Etnicidade e formação de identidades no mundo de Homero / Hélade / 2019

Há uma identidade étnica em Homero?

“Quem foram os gregos?” é uma pergunta irrespondível. Ainda na Antiguidade não foram poucos os que tentaram respondê-la, e a indagação continuou sendo feita nos séculos seguintes sem que uma conclusão pudesse dar fim a um tema tão longamente examinado. Entre mudanças e permanências, os séculos de história interditam qualquer traço unitário capaz de caracterizar o “ser grego”. Mais do que isso, se considerarmos apenas o mundo das póleis e se confiarmos nos cálculos apresentados por Mogens Herman Hansen [2], existiram pelo menos 1.500 cidades-Estado. De norte a sul, no continente e nas dezenas de ilhas, da Ásia Menor à Península Itálica, a variedade de contatos e particularidades regionais é outro elemento complicador para dar ao problema uma solução que não abra espaço para diversos questionamentos.

A partir do século V a.C., os gregos poderiam persistir com dificuldades para responder quem eram, mas a certeza de quem não eram parecia bem mais clara. A imagem do bárbaro se consolida com o advento da resistência aos persas e é especialmente difundida a partir da pena dos atenienses. Não se trata, certamente, de uma simples percepção das diferenças culturais, mesmo porque a cultura, abordada para além da superfície, desvela não apenas a assunção de que não somos iguais a outras pessoas e grupos, mas que essa diferença produz, é produzida e reproduzida por uma série de implicações que vão muito além da percepção de quem não somos.

A emergência das representações sociais dos bárbaros é francamente tomada como paradigma para pensar as noções de eu e outro a partir do ponto de vista dos gregos. Não sem razão, a consolidação da barbárie se dá no momento em que Atenas não apenas goza de influência política e econômica sem precedentes, abalada apenas com o início da Guerra do Peloponeso (431 a.C.). Entretanto, ainda que o século V a.C. tenha se tornado referencial para os estudos sobre a etnicidade, ele não representa o único momento em que o outro se tornou objeto de reflexão para a definição do ser grego. A documentação anterior ao Período Clássico é absolutamente rica em referências que ajudam a pensar esse problema, e a Ilíada e a Odisseia representam certamente um dos maiores (ou o maior, arrisco dizer) acervo de questões que podem ser exploradas para refletir sobre a história das alteridades nesse “mundo grego”.

Os artigos que compõem esse dossiê exploram o tema da etnicidade e / ou da formação das identidades a partir da Ilíada e da Odisseia. As escolhas particulares dão ao leitor um indicativo da amplitude do problema e da riqueza de um debate pautado por várias convergências e outras tantas divergências. Portanto, os trabalhos que compõem esse número da Hélade são marcados pela interdisciplinaridade, pela pluralidade de ideias, pela variedade de abordagens e pela diversidade teórico-metodológica. No entanto, nada disso interditou a incrível coesão construída em torno do objetivo geral que motivou a organização do volume.

Na abertura do dossiê, busco analisar os intensos debates que opõem estudiosos em torno da relação entre Homero e o ideário Pan-helênico. O artigo intitulado História e Etnicidade: Homero à vizinhança do Pan-helenismo, após uma breve exposição do conceito de etnicidade e sua particular utilização no âmbito da História da Grécia Antiga, discute algumas divergências bastante frequentes quando se busca refletir sobre o lugar que a Ilíada e a Odisseia ocuparam no marco da formação das identidades helênicas. Observo que, por um lado, os épicos podem ser entendidos como uma narrativa capaz de expressar uma noção de helenicidade, dialogando com as transformações que caracterizaram a formação do mundo Pan-helênico; por outro lado, diversos analistas, muitas vezes em evidente discordância, tendem a situá-los no limite que distingue as sociedades pré-helênicas daquelas que vieram a se formar no decurso do Período Arcaico.

No segundo artigo, intitulado Los comienzos de la identidad colectiva helênica, Emílio Crespo dedica sua atenção à Ilíada com vistas a reconhecer em seus versos, particularmente na célebre oposição entre aqueus e troianos, os primeiros indícios de uma identidade coletiva helênica. O autor parte do pressuposto de que as identidades coletivas exigem longo período de construção, e que a experiência do Período Clássico pode ser investigada como um processo de criação que remonta aos poemas homéricos. Assim, através da análise dos nomes coletivos, antropônimos, epítetos, topônimos e outros indicativos, Crespo defende que o início da construção identitária helênica é perceptível na segunda metade do século VIII a.C., época provável da composição da Ilíada, ainda que em bases culturais diferentes daquelas em que repousou o helenismo do século IV a.C..

