Poderes politicos y resistencias en la monarquia hispanica (siglos XVI-XVIII)/Estudios de Historia de España/2021

Algunas décadas han pasado desde que la historia política se ha alejado de la visión tradicional -ciertamente estrecha y constrictiva- de pensar la articulación del poder político a través de las estructuras institucionales centralizadas en permanente avance y expansión que acabarán constituyendo las intricadas tramas institucionales de gobierno y administración de las monarquías Ibéricas en su tránsito a la modernidad. Leia Mais

From Franco to Freedom. The Roots of the transition to Democracy in Spain, 1962-1982 | Miguel Ângel Ruiz Carnicer

CARNICER M A R Democracy in Spain
David Alegre Lorenz e Miguel Ãngelo Ruiz Carnicer (direita). Foto: La Esfera de los libros 2018 /

CARNICER M A R From Franco to Freedom Democracy in SpainLa transformación política surgida de las entrañas de la estructura estatal, en el contexto legislativo, socio-cultural e institucional del tardofranquismo, es uno de los marcos de trabajo de investigación más complejos que puedan existir a día de hoy por muy diferentes motivos. El presente libro, en formato de obra colectiva, pretende clarificar una serie de cuestiones relativas a la motivación del cambio político. Asimismo, la investigación busca la apertura de nuevos espacios temáticos, para arrojar luz sobre los factores desencadenantes de la transformación interna. La planificación del proceso de reciclaje institucional y la adopción de nuevos roles por parte de las magistraturas del Estado buscaron el establecimiento de unas pautas de comportamiento programadas (por algunos integrantes de la cúpula política de la dictadura) para evitar que el proceso de transición a la democracia se descontrolase. En términos de puridad metodológica, el periodo histórico que va desde 1962 a 1982, hace posible que el trabajo de investigación sea sólido, con fundamentos comparativos y descriptivos muy amplios.

Miguel Ángel Ruiz Carnicer (Departamento de Historia, Universidad de Zaragoza), editor de From Franco to Freedom1 (RUIZ CARNICER, 2018), realiza una labor de coordinación e integración de trabajos notable. En líneas generales, el conjunto de las contribuciones busca la implementación de un contexto de originalidad y proporciona nuevos puntos de vista sobre la fase final de la dictadura, mediante el estudio de los condicionantes externos y los contextos internos que influyeron en los lentos ritmos del cambio. Como en el resto de su trayectoria de investigación, el editor pone el foco en la transformación de las mentalidades colectivas y el escenario socio-cultural. Los diferentes aportes a la investigación tienen una clara naturaleza multidisciplinar y una estructura bastante equilibrada (en su dimensión y en forma). El cuerpo del texto se compone de ocho capítulos, cada uno de ellos cuenta con una conclusión y un epígrafe de referencias documentales. En la parte final existe un aparatado con la información biográfica de los investigadores participantes y el índice alfabético. El trabajo no cuenta con una conclusión final conjunta. Leia Mais

A monarquia no cinema brasileiro: Metodologia e análise de filmes históricos | Vitória Azevedo da Fonseca

A monarquia no cinema brasileiro: Metodologia e análise de filmes históricos. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. A monarquia no cinema brasileiro: metodologia e análise de filmes históricos é um livro de autoria da historiadora brasileira Vitória Azevedo da Fonseca. Proveniente de sua dissertação de mestrado desenvolvida pela Universidade de Campinas, se propõe analisar dois filmes que tratam, sob diferentes perspectivas, o período monárquico brasileiro e o processo de independência do país. São eles: Independência ou Morte, de 1972, dirigido por Carlos Coimbra, e Carlota Joaquina, a princesa do Brasil, lançado em 1995, sob a direção de Carla Camurati.

A obra é dividida em quatro capítulos precedidos por uma apresentação assinada por Leandro Karnal, e encerrado com as considerações finais da autora e as referências. Inicialmente, Fonseca apresenta alguns métodos que devem ser levados em consideração ao propor uma análise de filmes históricos, destacando autores como Ismail Xavier, Jacques Aumont, Jean-Claude Bernadet, Marcel Martin, Marc Ferro e Marc Vernet, sem estabelecer um específico para seguir e optando pela mescla de metodologias. Seguindo a ideia proposta por Vanoye, a autora argumenta que a primeira medida a se fazer ao analisar uma película é descompô-la em partes, estabelecendo relações em seguida, para, dessa forma, compreender a estrutura narrativa construída (p. 10). Leia Mais

Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836) | C. E. C. Lynch

Seria possível conciliar um Estado forte e centralizado ao ideário liberal moderno na prática política oitocentista brasileira? A leitura de Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento do Marquês de Caravelas nos revela que sim. Defensor tanto da soberania do rei quanto do constitucionalismo moderno, José Joaquim Carneiro de Campos – o marquês de Caravelas – foi personagem fundamental, de acordo com Christian Lynch, no processo de recepção e aclimatação do discurso liberal durante o estabelecimento do Estado de direitos no Brasil.

Prevalecente na Constituição de 1824, o projeto monárquico e estatizante dos coimbrãos contou com a participação ativa de José Joaquim Carneiro de Campos. Segundo Lynch, Caravelas foi responsável por aperfeiçoar o projeto constitucional dos Andradas, caracterizado pelo bicameralismo, por uma rigorosa centralização política-administrativa e pelo veto quase absoluto do Imperador. Sua principal contribuição foi a criação do Poder Moderador e a institucionalização de alguma descentralização político-administrativa a partir da criação dos conselhos gerais de províncias. Para ele, esse arranjo seria o ideal pois garantia “uma monarquia sem despotismo e uma liberdade sem anarquia”, expressão definidora do seu pensamento político (p. 53).

Lynch relacionou a teoria das formas de governo de Caravelas com a tradição clássica aristotélica. Segundo esta, as formas de governos existentes – monarquia, aristocracia e a democracia – eram instáveis e oscilavam constantemente entre bons e maus governos, a monarquia corrompida se degeneraria em tirania, a aristocracia em oligarquia e a democracia em demagogia. No entanto, havia uma maneira de evitar a corrupção e estabilizar esses governos: uma composição mista entre monarquia, aristocracia e democracia. Assim como Aristóteles, Carneiro Campos considerava que a melhor maneira de tornar as instituições políticas brasileiras duráveis seria por meio de um governo misto. Em sua opinião, a forma moderna que permitia o equilíbrio entre os elementos governamentais seria a monarquia constitucional representativa temperada ou limitada. Se o fundamento conceitual de Caravelas estava em Aristóteles, sua sociologia política se apoiava em Montesquieu. Isso porque sua principal preocupação, como mostrou o autor, era conciliar o governo constitucional representativo – necessidade dos tempos modernos – com a preservação da ordem e das hierarquias coloniais por meio da criação de uma legislação que respeitasse as tradições e os costumes do povo brasileiro.

O estudo sobre o pensamento político de homens como Caravelas faz parte de um longo debate historiográfico a respeito do lugar do liberalismo no processo de formação do Brasil independente. Debate longo, mas necessário, foi iniciado por obras clássicas – como a de Roberto Schwarz – que defenderam que as ideias estavam fora do lugar. De lá para cá, muito se avançou no tema. Surgiram diversos trabalhos que discutiram, de perspectivas diferentes, a formação do Brasil independente mostrando que as ideias estavam sim no lugar, a exemplo de Maria Sylvia de Carvalho, Alfredo Bosi, Lúcia Maria B. Pereira das Neves, Maria Emilia Prado, Antonio Carlos Peixoto, entre outros.

A análise instigante empreendida por Lynch nos evidenciou que, embora antigo, este debate está longe de ser esgotado. Interessado na história constitucional brasileira – graças à graduação e ao mestrado na área do Direito – bem como no seu desenvolvimento pela perspectiva daquilo que o historiador alemão Reinhart Koselleck chamou de Sattelzeit, Lynch redimensionou o lugar do conservadorismo no Brasil oitocentista por meio do resgate desse importante personagem político da independência brasileira do limbo em que se encontrava.

Nesse sentido, suas reflexões sobre a composição de um campo conservador no Brasil e sobre as construções historiográficas a esse respeito garantem uma análise provocante do processo de formação das instituições políticas brasileiras. Segundo Lynch, o marquês de Caravelas, ao sustentar um projeto liberal que conciliava a implantação de um governo constitucional representativo com a garantia de um Estado monárquico forte, seria o primeiro de uma linhagem de juristas constitucionais, na qual se entronca o visconde de Uruguai, a defender a construção e o fortalecimento do Estado como instância incubadora adequada da Nação.

Embora a obra escrita por Lynch tenha José Carneiro de Campos como objeto de pesquisa, nunca foi preocupação do autor a descrição e o acompanhamento de seus feitos como fazem diversos trabalhos biográficos. Na realidade, todo seu empenho se concentrou na reconstituição do pensamento teórico e sociológico do marquês de Caravelas e sua aplicação prática ao longo dos seus trabalhos enquanto deputado e relator do projeto constitucional de 1824. Tendo em vista esse objetivo, Lynch estruturou seu livro em duas partes: a primeira destinada a um estudo do pensamento político-constitucional do marquês de Caravelas – dividida ainda em cinco capítulos – e uma segunda reservada para a compilação de seus discursos parlamentares mais importantes, fontes que serviram de base para sua pesquisa.

Os discursos parlamentares do marquês de Caravelas foram analisados com base em duas frentes metodológicas: o contextualismo linguístico de John Pocock e a história dos conceitos de Koselleck. Na primeira frente, estes discursos foram entendidos como “atos de fala” elaborados durante a disputa política visando um espaço de atuação e de poder. Na segunda frente, o autor carioca identificou os conceitos presentes nesses discursos examinando os novos significados assumidos por eles de acordo com as circunstâncias, as necessidades e as contingências do Brasil recém-independente.

