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Mabinogion | José Domingos Morais
A importância da tradução desta obra para o português é enorme principalmente pela dificuldade de acesso a fontes célticas em língua portuguesa. Mabinogion é um conjunto de contos galeses que foram escritos entre os séculos XI e XIV, mas que referem-se por vezes a acontecimentos muito mais antigos, datando do século VII, e a crenças ancestrais. Os relatos começaram a ser postos por escrito por ocasião da invasão normanda quando os chefes locais resolveram mandar escrever as narrativas que haviam circulado oralmente por muitos séculos, como forma de manter a tradição.
Estes contos foram compilados no Livro Branco de Rhydderch (Llyfr Gwyn Rhydderch) e no Livro Vermelho de Hergest (Llyfr Coch Hergest) e foram traduzidos pela primeira vez para o inglês por Lady Charlotte Guest no século XIX, a qual utilizou o termo mabinogion como título para colêtanea dos onze contos. A denominação da tradutora inglesa é errônea, pois o termo mabinogi refere-se à infância de um herói. Esta palavra aparece no fim do primeiro relato, Pwyll, Príncipe de Dyved, mas relaciona-se apenas aos quatro primeiros contos ou ramos (além de Pwyll, Branwen, a filha de Lyr, Manawyddan, o Filho de Lyr e Math, o Filho de Mathonwy). Nestes, a personagem de Pryderi aparece como elo de ligação entre as histórias embora não seja personagem principal, unindo-as em acontecimentos que tratam do nascimento, infância, juventude e morte.
Uma outra interpretação para a palavra mabinogi seria a de relato de um jovem, pois a palavra maban, diminutivo de mab significa filho ou juventude; por isso trataria das façanhas de um herói relacionado aos antigos deuses. Neste sentido, Pryderi seria um mac ind óc, isto é o filho do Deus Pwyll, senhor de Dyved. Os quatro ramos do Mabinogion relacionam-se a três famílias de deuses, a de Pwyll e sua descendência, representada por Pryderi, a dos filhos de Llyr (Bran, Branwen e Manawyddan) e a dos filhos de Don (Gwydion e Gilvaethwy, que aparecem no quarto ramo). Através dos contos podemos notar as correspondências entre deuses galeses e irlandeses, por exemplo, a deusa irlandesa Dana ou Don galesa, Manannan e Manawyddan, Deus do Mar. É possível perceber o sentido de clã, da união familiar como essenciais à sobrevivência dos celtas e para levar as aventuras ao bom termo. Um exemplo ocorre no terceiro ramo: uma maldição havia sido mandada e com ela animais, habitações, plantas, tudo havia sumido. Ao final do relato a revelação: tratava-se de uma vingança de Llwyd, amigo de Gwawl contra a descendência de Pwyll, pois Gwawl havia sido ultrajado pelo pai de Pridery, Pwyll, o qual lhe batera enquanto estava num saco e tomara dele Rhiannon.
Os onze contos podem ser agrupados em três grupos: o primeiro, com narrativas relacionadas a Pryderi (os quatro ramos do Mabinogi), um segundo contendo quatro contos independentes (O sonho de Maxen, Llud e Levelys, Culhwch e Olwen e O Sonho de Rhonabwy) e o terceiro composto por três romances arturianos, influenciados pela temática de Chrétien de Troyes. Os romances são A Dama da Fonte, Peredur, o filho de Evrawc e Gereint, filho de Erbin e correspondem respectivamente a Ivain ou o Cavaleiro do Leão, Perceval, ou o Conto do Graal e Erec e Enide. Por muito tempo, considerou-se que eram adaptações galesas dos romances em verso de Chrétien, mas atualmente a conclusão é que esses dois tipos de narrativa provenham de uma fonte comum.