O terceiro artigo, Em tempo de guerra e de confronto a noção do ‘outro’ na Ilíada, também se dedica a essa temática. Maria de Fátima Silva reconhece na Ilíada a referência mais antiga da oposição entre europeus e asiáticos que perdurou no Período Clássico. Para a autora, a noção de ‘outro’ na Ilíada já está assente em um conjunto de critérios que viriam a ser retomados com outro fôlego, na época clássica, para a definição de quadro equivalente. A análise das características dessas alteridades é feita através das representações da cidade de Príamo, seu povo e seus aliados. A autora demonstra que Ílion não apenas possui características geográficas, topográficas e urbanísticas peculiares, mas que estas peculiaridades são decisivas para a compreensão do comportamento dos troianos. Desta forma, os requintes orientais, as joias do palácio e o luxo da vida cotidiana são características marcadamente presentes no mundo asiático e associadas aos troianos, ainda que seja necessário analisá-las cautelosamente porque muitas delas também se fazem presente na vida dos gregos.

Obviamente, e ainda com base na Ilíada, é preciso reconhecer que o universo de referências de que Homero se utiliza para a construção de seus personagens é bastante amplo. Ainda que a maioria deles – talvez todos – faça parte de um menos grupo social, é certo que as particularidades das caracterizações permitem aprofundar as análises e reconhecer formas bastante peculiares de tratamento das diferenças étnicas. No quarto capítulo, O discurso étnico acerca dos troianos na Ilíada: um estudo de caso de Páris-Alexandre, Renata Cardoso de Sousa explora precisamente as representações do príncipe troiano que desencadeou o conflito em Tróia após raptar Helena. Através de epítetos, qualificativos a ele atribuídos, discursos enunciados, comportamento em batalha e demais símbolos diacríticos utilizados na formulação narrativa de seu ethos heroico, a autora procura identificá-lo como uma das sínteses que distinguem aqueus e troianos.

O tema do discurso etnográfico é abordado no quinto artigo, assinado por Graciela C. Zecchin de Fasano. Em Egipto, Fenicia, Creta: tres espacios-clave para el discurso etnográfico en Odisea, a autora entende que o vocábulo ethnos, a despeito da amplitude de grupos que tendia a abarcar, estabelece a necessidade de se compreender certa similaridade e convivência temporais. Partido desse pressuposto, observa-se que a Odisseia oferece uma representação particular dos territórios pelos quais seu protagonista transita, convertendo-os em um excelente instrumento de estudo e interpretação como espaços de um relato etnográfico, cuja tipologia discursiva sugere problemáticas ficcionais absolutamente originais. Nesse sentido, o tema dos olhares sobre o estrangeiro é pensado a partir de três espaços-chave, quais sejam, Egito, Fenícia e Creta. A variação das caracterizações sugere uma diversidade ímpar de olhares, envoltos pela atmosfera do exotismo, dos perigos, dos maus hábitos e mesmo de juízos de valor absolutamente estratégicos para pensar a dinâmica das alteridades e da formação das identidades.

Em seguida, Christian Werner igualmente se aproxima da questão das etnografias a partir do exame dos discursos de Menelau e de Homero no canto IV da Odisseia, que mencionam a viagem do herói ao norte da África, e da forma como Homero, de um lado, introduz a narrativa dos feácios (VI) e, de outro, Odisseu, o episódio dos lotófagos e o dos ciclopes (IX). Em Discurso etnográfico e as vozes narrativas na Odisseia, o autor explora nesse poema épico a tradição dos nostoi (“mitos de retorno”) e analisa alguns elementos e funções possíveis do discurso etnográfico, que, colocado de lado na Ilíada, embora não componha a matéria central da Odisseia, tornou-se uma de suas marcas distintivas no processo histórico da recepção do poema.