É em seu primeiro capítulo – “Os desafios da política constitucional oitocentista na Europa e na América ibérica” – que Lynch conseguiu brilhantemente conciliar essas duas frentes metodológicas, procedendo a uma bela análise relacional de texto e contexto. Infelizmente, nos outros capítulos, principalmente os três últimos, nos quais há uma reflexão sobre os elementos constitutivos do pensamento de Caravelas, a análise se concentrou apenas no texto e nos conceitos presentes nele. Apesar disso, suas reflexões sobre o enquadramento ideológico de Carneiro de Campos presentes no primeiro capítulo e as razões historiográficas responsáveis por seu esquecimento, apresentadas no segundo, são de grande relevância para os pesquisadores na área da história política brasileira.

Se a maioria dos trabalhos historiográficos explicam o processo de construção do nosso Estado a partir do liberalismo moderno, Lynch o faz baseado no conservadorismo. Ele defendeu a conservação como elo indispensável tanto para compreensão do pensamento de Caravelas quanto para o entendimento do desenvolvimento das instituições políticas brasileiras das quais ele fez parte. Ao fazer isso, o autor acabou redimensionando o sentido e o papel desempenhado pelo conservadorismo na América Ibérica.

Até hoje relacionamos o conservadorismo a posicionamentos tradicionais e, portanto, contrários a mudanças. De acordo com Lynch, isso acontece devido a conotação negativa que este conceito possuí no Brasil graças ao legado da tradição marxista de intelectuais do século XX, a exemplo de Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, que relacionaram o conservadorismo a uma visão hierárquica de mundo, defensora de privilégios, contrária à democratização e ao reconhecimento das minorias. Inclusive, o autor associou também o esquecimento historiográfico de Carneiro de Campos, bem como sua associação apressada ao absolutismo, a essa visão negativa dos conservadores.

Depois de realizar uma síntese das principais correntes conservadoras – passando por Hume, Burke e Guizot – Lynch afirmou que elas eram equivalentes no Brasil às reflexões dos conselheiros de Estado de D. Pedro I que, baseados no modelo monarquiano do barão Malouet e de Jean Joseph Mounier, defenderam um projeto de governo constitucional e representativo no qual o rei, não a Assembleia, seria o representante da soberania nacional. A implantação desse sistema permitiu a conciliação entre o ideal modernizador ordeiro do despotismo esclarecido com o estabelecimento de um governo constitucional. Por isso, Lynch afirmou que o conservadorismo é uma espécie de liberalismo de direita, de caráter reformista e antirrevolucionário. Nesse sentido, ao invés de se apresentar em oposição total aos liberais, os conservadores teriam uma postura realista da modernidade, aceitando a inevitabilidade do progresso, embora tentassem guiá-lo de forma prudente e gradual, os adequando a cultura histórica de cada sociedade na tentativa de preservar o tecido social e evitar as rupturas revolucionárias.

No entanto, ao longo de todo o processo de independência, do primeiro reinado e dos anos iniciais das regências, o discurso daqueles que orbitavam em torno de D. Pedro I, a exemplo de Caravelas, foram associados ao absolutismo e ao autoritarismo por seus adversários políticos que desejavam um espaço de atuação e de participação no Estado brasileiro.

Somente com os saquaremas, na segunda metade do século XIX, o termo conservador passa a ser empregado na caracterização de um grupo político, apesar de seus projetos existirem desde a época da independência. De acordo com Lynch, diferentemente do Partido Liberal, que reivindicou o grupo brasiliense como primeiro embrião de seu partido, o mesmo não aconteceu com os conservadores, que preferiram venerar a memória de Bernardo Pereira de Vasconcelos e o Regresso como verdadeiro fundador do partido durante as regências. Logo, a imagem de homens como Caravelas sofreu um desgaste duplo. Ao mesmo tempo em que eram desqualificados pela historiografia luzia que os retratava como absolutistas, não tiveram sua imagem resgatada pela historiografia saquarema e ficaram sem uma posteridade política que os reivindicasse positivamente.

Mais uma vez vemos a influência do historiador inglês J. G. A. Pocock em Monarquia sem despotismo e Liberdade sem anarquia. Baseado em suas ideias, o autor buscou compreender a história como choques de discursos antagônicos. Durante muito tempo, a historiografia brasileira vem comprando a versão de autores saquaremas que localizaram o surgimento do conservadorismo no Brasil no movimento regressista. É importante entender que os saquaremas não queriam ter sua imagem pública associada ao grupo “coimbrão” devido a sua fama negativa ligada ao absolutismo.

Ao longo do livro, Cristian Lynch conseguiu demonstrar que o pensamento político de José Carneiro de Campos não tinha nada de absolutista. Muito pelo contrário, partilhava semelhanças com as doutrinas conservadoras do tempo. Isso implica reconhecer, a despeito das afirmações historiográficas, que o conservadorismo aos moldes regressistas e saquaremas existiam de alguma forma no Brasil muito antes do período regencial, sendo esta ao meu ver a principal contribuição da obra. O resgate do marquês de Caravelas do limbo do esquecimento e sua inserção num campo conservador em formação durante todo o processo de construção do Estado brasileiro nos ajuda a redimensionar a própria concepção do conservadorismo na constituição do Brasil independente.

Referência

Lynch, C. E. C. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

Luaia da Silva Rodrigues – Doutoranda em história pela UFF. E-mail: luaiarodrigues@gmail.com


LYNCH, C. E. C. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. Resenha de: RODRIGUES, Luaia da Silva. O pensamento conservador do marquês de Caravelas e a construção do Estado Brasileiro. Almanack, Guarulhos, n.18, p. 496-501, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII) – ANDRADE FILHO (H-Unesp)

ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII). São Paulo: Edusp, 2012, p. 256. Resenha de: ESTEVES, Germano Miguel Favaro. História [Unesp] v.33 no.1 Franca Jan./June 2014.

Nos últimos decênios, mais precisamente a partir dos anos oitenta, vimos o aumento e consolidação dos estudos relativos à antiguidade e ao medievo no Brasil. Temas que eram tão distantes de nossos pesquisadores, agora eles tomam corpo em grupos de estudos, congressos e encontros internacionais, na formação de profissionais antiquistas e medievalistas que compõem o quadro docente das universidades brasileiras.

Nesse percurso se insere a produção de Ruy de Oliveira Andrade Filho, professor de História Medieval na UNESP. Seu livro, resultado de seu doutoramento na USP em 1997, revisto e agora publicado pela Editora da USP, traz uma significativa contribuição, ao lado de artigos e capítulos de livros que o próprio autor vinha publicando, para o debate de uma estimulante temática: a íntima relação entre religião e poder.

Já na introdução, Andrade Filho, com uma linguagem clara, trata da progressiva aproximação entre as estruturas do reino visigodo e as da Igreja, o que resultaria na elaboração de uma teoria da realeza, em que o rei é considerado o “ungido do Senhor”. Havia, portanto, um profundo sentido teocrático da realeza, que encontraria sua legitimidade na sanção divina à autoridade do rei. A monarquia, assim, revestia-se de um caráter sobrenatural fornecido e legitimado pela Igreja.

Como ferramentas para sua análise, o autor faz uso de uma gama de fontes que englobam hagiografias, leis civis e conciliares e um corpus de textos litúrgicos, dialogando diretamente com várias pesquisas sobre o reino visigodo. Esse corpus documental é utilizado de forma dinâmica para explicar a religiosidade e a montagem da monarquia católica com a conversão de Recaredo.

No primeiro capítulo da obra, intitulado “Uma Hispânia Convertida?”, a indagação logo no caput mostra-nos os problemas suscitados pela cristianização da Península Ibérica na Antiguidade Tardia. O paganismo explicitado por meio de cultos e práticas religiosas que, segundo Andrade Filho, são “difíceis de desenraizar” mostra a oposição entre o mundo urbano e o mundo rural. Este último representava um desafio maior para a penetração do Cristianismo; porém, após a conversão/cristianização, a verdadeira ortodoxia católica não teria grandes problemas no combate às heresias, era o ambiente em que existia maior severidade dos cristãos contra o paganismo. Em contrapartida, o mundo urbano, no que tange à religião, é o lugar do bispado, que se torna, em muitos casos, um mecanismo de ascensão social em que o grupo nobiliárquico dominante, a elite hispano-romana e visigoda, disputa esse tão almejado posto de poder.

No segundo capítulo da obra, intitulado “Cultura e Religião no Reino de Toledo”, o autor trata diretamente das consequências da conversão de Recaredo e da formação da Societas Fidelium Christi, quando supõe a composição do reino visigodo de Toledo como um corpo unitário, coeso por uma só fé e regido por uma cabeça cuja autoridade provinha do próprio Deus, e no qual os segmentos eclesiásticos tentavam disseminar uma nova concepção do sagrado, centrada em uma pretensa distinção entre os fatos religiosos e não religiosos. Porém, o mundo rural, pouco tocado pelo cristianismo católico, continuava a se alimentar dos velhos fundos de crenças ancestrais, tornando-se um meio que exigia da Igreja e de seus clérigos um movimento inverso, “de cima para baixo”, na tentativa de reordenar a sociedade segundo as finalidades religiosas.

Por meio do debate entre historiografia e fontes primárias, o autor busca desde o Baixo Império Romano a justificativa para a montagem da “Societas Fidelium Christi“, centrada na questão da “analogia antropomórfica”, expressa em leis civis, cânones conciliares e outros textos da Hispânia visigótica. Nos procedimentos de cristianização impostos pelo clero à população pagã, articulavam-se diversas relações e interpenetrações entre a “religiosidade popular” e a “oficial”. O Cristianismo veiculava a ideia de que as práticas pagãs estavam sob o jugo dos espíritos do Mal, unindo-se de forma íntima a idolatria, a magia e a heresia, fato que oferece ao pesquisador um vasto campo de possibilidades para a análise de tais temas.

