a consolidação da instituição ‘literatura nacional’, literatura aqui como processo de semantização, tenha chegado a ser um instrumento de exclusão desde dentro e de separação desde fora; e, no mesmo sentido, o artigo de Horacio Miguel Hérnan Zapata, da Universidad Nacional de Rosário, Santa Fé, Argentina, que questiona a construção do estado-nação argentino desde a revolução de mayo de 1810, cuja pauta negou e lesionou a visibilidade do indígena dentro de um projeto nacional também de homogeinização, que buscava erguer um “país racial e culturalmente superior”. Descreve como a desaparição do indígena ficou clara e explícita dentro das políticas estatais que vigoraram entre o centenário e o bicentenário dessa que foi a revolução mais importante do estado argentino.

Na sequência dessa trilogia dedicada ao tema da formação de estados nacionais do Brasil e Latino-América, temos o artigo de Gercinair Silvério Gandara, pós-doutoranda do PND / Capes UFG, que discute dois temas que são caros ao brasileiro e, em especial, ao povo goiano: o sertão e a fronteira. O artigo aponta que, no Brasil, a fronteira aparece como o limite do humano. À primeira vista, é o lugar do encontro dos que, por diferentes razões, são diferentes entre si, como os proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres de outro. No seu modo de ver, no entanto, é o lugar do encontro de relações sociais, mentalidades, ou melhor, de relações diferentes. Daí estender seus argumentos à cidade de Uruaçu, Goiás, como cidade-fronteira, baseada especialmente no pensamento de José se Souza Martins sobre o tema.

Sobre Goiás, temos ainda o autor Bernardo Élis, cuja obra O Tronco, de 1956, é discutida por Albertina Vicentini, professora do Mestrado em História da PUC Goiás e bolsista-pesquisadora do Cnpq, que analisa a obra do ponto de vista da sua realização enquanto romance histórico tradicional, evidenciando nele as marcas da convenção realista exigida por G. Luckács e discutida, na literatura, por Roman Jakobson e Phillipe Hamon.

Outros autores analisados são o gaúcho Cyro Martins, na sua Trilogia do Gaúcho a pé, ou seja, o gaúcho marginalizado pela urbanização e mecanização do campo, que Carlos Roberto Rangel, professor do Centro Universitário Franciscano de Santa Maria, RS, juntamente com as bolsistas PIBIC Simone Becker Ferreira e Fabiula dos Santos Martins analisam, demonstrando o realismo social do autor que denuncia a penúria do homem rural e as transformações das cidades interioranas do RS, o choque entre o tradicional e o moderno; e Alcindo Guanabara, cujas crônicas são avaliadas por Marina Haizenreder Ertzogue, professora da UFTocantins e pesquisadora do Cnpq, sob a perspectiva da melancolia e da angústia, do pessimismo de Schopenhauer, comparando-o ao Edgar Allan Poe contista do “Homem das Multidões”.

Há ainda o artigo de Claudio Carlan, professor da Universidade Federal de Alfenas-MG, sobre a moeda como documento, que pode informar sobre os mais variados aspectos de uma sociedade, tanto o político e estatal, como o jurídico, religioso, mitológico ou estético. As moedas como as medalhas são estudadas pela numismática e, no caso romano, esses símbolos monetários teriam tido, segundo o autor, também um papel de passar uma mensagem aos governados, uma espécie de propaganda política / imperial. A cunhagem monetária associada ao retrato e à propaganda configurava esses dois aspectos intimamente ligados. De outro lado, as moedas ainda são instrumentos importantes para estabelecer a datação de documentos e eventos que chegaram até nós sem seu contexto original, como são de grande valia na nossa compreensão das imagens que contêm. Ou seja, a numismática conserva um fragmento da história do homem que, segundo Frère, se coloca hoje como uma disciplina científica através da qual podem ser estudados muitos aspectos de uma determinada sociedade. É uma ciência que tira da aridez do seu estudo grandes subsídios históricos.

Esperamos que este número corresponda às expectativas de nossos leitores vez que trabalha a releitura da História oficial sob a perspectiva da exclusão e da marginalidade de atores sociais ativos, como o indígena ou o negro, e que correram por fora por conta de projetos elitizados e de construção política hegemônica de cada Estado-nação avaliado. E também porque chama alguns literatos e objetos concretos como as moedas como testemunhos de uma História que pode ser lida tanto a partir das convenções quanto das sensibilidades.

Albertina Vicentini

Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante

Editoras


VICENTINI, Albertina; CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.3, n.2, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura: a partilha do sensível / Revista Mosaico / 2010

Há um retrato de água e de quebranto

Que do fundo rompeu desta memória,

E tudo quanto é rio abre no canto

Que conta do retrato a velha história.