O sétimo trabalho, intitulado Os Residentes da Via Negativa: os cíclopes de Homero e os Tupinambás, se dedica a um exercício comparativo que relaciona as etnografias antigas e modernas a partir de um traço de semelhança que Ioannis Petropoulos reconhece como marca distintiva de tais discursos: o fato de se desenvolverem a partir da negação e da antítese. Nesse sentido, a monstruosidade dos Cíclopes é entendida como o símbolo de um mundo pré- -civilizado que se mostra reticente em relação aos pressupostos básicos da vida em sociedade, como o comércio, a agricultura, as instituições cívicas e práticas religiosas compartilhadas. Essas formações discursivas a respeito do “outro” pré-civilizado também são discerníveis nas etnografias do século XVI acerca dos nativos do “Novo Mundo”, particularmente os indígenas considerados “canibais” que ocupavam as regiões costeiras do Brasil da época. Petropoulos não apenas reconhece características comuns em discursos distintos, mas busca estabelecer relações e contrastes entre eles.

O episódio de Polifemo representa, no âmbito das epopeias homéricas, o epítome do estranhamento em relação aos costumes cultivados pelas aristocracias que os poetas cantavam. No artigo Viagens e etnicidade em Homero: Odisseu e o Cíclope, de Fábio de Souza Lessa, analisa esse discurso que irrompeu os limites do recitato aédico e foi inúmeras vezes recuperado ao longo da História para discorrer sobre os costumes insólitos dos estrangeiros. O estudo do relato de Odisseu no Canto IX da Odisseia, isto é, da descrição de seu contato com o Cíclope Polifemo, converte-se no fio condutor para a reflexão acerca das construções gregas sobre os nós e os outros. O autor observa que o Ciclope se constituirá em alteridade máxima frente aos helenos. Através do gigante de um único olho na fronte, os helenos revelavam, por oposição, os traços fundamentais de sua cultura.

Decerto que a distinção entre o eu e o outro é um dos fundamentos para a construção das identidades e para a consolidação das fronteiras étnicas, mas ainda que a alteridade represente, tanto por analogia quanto por contraste, um topos privilegiado de observação, é inegável que os poemas homéricos desvelam para os pesquisadores um incrível esforço de reflexão sobre o si mesmo, quiçá apresentando uma profunda dimensão instrutiva, pedagógica, assente na vigilância atenta das condutas esperadas dos membros do grupo. É precisamente essa preocupação que orienta as reflexões que María Cecilia Colombani nos apresenta no artigo Telémaco y la experiencia humana: tomar la palabra en el nombre del padre. Una lectura política del inicio de Odisea. De um ponto de vista antropológico, a autora analisa as transformações subjetivas por que passa o jovem filho de Odisseu e o processo de amadurecimento que experimenta ao longo do épico, em particular em função da ação pedagógica e orientadora de Atena. Desta forma, a formação da identidade de Telêmaco é duplamente assinalada no transcurso de suas relações com os homens e na fronteira que distingue os mortais dos deuses imortais.

O décimo artigo, intitulado O contexto funerário homérico: Aquiles e suas ações más (Kakà Érga), de Bruna Moraes da Silva, também se dedica ao problema da vigilância acerca dos próprios atos e sua relação com a formação das identidades. Nesse caso, porém, o valor paidêutico é pensado a partir dos códigos de conduta de Aquiles, partindo do pressuposto de que Homero não punha em evidência apenas as ações consideradas dignas de um aristoí, mas também exemplos a não serem seguidos, isto é, as transgressões realizadas até mesmo por personagens tidos como grandes heróis. À vista disso, a autora propõe analisar a maneira pela qual os aedos expuseram em suas obras, especialmente na Ilíada, as normas a serem seguidas pelos vivos diante dos mortos, dando destaque à análise das transgressões notáveis a partir da ruptura com as regras estabelecidas em um mesmo meio social.

É preciso agradecer os autores que puderam participar desse projeto e investiram os resultados de sua pesquisa para compor este volume. Acredito que a qualidade inequívoca dos trabalhos fará com que o dossiê seja recebido com entusiasmo por todos aqueles que estudam as controvérsias inúmeras legadas pelo aedo cego de Quios, por quem se interessa pelo tema da etnicidade e da formação das identidades e, num sentido mais amplo, por todos que reconhecem nos gregos antigos um espaço privilegiado para a reflexão de nossa história e vida em sociedade.