No capítulo seguinte, intitulado “Religiosidade ou Religiosidades?”, o autor ressalta o costume de chamar de paganismo as manifestações relativas à religiosidade popular e mostra as dificuldades de uma sociedade mista em relação à religiosidade pretendida. Instiga-nos a pensar sobre a profundidade alcançada pelo Cristianismo e sobre a efetiva conversão e/ou cristianização produzida no reino visigodo. Segundo Andrade Filho, “a expressão religiosidade popular produz os efeitos mais diversos” (p. 104), mostrando o problema de definição de tal expressão e apontando o caráter empobrecedor de uma análise que a aborda como se tratasse de meras “permanências ou resistências pagãs” dentro do contexto hispano-visigodo. O autor demonstra, ainda, como ocorre a relação entre as práticas cristãs e as pagãs em diversas fontes do período. As práticas pagãs eram condenadas em concílios, regras monásticas e hagiografias; entretanto, tal condenação resulta na assimilação de mitos e ritos pagãos pela teoria cristã, além da aquisição, por parte dos santos, de muitas características de deuses e heróis clássicos ou mesmo pré-romanos. Ou seja, produzem um Cristianismo que dá continuidade a crenças anteriores a ele. Dessa forma, a pergunta persiste: “haveria então, efetivamente, uma religiosidade popular?”.

No quarto capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, Andrade Filho toca em um dos pontos essenciais de sua tese: a formação da “analogia antropomórfica”. Para o autor, a conversão ao catolicismo torna-se fundamento ideológico do reino de Toledo, e o Cristianismo é o elemento de coesão social. A conversão de Recaredo seria interpretada como um novo princípio, e a aliança entre Deus e a monarquia seria expressa na junção “rex-regnum“, corroborada pelo rito da unção régia: aproximava-se o posto do monarca com o da realeza judaica e, assim, o legitimava. O Deus cristão seria, antes de tudo, um Deus de vitória, do qual se poderia solicitar o triunfo, pois o monarca era escolhido pela gratia Dei. Segundo o autor, “de forma mais ampla, todos os habitantes do reino, enquanto cristãos, faziam parte de um corpo maior: da Igreja, do corpus Christi” (p. 162).

Em seu quinto e último capítulo, “Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo”, Andrade Filho demonstra a necessidade de novas análises documentais, indica como o Cristianismo criou uma cosmologia que, apesar das críticas, englobou diversos componentes do esquema pagão e que seria adotada e desenvolvida por Isidoro de Sevilha, na concepção dualista do homem integral, dotado de corpo e alma. Segundo o autor, é com base nesse pensamento hierofânico que se articula a metáfora da analogia antropomórfica, com suas correspondentes ligações entre o reino/corpo e a Igreja/alma, os quais deveriam compor um todo, isto é, a sociedade cristã.

Com uma análise minuciosa das fontes literárias do período, principalmente os documentos hagiográficos, que expressam os momentos de angústia em que vivia a sociedade visigoda cristã, Andrade Filho toca a questão do monopólio da intermediação do sagrado por parte do ordo clericorum, relação complexa diante das realidades cotidianas, pois, se para o mundo culto a leitura do “corpo místico” parecia plausível como sinal divino, tal ideia seria difícil de ser assimilada pela “religiosidade popular”, que ficava restrita ao destino de sua gente, de sua terra e de seus bens locais. Sendo assim, configuram-se dois tipos de paganismo: aquele praticado pelas elites, oficial e essencialmente urbano, e o dos humildes do campo, reduzido em grande medida, pela Igreja da época e pela historiografia tradicional, à condição conjunto de meros hábitos e usos sociais.

Observa-se, portanto, que o autor instiga o leitor à medida que aborda o tema de forma aberta e com metodologias não convencionais aos textos. Além disso, o autor deixa de lado as teorias prontas e as análises superficiais, demonstrando grande sensibilidade com relação à produção de um material científico valioso para a interpretação da sociedade do período. Ao abordar a monarquia visigoda, mostra-nos como esta se comporta e se contempla em um espelho ideal, ao transcender o elemento institucional da Igreja e colocar a religiosidade e a monarquia em meio a um processo em que novos valores são incorporados. Enfim, a obra de Andrade Filho, de forma clara e ao mesmo tempo erudita, incita-nos a pensar as relações entre religião e religiosidade, o catolicismo pós-conversão e a religiosidade partilhada dentro e fora do reino visigodo de Toledo. Constitui, pois, valiosa contribuição para os estudos referentes ao reino visigodo e à Antiguidade Tardia.

Germano Miguel Favaro Esteves – Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da UNESP /Assis.

Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780 -1860 – MARSON et al (RIHGB)

MARSON, Isabele; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780 -1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. 348 p. Resenha de: LYRA, Maria de Lourdes Viana. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 175 (462) p.273-280, jan./mar. 2014.

A coletânea organizada pelas professoras/historiadoras Isabel Marson e Cecília Helena de Salles Oliveira e publicada em livro, sob o título “Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860” – reúne textos voltados à reflexão de uma questão central e necessária à ampliação do conhecimento histórico sobre o Brasil imperial, ou seja, o entrelaçamento entre política e negócios no processo de formação do Estado nacional. Escritos com maestria pelas organizadoras – ambas com larga experiência acadêmica e autoras de obras consagradas referentes ao tema – e por jovens pesquisadores – mestres e doutores por elas orientados nos cursos de pós-graduação em História na Unicamp e na USP –, os artigos representam expressivo subsídio à produção historiográfica do Brasil novecentista.

Pela proveitosa retomada da análise crítica sobre o período em pauta e elaborada com o devido rigor acadêmico sobre os paradigmas teóricos e interpretativos ainda persistentes, com o objetivo de demonstrar como ocorreu o processo de afirmação das práticas liberais nos domínios do Estado e da sociedade imperial.

O aprofundamento da análise sobre circunstâncias específicas à estruturação do Estado nacional brasileiro vem, nos últimos tempos, despertando a atenção dos pesquisadores e ocupando espaço destacado nos estudos da História do Brasil. Sobretudo a partir das décadas finais do século XX, com o incremento da pesquisa histórica nos cursos universitários de pós-graduação e o consequente incentivo à abertura de novos ângulos de reflexão sobre o sentido do Estado brasileiro imperial. Caso singular no contexto das independências coloniais da América e ainda pouco explorado quanto à motivação da luta então empreendida para manter a unidade do vasto território colonial e a consequente implantação do único Estado independente monárquico e imperial no Novo Mundo. Ao mesmo tempo em que a necessidade de outras leituras sobre a história política se impunha, com o surgimento de questões histórico-políticas contemporâneas, então colocadas. Além do interesse na retomada da reflexão pontual sobre a transferência da sede da Corte monárquica portuguesa para a colônia Brasil. Acontecimento extraordinário ocorrido no início do século XIX e recolocado como foco de particular atenção, especialmente no contexto das comemorações do bicentenário, em 2008. Ocasião em que o questionamento sobre o sentido político/ideológico do Império edificado no Brasil, que já vinha sendo atentado, estimulou o aprofundamento da análise sobre as questões estruturais envolvidas no processo histórico decorrente e, consequentemente, à elaboração de estudos articulados sobre aspectos de ordem política, social, cultural e econômica.

É nesse quadro renovador de pesquisa e estudos históricos sobre o processo de formação do Estado e da sociedade brasileira que a coletânea aqui enfocada adquire valor e se destaca, pelo significativo avanço empreendido no estudo do tema. Ao centrar a atenção sobre os “princípios e formas de relacionamento que estruturaram e mediaram monarquia constitucional, liberalismo, mercado e escravidão na sociedade imperial”, apoiada em exaustiva exploração de fontes primárias e em expoentes teóricos “que questionaram metodologias e pressupostos liberais e marxistas ortodoxos”. Além do necessário diálogo empreendido com estudos renovadores elaborados nos últimos anos sobre a política e a sociedade imperiais e, sobretudo, pela consistência da reflexão resultante, ao demonstrar que: “princípios políticos liberais de diverso teor orientaram e estruturaram as relações vigentes na sociedade imperial, nela exteriorizando-se de múltiplas formas (…) desde a crise do Antigo Regime até o Segundo Reinado”.

Dividida em duas partes objetivamente demarcadas – a primeira intitulada: (Re)configuração de pactos e negociação na (re)fundação do Império; a segunda sob o título: Revoluções e conciliação: fluidez do jogo político, dos partidos e dos empreendimentos – a coletânea reúne nove alentados artigos interligados pelo objeto comum de análise: o de aprofundar o conhecimento sobre o processo histórico correspondente, através do estudo de ocorrência em locais diversos e em circunstâncias diversificadas, como: relações de dominação e de subordinação estabelecidas, mobilizações urbanas e/ou agrárias, manifestações na imprensa.

Busca realçar os fortes laços existentes entre os interesses da política e o mundo dos negócios e, principalmente, explicitar como “a disputa entre grupos pelo exercício do poder – frequente matriz de revoluções – resguardava os interesses pelos lucrativos negócios gerenciados por aqueles que comandassem o governo”.

Na primeira parte, encontram-se os artigos centrados na análise do período situado entre a conjuntura final do século XVIII e as décadas iniciais do XIX. E, o primeiro artigo, escrito por Ana Paula Medicci, “Arrematações reais na São Paulo setecentista: contrato e mercês”, analisa o sistema de arrematação dos contratos de arrecadação das rendas reais.

Tomando como referência especial o contrato do imposto dos dízimos – o de maior relevância pelo montante das rendas auferidas. Situa o estudo entre 1765, ano em que a capitania de São Paulo se tornou autônoma da principal (Rio de Janeiro) e 1808, quando a instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro alterou as relações de poder no contexto interno da Colônia Brasil. Ressalta a relação desse sistema com a concessão de honrarias e cargos na administração colonial e demonstrando quão forte era o enraizamento de interesses dos negociantes que, ao acumularem o encargo de arrecadadores de impostos, também participavam da administração pública. Resulta na imbricação dos interesses públicos e privados, em face da estreita relação político-administrativa então existente, e propiciando a criação de “vínculos que fortaleciam tanto as instituições administrativas quanto a unidade imperial”.