(Saramago, Lisboa, 1981)

A presente edição da Revista Mosaico apresenta artigos produzidos e apresentados no IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA: Cultura e Identidades (2009), cujas discussões foram encaminhadas no Simpósio Temático “História e Literatura: a partilha do sensível” (ST 23), que trazem para o público interessado, retratos que contam velhas e muitas histórias, vindas do fundo de muitas memórias reconstruídas, que se abrem em cantos e sonoridades pelas mãos daqueles que também narram experiências e estudos produzidos em diferentes contextos, tendo como referência criações literárias.

As propositoras do Simpósio Temático, as professoras Cléria Botelho da Costa (UnB) e Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante (PUC GOIÁS), consideram que, a relação entre história e Literatura vem se configurando como um dos novos desafios propostos pela historiografia recente, em especial pela Nova História Cultural que está atenta para os significados atribuídos ás práticas sociais, enquanto representações do real, aos valores, as múltiplas linguagens, formas diversas de acesso ao vivido.

Esse movimento da historiografia em direção às questões culturais tem feito cair as muralhas rígidas que separavam a história da literatura, do cinema, da música, possibilitando que ficção e realidade se misturem, fazendo entender que a sensibilidade, a ficção não se configuram como o avesso do real, mas como uma outra forma de entendê-lo.

Se a literatura é apreendida como o reino de expressão das sensibilidades, das emoções humanas, a história também é hoje compreendida como uma construção de sujeitos sociais que têm sonhos a realizar e dores a mitigar, portanto, como uma narrativa que abriga sensibilidades, emoções humanas e as partilha com seus leitores. Por essa razão temas como: a saudade, o amor, a vingança, o desamor etc., antes tão renegados pelos seguidores de Ranke, hoje cintilam no palco iluminado da historiografia. Com essa compreensão, foi propósito do simpósio pensar o texto literário e o texto histórico enquanto artefatos culturais, ou seja, representações do real, construções identitárias considerando, sobretudo, que as sensibilidades e as emoções constituem os fios de suas narrativas. Sem, no entanto, deixarmos de realçar que se a História e a Literatura são narrativas que abrigam pontos de intercessão, elas, também, guardam diferenças que lhes são peculiares. Para essa intercessão convergem as reflexões dos autores dos artigos aqui apresentados. O artigo de Maria Célia da Silva Gonçalves, intitulado “Sensibilidades e Perfomances Femininas nas Folias de Reis de João Pinheiro (MG)”, trata da participação das mulheres nos rituais de Folias de Reis realizados no município de João Pinheiro, traz a sensibilidade da rainha da festa, da cozinheira, da florista, dentre outras.

No fio condutor das tessituras femininas, o texto de Vandeir José da Silva, refelete sobre “O papel da mulher na festa de Caretagem e a culinária”, na Festa de São João”, em Paracatu (MG). Embora, o foco central da festa de caratagem seja uma dança da qual participam somente os homens negros da comunidade, as mulheres, por outro lado, assumem a condição de protagonistas ao organizarem o “banquete” dos festejos; assim como ao exercerem a arte de confeccionar as máscaras e vestimentas dos caretas, para uma homenagem a São João.

Os “Benzedores e Raizeiros”[…], trazidos por Giselda Shirley da Silva, do mesmo lugar do noroeste mineiro, revelam os “saberes partilhados na comunidade remanescente de Quilombo de Santana da Caatinga(1940-2011)”, as práticas e artes dos fazeres que foram se institucionalizando na trajetória histórica daquela coletividade e nas suas relações com a religiosidade e as tradições orais e culturais.

Nos mesmos percursos do sertão mineiro, o artigo: “Memórias e Narrativas de Antigos Sertanejos: nas trilhas de Guimarães Rosa”, de Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida, sobre as memórias e narrativas de pessoas que ocuparam a região do Grande Sertão, nos tempos de outrora, reconstrói também as rotas por onde andou o escritor Guimarães Rosa. Os textos do noroeste mineiro, assim, parafraseando outro escritor, trazem: “[…] água de quebranto […] do fundo desta memória […], conta do retrato a velha história” (Saramago, 1981).

“Entre Anjos e Demônios Surgem as mulheres de Alencar” de autoria de Ana Carolina Eiras Coelho Soares, também conduz às sensibilidades femininas, relembra os dramas da sociedade carioca do século XIX, por meio das análises do romance “Lucíola” de José de Alencar e as polêmicas em torno da peça teatral “As Asas de um Anjo”, também, desse autor; ambas retratam com realismo os preconceitos e os modos de agir e pensar naquele momento histórico. Confirmando mais uma vez, que “a história não é menos uma forma de ficção do que o romance é uma forma de representação histórica,” como lembra Haydem White, em Trópicos do Discurso (2001).