Notas

2. HANSEN, M. Polis – an introduction to the ancient greek city-state. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 1.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Etnicidade e as políticas das identidades nas sociedades Antigas / Hélade / 2017

Etnicidade: cultura e política

De alguma maneira, a Antiguidade ressoa com bastante frequência quando o debate sobre o problema das etnicidades se enuncia. Não tanto pelo viés fonético, por mais que seja impossível dissociar, no plano da etimologia, a forma moderna do conceito do étimo grego que está na base de sua formulação. O vocábulo ἒθνος, a bem da verdade, possui um escopo semântico assaz versátil: pode ser entendido como “raça”, “povo”, “nação” (BAILLY, 1963), como “pessoas que vivem juntas”, “companhia”, “corpo de homens” (LIDDELL & SCOTT, 1996) e como “grupo mais ou menos permanente de indivíduos” e, em alguns casos, “povos estrangeiros”, “bárbaros” (CHANTRAINE, 1977). Em todas as definições, ἒθνος parece se referir a grupamentos humanos (apesar de se referir, também, a animais) com características particulares, capazes de exibir algum tipo de distinção quando comparados a outros. É uma versatilidade inquestionavelmente oportuna e constantemente evocada.

No entanto, para além do plano gramatical, ressoa a memória que se constrói acerca de eventos que, pela lente do mundo contemporâneo, parecem assumir um caráter fundante de diferenças étnicas observáveis tanto em escala regional quanto global. Refiro-me, nesse caso, à lógica sob a qual se opera a bem conhecida dissensão entre Oriente e Ocidente nos termos que Edward Said propõe no clássico Orientalismo (1978): discurso estratégico, politicamente estruturado no marco de um projeto imperialista. Na pista proposta por Kostas Vlassopoulos (2013, p. 1-2), vale recordar a controversa remissão à Batalha de Maratona, ocorrida no verão de 490 a.C., como o evento que teria fundado o longo histórico de embates entre Ocidente e Oriente e que, dentre outras coisas, segundo a leitura rápida de alguns, culminou com o atentado às Torres Gêmeas ocorrido em Nova Iorque em setembro de 2001. Observe-se, por exemplo, a difícil afirmação de Anthony Pagden, também mencionada por Vlassopoulos:

Maratona marcou o fim da primeira Guerra Greco-Pérsica. Fez descer a cortina do primeiro ato do grande drama trágico de Heródoto acerca do conflito entre Europa e Ásia, entre Gregos e Bárbaros. A partir de então, Maratona passou a ser aceita como um turning point na História da Grécia e, posteriormente, de toda Europa. Foi um momento de resiliência de uma forma política incomum – a democracia – e a confiança dos gregos em sua particular noção de liberdade foi posta à prova e emergiu triunfante (PAGDEN, p. 25).

Não é difícil reconhecer nessa narrativa a célebre e cada vez mais questionada lógica de herança que parece atribuir à Antiguidade – e à Antiguidade Clássica, em particular – toda sorte de legados históricos que amparam um movimento de naturalização de disposições sociais que, por sua vez, seguem insolúveis por força do desejo preclaro de não os solucionar. Resiste, por força de uma disposição frequentemente criticada pelas análises pós-coloniais (e, mais recentemente, pelo “giro decolonial”), a lógica de produzir estereótipos que fundam a imagem de um “bárbaro” tiranizado, escravo de suas paixões, excessivo e indisponível para o diálogo, mais especificamente para o diálogo democrático. Afinal, no mundo contemporâneo, não estamos mais diante dos persas liderados por Xerxes, mas de uma política que toma a História antes como a algema com que se ata as próprias mãos do que como um espaço de problematização para refletir sobre nossos conflitos e colocá-los em perspectiva.

É precisamente pela resistência a um tipo de lógica civilizacional2, marcadamente de caráter Iluminista, que parecia utilizar a cultura como símbolo diacrítico evocado para hierarquizar modos de vida, que o tema da etnicidade – um conceito que o pensamento social abraçou de modo entusiástico principalmente a partir da década de 1970 – propõe entender a cultura não como um fim em si, mas como um elemento politicamente reivindicado. Afinal, “a fronteira étnica depende da cultura, utiliza a cultura, mas não é idêntica a esta última tomada em seu conjunto” (CARDOSO, 2005, p. 186). O que está na base, portanto, das recentes análises do fenômeno da etnicidade, são os usos políticos da cultura, e não apenas o caráter fronteiriço que ampara processos de diferenciação social livres de toda sorte de conflito. Há, nesse ponto, um esforço cada vez mais insistente de resistência, no plano teórico e empírico, aos princípios que outrora ligavam perigosamente o conceito à ideia de raça e, portanto, a um viés essencialista, bem como ao primado do subjetivismo por longo tempo explorado a partir da sociologia weberiana. É por esse traçado que se torna menos usual tratar as identidades (em particular, as identidades étnicas) como algo que responde por si, como um objeto ligado aos sujeitos e alheio à influência das estruturas sociais. Pensar etnicidade implica, por princípio, uma reflexão sobre a política das identidades. Afinal, como bem observou Todorov (2010, p. 64), “o bárbaro não é, de modo algum, aquele que acredita na existência da barbárie, mas quem está convencido de que uma população ou um indivíduo não pertencem plenamente à humanidade e merecem tratamentos que ele recusaria resolutamente aplicar a si mesmo”. É precisamente por isso que, ainda segundo o autor, “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros” (TODOROV, 2010, p. 15). Trata-se – insisto – de um fato político culturalmente justificado.