O texto escrito por Emílio Carlos Rodrigues Lopez sob o título “Festejos públicos, política e comércio: a aclamação de D. João VI”, centra o foco de análise na organização dos festejos públicos realizados no Rio de Janeiro, entre 1808 e 1822. Dando especial atenção aos preparativos da festa para celebrar a aclamação do rei D. João VI, em fevereiro de 1818, sobretudo examinando o uso de imagens e símbolos utilizados na decoração das ruas da cidade engalanada e ressaltando o esmero na montagem de suntuosos exemplares de arquitetura efêmera: como o arco do triunfo de inspiração romana, com imagens do Tejo e do Rio de Janeiro apoiando as armas reais e sob a inscrição “Ao libertador do comércio”, que marcou a decoração executada pelos artistas franceses Jean Baptiste Debret e Gran-Jean de Montigny e financiada pelos principais negociantes locais, com o propósito de realçar o “projeto civilizador” do rei ilustrado, que “marcava a vitória da civilização sobre o mundo bárbaro”. Todos engajados no esforço de legitimar a Monarquia instalada nos trópicos, graças à “sabedoria do rei, que promovia a prosperidade do Império, expressa nas figuras das artes, da agricultura e do comércio” e fortalecia o recém -criado Reino Unido luso-brasileiro.

Cecília Helena de Salles Oliveira é a autora do artigo, “Imbricações entre política e negócios: os conflitos na Praça do Comércio no Rio de Janeiro”, em 1821, centrado na análise dos conflitos ocorridos na Praça do Comércio do Rio de Janeiro, local de reunião dos eleitores fluminenses para escolha dos representantes da província às Cortes Gerais e Constitucionais, revolucionariamente convocadas para realizar-se em Lisboa.

Apoiada em apurada pesquisa de fontes históricas, examina particularmente o processo judicial então instaurado, para apurar a razão de tais ocorrências, a autora revela “a matização do quadro político na cidade e Corte do Rio de Janeiro, bem como, a indefinição de alternativas às vésperas da partida de D. João para Portugal”. Argumenta que o confronto do dia 21 de abril de 1821, ocorrido no “edifício luxuoso”, que fora financiado pelos negociantes locais e inaugurado no ano anterior, constitui marco de significativa importância na tomada de posição de: “pessoas e grupos diretamente engajados, naquele momento, na defesa das bases constitucionais propostas pelos revolucionários em Portugal e na Espanha”.

Ao contrário do que é usualmente explicado pela historiografia, ou seja, como um simples choque de interesses entre “portugueses” e “brasileiros”.

Além de salientar o quanto “as vinculações entre política e mercado foram redefinidas e adquiriram outras fundamentações e aparências à medida que hierarquias, monopólios, isenções e privilégios coloniais foram sendo esgarçados e/ou reconstruídos por intermédio do movimento complexo de conflitos sociais, do qual a reunião na Praça do Comércio é emblemática exteriorização”.

O artigo escrito por Vera Lúcia Nagib Bittencourt, “Bases territoriais e ganhos compartilhados: articulações políticas e projeto monárquico -constitucional” analisa a conjuntura imediatamente seguinte ao conflito do Rio de Janeiro (1821), enfocando a ação política desenvolvida pelos agentes apoiadores do projeto de permanência da unidade luso-brasileira.

Aponta a aproximação de interesses políticos e financeiros entre os grandes proprietários e negociantes, militares e membros da alta burocracia da Corte, os quais, articulados com figuras oriundas de tradicionais famílias paulistas e proprietários de terra mineiros, desencadearam a ação de defesa das prerrogativas de Reino do Brasil e, portanto, a permanência de um centro de poder monárquico no Rio de Janeiro. Além da consequente “preservação dos diferentes ganhos obtidos pelos articuladores com a fixação da Corte na América portuguesa”.

O texto de João Eduardo Finardi Álvares Scanavini, “Embates e embustes: a teia do tráfico na Câmara do Império (1826-1827)”, encerra a primeira parte do livro, analisando o debate travado na Câmara de Deputados em torno do Tratado anglo-brasileiro para a Abolição do Tráfico de escravos, assinado em novembro de 1826 e ratificado em março de 1827.

Examinando o posicionamento dos parlamentares sobre a validade do trabalho servil e do tráfico de africanos para o País e no encaminhamento da discussão para a ratificação do Tratado, o autor amplia o quadro de análise.

Ao perscrutar o tom e o modo de negociação pleiteada pela representação parlamentar, ligada direta ou indiretamente ao lucrativo comércio de escravos e, portanto, empenhada em conservar a ordem escravocrata ou no mínimo adiar a abolição por prazo indefinido, ressalta a postura de oposição ao governo assumida pelos deputados, utilizando-se da tática de desqualificar o Tratado de 1826, levando à continuidade da prática ilícita do tráfico até 1850. Ao mesmo tempo em que atacavam as atitudes despóticas do governante, encaminhando o movimento que levaria à abdicação do imperador em 1831, fato que encerrava o tempo de vigência do Primeiro Reinado.

Na segunda parte, encontram-se os textos que analisam a conjuntura posterior à abdicação caracterizada pelo confronto “entre súditos-cidadãos por projetos, espaços de atuação bem colocados e oportunidades de negócios (…) guerras civis e conciliações compulsórias”, iniciada com o texto de Erik Hörner, intitulado “Partir, fazer e seguir: apontamentos sobre a formação dos partidos e a participação política no Brasil da primeira metade do século XIX”. Apoiado nas concepções teóricas do cientista político italiano Giovanni Sartori, o autor analisa o momento propiciador do surgimento de associações que dariam origem aos partidos: conservador e liberal. Demonstra o quanto os princípios do liberalismo e do mercado lastrearam o discurso e orientaram a prática dos políticos, nas décadas de 1830 e 1840; discutindo sobre as expressões utilizadas e a problemática dos esquemas traçados. Além da bipolarização partidária “tida como característica da política imperial” sob a argumentação de que “a complexidade do jogo político e do embate de grupos com interesses mais diversos do que poderia ser contido simplesmente em rótulos como liberais e conservadores”.

Isabel Marson é a autora de “Monarquia, empreendimentos e revolução: entre o laissez-faire e a proteção à ‘industria nacional’ – origens da Revolução Praieira (1842-1848)”, no qual desloca o foco de análise do cenário da Corte e circunvizinhança, centrando a atenção na província de Pernambuco, onde o jogo político-partidário era intenso, traduzido na disputa por cargos no governo local e obtenção de cobiçados contratos em obras públicas, desenrolado entre os que pleiteavam protecionismo à indústria nacional e os defensores do livre-cambismo, aqueles que comandavam a administração provincial desde 1837, ou seja, duas orientações de teor liberal que se confrontavam, expondo a complexidade da sociedade “constituída por grupos de interesses e expectativas de diverso matiz liberal”. Esmiuça as circunstâncias específicas daquela província, a autora aprofunda o estudo sobre as relações sócio-político-econômicas ali estabelecidas e de certa forma determinantes nas diretrizes governamentais do Segundo Reinado. Traçando um quadro esclarecedor sobre a sintonia da província com “a teia de negócios e orientações políticas no âmbito do Império e no quadro internacional”, contribuindo à ampliação do conhecimento sobre o confronto entre grupos políticos locais, que levou à “sangrenta guerra civil, celebrizada como Revolução Praieira”, em 1848. Investiga sobre as motivações que levaram os agentes de diversas colorações a fundar, em 1842, o Partido Nacional de Pernambuco – mais conhecido como Partido da Praia ou Praieiro – e pontuar o desdobramento marcado pelo confronto entre forças liberais: os “praieiros”, propondo maior participação dos setores médios da sociedade, preservação dos engenhos banguês, incremento de novas culturas; e forças conservadoras: os “guabirus”, reivindicando apenas melhorias na produção e no fabrico do açúcar. Além de apontar que a derrota dos “praieiros” resultou no longo afastamento dos liberais do centro de poder das decisões políticas imperiais e, consequentemente, na promoção exclusiva das práticas econômicas livre-cambistas pela administração central.

O texto seguinte, “Autobiografia, ´conciliação` e concessões: a companhia do Mucuri e o projeto de colonização de Theophilo Ottoni”, escrito por Maria Cristina Nunes Ferreira Neto, analisa a trajetória do líder da revolução de 1842 em Minas Gerais, confrontando o percurso de vida privada e pública do renomado “político liberal mineiro” com o relato autobiográfico por ele publicado em 1860, a Circular Dedicada aos Srs.

Eleitores de Senadores pela Província de Minas Gerais. A autora questiona as lacunas encontradas na Circular, sobre o empreendimento do Mucuri e a trajetória coerente e linear do ilustre personagem, traçadas por seus biógrafos; registra a sintonia existente entre o caminho seguido desde o início por Ottoni e o projeto de colonização do Mucuri, além de outros empreendimentos, todos dependentes de concessões do Estado e afinados com as propostas do Partido Liberal; apontando que a obtenção de concessões à fundação da Companhia do Mucuri, bem-sucedida até meados de 1858, se deveu à aproximação de Ottoni com os “progressistas”; sendo no contexto correspondente à perda de apoio político e às consequentes dificuldades financeiras, que a Circular fora escrita.

Encerra a coletânea, o texto de Eide Sandra Azevêdo Abreu “Um pensar a vapor”: Tavares Bastos, divergências na Liga Progressista e negócios ianques, que centra o foco de análise nas discussões parlamentares na década de 1860. Investiga o posicionamento do grupo que formou a Liga Progressista – entre “moderados” do partido conservador e do partido liberal –, com a pretensão de fundar um terceiro, o Partido Progressista.

Destaca a atuação dos agentes de maior projeção e a divergência das diretrizes de governo pretendidas: uma favorável ao investimento estrangeiro; outra defendendo proteção à empresa nacional. Tomando como parâmetro, a atuação de Aureliano Cândido Tavares Bastos na Câmara dos Deputados, pertencente à Liga Progressista, e ardoroso defensor da proposta de subvenção à navegação a vapor entre o Brasil e os Estados Unidos, projeto que encontrou forte resistência tanto de “moderados” conservadores, quanto de liberais “históricos” e, em cujo debate, “sobressai a imbricação da política imperial com o vasto mundo dos negócios”.

Não resta dúvida de que esse é um livro de leitura obrigatória, pela significativa contribuição à histografia brasileira, sobretudo pela abrangência da análise sobre cenários variados e circunstâncias diversas que caracterizam o tempo do Brasil imperial e que tem a virtude de instigar o leitor interessado em explorar aspectos e situações ainda pouco exploradas do nosso passado histórico.

