A vista particular | Ricardo Lísias

Centro Livre de Expressão Intervenção na Praça da Sé SP 1979 e1594138843669 Vida particular

Centro de Livre Expressão (CLE), intervenção na Praça da Sé, em São Paulo, intitulada Páginas Escolhidas, um dos pré-eventos que anunciavam o Evento de Fim de Década, 1979.

A arte como intervenção é uma questão antiga, embora siga atual e relevante. E a literatura desempenha um papel muito especial nesse debate. Se o paradigma da ficção realista vem fazendo água há tanto tempo, é porque modernamente não caberia mais, à literatura, reproduzir com fidelidade o mundo. Ninguém hoje defende o romance como grande mural da sociedade burguesa, como se lhe coubesse, exclusivamente, desvendar o drama do sujeito num mundo individualizado. De forma diversa, o escritor moderno instaura, em pleno gozo do caráter artificial de sua produção, um outro mundo, encravando-o no que cotidianamente chamamos de realidade. Resta lembrar que o “modernamente”, aqui, refere-se a um projeto mais que centenário de literatura moderna. Ou talvez se trate de uma potência ainda mais antiga, que aponta para os primeiros tempos do que orgulhosamente chamamos de era moderna. Mesmo evitando a mitologia dos momentos fundacionais, é difícil escapar da ideia de que Cervantes terá sido um dos primeiros autores a brincar livremente com as traves do próprio artifício literário, vendo nelas uma espécie de prisão fantástica, invenção que ameaça tomar o sujeito para transformá-lo em outra coisa. Ninguém escapa do mundo ficcional moderno: nem os personagens, nem o escritor, que se torna, ele mesmo, personagem.

O trabalho minucioso diante dos limites da ficção não é novo para Ricardo Lísias. Mas está claro, ao menos para o autor, que o rótulo da “autoficção” é insuficiente para compreender sua prosa. Para além do debate sobre a autobiografia, o que está em questão, no caso de Lísias, não é a contaminação do texto pela “realidade” vivida pelo autor, mas sim a possibilidade de se inventar um mundo completamente diferente do nosso, embora, ao mesmo tempo, incrivelmente próximo e passível de reconhecimento. É como se identificássemos cada milímetro do que é narrado, enquanto somos levados, sub-repticiamente, a um universo de absurdos que nos faz pensar que o que vemos através das lentes da ficção não é real. Ou será real? Leia Mais

Urdidura do Vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950 – NICODEMO (HH)

NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do Vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008, 248 p. Resenha de: MONTEIRO, Pedro Meira. Permanência e mudança: em torno de Sérgio Buarque de Holanda. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p. 221-227, março 2011.

Urdidura do Vivido, de Thiago Lima Nicodemo, é uma contribuição fundamental à fortuna crítica de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Tratase do primeiro livro dedicado, inteiramente, a Visão do Paraíso, obra-prima do historiador, publicada como tese, em 1958, e, no ano seguinte, na forma de livro.

A escolha de uma palavra rara no título (“urdidura”) revela, inicialmente, um leitor atento às sugestões da obra buarquiana: aquilo que se urde é o reflexo de uma imaginação voltada para os espaços móveis e cambiantes, indefinidos e porosos, que constituem o centro das preocupações de Sérgio Buarque. Assim, indica-se o leque metafórico aberto pelos títulos de seus livros e ensaios produzidos depois de Raízes do Brasil, a partir da década de 1940: caminhos, fronteiras, veredas, redes, todos evocando a fluidez de territórios refratários à cristalização, através dos quais ideias e técnicas conjugam-se, confrontam-se e adaptam-se “com a consistência do couro, não a do bronze”, para lembrar uma passagem célebre de Monções, de 1945.

A ideia de um espaço em que o vivido é urdido, tramado, submetido a uma amarração singular e sempre passível de novas combinações, sugere também que Thiago Nicodemo deve muito – como aliás todos os que nos dedicamos ao estudo da obra buarquiana – às reflexões de Maria Odila Dias, para quem o problema da permanência e da mudança é central. Como fixar, com as palavras, um universo que, entregue a um fluxo complexo como os que estão presentes nos estudos históricos, é em si mesmo contrário à fixidez? Essas e outras questões são abordadas pelo livro de Thiago Nicodemo, que revisita, por meio de um criterioso trabalho de pesquisa, o terreno híbrido no qual se pode situar a obra de Sérgio Buarque. Ainda no plano das condições de produção de um estudo como este, vale lembrar que, na década seguinte à morte do autor de Visão do Paraíso, abriram-se as sendas para que os estudiosos prestassem atenção à indissociabilidade entre o historiador e o crítico literário.