Não sem razão, a proposta do dossiê Etnicidade e as políticas das identidades nas Sociedades Antigas teve uma excelente acolhida. A variedade de povos antigos analisados pelos autores que submeteram suas propostas é um poderoso indicativo para pensarmos a amplitude do problema, as inúmeras possibilidades de abordagem, a diversidade de documentos passíveis de estudo, bem como os métodos que permitem a construção de críticas de inegável qualidade acadêmica. Também indica o caráter contemporâneo da questão, posto que este é o estopim para que nossos interesses e projetos políticos convirjam para o estudo das sociedades históricas.

Notas

2. Como sinalizou Todorov em sua crítica (2012, p. 36), “Barbárie e civilização assemelham-se não tanto a duas forças que lutam pela supremacia, mas a dois polos de um eixo ou a duas categorias morais que nos permitem avaliar os atos humanos particulares”

Referências

Dicionários

BAILLY, A. Abrégé du Dictionnaire Grec-Français. Paris: Librarie Hachette, 1950.

CHANTREAINE, P. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grècque. Paris: Librarie C. Klincksieck, 1963.

LIDDELL and SCOTT’S. An intermediate Greek-English Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1992.

Bibliografia

CARDOSO, C. F. S. Um historiador fala de teoria e metodologia: Ensaios. Bauru: Edusc, 2005.

PAGDEN, A. Worlds at War. The 2,500-year struggle between East and West. New York: Random House, 2008.

TODOROV, T. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

VLASSOPOULOS, K. Greeks and Barbarians. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,3, n.2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Golpes e formas de resistências na Antiguidade / Hélade / 2017

Golpes de estado: a perspectiva da história e a história em perspectiva

No famoso lógos epitáphios de Péricles, entusiasticamente codificado por Tucídides, há um amálgama de elogio aos mortos e celebração da democracia. Na verdade, uma relação de intensa solidariedade ampara essa dupla disposição: nos discursos que fez a respeito de si, a pólis dos atenienses justificava reconhecer o valor dos mortos por ser democrática, e só era democrática por ter cidadãos tão valorosos como aqueles que primeiro tombaram na Guerra do Peloponeso. Em certo sentido, vigorava a certeza de que a cidade deveria ser objeto do cuidado coletivo. Foi para expressar esse cuidado que, no inverno de 431 a.C., Péricles foi convidado a falar e avançou em direção a uma plataforma alta, assim construída para que a multidão pudesse ouvi-lo. Dentre outras coisas, afirmou:

Temos uma forma de governo que em nada se sente inferior às leis dos nossos vizinhos, mas que, pelo contrário, é digna de ser imitada por eles. E chama-se democracia, não só porque é gerida segundo os interesses não de poucos, mas da maioria, e também porque, segundo as leis, no que respeita a disputas individuais, todos os cidadãos são iguais” (TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, II, 37).

Afora a miríade de possíveis distinções entre a democracia ateniense e as democracias modernas, há algo de fundamental – posto que fundante – que precisa ser observado com rigor: se o que caracteriza os governos democráticos é o caráter coletivo das decisões, o respeito à soberania das decisões coletivas deve ser assegurado de modo intransigente. Fora isso, qualquer ruptura, quando conduzida por um pequeno grupo à revelia da maioria, denuncia uma forma de traição ao princípio vigente. A esse movimento de ruptura, instaurado de forma violenta ou não, por grupos que já detém parte do poder e que dele se utilizam para ampliá-lo, dá-se comumente o nome de Golpe.