O artigo “Cora Coralina: A Voz Que se Pode Ouvir” de Eliz Braz da Silva Junior e Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante, recorre à voz de Cora Coralina, em sua obra: “Estórias da Casa Velha da Ponte”, para encontrar na poética da autora as sensibilidades de um tempo, em torno de um episódio de condenação à forca, que expressa a relação entre cidade e cadeia em Goiás, séc. XIX.

Lembrando as dores e instabilidades das guerras, os dois textos inspirados em romances de escritores tanto aqui como do além mar. Um deles, o texto “Jorge Iaiá de Machado de Assis na Guerra do Paraguai,” de Tiago Gomes de Araújo e outro de Maria do Carmo Ferraz Tedesco sobre a “Reconfiguração da moçambicanidade nos romances de Mia Couto e Paulina Chiziane”. O primeiro refere-se ao romance escrito por Machado de Assis, sobre os controvertidos “motivos que direcionaram o alistamento de alguns indivíduos para o mencionado embate”. O segundo, traz reflexões sobre as incertezas e instabilidades que marcaram o continente africano na transição do século XX ao XXI, tendo como palco os movimentos de independência política.

Das ruas e do flâneur, falam Cléria Botelho da Costa e Maria Helenice Barroso, das cidades e do Brasil que se desenhavam no inicio do século XX; com o artigo intitulado “Sedução das Ruas”, analisam o livro A alma encantadora das ruas, considerando a cidade imaginada pelo literato e as interfaces multidisciplinares entre literatura e o tempo histórico. Concordando com as autoras de que literatura quase sempre retrata o contexto social em que a narrativa transcorre. Autores de romances, de peças teatrais e das diferentes produções literárias, reconstroem suas visões de mundo e as suas experiências de vida por meio dos diálogos com o seu tempo e os lugares de onde miram as diferentes perspectivas sobre as quais desenham os seus enredos.

Por fim, os artigos Memórias de um “Tempo Brabo”: O cangaço na literatura de Francisco J. C. Dantas, de Antônio Fernando de Araújo Sá e Desconstruindo a História: Hayden White e a Escrita da Narrativa de Gabriella Lima de Assis e Marcus Silva da Cruz, inseridos na seção tema livre.

Assim, aqueles que narram, sejam os que se dedicam à literatura considerada erudita, sejam aqueles do cancioneiro popular, como cordelista, repentistas, e tantas outras manifestações artístico-culturais, que recorrem à linguagem escrita, falada ou à tradição oral ancoram na perspectiva de reconstrução do imaginário, das ideias, das representações.

Navegam orientados com os mastros do mundo que os circundam e bebem nas fontes e correntezas da vida, da experiência inscritas num espaço povoado por personagens fictícios (ou não) que encarnam as vissitudes de seres humanos reais ou imaginários. Assim, citando mais uma vez, o escritor lusitano, “estou onde versos faço” (Saramago, 1981), autores e escritores narram dos lugares, em tempos e espaços circunstanciais e subjetivos.

Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante

Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida

Cléria Botelho Costa

(Organizadoras)


CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa; ALMEIDA, Maria Zeneide Carneiro Magalhães de; COSTA, Cléria Botelho. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.3, n.1, jan. / jun., 2010. Acessar publicação original [DR]

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História e Religião / Revista Mosaico / 2009

Há muito tempo alguém escreveu que a característica básica do mundo religioso é a presença do sagrado. Este seria meio indefinível, fugaz, mais emocional que racional, algo que ficaria contido nas profundezas subjetivas da fé. As Ciências Humanas, desde os grandes clássicos, tem adotado outra postura, na tentativa de explicar esses mistérios que tanto fascinam os povos.

A história cultural tem renovado o campo dos estudos religiosos. Busca-se o enfoque mais na experiência que nas regras, mais nos sujeitos que nas instituições. Este número da revista Mosaico traz em sua seção Dossiê um conjunto de sete textos enfatizando as possíveis relações entre História e Religião.

No primeiro artigo, Considerações sobre a trajetória inicial da arqueologia bíblica, Gabriella Barbosa Rodrigues e Pedro Paulo A. Funari procuram descrever como os inícios da arqueologia bíblica estão marcados por uma mistura de interesses políticos, econômicos, científicos e apologéticos, que demarcaram a investigação.

No texto Nas catacumbas de Roma: uma ‘história da morte’ para reconstruir vidas, Ivoni Richter Reimer procura mostrar como as imagens e inscrições das catacumbas de Roma preservam a memória de mulheres e crianças e como o uso de referenciais da ‘história da morte’ e da intertextualidade habilita ao entendimento do imaginário, revelando parte da vida destas pessoas no contexto familiar e eclesial.