A publicação de Capítulos de Literatura Colonial, em 1991, e da crítica literária esparsa, com O Espírito e a Letra, de 1996, por iniciativa, respectivamente, de Antonio Candido e Antonio Arnoni Prado, permitiu sondar a zona em que os dois campos – a análise histórica e a literária – dialogam, constituindo um objeto singular, apontando para os problemas comuns da permanência e da mudança. Em outros termos, trata-se de avaliar aquilo que é irredutível, compreensível apenas em certo tempo e espaço, e aquilo que parece escapar em direção a outros tempos e espaços, reduzindo-se a fórmulas que atravessam as fronteiras para reaparecer aqui e ali, sem que saibamos, num primeiro momento, qual a sua proveniência. A questão fundamental, que constitui o cerne da investigação de Urdidura do Vivido, é o balanço irresolúvel entre a “vida”, de um lado, e a possibilidade de inscrevê-la no corpo de um conhecimento sem reduzi-la a uma fórmula morta e vã, de outro. Não à toa, estes são problemas comuns aos dois campos, e é de uma peculiar combinação entre o crítico e o historiador que nasce a escrita de Visão do Paraíso.

Urdidura do Vivido situa, em um quadro de largo alcance, o problema do rompimento com o passado, do momento em que se torna possível abandonálo.

Ou ainda, nos termos de Goethe, trabalhados por Thiago Nicodemo, tratavase da fantasia de que pudéssemos nos emancipar dele, livrando-nos do seu jugo para prometeicamente (ou fausticamente) avançar em direção ao futuro, finalmente liberados da tralha fantasmática que nos ata ao passado. Esse é o ponto de partida da análise, que recorda que o fazer histórico é, necessariamente, uma intervenção no tempo, conforme a croceana ideia de uma história sempre, inevitavelmente, “contemporânea”.

À medida que se avança na leitura de Urdidura do Vivido, aprende-se como, da escrita de Bloch à refundação moderna do romanismo em Curtius, encontra-se uma questão agônica, incompreensível sem que se considere a Segunda Guerra: a necessidade de não mais permitir que a história fosse um instrumento de manipulação ideológica. Nesse sentido é que o romanismo de Curtius surge como uma maneira de se imaginar um espaço europeu anterior aos nacionalismos mais estritos e restritivos, fundados em equívocas mitologias locais. Para se pensar em termos ainda mais amplos, Urdidura do Vivido permite lembrar que a própria ideia de uma civilização baseada na herança das línguas românicas era uma forma de reagir à atomização pela qual passara a Europa, postulando uma espécie de eixo central que organiza a cultura que viria a ser chamada “ocidental”. Assim, uma senda e uma pergunta abrem-se aos pesquisadores: como avaliar as leituras, fascinações e influências de Sérgio Buarque de Holanda a partir do fim da Segunda Guerra, em contraste àquilo que foram as leituras de sua fase “alemã” (1929-1930), para lembrar expressão de Antonio Candido também recordada por Thiago Nicodemo? O primeiro capítulo, intitulado “O Historiador Encontra o Crítico”, traz algumas pistas interessantes nessa direção, uma vez que se aprende, detalhadamente, como a tópica de Curtius, retrabalhada e “historicizada”, permitiu a Sérgio Buarque rebater o caráter ahistórico que ele repudiava nas análises “formalistas” (os anos 50 foram o tempo de glória do New Criticism), aliando, a um profundo senso de mudança, a possibilidade de pensar fórmulas retóricas e lugares literários que atravessam o tempo – como o serão as tópicas do paraíso terrenal estudadas nos textos de viajantes e cronistas.