Maria de Lourdes Viana Lyra – Doutora em História pela Universidade de Paris X-Nanterre. Sócia titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860 | Izabel Andrade Marson e Cecília Helena de Salles Oliveira

Durante longo tempo, os estudos de história política, social e econômica do Brasil Imperial foram tomados de forma bastante estanque, como se não houvesse uma continuidade entre o Primeiro Reinado, a Regência e o Segundo Reinado. De certa maneira, era lugar comum tratar as diferentes fases do processo que levou à formação do Estado Imperial apenas como rupturas. Desconsiderava-se a interdependência de temas como cidadania, comércio, escravidão, justiça e política externa, e não havia a preocupação em compor análises que indicassem as contradições do período. Dito de outro modo, não se tomava a formação do Estado Imperial a partir da ideia de processo.

Contudo, nos últimos anos esta visão tem sido alterada pelos inúmeros esforços de historiadores de diversas partes do país, o que pode ser demonstrado pela constituição de grandes projetos coletivos, de associações dedicadas ao estudo daquele período, materializados pela criação de novos laboratórios, grupos de estudo e linhas de pesquisas em importantes programas de pós-graduação brasileiros. Tais esforços ajudaram a romper o isolamento das pesquisas, permitindo que novos enfoques e novas abordagens fomentassem o diálogo entre diferentes autores, sendo possível estabelecer contatos até mesmo com pesquisadores que atuam em instituições internacionais, para pensar o Império do Brasil de forma que articule, equilibradamente, aspectos sociais, econômicos e políticos.

Novos trabalhos cheios de fôlego para romper com antigos paradigmas e propor questionamentos instigantes aos temas correlatos à formação e à consolidação do único Império no Hemisfério Sul estão reunidos em importante coletânea organizada por Izabel Marson e por Cecília Oliveira. Os artigos em foco percorrem temas como escravidão, liberalismo, redes de interesse mercantis, conflitos e competições na cena pública, bem como a opção pela monarquia constitucional representativa. O livro, como um todo, abrange desde a crise do Antigo Regime ao Segundo Reinado, explicitando que o Império do Brasil somente pode estruturar-se como tal porque contou com o suporte, sobretudo financeiro, garantido pelos negociantes de grosso trato, sempre interessados em obter vantagens econômicas e políticas, em momento em que, sob os matizes das práticas liberais, as coisas da vida pública e da vida privada coexistiam sem se confundir.

A coletânea em tela está dividida em duas partes: (Re)configuração de pactos e negociações na (re)fundação do Império e Revoluções e Conciliação: Fluidez do Jogo Político, dos Partidos e dos Empreendimentos. Ao todo, os nove artigos escritos por mestres e doutores demonstram como as redes de favorecimento impulsionaram o enraizamento do Estado português na América, bem como garantiram a consolidação do Estado Imperial do Brasil.

O primeiro momento é inaugurado por Ana Paula Medicci, autora de As arrematações das rendas reais na São Paulo setecentista: contratos e mercês. O estudo abrange o período de 1765, ano em que a capitania tornou- se autônoma ao Rio de Janeiro, a 1808, data da chegada da Corte, quando novos arranjos políticos alterariam o novo centro administrativo e a sua relação com outras localidades da Colônia. Ao discordar da perspectiva de que a capitania atravessava grave crise econômica quando se reorganizava administrativamente, a autora demonstra que a capitania de São Paulo favoreceu o enraizamento de negociantes que participavam da administração pública arrematando impostos, financiando empreendimentos estatais e comandando tropas de segunda linha. Comprova a existência de uma rede de compadrio que permitiu que, mesmo antes do século XIX, São Paulo fulgurasse como uma das mais expressivas províncias do Brasil, dispondo de homens ricos e influentes que, ao mesmo tempo em que intencionavam consolidar seus objetivos particulares de manutenção no poder, também fortaleciam as instituições representativas tão necessárias à unidade imperial.

O político e o econômico também aparecem como faces da mesma moeda no artigo Imbricações entre política e negócios: os conflitos na Praça do Comércio no Rio de Janeiro, 1821, de Cecília Helena de Salles Oliveira. As análises do tumulto, ocorrido durante assembleia de eleitores que indicaria os representantes do Rio de Janeiro em Lisboa, extrapolam as explicações simplistas de que foram apenas manifestações antilusitanas antecedentes à Independência. Possibilitam compreender as vinculações entre a política e o mercado a partir de um reordenamento de hierarquias, privilégios e monopólios disputados por diferentes agentes sociais. São resultados das contradições e dos múltiplos projetos em disputa, em um momento em que muito ainda estava para ser definido.

A fim de compreendê-los, Cecília Oliveira parte da análise de três importantes fontes históricas, escritas por contemporâneos que atribuíram interpretações variadas para os atos na “Bolsa”: a edição de 25 de abril de 1821 do jornal Gazeta do Rio de Janeiro; as impressões de Silvestre Pinheiro Ferreira, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra; e os relatos anônimos publicados um mês após os eventos na Praça do Comércio, sob o título de Memórias. As três visões sobre o mesmo fato levaram-na a pensar sobre os projetos conflitantes, bem como a compreender as articulações em torno da figura de D. Pedro I: alternativa viável aos interesses mercantis de determinado grupo que ambicionava participar da redação de um texto constitucional que limitasse os poderes do governo e ainda garantir a preponderância do Rio de Janeiro como centro articulador da política e das negociações mercantis.

O terceiro artigo da coletânea também demonstra como os negociantes se valiam da aproximação com a política para obter vantagens para si. Festejos públicos, política e comércio: a aclamação de D. João VI, foi escrito por Emílio Carlos Rodriguez Lopez, e investiga a montagem e o financiamento das celebrações da monarquia, voltando-se especialmente para o evento de fevereiro de 1818. Revela como as mesmas famílias que estavam por trás do comércio de abastecimento da cidade eram também as principais financiadoras das festas públicas – o que as distinguia socialmente e reforçava ainda mais os laços com o soberano, que as recompensava com honrarias e outras mercês. Além disso, as festas difundiam a ideia de que a civilidade havia chegado aos trópicos. Reproduções do arco do triunfo, do templo grego e do obelisco egípcio eram exibidas próximas ao local da aclamação e ao centro do poder, simbolizando que novos padrões culturais estavam em voga no Brasil desde a vinda da Corte.

Avançando no tempo, Vera Lúcia Nagib Bittencourt escreveu Bases territoriais e ganhos compartilhados: articulações políticas e projeto monárquico-constitucional para entender o apoio a essa forma de governo no período posterior à Independência. Para ela, a emancipação política do Brasil e a adesão à figura de D. Pedro devem ser entendidas como resultantes de um árduo processo de negociações envolvendo interesses multifacetados, num momento em que as interações entre o Rio de Janeiro e as demais províncias se diversificavam frente à redistribuição de poderes. A autora propõe que as relações entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro sejam pensadas para além de suas dimensões territoriais, mas sim pelas dimensões políticas e econômicas estreitadas pelas práticas comerciais, pela expansão da agricultura e principalmente por uma extensa rede familiar de negócios que atuava na área. Podem ser pensados como “espaço com identidade econômica e social, em busca de poder e representação” (p. 156).

Encerrando a primeira parte da coletânea, João Eduardo Finardi Álvares Scanavini apresenta Embates e embustes: a teia do tráfico na Câmara do Império (1826-1827). O autor analisa a repercussão do tratado anglo-brasileiro de 23 de novembro de 1826, que visava pôr fim ao tráfico de escravos em um prazo de três anos, na Câmara dos Deputados. A partir dos debates travados naquela Casa do Legislativo, o autor mapeou o posicionamento dos grupos sobre o tema, procurando aprofundar a ligação entre esses homens e distintos interesses mercantis no Rio de Janeiro. Afirma que os deputados expressaram condutas ambíguas sobre a extinção do comércio de almas no país, defendendo a conservação da ordem escravocrata, a partir de um debate que se centrou, na maioria das vezes, em condutas anglóbofas ou anglófilas visando desqualificar o tratado de 1826.

A segunda parte do livro dedica-se a momento posterior à renúncia de Pedro I em nome do filho. É inaugurada por artigo de Erik Hörner, intitulado Partir, fazer e seguir: apontamentos sobre a formação dos partidos e a participação política no Brasil da primeira metade do século XIX. Valendo-se das concepções teóricas do cientista político Giovanni Sartori, Hörner afirma que ater-se às designações “liberais” e “conservadores” nos anos finais da Regência e no Segundo Reinado pode ser considerado um anacronismo por levar em consideração o bipartidarismo defendido por autores de época, como Justiniano José da Rocha, Theophilo Ottoni, Américo Brasiliense e Joaquim Nabuco. O esquematismo dos autores de época não se aplica às experiências das assembleias e dos governos do Brasil Imperial, sendo preciso levar em consideração as particularidades locais em relação às diversas esferas de poder em altercação.

Em Monarquia, empreendimentos e revolução: entre o laissez-faire e a proteção à “indústria nacional” – origens da Revolução Praieira (1842- 1848), Izabel de Andrade Marson analisa o jogo político partidário em face na Província de Pernambuco. “Guabirus” e “praieiros”, defensores, respectivamente, do “livre-cambismo” e da “indústria nacional”, opunham-se na cena pública, competindo por cargos de poder e por maior inserção nos negócios. Tal concorrência, somada à hostilidade entre conservadores e liberais, foi munição necessária à explosão dos conflitos de 1848. A vitória dos conservadores levou ao enfraquecimento do Partido Nacional de Pernambuco – PNP, afastando, por conseguinte, os liberais do poder por cerca de quinze anos. Tal hegemonia garantiu, segundo Marson, que práticas livre-cambistas encontrassem condições propícias para prosperar, ainda que achassem resistência entre os proprietários menos abastados.