Wilhelm Wachholz, em seu texto Identidades forjadas na interdependência: o caso católico e protestante no Brasil do século XIX, procura mostrar como a inserção e o estabelecimento do protestantismo no século XIX forjou uma nova identidade religiosa no Brasil. Esta foi construída, basicamente, em embates com o catolicismo romano. Foi, portanto, na différance, que delimita as fronteiras simbólicas de cada um, através de discursos de oposição ao outro.

No artigo Ciência e religião: a relação entre médicos e religiosos no instituto de psiquiatria do HCUSP, Luiza Maria de Assunção busca perseguir a pergunta acerca do nível em que se dá a relação entre ciência e religião na atualidade, por meio de pesquisas sobre a relação da medicina psiquiátrica e com a capelania religiosa do Instituto de Psiquiatria do HCUSP, composta pelo serviço religioso católico e evangélico.

Com o texto Sacerdotisas do Sertão: histórias religiosas, Jocyléia Santana Dos Santos busca narrar a história de mulheres que implantaram a religiosidade da denominação batista entre o final da década de 1930 até o início dos anos 1980 na região norte do estado de Goiás.

Lourival Andrade Junior, em seu texto Acendam seus Cigarros: cigana Sebinca Christo e a religiosidade não oficial, busca como se dá a constituição da religiosidade não oficial no contexto da cidade de Lages, em Santa Catarina, analisando a trajetória da cigana Sebinca Christo e a reverência que ela desperta, principalmente, post mortem.

Por fim, André Luiz Caes, em A “Orientalização do Ocidente”: elementos reflexivos para a compreensão da interação e integração entre os valores religiosos orientais e ocidentais, busca mostrar como no campo de estudo das chamadas Ciências da Religião, nas últimas décadas, a interação entre os valores religiosos ocidentais e orientais tem sido um tema de grande interesse. Ele reflete sobre a tese da “orientalização do Ocidente”, a qual propõe que as crenças e valores religiosos do Ocidente estão em processo de substituição pelas crenças e valores religiosos característicos das religiões orientais.

Na seção Artigos figuram dois textos. No primeiro, “Em busca do tempo perdido”: contribuição ao estudo da cidade contemporânea, Eda Goes aborda a questão da violência, no âmbito dos estudos sobre a cidade contemporânea, buscando demonstrar a importância dos estudos históricos entre as pesquisas interdisciplinares necessárias ao enfretamento da complexidade que caracteriza o urbano. Utilizando principalmente entrevistas, a autora volta sua atenção às representações sociais da violência e a sua expressão, material e simbólica, nas realidades não metropolitanas do Estado de São Paulo.

O segundo texto, de Jales Guedes Coelho Mendonça, intitulado A queda de Bonfim e a escolha prévia de Campinas, aborda também a história urbana. Estuda como foi a tomada de decisão acerca do local para a construção, do que seria, a nova capital do Estado de Goiás.

Na seção de Resenhas, trazemos uma análise da obra Cristianismos no Brasil Central (Editora da UCG, 2008), escrita por Raquel Miranda.

Por fim, na seção Resumos de dissertações, são apresentados os resumos de duas dissertações defendidas no segundo semestre de 2009 no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História na Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Agradecemos a ajuda do academico de direito Cassius Dunk Dalosto pela ajuda na leitura e formatacao dos textos, bem como ao doutorando Claude Detienne pela traducao dos resumos ao inglês.

Desejamos bom proveito na leitura!

Eduardo Quadros – Professor da Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Haroldo Reimer – Professor da Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás


QUADROS, Eduardo; REIMER, Haroldo. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.2, n.2, jul. / dez., 2009. Acessar publicação original [DR]

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História e Espaço / Revista Mosaico / 2009

Este terceiro número da revista Mosaico dedica-se a explorar um campo de estudos muito interessante: História e Espaço. Em 2007, a Profª. Drª. Adriana Mara Vaz de Oliveira elaborou a disciplina “História e Espaço” para o Programa de Mestrado em História da Universidade Católica de Goiás, visando atender a uma demanda crescente de historiadores que voltam os seus focos de interesse nessa direção.

Para delimitar esse universo, assim o definiu: “estudo da cidade e do espaço rural relacionado à idéia de ‘cultura’ numa aproximação entre a história, o urbanismo, a arquitetura e a antropologia, considerando as relações entre paisagem, práticas espaciais, significado, simbolismo, identidade, conflitos sócio- espaciais e memória. A dimensão cultural dos conceitos de cidade, paisagem e região. A cultura como definidora de um novo olhar sobre o ambiente construído – cidade e espaço rural – delineado pela paisagem regional, memórias e identidades.”