Torna-se então fundamental perceber a gestação de Visão do Paraíso não apenas como possibilitada pelos anos que Sérgio Buarque passou em Roma (1952-1954), mas também por esse amplo debate, e pela tentativa de compreender que fórmulas à primeira vista atemporais são, na verdade, utilizadas dentro de quadros históricos específicos. Ademais, como lembra Thiago Nicodemo, as investigações de Sérgio Buarque foram, em certo momento, parte de um esforço coletivo pela compreensão da “história da literatura brasileira”, segundo o projeto capitaneado por Álvaro Lins, que teria Sérgio como responsável pelo segmento de “literatura colonial”. Nas pesquisas do historiador da literatura, portanto, começa a surgir a atenção pelo recorrente tema das delícias da terra, que jamais deveria ser confundido com um sentimento protonacionalista, evitando assim que as fantasias patrióticas do século XIX se imiscuíssem à análise do texto colonial.

Todo o problema da “originalidade” e do quadro retórico e analógico em que se desenvolve a literatura colonial revela-se neste ponto. Teria sido interessante um diálogo entre Thiago Nicodemo e Alcir Pécora, que, em um texto originalmente publicado em 2002, analisou a interpretação buarquiana do padre Vieira e de Tomás Antonio Gonzaga, voltada, segundo o crítico, às “diferenças do passado”. Pécora resolutamente advoga que Sérgio resguarda-se das leituras teleológicas da poesia setecentista e o faz de forma especialmente interessante ao considerar os seus modelos internacionais, sobretudo os italianos, permitindo-lhe adotar uma crítica convincente do vocabulário usualmente empregado no tratamento dos árcades (PÉCORA 2008, p. 26).

A questão é também candente, hoje ainda, no âmbito da teoria literária, sempre que se discute o quanto o crítico pode ou deve reportar-se ao conjunto de verossímeis e de valores que conformam a produção colonial, por exemplo.

Como se tal crítico, em suma, devesse mergulhar em um tempo alheio ao seu próprio. Em outros termos, trata-se de verificar até onde a atenção à teia retórica (onde se situa a crítica de Pécora e de João Adolfo Hansen, para citar apenas dois nomes fundamentais) prende um autor a “seu tempo”, e até onde categorias forjadas a partir do século XIX devem ser simplesmente descartadas na análise de textos coloniais.

Dialogando com as teses maiores de Visão do Paraíso, o capítulo seguinte (“Idade Média, Renascimento e a Escrita da História em Visão do Paraíso”) enfrenta a questão, central para Sérgio Buarque, de uma suposta ausência de ruptura em relação ao mundo medieval, na forma mentis dos portugueses. O desafio era saber como, diante da paisagem do Novo Mundo, ressuscitou-se todo um complexo universo de referências tradicionais e como, no caso específico dos portugueses, as formas do pensar não teriam sido radicalmente alteradas diante da “novidade” da América, que fica assim subsumida a concepções mais “realistas” e “pedestres” do novo. Um dos méritos da investigação de Thiago Nicodemo é o de iluminar a questão por meio da análise dos debates registrados durante defesa de tese na Universidade de São Paulo, quando o então candidato Sérgio Buarque de Holanda retomava seu diálogo com Eduardo D’Oliveira França, membro da banca examinadora que aprovaria Visão do Paraíso e permitiria a Sérgio assumir a cátedra de História da Civilização Brasileira naquela instituição. O debate corria em torno da continuidade ou da quebra de uma visão “medieval” portuguesa, e da possibilidade ou não de se compreender a ação humana por meio de conceitos abrangentes e desencarnados.

Uma vez mais, assoma o problema da “ruptura”, isto é, do momento em que permanência e mudança confrontam-se. A explicação básica de Sérgio Buarque é a de que o caráter prematuro da centralização política em Portugal (o primeiro Estado moderno, por assim dizer) desobrigou as novas classes (aí o caráter “burguês” da Casa de Avis) de se constituir em agentes novos, permitindo que se aferrassem a um “estranho conluio de elementos tradicionais e expressões novas” (NICODEMO 2008, p. 111), como se lê em Visão do Paraíso, que neste ponto explicita os andaimes de uma tese já presente em Raízes do Brasil: a de que o povo português é, em certo sentido, refratário à novidade do Renascimento e ao espírito especulativo da ciência moderna em sua aurora. O caráter prático, chão e pedestre da forma de pensar de portugueses vai marcar, finalmente, sua visão do paraíso, que seria sempre mais crédula e simples (ou antes: pacificamente analógica) que a dos espanhóis.

