Faces do Monarquismo Ocidental / Territórios & Fronteiras / 2014

O dossiê Faces do monaquismo Ocidental aborda um dos temas centrais para a compreensão do período medieval, a saber, o monaquismo nas suas mais variadas formas e expressões ao longo da Idade Média. Para sua realização, contamos com a colaboração de estudiosos brasileiros e estrangeiros, cujos trabalhos permitem pensar no monaquismo por diferentes perspectivas, tanto ao considerá-lo em espaços e tempos distintos, quanto por ressaltarem a diversidade de situações e relações produzidas pelos monges e os modos de vida que suscitaram ou que a eles se opuseram.

Os artigos aqui dispostos elucidam, ainda, estratégias e argumentos que fundamentaram debates em torno da importância social e política dos monges para a sociedade medieval: a começar pela valorização teórica, arquitetônica e espacial do desprezo do mundo e do isolamento a partir da ênfase na importância da clausura e da construção de uma memória histórica para o monaquismo, que apontasse a estabilidade e a obediência como elementos essenciais do propósito da vida monástica. Tal é a abordagem dos artigos de Michel Lauwers e Cécile Caby que, por meio da utilização de fontes diversas, definem a descoberta da estabilidade como prerrogativa monástica elementar, identificando a existência de um processo de territorialização promovido pela organização monástica. Lauwers confirma o processo de territorialização e de “comunitarização” a partir da análise da Planta do Mosteiro de Saint-Gall. Já Cécile Caby retraça os usos possíveis para a metáfora dos pequenos peixes, originária da Vida de Santo Antônio, em autores dos séculos XII e XIII, ora como forma de defesa, ora como forma de negação do pertencimento ao mosteiro enquanto característica própria da profissão monástica.

Neste dossiê, também encontramos monges e mosteiros situados no entrecruzamento entre a autoridade papal e as cortes croatas, atuando como partes integrantes do projeto de conquista territorial e política da Dalmácia, realizado por um papado reformado. O surgimento de mosteiros beneditinos na região dálmata, bem como o uso da escrita beneventana em documentos administrativos da corte croata permitiram a Stéphane Gioanni comprovar a existência de alianças mobilizadas pelo papado para fortalecer seus domínios em uma região históricamente vinculada a Bizâncio. Em território bem distante da Dalmácia, observamos o monaquismo no coração das relações de poder, mas, desta vez, vinculados à monarquia e famílias aristocráticas leonesas, fundadoras e mantenedoras de estabelecimentos monásticos cistercienses masculinos e femininos na região. Indo além de um estudo sobre a territorialização promovida pela Igreja ou sobre a ocupação do território hispânico durante e após a Reconquista por meio da construção de mosteiros, Maria Filomena Coelho Pinto apresenta como as casas monásticas foram peças centrais nas estratégias de linhagem, sobretudo, em razão da condição santificada de que gozavam. Tal santidade estava posta nos lugares, mas também em objetos pertencentes aos mosteiros, servindo à construção de uma memória e de um passado de defesa do cristianismo peninsular, bem como à defesa do bem comum para a comunidade cristã.

Mas não só no isolamento dos mosteiros tornava-se possível a vivência de uma experiência religiosa durante o período medieval, sobretudo após o século XIII. Deve-se atentar, portanto, para a importância de uma vida religiosa situada no coração das cidades e o papel crucial desempenhado pelas ordens mendicantes na fundamentação de uma nova eclesiologia e na construção de uma memória histórica que contribuíram para afirmação de seu poder no seio das cidades Baixo medievais. Tal é a perspectiva trazida a tona pelos estudos de Néri de Barros Almeida e André Miatello. Néri de Barros Almeida trata da importância da ordem dos pregadores e de sua atuação no espaço urbano italiano, concentrando-se numa das principais e mais difundidas obras produzidas neste ambiente: a Legenda Áurea. Da análise desta obra, a autora retira implicações instigantes sobre a relação entre história, memória e hagiografia na Idade Média, bem como reflete sobre as consequências do posicionamento de Jacopo de Varazze sobre o passado do monaquismo, sobretudo ao promover o obscurecimento de um modelo de santidade e de vida monástica possível entre os séculos X e XII e valorizar os santos mártires e ascetas antigos ou aqueles saídos da Ordem Dominicana no século XIII. Já Miatello analisa obras importantes de Dominicanos e Franciscanos, identificando os critérios inovadores do modelo eclesiológico que esses frades ofereceram à cristandade Baixo medieval. O autor chama atenção, sobretudo, para o conflito entre o clero secular e as ordens mendicantes iniciado com a ingerência dos frades na atividade de pregação, na administração do sacramento da confissão e no combate à heresia.