A ideia de golpe passou a ser amplamente discutida no Brasil, dentro das muralhas das universidades e fora delas, a partir dos primeiros movimentos que conduziram à deposição de Dilma Rousseff. A presidenta, reeleita em 2014 pelo Partido dos Trabalhadores, foi afastada de seu cargo em 12 de maio de 2016 devido à instauração de um processo de impeachment. Seu mandato foi definitivamente cassado em 31 de agosto de 2016. A justificativa jurídicopolítica para o processo foram as chamadas “pedaladas fiscais”. Diversas dúvidas, contudo, sobrepairam o processo por improbidade administrativa, inclusive em função de uma perícia realizada pelo Senado Federal e entregue à comissão do impeachment em 27 de junho de 2016, posto que o documento isentava a então presidenta afastada de participação nas “pedaladas fiscais”.

Mas não apenas as dúvidas acerca das questões fiscais entram na equação. A despeito das possíveis divergências técnicas que estariam na base do processo, as flagrantes questões políticas envolvidas no impeachment reforçaram em muitos a convicção de que vivemos um golpe de Estado. As tensões estavam há tempos colocadas, mas o estopim do fato político foi claramente motivado pela forma com que o partido de Dilma Rousseff se posicionou a respeito da investigação, no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, em um processo por quebra de decoro parlamentar movido contra Eduardo Cunha (PMDB), então presidente da Câmara. Essa história foi corroborada pelo atual presidente em exercício, Michel Temer, em entrevista à TV Bandeirantes em maio deste ano: segundo ele, “se o PT tivesse votado nele naquela comissão de ética, é muito provável que a senhora presidente continuasse”.

Mas se o processo foi alavancado por Eduardo Cunha, a participação ativa do então vice-presidente e de seu partido reforça a hipótese de golpe. Em dezembro de 2015, torna-se pública uma missiva que Michel Temer teria enviado à presidenta Dilma Rousseff fazendo críticas à forma com que era supostamente deslocado das decisões do governo, autoproclamando-se “vice decorativo”. Adiante, também veio a público, na tarde de 11 de abril de 2016, um áudio em que o presidente ensaiava um discurso de posse. Temer alegou que, assim como a carta, se tratava de uma questão privada que se tornou conhecida a despeito de sua vontade; outrossim, e apesar da veracidade ou não dessa afirmação, o conteúdo é bastante sugestivo e indica o desejo do então vice-presidente de ver-se como chefe do Executivo. Esse princípio de publicidade acidental não se aplica, contudo, ao projeto Uma Ponte para o Futuro [2], lançado pelo partido do então vice-presidente da República em 29 de outubro de 2015. Após fazer um diagnóstico da crise econômica e uma série de críticas à condução de um governo do qual faziam parte de modo formal e efetivo, o programa do PMDB convida a nação [sic] para participar desse projeto formulado no interior do partido e que não contava com o aval das urnas:

Faremos esse programa em nome da paz, da harmonia e da esperança, que ainda resta entre nós. Obedecendo as instituições do Estado democrático, seguindo estritamente as leis e resguardando a ordem, sem a qual o progresso é impossível. O país precisa de todos os brasileiros. Nossa promessa é reconstituir um estado moderno, próspero, democrático e justo. Convidamos a nação a integrar-se a esse sonho de unidade (UMA PONTE PARA O FUTURO, 2015, p. 19)

Poderíamos também recordar a sessão deliberativa da Câmara dos Deputados do dia 17 de abril de 2016, onde os parlamentares presentes se dirigiam ao microfone para declarar o voto favorável ou contrário ao impeachment. Presidida pelo próprio Eduardo Cunha, que já era réu em um processo que veio a culminar com sua prisão, as declarações de voto raramente colocavam em questão o mérito do processo.

A todas essas questões, poderiam ser adidas outras tantas que, desde então, vem tornando a ideia de golpe francamente presente em nosso cotidiano político, além de despertar o interesse intelectual de muitos que investigam esse e outros processos de ruptura, de tentativa de ruptura e de formas de resistência a ações que parecem contradizer, em prol dos interesses de poucos, o poder decisório da maioria. Os debates sobre a deposição de Dilma Rousseff continuarão por longos anos e serão objeto de acurada investigação por parte da historiografia. Em alguma medida, a historiografia não apenas tornará esses fatos objeto de rigorosa análise, mas também buscará entender esse momento sui generis da História do Brasil, seus efeitos já visíveis e tudo aquilo que ainda iremos experimentar ao longo dos anos. Vivemos uma inconteste crise política que revela o quanto a democracia é frágil e exige nossa atenta observação.