Retomando cuidadosamente a história da conceituação da “Idade Média”, do humanismo italiano ao idealismo alemão e à periodização romântica de um tempo progressivo, Thiago Nicodemo deslinda o que lhe parece ser uma “flexibilização”, em Visão do Paraíso, da dualidade que contrapõe o medievo à era moderna (idem, p. 117), e nesse aspecto é novamente Curtius quem aparece como principal referência, ao lado de um autor como Panofsky. O pano de fundo desse intrincado debate (especialmente, embora não exclusivamente, alemão) é a questão dos limites entre a Idade Média e o Renascimento (tema que recende a Burckhardt), mas é também a possibilidade de encontrar resquícios de um no outro, ou antes, de buscar, no outro, aquilo que se imagina exclusivo de um dos polos. Aí, o berço dos debates sobre o “dionisíaco”, e da entrada em cena de elementos “irracionais” para o desvendamento da lógica e dos limites do legado “racional” que o senso comum atribui ao corte operado pelo Renascimento. Alinham-se então intelectuais como Huizinga, Bloch e Warburg [que] vivenciaram o ambiente de crítica ao racionalismo e positivismo de antes da Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, formularam concepções de história atentas a significados de um mundo pré-industrial no qual as crenças e os mitos tinham papel fundamental. Isso implicava a revisão de certos temas em comum, tais como o da ideia da Idade Média como lugar desinteressante, de trevas e irracionalidade. No outro extremo, foi necessário rever o Renascimento como sinônimo de racionalidade e equilíbrio (NICODEMO 2008, p. 127).

Teria sido interessante, aqui também, ver Thiago Nicodemo reagir à leitura, profundamente cética, de Maria Sylvia Carvalho Franco (citada de passagem nas “Considerações Finais”) a respeito da tese da continuação do medievo no Renascimento, em Visão do Paraíso. Afinal, o encantamento com o mítico e o pré-moderno não seria um ponto em que os debates historiográficos em questão encontram certa potência “regressiva” já presente no modernismo brasileiro? Foi nas águas desse modernismo, encantado por um mundo não cartesiano, que se formara a imaginação do jovem Sérgio Buarque, muito antes de ele se tornar o historiador erudito reconhecido por todos. Além disso, haverá, todavia, um ponto cego a trabalhar em Visão do Paraíso: grande parte da argumentação sobre o senso de “maravilha” que rege a imaginação espanhola, em oposição ao realismo pedestre dos portugueses, está baseada nos relatos de Colombo, cuja visão do mundo é um tema em si complexo, e ainda aberto a investigações. Identificar a imaginação colombina à face “espanhola” da descoberta da América pode ser um rico problema a contraditar, de forma a revisitar e homenagear a grandeza de Visão do Paraíso.

Ainda no segundo capítulo, recupera-se a tensão entre a irredutibilidade e unicidade do fenômeno histórico e o desejo de subsumir tais fenômenos, em seu âmbito individual, a macro-estruturas ou estruturas profundas que regeriam e explicariam o social. Tratava-se do grande debate entre a história e a antropologia de corte estruturalista, o qual, como lembra Thiago Nicodemo, tem no Brasil um momento inaugural, quando os jovens Braudel e Lévi-Strauss ensinavam na USP. Entre a lentidão das mudanças estruturais e o torvelinho das mudanças de superfície, projetava-se, novamente, o tema do movimento e do fluxo, e o problema de onde (e como) encontrar o ponto em que a permanência dá lugar à mudança, ou ainda a zona em que ambas – permanência e mudança – convivem. Esse é o pano de fundo contra o qual se coloca o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, que se pode compreender como uma alta expressão brasileira do debate historiográfico europeu, em meio ao qual se legitimariam, a partir dos anos 50, as várias matrizes do marxismo acadêmico.

A oscilação entre o ponto pequeno da análise individual, com a atenção voltada para os mínimos detalhes da vida, e as grandes correntes mentais que se deixariam codificar em conceitos e termos abrangentes, forma o núcleo do debate historiográfico moderno, às vezes pensado por meio da tensão entre o conhecimento idiográfico e o saber nomotético. A solução buarquiana para tal problema metodológico seria a busca incessante, nos documentos (aí incluída a literatura), dos “vestígios” de sensibilidades passadas, que caberia ao historiador assumir momentaneamente, sempre que quisesse compreender o ponto em que a ação individual encontra o horizonte coletivo de sensibilidades e expectativas, sendo que apenas tal horizonte permitir-lhe-ia, afinal, pensar a história como algo para além do anedótico.