Do mesmo modo, Renata Cristina de Sousa Nascimento apresenta uma investigação sobre os dominicanos, mas toma como ponto de partida sua experiência em Portugal e em um mosteiro específico: o Mosteiro de Batalha. A autora destaca a importância dos frades pregadores em Portugal a partir da relação que estabelece entre esta ordem e a dinastia de Avis iniciada por João, Mestre de Avis, o qual ascendeu ao poder luso após a batalha de Aljubarrota, momento no qual constrói o mosteiro, dedicando-o à Ordem já estabelecida na região. Saul António Gomes também aborda o desenvolvimento do monaquismo em território lusófono, apresentando uma cartografia da fixação das casas conventuais portuguesas e sua relação com as dioceses e poderes régios. Cuidadoso em apresentar dados sobre a demografia das diferentes ordens que se estabeleceram em Portugal no século XV, Saul Gomes arremata este dossiê com um panorama quantitativo e qualitativo do estabelecimento das diferentes ordens monásticas em Portugal e sua relação direta com o patrocínio régio.

Com este dossiê, procuramos, portanto, apresentar diferentes possibilidades de se pensar o monaquismo em sua relação com a vida religiosa e política da Idade Média. Ao situarmos as ordens monásticas e mendicantes nos jogos de poder do período e ao atestarmos sua atuação para a construção da cultura, do pensamento e mesmo da espacialidade da Europa, procuramos ampliar o conhecimento que temos sobre sua importância, crucial e definidora, para a construção da sociedade medieval e contemporânea, já que, como muito bem notou Giorgio Agamben:

Se o ideal de uma vida comum tem, evidentemente, um caráter político, o cenóbio é, talvez, o lugar onde a comunidade de vida é reivindicada como elemento constitutivo em todos os sentidos do termo. Assim, o que está em questão na vida cenobítica é a transformação do cânone da prática humana que foi determinante para a ética e a política das sociedades ocidentais. Cânone este que, ainda hoje talvez, não compreendemos plenamente a natureza e as implicações.[1]

Boa leitura e boas reflexões!

Nota

1. AGAMBEN, Giorgio. De la très haute pauvreté. Régles et formes de vie. Paris: Éditions Payot & Rivages, 2013, p. 79.

Cláudia Regina Bovo – Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: claubovo@yahoo.com

Rossana Alves Baptista Pinheiro – Universidade Federal de São Paulo. E-mail: rossana.unifesp@gmail.com


BOVO, Cláudia Regina; PINHEIRO, Rossana Alves Baptista. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.7, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Monaquismo / Brathair / 2011

O “afastamento do mundo” para se dedicar integralmente à vida religiosa é comum à maioria das religiões. Desde que o grupo social arcaico se tornou mais complexo começaram a surgir os feiticeiros, sacerdotes e pajés, nitidamente identificáveis nas pinturas murais da mais antiga pré-história, e confirmadas pelos exemplos da Antropologia. Mas esses especialistas da religião, mesmo que mantenham um modo de vida diferente e separado da comunidade, e portanto “afastados do mundo” ainda não são monges no sentido estrito e no entendimento tradicional. Porém, para entrar melhor nesta discussão, é preciso apurar os termos, pois só por si, sem se considerar seu uso, as palavras induzem em erro: monge vem de monachus, termo semelhante a mónada: singular, isolado, que é só um, vocábulo que deu origem a monastério, e mosteiro, e a topônimos como Munique. Mas o mosteiro é o lugar onde vive a comunidade de muitos monachus, dos “isolados que estão juntos”, e só se entende esta aparente contradição quando se compara com o seu equivalente, mas contrário: convento. Este significa o lugar para onde “convêm” ou se congregam muitas pessoas, e a diferença está em que no convento a vida comunitária predomina sobre o modo de vida individual no trabalho, na oração e no estudo, enquanto no mosteiro o mônaco teria mais tempo para a vida espiritual.