Ministrada há dois anos, a disciplina “História e Espaço” tem oferecido um leque importante de conhecimento para os mestrandos que, como historiadores contemporâneos, ousam estender os limites tradicionais de suas áreas de pesquisa ou reconhecem tangências importantes de seus objetos de estudo com o campo temático em pauta.

Diante disso, a revista Mosaico vem prestigiar a troca de experiências nesse âmbito. No presente número apresenta-se uma relevante produção de artigos científicos, sete deles concernentes ao Dossiê História e Espaço e outros dois com temática livre. Também se disponibilizam os resumos de dissertações defendidas no Programa de Mestrado em História da UCG no primeiro semestre de 2009.

O primeiro artigo do dossiê, “El espacio moderno: arte, arquitetura y sociedad”, de Isadora Espinosa Risolo, fala do processo de criação do espaço moderno pelas vanguardas no início do século 20.

“As Minas e o templo – o caso de muitos casos”, de Cláudia Mudado Teixeira, é um texto que viaja para os arraiais das minas setecentistas, refletindo sobre a influência da Igreja na sua organização e consolidação, usando como instrumento a legislação portuguesa.

Raquel Naves Blumenschein, no artigo “Introduzindo sustentabilidade na cadeia produtiva da indústria da construção”, põe em pauta um tema que desafia os pesquisadores de hoje: a sustentabilidade na produção do espaço construído.

Rodrigo Santos Faria escreve sobre a origem dos eventos históricos, usando as artes visuais como parâmetro para dialogar com estudos de Paul Veyne sobre a escrita da história no texto “Velázquez e Veyne, e as articulações entre a pintura e a história: os processos relacionais na constituição da origem dos eventos históricos”.

Alice Fátima Martins trabalha cinema, ficção científica e cidades em “Cartões postais de cidades que habitam filmes de ficção científica”. Com muita criatividade, busca observar as transformações nas paisagens, desde o início do século 20, através de cartões postais imaginados de cidades de filmes de ficção científica.

“Ad Insulam brasilis: imaginário e construção do território goiano”, artigo de Deusa Maria R. Boaventura, lança luz sobre o mito do ouro na capitania de Goiás, observando que a averiguação desse imaginário deu-se por meio da cartografia.

Finalizando o dossiê, Adriana Mara Vaz de Oliveira e Elane Ribeiro Peixoto apresentam “Estudos de bairros: entre a arquitetura e a história”, texto que privilegia o estudo dos bairros de Goiânia sob a perspectiva de sua vida cotidiana. Enfocam, particularmente, o bairro Jardim Goiás.

Como tema livre, Marie-Claude Muñoz, professora da École des hautes études en sciences sociales, fala da relação entre franceses e portugueses no início do século 20 em “Les relations franco-portugaises de 1916 à 1918”.

Maria Claudia Bonadio usa como fontes de pesquisa as revistas O Cruzeiro e Manchete, entre 1960 e 1964, para estudar, via publicidade da Rhodia Têxtil, a qualidade internacional da moda produzida no Brasil. Seu artigo intitula-se “A ‘revolução no vestuário’: publicidade de moda, nacionalismo e crescimento industrial no Brasil dos anos de 1960″.

Espero que apreciem,

Márcia Metran de Mello – Professora Doutora. Organizadora


MELLO, Márcia Metran de. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.2, n.1, jan. / jun., 2009. Acessar publicação original [DR]

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História dos Rios no Brasil / Revista Mosaico / 2008

O presente número da revista Mosaico traz como temática a História dos Rios no Brasil. Essa temática é fruto da aproximação e cooperação acadêmica entre universidades brasileiras e francesas (Universidade Federal de Goiás, Universidade Católica de Goiás, Universidade Federal do Piauí, Universidade de Brasília, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal do Para, Universidades de Paris III – Sorbonne, Universidade de La Rochelle, entre outras). Essa cooperação inclui o intercâmbio de pesquisadores e a realização de eventos tanto no Brasil como na França, assim como, publicações conjuntas. Como parte dessa cooperação realizamos o segundo1 seminário franco-brasileiro que teve como temática “a cidade e os rios na história do Brasil”. O objetivo do mesmo foi entender de modo mais agudo o papel dos rios e das vias de comunicação naturais na estruturação de uma rede urbana regional e nacional (sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII) e de entender a dupla formação das cidades ribeirinhas, umas nascidas do porto, e outras virando as costas para o rio. Procurou, ainda, entender a configuração das identidades nestas cidades entre a atração do rio e a atração do interior. O IIº Seminário Itinerante Franco-brasileiro “A cidade e os rios na história do Brasil” teve como referencia o estudo de casos tendo como ênfase o rio Parnaíba no Piauí. Três cidades foram visitadas e sediaram os encontros acadêmicos: Teresina-PI, Parnarama- MA e Parnaíba -PI. Elegemos as cidades beira-rio Parnaíba por oferecerem um panorama que bem representam o papel histórico dos rios e das vias de comunicação naturais na estruturação de rede urbana regional e nacional. A realização do II Seminário Franco-Brasileiro aproximou, ampliou e consolidou a cooperação acadêmica de uma rede de pesquisadores que animará a organização dos próximos seminários itinerantes franco-brasileiros. O próximo está previsto para ser sediado em Belém do Pará tendo as cidades e os rios da Amazônia brasileira como temática.