É precisamente por isso que a Hélade publica nessa edição o dossiê Golpes e formas de resistência na Antiguidade. Os artigos dialogam com o tema e mostram o quanto a experiência dos povos antigos é um locus importante não apenas para a reflexão a respeito de nossos conflitos contemporâneos, mas também como espaço em que podemos contrapor experiências e identificar questões que nos escapam na ausência de medidas de comparação. A quantidade significativa de artigos submetidos, encaminhados e aprovados pelos pareceristas ad hoc sinalizam o quanto os historiadores da Antiguidade estão sensíveis ao problema e mobilizados para torná-lo, no marco de nosso livre exercício de reflexão, uma questão a ser analisada por força das demandas do presente da vida social.

Notas

2. Disponível em http: / / pmdb.org.br / wp-content / uploads / 2015 / 10 / RELEASE-TEMER_A4- 28.10.15-Online.pdf. Acesso em 02 de agosto de 2017.

Alexandre Santos de Morae– Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,3, n.1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Homoerotismo na Antiguidade / Hélade / 2016

O Grupo Gay da Bahia3 é uma conhecida entidade que, dentre outras coisas, elabora estatísticas acerca da violência motivada por homofobia e violações dos direitos humanos dos LGBTs no Brasil. Os números que divulgam são alarmantes. Em 2015, 318 homossexuais foram assassinados no país, taxa que indica uma queda desprezível quando comparada ao ano anterior, posto que em 2014 foram anotadas 326 mortes. Imagina-se, com algum grau de certeza, que esses números são tímidos diante da realidade. Em primeiro lugar, porque os cálculos dependem das notícias vinculadas pela imprensa, que não torna notícia a totalidade dos homicídios; em segundo lugar, pela dificuldade de reconhecer com precisão a influência da homofobia na irrupção de determinado assassinato. Ao fim e ao cabo, se os dados são alarmantes, temos razões para crer que a situação é bem mais hostil.

Avanços graduais foram conquistados nas últimas décadas. Há quase 27 anos, no dia 17 de maio de 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU) retirava a homossexualidade do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). A resolução nº 001 / 99 de 22 de março de 1999, publicada pelo Conselho Federal de Psicologia4, seguindo as diretrizes que se consolidavam definitivamente no cenário internacional, considerou que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” e determinou que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. Em linhas gerais, graças aos esforços de muitos agentes envolvidos no debate, a livre vivência da sexualidade se tornou um importante topos de luta política em torno das garantias fundamentais dos indivíduos e seu desrespeito passou a ser considerado uma afronta aos direitos humanos.

Obviamente, as camadas mais conservadoras persistem oferecendo resistência a esses avanços. A força impositiva de um discurso tradicional, a heteronormatividade compulsória que caracteriza a educação e a socialização dos sujeitos, a ignorância ou mesmo o caráter duvidoso fazem com que muitos indivíduos – alguns deles com ampla visibilidade nos círculos midiáticos – persistam disseminando discursos de ódio e relativizando tais formas de violência. Partindo da presunção apocalíptica de que o respeito às liberdades individuais pode caracterizar uma ameaça às relações heterossexuais, esses grupos naturalizam o conceito de família, lançam a suposição sem lastro científico de um estado de inalterabilidade das relações afetivas e buscam associar a um discurso naturalizante as relações entre homens e mulheres, ignorando todas as inúmeras possibilidades existentes e que, não raro, eles próprios procuram reprimir. Ainda que discorrendo sobre a divisão binária dos sexos, Pierre Bourdieu percebeu em La domination masculine (1998) um dispositivo que vemos ser utilizado com substrato para a defesa intransigente da heternormatividade e consequente regulação das liberdades individuais, qual seja, uma espécie de “naturalização de disposições” através de discursos que presumem um tipo de ordem do mundo como fundamento primeiro para sua ação reativa. De acordo com o sociólogo, “a divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável” (BOURDIEU, 2007, p. 17).

A natureza é levada, nesse ponto, ao encontro da conveniência. A constatação é tão óbvia quanto necessária, afinal, a mesma natureza que foi enfrentada quando se colocou diante de nossas necessidades ao longo de toda a história humana, é a mesma que é evocada como argumento para restringir as afetividades e desejos que contrariam as expectativas de quem julga que o “natural” é a medida primeira para todas as coisas.