Embora o PNP estivesse desarticulado após a Revolução Praieira, os ideais propalados pelo grupo seriam reavivados por volta de 1870, quando Henrique Augusto de Milet, no Jornal de Recife, buscava compreender as causas da crise das lavouras vividas pelas províncias do norte. Culpava os dirigentes do Império por terem buscado soluções estrangeiras (laissezfaire, alta do câmbio, juros elevados, etc.) para um problema nacional que tinha origem nas disputas sangrentas ocorridas em Pernambuco. A crise nas lavouras propiciou a revolta do “Quebra-Quilos”, expressão do descontentamento de vários setores sociais que, gradativamente, viam os sustentáculos do regime monárquico ruir.

Em Autobiografia, “conciliação” e concessões: a Campanha do Mucuri e o projeto de colonização de Theophilo Ottoni, Maria Cristina Nunes Ferreira Neto analisa as explicações sucintas do tarimbado político em documento dirigido aos eleitores da Província de Minas Gerais. Investiga as lacunas deixadas pelo signatário da Circular, escrita no calor da hora em meio à falência do projeto de colonização dessa rica região do nordeste mineiro, quando Ottoni desejava isentar-se das críticas de oportunismo e incompetência administrativa. Evidencia as relações entre o Estado e a iniciativa privada, demonstrando como Ottoni, inspirado pelos princípios liberais e contando com o auxílio do governo, usufruiu de concessões, privilégios e terras para levar adiante um empreendimento de grande porte. O projeto colonizador do Mucuri foi bem sucedido até 1858, quando Ottoni valeu-se das benesses concedidas pelo “Ministério da Conciliação” para obter empréstimos, garantir a compra de mais terras e a vinda de mais imigrantes para o trabalho braçal. Entretanto, após seus aliados políticos terem sido afastados do poder, a Companhia de Navegação e Comércio do Mucury enfrentou entraves financeiros e políticos. Um deles foi o veto concedido pelo então Ministro da Fazenda, Ângelo Muniz Ferraz, adversário de Ottoni, ao empréstimo que seria concedido pela Inglaterra para quitação de dívidas e de multas, bem como pagamento dos salários dos imigrantes.

Seguindo a mesma linha de argumentação para esmiuçar as relações entre interesses pessoais e as políticas de governo, Eide Sandra Azevêdo Abrêu encerra a coletânea, apresentando o artigo “Um pensar a vapor”: Tavares Bastos, divergências na Liga Progressista e negócios ianques. Mais uma vez o experiente Theophilo Ottoni aparece como um dos articuladores do grupo de políticos, que reunia representantes do partido conservador e do partido liberal, para fazer frente à lei de 22 de agosto de 1860, que criava empecilhos às liberdades de associação e de crédito. Zacarias de Góis e Vasconcelos, Pedro de Araújo Lima (Marquês de Olinda), José Thomaz Nabuco de Araújo, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Martinho Alvares da Silva Campos, Aureliano Cândido Tavares Bastos foram alguns dos representantes que, ao lado de Ottoni, constituíram a Liga. Novamente, evidenciam-se as dissenções entre os membros dos diferentes partidos políticos, rompendo-se com a ideia de homogeneidade no seio das agremiações. A própria Liga Progressista era rica em contradições, como demonstram os diferentes interesses que vieram à tona em face das argumentações pela subvenção à navegação entre o Brasil e os Estados Unidos.

Tavares Bastos, por exemplo, foi um dos defensores da proposta que favoreceria negociantes norte-americanos e brasileiros ligados à navegação, porque ele mesmo era um dos interessados em lograr vantagens junto ao Estado Imperial para tocar seus projetos econômicos ligados aos investidores estrangeiros. O autor reforça uma máxima que percorre todos os trabalhos do livro – indispensável para todos os interessados em entender a complexidade do Brasil Império: a indissociabilidade entre política e negócios, que devem ser tomadas como dimensões interdependentes, complementares, num momento em que homens alçados aos mais altos postos de governo integravam redes mercantis e estreitavam seus vínculos por meio de estratégias que visavam o fortalecimento dos seus interesses privados.

O livro em tela reforça a necessidade de que os novos estudos dediquem-se à superação de esquemas estanques, que tratam política e negócios a partir de relações antagônicas. Fatos e fontes históricas são revisitados com o frescor e a coragem de novas interpretações, em textos que fluem de maneira coesa e acessível. São apresentadas novas hipóteses que movimentam o debate histográfico e lançam ainda mais questões acerca do passado histórico rememorado e reconstruído sob a luz do presente.

Aline Pinto Pereira – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF – Niterói/Brasil). E-mail: alineppereira@yahoo.com.br


MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013. Resenha de: PEREIRA, Aline Pinto Interesses públicos e privados nas tramas do Brasil Império. Almanack, Guarulhos, n.6, p. 163-167, jul./dez., 2013.

Acessar publicação original [DR]

Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII) | Ruy de Oliveira Andra de Filho

A Península Ibérica sempre ocupou dentro do mundo romano um espaço importante no tocante não apenas a sua localização, mas também como um dos mais ricos celeiros do Imperium. Com o fim político do Império Romano do Ocidente, a região, que, no passado, abrigou povos de etnias várias como lusitanos, iberos, celtas e celtiberos, vivenciaria até o século VIII a ocupação de seu território por dois povos de origem germânica, os quais para lá estenderam seus domínios após sua migração, a saber, suevos e visigodos. Estes últimos assentaram-se preferentemente na Hispânia romana, em um contexto sócio-histórico e religioso bastante peculiares. Exatamente sobre estas singularidades do mundo germânico em um território antes celta e romano debruça-se Ruy de Oliveira Andrade Filho.

Cada vez mais estudos historiográficos sobre a Alta Idade Média (ou Primeira Idade Média) [como queiram] realizados por pesquisadores brasileiros concentram-se sobre a movência, assentamento e contribuições de toda a ordem legados, apropriados, fundidos e refundidos pelo estrato populacional germânico no ocidente europeu. Vinícius Dreger, Mário Jorge Bastos, Leila Rodrigues da Silva, Renan Friguetto, apenas para citar alguns nomes, compõem esse espectro de investigadores. Caso nos ocupemos em especial com a Espanha medieval, o nome do professor da Universidade do Estado de São Paulo, citado no primeiro parágrafo, deve assomar como um dos principais e Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VIVIII) preenche uma lacuna cronológica e historiográfica nesses estudos.

O medievista sintetiza em cinco capítulos e 253 páginas os acontecimentos sobre a relação Monarquia-Igreja presentes no desenvolvimento do reino visigodo de Toledo ao longo de três séculos e para alcançar este objetivo, divide seu trabalho em cinco capítulos teórico-práticos, nos quais expõe não apenas seu instrumental de trabalho e análise das fontes investigadas, como também seu vasto arcabouço teórico que subjaz as suas práticas de pesquisa.

No primeiro capítulo, “Uma Hispânia convertida?”, evidencia-se um levantamento crítico com opiniões de diversos renomados estudiosos acerca da extensão, penetração e aceitação do cristianismo na região, preferentemente entre os séculos IV e VIII. Ao lado da superstitio e das gentes que professavam o judaísmo e defendiam as heresias, assiste-se também a presença dos innumeri christiani (p. 40). O historiador aponta, com sólida erudição, as questões que perpassavam os citadinos de então, bem como a massa de camponeses, com suas visões e práticas muitas vezes diferenciadas da própria experiência cristã, em que escolhas (heresias) não ligadas à ortodoxia, como o caso do priscilianismo, também encontraram espaço de circulação dentro do território majoritariamente hispânico. Esse estado de coisas, assevera Ruy, serviu também como circunstâncias, nas quais as estruturas de Sippe visigodas foram lentamente sofrendo modificações em favor de uma monarquia consolidada. Para isso, a influência da Igreja e sua habilidade em amalgamar na imagem de unus Dei populus, unumque regnum, expressa no Terceiro Concílio de Toledo, foram fundamentais. O paulatino mas inexorável avanço do cristianismo sobre as práticas pagãs dos rustici fora aberto.

“Cultura e Religião no Reino de Toledo” é o título do segundo capítulo, no qual o binômio “cultura/religião” é abordado no reino de Toledo, porém até chegar no medievo, o autor elabora um percurso histórico dessa relação, iniciando sua viagem na Tardoantiguidade, mais precisamente, no século III, com a sacralização do poder imperial, reafirmado e remoldado a partir da implantação do cristianismo como religião oficial do império um século depois. Contudo, ainda sentia-se na Hispânia uma forte presença de traços pagãos dentre os senadores e os camponeses, o que, a posteriori, com o fortalecimento da monarquia dos visigodos e em especial após a conversão do rei Recaredo, ainda tenderia a se manifestar. Um fator que contribui sobremaneira para a difusão da religião “oficial” foi, sem dúvida, uma rede de “escolas episcopais, paroquiais e monásticas, cuja finalidade principal era … a formação de clérigos” (p. 80). Igreja e Monarquia apoiam-se mutuamente em Toledo, porém no tocante à saúde, física e d´alma, sente-se uma simbiose de práticas e costumes populares com a utilização de elementos cristãos, configurando uma união perene entre corpo/alma e lhe dando juízo de fé pública. Interessante notar que o historiador ressalta dois aspectos importantes nesse processo: o primeiro prende-se à conversão dos monarcas e de seu séquito mais próximo; já o segundo, a cristianização, ainda necessitava de uma implementação maior, pois o maravilhoso, o insólito, o estranho que fugiam à compreensão dos eclesiásticos ainda rodeavam e povoavam estratos significativos da população visigótica da Hispânia e de Toledo.

Nada mais justo, portanto, que o próximo capítulo “Religiosidade ou Religiosidades?” também apresentasse uma indagação como tema central. A questão do encontro entre modos de vivenciar o sagrado expresso pela dicotomia paganismo X cristianismo no território hispânico é debatida e o historiador aponta desde o início para o fato de que obras como os Capitula Martini ou o De correctione rusticorum, de Martinho de Braga, “não parecem estar dotadas de uma intenção apenas preventiva ou lutando contra lembranças residuais ou obscuras, ´meras impurezas´” (p. 103). Tais textos demonstrariam a coexistência de duas formas de religiosidade, uma oficial e outra ´popular`.