A revista Mosaico se compõe de duas sessões. A primeira apresenta um Dossiê “História dos Rios no Brasil” reunindo artigos produzidos por pesquisadores, de diferentes Universidades brasileiras, que participaram do referido evento, trazendo contribuições significativas em torno da temática escolhida para nortear esta coletânea. Nesses artigos encontram-se reflexões que abordam diferentes aspectos da história dos rios no Brasil. Em sua maioria, resultados de pesquisas do grupo e foram apresentados oralmente no II Seminário Itinerante. Quando da realização do Seminário no Piauí, uma das participantes do encontro, a professora Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante afirmou: “apaixonemos- nos, então, pelos nossos temas e nas águas do Parnaíba, vamos com eles navegar”. Façamos nossas as palavras da professora e convidamos nossos leitores a navegar um pouco nas águas da história dos rios e cidades ribeirinhas do Brasil. O artigo “rio Parnaíba… sua figuração humana e poética” da professora Gercinair Gandara considera além dos contornos geográficos os contornos simbólicos do rio Parnaíba. Observa que na poesia, no romance e na literatura expressou-se a realidade do rio Parnaíba. O artigo do Professor Leandro Rocha intitulado “Aruanã- GO: identidades e fronteiras étnicas no rio Araguaia” trata da história recente de uma pequena comunidade de índios Karajá localizada no vale do Rio Araguaia, que aos poucos se viu engolfada por um núcleo urbano, a cidade de Aruanã-GO. Trata-se especificamente dos Karajá da aldeia de Buridina que viram aos poucos seu território tradicional ser confinado a um pequeno conjunto de casas à beira de um barranco do rio Araguaia. O artigo da professora Vanessa Brasil “O rio São Francisco – a base física da unidade nacional do império” identifica o rio São Francisco como a base física da unidade nacional do Império em distintos períodos da história brasileira. O artigo da professora Carmem Izabel Rodrigues “O bairro do Jurunas, à beira do rio Guamá” nos apresenta o bairro do Jurunas, em Belém, situado à beira do rio Guamá e que se configura como um lugar de fronteira, isto é, ao mesmo tempo, de inclusão e exclusão, de separação e comunicação entre espaços urbanos e rurais, entre os quais circulam, em contínuos movimentos e fluxos, bens e serviços, saberes e práticas, sujeitos e identidades. A professora Maria do Espírito Cavalcante em seu artigo “Um rio que passou: o discurso do atraso em perspectiva” retoma, sob o viés da “modernidade”, as narrativas do discurso autonomista do Tocantins e mesmo das falas dos moradores da então região Norte de Goiás, a questão do isolamento e do atraso da margem direita da BR 153, por onde passa o Rio Tocantins, percebendo um outro lugar daquele rio na narrativa histórica contemporânea. A professora Maria de Fátima Oliveira no artigo “rio Tocantins: lugar de memórias e identidades” nos apresenta um estudo sobre memória e identidades nas margens do Rio Tocantins, Argumenta como, em um determinado espaço e tempo, uma identidade foi se construindo, se fragmentando e se reconstruindo devido às transformações ocorridas na região. Mostra, ainda como valores partilhados e sedimentados por ribeirinhos ao longo dos séculos foram se transformando em resposta às rupturas. Cendrine Paul-Guers no artigo “o rio Oyapoque: povos indigenas e fronteiras” analisa o papel tradicional do rio como lugar identitário e de subsistência. Evidencia como a situação de fronteira provocou uma superposição de identidades. No artigo “O São Francisco partiu minha vida em duas partes” Sebastião Rios e Carolina Santos explicam por meio da narrativa do romance Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa, que narrar ordena o viver em busca do sentido. Explica que nesta literatura, o movimento do rio é uma metáfora do movimento da vida que manda em todos e não manda em si, porque é cavalgado pelo “outro”. Luciana de Fátima Oliveira, em “a vila de Bragança, rios e caminhos: 1750-1753” trata da formação e do desenvolvimento da vila de Bragança localizada na capitania do Grão-Pará e Maranhão. Evidencia a importância dos rios e caminhos no crescimento e o desenvolvimento da vila inserido num período de re-ordenamento territorial da região e de projetos políticos de poder. O Professor José Luis Lopes Araújo em “O rastro da carnaúba no Piauí” levanta questões acerca das áreas produtoras de pó e cera de carnaúba no Estado do Piauí ressaltando o período em que algumas cidades situadas às margens do rio Parnaíba viveram época de intensa atividade comercial, como é o caso, entre outras, de Parnaíba que se constituiu no principal centro comercial do estado. No período analisado o rio Parnaíba era a via de transporte mais eficiente, que além de navegável em todo o curso, corria ao lado de toda a área produtora. Para ele a cidade de Parnaíba e o rio Parnaíba estavam para o Meio-Norte, assim como Amsterdã e o Reno estavam para a Europa.