Nos contos dos quatro primeiros ramos do Mabinogi percebe-se vários elementos interessantes do fundo céltico, tais como a ida de um mortal ao Outro Mundo. Este troca de lugar com o deus do Além e depois recebe o título de Pwyll, Príncipe de Annwvyn (o Outro Mundo). No mesmo relato aparece o tema da deusa-égua, por quem Pwyll se apaixona e que depois se torna a mãe de Pryderi. Trata-se da deusa Rhiannon, que na tradição gaulesa é conhecida por Epona. Pwyll é impedido de casar-se com ela por um estranho (Gwawl) que vem à corte lhe pede um dom (presente). Nos contos célticos o dom era exigido ao rei e este não podia negar-se a dá-lo mesmo sem saber do que se tratava, e o forasteiro pede a Pwyll sua noiva, que ele é obrigado a entregar. Através de um estratagema, um ano depois ele consegue retomá-la ao pedir que o outro enchesse de comida um saco que nunca ficava cheio (tema relacionado ao caldeirão da abundância e ao graal) e depois convece o próprio Gwawl a entrar no saco. Neste momento Pwyll começa a bater em Gwawl até ele desistir de Rhiannon, fato que é vingado por Llwyd no terceiro ramo (Manawydan, o Filho de Llyr).
No segundo ramo, um interessante elemento é a menção ao caldeirão do renascimento, que Bran entrega a Matholwch. Nele os homens mortos são jogados e recobram a vida, mas perdem o poder da fala. Branwen, filha de Llyr é maltratada após o casamento e o irmão Bran, senhor de Llundein (Londres) a vinga. Na luta entre irlandeses e bretões apenas cinco mulheres grávidas da Irlanda e sete guerreiros da Bretanha salvam-se.
É importante destacar nesta narrativa a crença céltica na cabeça cortada, que era cultuada desde à época da cultura pré-histórica La Tène. Ao ser atingido com uma flecha envenenada, Bran pede que sua cabeça seja cortada. Ele vive e se alimenta por mais oitenta anos e depois deste período a cabeça é enterrada em Gwynn Vrynn (atual Dover).
No grupo das narrativas independentes, uma das mais interessantes é o conto Culhwch e Olwen, primeiro a apresentar Artur e seus guerreiros. Artur não é o personagem central. O jovem Culhwch deseja casar-se com Olwen, filha do gigante Yspaddaden Penkawr, e recorre ao primo Artur e a seus guerreiros para enfrentar uma série de aventuras, sendo ao final, vitorioso. No relato são citados os principais companheiros de Artur como Bedwyr, Cai e Gwalchmei e que vemos depois referenciados em outras obras arturianas. Este conto influenciou a Historia Brittonum, de Nennius (século VIII), na qual aparece a caça ao javali Twrch Trwyth, que faz parte da história de Culhwch, demonstrando assim a Antigüidade desta última.
É recorrente nas lendas célticas a relação entre o herói e o Outro Mundo, representado pelos deuses ou forças sobrenaturais. O herói, como Culhwch, deve passar por provas para demonstrar que merece o conhecimento ou a soberania, na história, representada por Olwen.
Uma outra menção a Artur é o conto O Sonho de Ronabwy (escrito por volta do século XIII) no qual um homem sonha com um cavaleiro que teria semeado a discórdia entre Artur e seu sobrinho e por isso seria o responsável pela batalha de Camlan, na qual Artur matou Medrawd. Neste relato percebe-se claramente uma influência anglo-normanda.
A importância do Mabinogion é grande para o conhecimento de crenças celtas como o Outro Mundo, o caldeirão da abundância e o do renascimento, a relevância dada à cabeça, que mesmo cortada do corpo pode viver por muito tempo e a mulher como elemento capaz de fazer o homem atingir a soberania.
A tradução de José Morais é boa e traz notas explicativas além de acrescentar um último poema, Taliesin (composto no século XVI) à narrativa, conforme consta na tradução de Lady Charlotte Guest. Uma versão ainda mais interessante do Mabinogion e que pode ser cotejada com esta, acessível aos leitores latino-americanos é a de Victoria Cirlot em espanhol (Ediciones Siruela, 1988), pois a autora demonstra maior contato com os estudos célticos e aponta para uma bibliografia que contribui para a continuidade da investigação da obra.
Adriana Zierer – Doutoranda em História/ UFF. E-mail: medieval@domain.com.br
MORAIS, José Domingos (tradução e introdução). Mabinogion. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000. Resenha de: ZIERER, Adriana. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.1, n.1, p. 77-79, 2001. Acessar publicação original [DR]