Desnaturalizar as relações sociais é, talvez, uma das necessidades mais prementes das Ciências Humanas como um todo, e da historiografia em particular. Através de argumentos sólidos, de evidências bem coligidas, de análises metodologicamente rigorosas e com refinamento teórico, somos capazes de substituir a perspectiva de uma “ordem do mundo” pelas várias ordens que nossos vários mundos vivem e viveram. Isso não significa, obviamente, ignorar a longa duração, as permanências e recorrências que caracterizam diversos momentos e processos históricos, mas indicar com precisão que o “nem sempre foi assim” enseja sempre um horizonte de mudança que nos liberta do jugo do status quo. Se algo foi diferente, em algum tempo e / ou espaço, é possível recuperar a lógica de que nada é inalterável e permanente. Inclusive nossas consciências. Inclusive nossos preconceitos.

Essa é uma das questões que sobrepairam os três volumes do célebre Histoire de la Sexualité (1976; 1984), de Michel Foucault. É precisamente pela via histórica (criticada por muitos, mas reconhecida em seus méritos por outros tantos) que o filósofo francês irá se aventurar para sustentar a hipótese de que a sexualidade – essa palavra que surgirá apenas no novecentos, ainda que seu referente não seja exatamente novecentista – não é unívoca em suas práticas e representações, nos discursos sobre suas peculiaridades, nos esforços de silenciamento e ocultação e nas manifestações de poder de um pudor vitoriano que por séculos buscou seu controle e / ou repressão. Assim Foucault sintetizou o projeto que se tornou um dos principais marcos nos estudos acerca da temática:

“Em resumo, para compreender de que maneira o indivíduo moderno podia fazer a experiência dele mesmo enquanto sujeito de uma ‘sexualidade’, seria indispensável distinguir previamente a maneira pela qual, durante séculos, o homem ocidental fora levado a se reconhecer como sujeito de desejo” (FOUCAULT, 2010, p. 12)

Sua leitura acerca da Antiguidade é um convite para que revisitemos um período histórico em que as visões e formas de experimentar a sexualidade, em geral, e o homoerotismo, em particular, confrontam o imperativo da naturalização que os discursos conservadores buscam impor para cercear direitos. Escusado lembrar que esse retorno não pretende recuperar um passado livre de todas as formas de controle dos corpos e dos afetos, onde as experiências individuais estavam livres de opressões diversas que interditassem os sujeitos da rígida observância de seus costumes e usos dos prazeres. No entanto, é preciso reconhecer a existência de diferentes formas de expressão do homoerotismo para que sejamos capazes de perceber, entre outras coisas, os limites e paradigmas acerca do comportamento sexual nas sociedades antigas e a forma com que foram representados na documentação a que temos acesso, permitindo assim colocar as sociedades pregressas e atuais em perspectiva através de suas similitudes e, principalmente, através das diferenças.

Os autores que contribuíram com esse dossiê recuperam esse debate e vão além, oferecendo assim uma valiosa contribuição para os Estudos Clássicos no Brasil. Abordar o tema do homoerotismo na Antiguidade Clássica – uma temática cujas análises e investigações cresceram exponencialmente nas últimas décadas – representa um esforço de posicionamento político que reforça a necessidade de persistirmos na busca de ampliação de direitos, de recrudescermos o acesso à cidadania e de combatermos, de forma intransigente, toda e qualquer forma de preconceito. A Hélade reforça, assim, seu compromisso de convidar as sociedades antigas a dialogar com os dilemas e conflitos na vida em sociedade.

Notas

3. Diversas informações podem ser consultadas na página da entidade: http: / / www.ggb.org.br /

4. Disponível em: http: / / site.cfp.org.br / wp-content / uploads / 1999 / 03 / resolucao1999_1.pdf. Acesso em 16 / 01 / 2017.

Referências

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – o uso dos prazeres. São Paulo: Graal, 2010.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representação e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ). E-mail: asmoraes@gmail.com

Anderson Martins Esteves – Doutor em Letras Clássicas, professor do Programa de Pós- -Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (ATRIVM-UFRJ). E-mail: andersonmartins@letras.ufrj.br


MORAES, Alexandre Santos de; ESTEVES, Anderson Martins. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,2, n.3, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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