A segunda sessão da revista Mosaico se compõe de artigos sobre temáticas variadas da História. O professor Ernst Pijning no artigo “Norms and Values of the Brazilian Interior A study of eighteenth-century testaments from Serro do Frio, Minas Gerais” explica a partir dos testamentos dos anos quarenta oitocentista em Serro-MG / Brasil que inicialmente eram os valores da igreja e da lei que preocupavam os testamenteiros mineiros, mas posteriormente eram comas normas e costumes das sociedades locais que se preocupavam. O do professor Alexandre Martins de Araújo “Trinidad século XIX: Estratégias culturais entre Indianos e Afro-descendentes na festa Muçulmana do Hosay” é um estudo que discute o relacionamento entre as comunidades de Indianos e Afro-descendentes em Trinidad, durante o século dezenove. A professora Teresinha Marra, em “integração latino-americana e sua inserção no mundo globalizado” analisa os obstáculos (rivalidades históricas e interesses conflitantes) para a integração da América Latina, o papel dos Estados nos processos de globalização e regionalização. Discute ainda o papel do Brasil e a integração física na América do Sul e os possíveis custos da não integração. O professor Edson Arantes Junior em “Diálogos dos Mortos sobre os Vivos: Uma crítica Luciânica à Cerimônia de Apoteose do Imperador Romano” analisa algumas possibilidades interpretativas dos Diálogos dos Mortos de Luciano de Samósata, procurando elucidar os usos da mitologia e da escrita ficcional como elemento de crítica cultural no Império Romano.

Nota

1. Em agosto de 2004, realizamos o primeiro seminário itinerante franco-brasileiro sobre a história das cidades brasileiras organizado no Estado de Goiás, com o apoio da Universidade Federal de Goiás, da Universidade Estadual de Goiás e da Universidade de La Rochelle. A temática deste simpósio (“a cidade no Brasil: nascimentos, renascimentos – Séculos XVIII – XX”) buscava refletir sobre a multiplicidade das formas de surgimento das cidades e do urbano nas regiões de fronteiras do Brasil.

Gercinair Silvério Gandara – Professora Doutora UNIP / UFG

Leandro Mendes Rocha – Professor Doutor UFG

Laurent Vidal – Professor Doutor Paris III- Sorbonne Nouvelle / Université de La Rochelle

Organizadores


GANDARA, Gercinair Silvério; ROCHA, Leandro Mendes; VIDAL, Laurent. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.1, n.2, jul. / dez., 2008. Acessar publicação original [DR]

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História Cultural em Perspectiva / Revista Mosaico / 2008

Mosaico: história, cultura e poder

Uma nova revista, dentre tantas, o que pode trazer de novo? Uma entre outras, mas que se arrisca a tentar formar um conjunto novo. Ou, assumindo-se a pretensão, redesenhar o quadro de uma historiografia aberta. A revista do Programa de Mestrado em História da UCG que ser um espaço amplo para a execução de mosaicos historiográficos.

Talvez apenas demonstrá-los. Desde há muito que a história deixou de ser pensada no singular. Não que algum dia o tenha sido realmente, mas assim acreditávamos. Depois se denominou aquilo que chamávamos História, com H maiúsculo, de “história historicizante”. Uma redundância, óbvio: um excesso para demonstrar uma carência. Contra tal pobreza (de espírito?), foi invocado pelos próprios historiadores, ao menos pelos bons, o imperativo da interdisciplinaridade.

Mas por que ele ainda parece nos desafiar? Será que após mais de um século de historiografia científica, ainda nos fazemos surdos perante as demais ciências? Ou tal deficiência seria congênita aos saberes de Clio? Se a resposta a essas questões mereceria um exame aprofundado que não cabe aqui, fiquemos com o diagnóstico: uma História pluralista, como a vida, permanece como um embate do presente.