Para Ruy Andrade, o termo `religiosidade popular` situa-se na esfera de um embate que oporia o cristianismo, uma religião da cultura escrita, a um conjunto de crenças e práticas, que sobressaiu exatamente a partir da expansão dominadora do credo cristão, pois o estudioso defende para o período “a religiosidade como elemento catalisador dos descontentamentos, e não seu agente elaborador.” (p. 109) Portanto, vislumbrar-se-ia uma antinomia campo X cidade, em que o meio rural manteria tradições e expressões de religiosidade dissonantes daquelas das cidades, ligadas ao círculo real e de certa forma aliadas ao poder eclesiástico. Esta “cisão de fé”, se é que assim podemos denominar tal fenômeno no reino visigodo de Toledo, colocava em lados opostos a magia pagã e o milagre cristã, embora, afirma o historiador, questionando-se ao fim do capítulo, se é realmente possível falarmos de ´religiosidade popular´, na medida em que este termo parece englobar mais que simplesmente uma escolha ou prática não referendada pela Mater Ecclesia, revelando-se como um outro viés da religião do Cristo.

No próximo capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, discute-se a partir da conversão ao cristianismo dos visigodos do reino de Toledo ocorrida no ano 589 o projeto de referendo da organização monárquica do reino em consonância com a esfera religiosa, já que “A unidade política assentava-se, pois, na unidade religiosa.” (p. 132) A coesão política do reino atrelava-se agora ao apoio eclesiástico, que ensejava e ansiava por uma “utopia monárquica”, em que bispos e nobres visigóticos possuiriam papel de destaque nos assuntos régios em Toledo.

Para a realização em terra de um ideal cristocêntrico até o fim do reino visigótico de Toledo em 711, a Igreja lança mão da metáfora do corpus Christi para direcionar os papéis sociais de todos, reis e súditos, no céu e na terra com a intermediação dos clérigos, representantes do Criador entre os homens. Para o historiador, uma aliança é estabelecida, tanto em nível civil quanto em teológico, entre realeza e igreja, a ponto de, cita o pesquisador brasileiro, se chegar em certos momentos “à promulgação pelos reis da lex in confirmatione concilii” (p.142). A lei e a Lei fundem-se, e a consagração em Toledo do rei Wamba, em 672, é marco na história ocidental.

A sacralização da monarquia, as etapas, as funcionalidades e as características deste momento histórico descritas no capítulo IV somam-se agora no capítulo V, Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo os resultados visíveis e depreensíveis de tal processo. Partindo de Paulo e Isidoro de Sevilha ter-se-ia a divisão do homem em sua integralidade em três instâncias: “espírito/pneuma, que corresponderia à parte que estava reservada para a imortalidade; alma/psykhe, que animaria o corpo; e corpo/soma, [este último par apenas para Paulo] a parte degradável que desapareceria.” (p. 166) O historiador analisa com argúcia a inserção do homem – visigodo – dentro do plano cosmológico cristão, em que a teia cultural do cristianismo e suas expressões de religiosidade servem de base e de argamassa para ordenar o mundo, já que, como bem explica Ruy Andrade, “´Cosmo´, significando ordem, estrutura, mundo, universo, também é uma palavra entendida como ´caos´…” (p. 171), o que logicamente pressuporia a existência prévia de uma falta de coesão. As uerba Dei mostram, num mundo ordenado, as belezas da Criação e caberia ao homem ser o espelho deste ordenamento e deste encanto. A natureza deve se sujeitar ao melhor specimen forjado por Deus, a cidade é eleita o seu melhor abrigo, embora sobre a terra ainda pairasse o a possibilidade da sedição do Mal.

Tal perigo, que lembraria ao ser humano a presença do demônio, pode ser polarizado pelos binômios catolicismo/arianismo devido à associação ao Mal de reis visigodos que professavam a doutrina de Ário. Todavia, o rei cristão verdadeiro traria a salvação e a saúde ao seu povo, sendo ambos os termos derivados etimologicamente de salus. Enfim, o Homem e o Reino do plano divino ver-se-iam então personificados e revividos na figura do monarca e seu reino terrestre. Nesse momento entende-se o porquê do título Imagem e Reflexo, como bem sumariza o historiador: “É uma condição básica: a moldura do espelho não lhe distorce a imagem, confere-lhe uma forma.” (p. 192)

Em suma, lançando questões, propondo interpretações aos moldes de uma História Argumentativa, amparado em sólida bibliografia e em uma linguagem acessível a estudiosos e leigos, Ruy de Oliveira Andrade filho leva-nos ao reino visigodo de Toledo, em uma viagem que se encerra no “eterno retorno” do mundo germânico medieval à plasmação da Europa que em grande parte ora conhecemos e que cada vez mais é objeto de investigação de historiadores brasileiros.

Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de línguas Anglo-Germânicas. E-mail: alvabrag@uol.com.br


FILHO, Ruy de Oliveira Andrade. Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Germanos na Espanha medieval – entre Reis e Deus (es). Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.1, p. 114-119, 2013. Acessar publicação original [DR]

Imagem e Reflexo: Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII) | Ruy de Oliveira Andrade Filho

Com Imagem e Reflexo: Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII), São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012, de autoria de Ruy de Oliveira Andrade Filho, a Edusp presta-nos a nós medievalistas – e aos historiadores em geral – um grandioso serviço, fazendo renascer para a vida um dentre os milhares de exemplares de teses que, elaboradas com afinco e dedicação por estudiosos de programas de pós-graduação de todo o país, jazem condenadas a dormitar nas estantes empoeiradas dos recônditos das bibliotecas universitárias, fadadas ao silêncio e ao esquecimento.

Baseada em sua tese de doutorado,1 Imagem e Reflexo… dedica-se à análise das relações entre a(s) religiosidade(s) e a monarquia no reino visigodo da Hispânia, desde a conversão de Recaredo ao credo niceno, celebrada no III Concílio de Toledo, em 589, até a conquista muçulmana da Península Ibérica, em 711. Segundo o autor,2 o desfecho deste processo ocorreria no citado concílio, quando tem início a elaboração de uma teoria da realeza que, por seu turno, ficaria mais bem configurada na reunião seguinte, realizada no ano de 633. Leia Mais

Visões da Monarquia. Escravos, operários e Abolicionismo na Corte | Ronaldo Pereira de Jesus

Os estudos sobre a sociedade imperial do Brasil baseados em critérios de estratificação social de classe, desde sempre, é fato, ressoavam as concepções de mundo das classes dirigentes ou “dominantes”, ou “superiores”. Tal se dava seja porque se enaltecia, num primeiro momento, a “obra virtuosa” de edificação da Nação-Estado monárquica levado a cabo por sua diligente elite política; seja, depois, devido à análise crítica do papel dessas mesmas elites imperiais e sua obra: 1) a edificação do aparato jurídico do Estado pelos homens de letra e lei imperiais, consubstanciada em seus diplomas magnos que são a Constituição de 1824, o Código Criminal de 1830, o do Processo Criminal de 1832 e o Código Comercial de 1850; 2) a construção de uma identidade nacional, costurada em ponto-cruz pelos artistas, com grande peso dos escritores, sob a luz romântica do século (aqui, de nosso romantismo indianista); e, 3) a direção política da máquina governamental, em particular durante o segundo reinado, sob a tutela da indefectível mão paternal do summa potestas imperial.

Pelo menos desde os anos 1980, porém, sob influência da recepção das diversas matrizes do que se batizou de history from Below ou history from the bottom up, em particular da história social britânica de E. P. Thompson e Eric Hobsbawm mas igualmente de outras vertentes da história cultural que têm as camadas populares como sujeitos privilegiados de análise, como a micro- história italiana, os historiadores brasileiros procuraram expandir os horizontes das concepções ou visões de mundo constitutivas dessa heterogênea sociedade brasileira do século XIX, um mosaico complexo e que se torna complexo devido à sobreposição de critérios de identidade dos indivíduos, que misturam elementos de caráter jurídico (escravos, forros, livres), de caráter político (baseada em padrões censitários como cidadãos ativos, não-ativos e não-cidadãos), de estratificação social de classe (escravos, senhores, trabalhadores livres), de estratificação social de ordem (religiosos, militares aristocratas, trabalhadores), e, como ainda acontece no Brasil errante de hoje, critérios de identidade étnica (pretos, brancos, índios, pardos (?)). Em verdade, essa historiografia renovadora que surgiu nos anos 1980 foi mais bem sucedida quando identificou seus sujeitos (não ousaria dizer aqui “objetos”) de estudo a partir de critérios de estratificação de classe, nomeadamente os escravos no século XIX. Nomes justamente conspícuos, modelares de nossa historiografia, como Kátia Mattoso, João José Reis, Eduardo Silva, Silvia Hunold Lara, Luiz Geraldo Silva, Manolo Florentino e tantos outros aqui deram e dão enorme contribuição. Porém, a rigor, não me vem à mente estudo bem sucedido quando aqueles critérios se diluem, trabalho que resta por fazer.

O livro de Ronaldo Pereira de Jesus soma-se a esse esforço coletivo de nossa historiografia no sentido do resgate dos modos de ver a instituição monárquica e a figura do imperador de uma perspectiva from below, do ponto de vistas das camadas populares. Este talvez seja um dos grandes desafios que não apenas Ronaldo Pereira, mas todos os pesquisadores que compartilham desta perspectiva enfrentam, ou seja, a definição criteriosa do que se encontra below: entre vários, o autor opera com termos como “população pobre”, “classes populares”, “camadas populares”, “gente comum”, “povo”, “setores subalternos” (no prefácio ao livro, Sidney Chalhoub fala da “gente miúda”). A composição desse segmento só pode ser abrangente, para conter “o setor mais diretamente ligado ao cativeiro, composto por escravos e libertos, negros e mulatos” (p.10). A estes se somam os “homens livres pobres (miseráveis, mendigos, ‘vadios’ ou ‘desclassificados’)”. Devem compor a “gente comum”, ainda, pequenos comerciantes, artesãos, “executores de ofícios indignos”, militares de baixa patente, funcionários públicos de baixo escalão e operários. Por certo que há subjacente um desafio metodológico. As “elites”, por mais ambíguo que seja este conceito mesmo, deixaram registros de sua experiência. O investigador pode mesmo nomear os membros das elites (sejam estas elites políticas, intelectuais, econômicas ou qualquer outro recorte); pode agrupá-los, pode resgatar sua rede de relações. Há tanto documentação como metodologia para isso (prosopografia, por exemplo). Trata-se daquela famosa metáfora brechteana: sabemos quase tudo do faraó de tal pirâmide, mas muito pouco dos escravos que a levantaram. De modo que as visões de mundo dessas classes subalternas chegam-nos muita vez enviesadas, por terem sido registradas pelos vencedores e produtores da memória oficial.