O terceiro e último capítulo (“Sentidos da Colonização”) evidencia as articulações do pensamento buarquiano, conectando preocupações presentes em Raízes do Brasil (1936) a Visão da Paraíso, passando pela inédita dissertação de mestrado apresentada, ainda em 1958, à Escola de Sociologia e Política: Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos.

Trata-se de uma interessante reconstrução da ideia prevalecente de um espírito “aventureiro”, como se lia em Raízes do Brasil, a orientar a exploração lusitana.

Uma espécie de mal de origem – tão fundamental na imaginação negativa do que foi a formação do Brasil contemporâneo – explicita-se na ideia de que a colonização portuguesa funda uma sociedade voltada para fora, incapaz de desenvolver-se com vistas a si mesma.

A interlocução com Caio Prado Jr., bem como a importância das teses principais de Raízes do Brasil, ilumina assim a feitura de Visão do Paraíso. O que não impede Thiago Nicodemo de corroborar a noção corrente – a meu ver redutora – de que entre Raízes do Brasil e os trabalhos históricos posteriores haveria uma espécie de evolução, de um Sérgio Buarque que se profissionaliza e que, portanto, abandona o que, em seu ensaio de estreia, teria sido a “rigidez de conceitos e modelos explicativos” (NICODEMO 2008, p. 182). É amplamente sabido que Sérgio Buarque renegou, até certo ponto, Raízes do Brasil, confrontando-se, em vários momentos de sua vida, com o fantasma daquele livro que durante tanto tempo causou mal-estar (especialmente na USP, há que lembrar), seja pelo seu caráter ensaístico, seja por seu suposto reducionismo sociológico (que facilmente seria identificado como “ideológico”).

O quanto tal reducionismo é fruto de uma leitura pobre de Raízes do Brasil é ainda matéria controversa, assim como a mutação de um Sérgio Buarque “sociólogo” em “historiador”, que pauta não poucas leituras de sua obra, pode também ser questionada.

Embora não se detenha sobre tais aspectos, e por momentos corrobore a visão negativa do próprio Sérgio Buarque sobre Raízes do Brasil, Thiago Nicodemo nota como a centralização precoce do Estado português é o núcleo explicativo do “desleixo” da empresa lusitana nos trópicos, com fortes implicações para a compreensão do “sentido” da colonização. Uma pergunta do presente, portanto, organiza o passado, sem pretensões teleológicas ou messiânicas, mas simplesmente como parte daquela tarefa original do historiador, trabalhada na “Introdução”, de “exorcizar” o fantasma do passado, desencantando-o pelo conhecimento. Nesse ponto, justamente, Urididura do Vivido promove um brilhante curto-circuito entre as reedições de Raízes do Brasil e Visão do Paraíso, notando como a mudança de tom, da primeira para a segunda edição de Raízes, é já o fruto de uma oscilação entre a ideia de um “acerto” português nos trópicos e uma dúvida sobre o mesmo acerto, como se o “taumaturgo” (no primeiro caso) tivesse cedido ao “exorcista” (no segundo momento), de acordo já com os termos do prefácio à segunda edição de Visão do Paraíso.

O nó da questão é, em certo sentido, o futuro do Brasil: com aquelas raízes, que fazer? Tal pergunta faz com que a investigação regresse, inevitavelmente, aos anos modernistas de Sérgio Buarque e à sua insatisfação declarada com a forma final da nacionalidade, isto é, com sua arquitetura ideal.

O livro de Thiago Nicodemo tem o imenso mérito de recordar essas conexões entre o modernista de primeira hora e o pesquisador maduro, mostrando, ao mesmo tempo, que há ainda muito a percorrer no terreno da análise da obra de Sérgio Buarque de Holanda. Entretanto, com a publicação de Urdidura do Vivido, qualquer investigação passa agora a contar com uma compreensão densa e ampla dos caminhos do pensamento buarquiano nos anos 1950. Lastro e muita vela.

Referências

PÉCORA, Alcir. A importância de ser prudente. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy (org.). Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Rio de Janeiro/ Campinas: EdUERJ/ Editora Unicamp, 2008.

Pedro Meira Monteiro – Professor Princeton University pmeira@Princeton.EDU 349 East Pyne 08544 Princeton – NJ.

 

Teoria da história; Historiografia; Ceticismo.