A revista Mosaico, portanto, possibilita um campo para essa luta. Reúne a perspectiva histórica às noções englobantes de cultura e poder. Três conceitos indelimitáveis, ilocalizáveis, que beiram o indefinível. Por outro lado, interrelacionados em sua essência. Sempre que separados, o resultado obtido será um enfoque profundamente deficiente. Um está complementando o outro, remetendo para o outro sem perder sua especificidade.

Daí a idéia de uma história mosaical. Se o saber histórico visa a apreensão do particular, do específico, ele só é construído quando os articula numa dimensão geral. Os historiadores, destarte, configuram quadros onde diversos vestígios devem ganhar sentido. A caracterização de uma época não é mais importante que a de qualquer evento. Não estão correlacionados? Não há como hierarquizar. Todos compõem o âmbito da narrativa histórica.

Mas dentro dessa relativa indeterminação, cada partícula deve surgir em sua cor própria conformando o todo. Na trama dos eventos narrados, sua exposição explicativa. Sim, porque a narrativa não deixa de lado a capacidade explicativa; contribui dinamizando o enredo conceitual.

Destarte, a história mosaical encampada por esta revista se dá ao luxo de não optar por escolhas indiscerníveis. Rompendo com a lógica da exclusão, compreende que a riqueza do conjunto só existe na contribuição ressaltada de cada elemento.

Este número inaugural insere os seis primeiros artigos, com diversas abordagens metodológicas, no Dossiê História Cultural em Perspectiva. O primeiro, de Sandra Pesavento, trata da renovação da história urbana, desafiando a reflexão sobre as relações entre espaço, memória e discurso histórico. Já o segundo, escrito por Sérgio Coutinho, discute os novos modos de perceber os espaços individuais, a subjetividade exposta pelos diários e a intimidade de uma espiritualidade inconformada.

Segue o artigo de Eduardo Quadros, tratando da cartografia como fonte histórica, em especial a que retrata o continente latinoamericano. Ainda aprofundando o debate sobre a identidade das Américas, Werner Mackenbach aborda as representações literárias do mundo insular caribenho.

Finalizando o dossiê os dois últimos textos, tratam do topos cultural em duas áreas correlacionadas: a antropologia e a sociologia. Izabel de Mattos discute os impasses e as vias de diálogo com a história, partindo das recentes tendências da teoria antropológica. A ciência da cultura weberiana é o tema apresentado por Rodrigo Godoi, mostrando como o pensador alemão permanece atual perante os desafios epistêmicos das Ciências Humanas.

Em seguida, os artigos de Judy Bieber, “O sertão Mineiro como espaço político” e de Maria Cristina Rosas “México e Brasil: Buenos enemigos o amigos mortales?” na seção artigos de temas livres e, por última, a resenha do livro “História e Sensibilidades”, por Cléria Botelho.

O Programa de Mestrado em História da Universidade Católica de Goiás alegra-se em proporcionar esse novo espaço de debate. Que a singela complexidade de tantos mosaicos, figurativos e / ou textuais, encante a todos.

A Comissão Editorial


Comissão Editorial. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.1, n.1, jan. / jun., 2008. Acessar publicação original [DR]

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Mosaico | PUC-GO | 2008

MOsaico Mosaico

A revista Mosaico (Goiânia, 2008-) é um periódico do Programa de Pós-Graduação em História da PUC Goiás, criada em 2008.

Enfatiza, na grande área das ciências humanas, os estudos históricos e culturais, de forma interdisciplinar, com a missão de divulgar a produção científica e estabelecer intercâmbio com outras instituições locais, nacionais e internacionais.

A proposta da revista é tentar formar um conjunto novo, ou, assumindo-se a pretensão, de redesenhar o quadro de uma historiografia aberta. Se propõe a ser um espaço amplo para a execução e demonstração de mosaicos historiográficos, no plural, já que há muito que a história deixou de ser pensada no singular e disciplinarmente.

A Revista Mosaico, portanto, evoca o imperativo da interdisciplinariedade, visando uma História pluralista, no intuito de suprir a carência da História com H maiúsculo, da “história historicizante”. Possibilita um campo para essa luta. Reúne a perspectiva histórica às noções englobantes de cultura e poder.

A revista Mosaico tem como missão divulgar a produção científica em caráter interdisciplinar e estabelecer intercâmbio com outras instituições locais, nacionais e internacionais. Como objetivos propomos divulgar trabalhos relevantes da área de ciências humanas e sociais com destaque para a produção do conhecimento histórico.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 1983 7801 (Online)

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