Mesmo que no uso vulgar os dois termos – mosteiro e convento – se usem indistintamente, esta breve explanação nos serve para introduzir as questões fundamentais, das quais a primeira é a já indicada: o impulso para a dedicação à vida religiosa em tempo integral é próprio de todas as sociedades, e não constitui uma quebra da tendência humana à socialização; pelo contrário, a vida social no interior dessas comunidades é intensa, e nunca se corta totalmente da sociedade ambiente. A variedade de modos de vida religiosa é muito grande, desde os eremitas, esses sim isolados, até aos que vivem monasticamente porém inseridos na cidade e no campo; mesmo assim, a vida monástica apresenta traços semelhantes em quase todas as religiões complexas; e, seja qual for a opção de vida, a tensão entre a vivência individual e a coletiva é sempre um dos focos principais das normas e regras monacais. Deste modo a afirmação inicial tem de ser completada: as circunstâncias da cultura religiosa, do ambiente da época e da tradição, impõem ao monaquismo características próprias a cada caso ou modalidade.

É possível, então, discernir em que aspectos as culturas celtas e germânicas impuseram seus selos, ou marcas no monaquismo cristão ocidental? Se o fizeram, teremos de observá-los nos movimentos monásticos da Alta Idade Média, antes que Roma impusesse sua hegemonia sobre todas as variantes do cristianismo regional. Talvez se pudessem levantar algumas hipóteses, a confirmar pelos documentos e pelas tradições, como por exemplo: a maior presença do monaquismo feminino, de certo modo independente e paralelo ao masculino, entre os celtas irlandeses e britânicos; ou um forte espírito de obediência e comunitarismo entre os monges germânicos, contrastando com a variedade e certa “anarquia” dos monges celtas. Mas nossa intenção não podia ser esse “descobrimento”, que exigiria pesquisa e trabalho muito além de um dossiê. O que pretendemos levantar é a contribuição das áreas culturais celtas e germânicas, e das suas lideranças religiosas, para o surgimento e fortalecimento do movimento monástico europeu da Alta Idade Média – mesmo que alguns casos nos trouxeram para mais perto do apogeu medieval.

Os artigos apresentados neste dossiê cobrem diversas áreas da presença celta e germânica, reportando-se a questões da vida interior dos mosteiros, mas sobretudo às relações da vida monástica com a sociedade em que se inseriu: Farrell trata do serviço pastoral na Irlanda, Souza fala da opinião de uma crônica merovíngia sobre acontecimentos político-religiosos do Oriente, Uchoa estuda a comunidade monástica e sua percepção do corpo para controle da virtude, Frazão da Silva e Rodrigues da Silva discutem os vínculos entre as lideranças monásticas e as figuras do poder real e da nobreza. Assim considerado, o monaquismo como movimento e modo de vida é o resultado e ao mesmo tempo o modelo para a sociedade cristã, e neste sentido o artigo de Conde da Silva sobre as virtudes das damas e cavaleiros vem nos trazer o ideal cristão fora dos mosteiros, mas refletindo os ideais espirituais que os monges elaboravam e difundiam. O elo de ligação está explícito no artigo de Sirgado Ganho, em que um monge, e líder de monges, apresenta as normas de virtude não só para os leigos, mas para o próprio rei e sua corte. Através da análise da Visão de Túndalo, Zierer e Messias demonstram como narrativas compiladas por monges serviram como propaganda religiosa, visando a conversão dos fiéis e as corretas normas de comportamento para que atingissem o Paraíso na outra vida.

Esta pequena amostra da contribuição do monaquismo para a construção da Cristandade, e da Europa, é rica, mas não é suficiente para os seus e nossos objetivos: ela pede outros complementos que oportunamente serão apresentados nesta revista.

João Lupi – Professor Doutor (UFSC). E-mail: lupi@cfh-ufsc.br


LUPI, João Editorial. Brathair, São Luís, v.11, n.2, 2011. Acessar publicação original [DR]

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