Porém subjazem aí, também, duas questões de ordem teórica: primeiramente, no que tange ao caráter generosamente inclusivo desse conceito de “pessoas comuns”. Compartilhariam todos aqueles segmentos das mesmas visões da monarquia? Em segundo lugar, não obstante o autor expressar sua opção pela análise da diferenciação social de classes e da dinâmica da relação entre elas, ao evocar a brilhante análise da “dialética da malandragem” de Antonio Candido sobre os três mundos (do trabalho, da ordem e da desordem) que justamente ordenavam o universo social das Memórias de um sargento de milícias, o autor ancora sua análise numa estrutura teórica que concebe a sociedade escravista monárquica em sua divisão em ordens e não em classes. O que, a meu ver, é efetivamente mais profícua para seus propósitos e lhe oferece bons frutos, ainda que persista a tensão conceitual.

Muito sagaz e bem realizada é a forma como Ronaldo Pereira de Jesus estruturou sua pesquisa e construiu sua narrativa. Depois de uma exaustiva recensão bibliográfica, as visões da monarquia, do monarca e do governo imperial (que muitas vezes se confundem), foram criteriosamente pesquisadas em diversos e complementares fundos documentais. Dentro do sistema paternalista em que se erigia a monarquia brasileira, os súditos recorriam à coroa para todo tipo de benefício pessoal. Num universo imenso de súplicas dirigidas ao monarca para obtenção de todo tipo de graça (prática comum desde o reinado de D. João e mesmo antes, na história da monarquia portuguesa), o autor coligiu as súplicas dirigidas ao monarca pelas pessoas comuns, lavradas cunho próprio ou por terceiros. Em seguida, procurou depurar aquelas visões da monarquia inscritas nas homenagens dirigidas à Coroa por inúmeras corporações de ofício e associações profissionais, de classe ou beneficentes (de auxílio mútuo, por categorias sócioeconômicas). Aqui, o autor sugere a existência do movimento de um proto-operariado organizado e portador de uma consciência de classe que, sábia de seus direitos, pugnava por estes direitos junto ao Estado (por isso, com Fausto, denomina-o “estatista”), desenvolvendo “práticas de contestação aliadas a uma discursividade radical ao longo da segunda metade do século XIX” (p.96).

As visões da monarquia são perscrutadas, em seguida, em três movimentos importantes do Segundo Reinado, como são a Revolta do Vintém, o Abolicionismo e os impactos da Abolição da escravidão propriamente dita sobre as visões da gente comum sobre a realeza. Um dos capítulos mais saborosos do livro, a narrativa sobre a Revolta do Vintém permite ao autor perceber uma alteração de percepção da monarquia, de protetora e paternal para sua crítica contumaz, que chega à mobilização coletiva e violenta, ao gosto dos riots estudados por Rudé e Hobsbawm. Para o autor, a Revolta do Vintém ensejou mesmo a “alteração radical e momentânea das atitudes e expectativas diante do regime político e do imperador”, mais do que “uma mudança significativa e duradoura no imaginário popular e nas representações das pessoas comuns acerca da Monarquia. A recuperação da participação popular (singela!) no movimento abolicionista, levada a cabo nas conferências realizadas na Corte nos momentos decisivos da campanha (1885-1887), nos festivais abolicionistas e na mobilização efetivamente popular consiste numa das grandes contribuições de toda a obra. Embora constatando que o Abolicionismo, como movimento formador de opinião pública, foi definitivamente um movimento de elite, o autor conclui “supondo que a profusão de imagens negativas do imperador e do regime monárquico abalou consideravelmente as percepções positivas do imperador e da monarquia entre as pessoas comuns da corte” (p.163). Porém, independentemente dessa gradação valorativa e essa é a tese recorrente do livro, para além dela subsistiria entre a gente comum da corte “o pragmatismo, a indiferença e o afastamento de sempre”. Ou seja, as pessoas comuns pouco se deixavam “contaminar” pelas visões positivas da monarquia e do monarca, como “pai dos pobres”, benevolente e justo estas sim imagens difundidas pelas camadas dominantes. Assim também, pouco alteraria o quadro a “outorga” da libertação dos escravos pela Princesa Izabel, já que todas as festas da abolição foram manifestações públicas das classes escravistas e de setores médios urbanos, expressões de “alívio e entusiasmo por não mais habitar um país escravista” (p.173). O povo, a gente comum, não foi senão espectador nessa festa. Espectador bilontra, mas espectador.

Afora pouquíssimos ruídos de edição, o texto de Ronaldo Pereira de Jesus é muito bem cuidado, bem escrito, prazeroso. Seu livro expressa mais uma contribuição séria e bem executada deste importante setor da historiografia brasileira que se dedica a escrever a história daqueles sujeitos que foram insistentemente esquecidos por ela.

Jurandir Malerba – Professor no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FFCH/PUC-RS – Porto Alegre/Brasil). E-mail: jurandir.malerba@pucrs.br


JESUS, Ronaldo Pereira de. Visões da Monarquia. Escravos, operários e Abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. Resenha de: MALERBA, Jurandir. Vossa Alteza, vista cá debaixo. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.162-164, jan./jun., 2011.

Acessar publicação original [DR]

Monarquía y República en la España Contemporánea | Ángeles Lario

Monarquía y República en la España contemporánea, publicação coordenada por Ángeles Lario, é o resultado de um seminário realizado em 2006 na Universidad Nacional de Educación a Distancia (Madrid), e reúne artigos de historiadores dedicados ao estudo da história do pensamento político e dos conceitos. A maior parte dos artigos são baseados em pesquisas anteriores dos autores e refletem, com freqüência, o tema trabalhado em livros próprios.

A introdução, feita por Lario, define o objetivo maior do livro:

La compreensión de las culturas y de los modelos políticos surgidos a lo largo de nuestra historia contemporánea, de los conceptos que los acompañaron, sus usos y significados, es el instrumento básico que todo ciudadano debería poder manejar actualmente, al menos se está interesado en analizar la viabilidad de nuestro modelo político actual y el sentido que pudiera tener la defensa de modelos alternativos (p.13).

Está explicitado desde o início que o livro é um estudo de história política, e mais especificamente, de sistemas políticos. Além disso, é dada a priori uma unidade histórica para a política da Espanha contemporânea: uma das mais turbulentas do mundo e que inclui monarquias de todos os tipos, repúblicas, anarquismo, ditadura, entre outras tentativas para a organização interna.

A obra também é uma confirmação do vigor que vem ganhando a nova história política desde os anos setenta. Uma história que busca abarcar conteúdos novos, com novos métodos e novas fontes, transformando-se, portanto, em uma teoria completamente diferente daquela do século XIX e começo do XX. Ela retoma a biografia e a luta pelo poder, os sistemas políticos e os intelectuais, mas também se volta a questões novas, como as culturas políticas, os imaginários, a “baixa política”, a identidade, entre outros objetos. Esta heterogeneidade está presente no livro, pois os autores são livres na escolha de temas e fontes, resultando numa agradável mistura dentro dessa abordagem política.

Monarquía y República en la España Contemporánea é dividido em seis partes: a primeira é uma apresentação geral e as outras cinco se sucedem em ordem cronológica. A primeira parte tem o objetivo de guiar a leitura dos capítulos posteriores, tratando, de forma sintética, o período ao qual os outros dedicam análises mais específicas.

Ángeles Lario, professora na UNED, esclarece no capítulo introdutório que a organização do livro busca uma articulação entre os artigos com base nas propostas da história dos conceitos de matriz koselleckiana (a autora, inclusive, integra um grupo de pesquisas com esse objetivo e que é coordenado por Javier Sebastián). Com base nessa filiação teórica, ela organizou o livro com o objetivo de definir os conceitos de monarquia e república, entendidos como antagônicos na Espanha contemporânea, e, além disso, trabalhar a formação do liberalismo como conceito chave para compreender a modernidade e, em especial, o século XIX.

Amparada nas proposições que embasam a história dos conceitos, Lario busca trabalhar a tensão entre o lingüístico e o extra- lingüístico, e esta preocupação acompanha toda a estrutura do livro. Assim, os conceitos analisados não são entendidos apenas como palavras que apreendem a realidade social e política mas, acompanhando a abordagem proposta por Koselleck, são vistos também como “seu fator”, pois nas palavras deste último autor “um conceito abre determinados horizontes, ao mesmo tempo em que atua como limitador das experiências possíveis e das teorias” (Koselleck, Futuro Passado, p.109, 2006). No interior dessa abordagem, destaca-se a idéia de que fazer história dos conceitos é tomá-los não apenas como determinados pela realidade, mas também como fator determinante.

Esse desafio sofre uma quebra, porém, já no capítulo subseqüente ao da organizadora. A autora inicia a obra procurando precisar o conceito de monarquia e cria a expectativa de que o mesmo seja feito para a república. No entanto, o artigo dedicado ao tema e escrito por Demetrio Castro, nos leva a concluir sobre a impossibilidade de fazer história do conceito de república durante o século XIX, pois, o radicalismo das classes populares teria inviabilizado a elaboração conceitual acerca dessa proposta política (Castro, p.66). Posto em comparação com o artigo sobre monarquia, o texto nos leva a pensar em uma defasagem na elaboração dos dois conceitos e em uma possível inferioridade das propostas republicanas na história da Espanha.

Seguindo esta parte introdutória, o livro se dirige ao momento de fundação da Espanha contemporânea: a revolução de 1808, a volta do rei Fernando VII em 1814 e a formação do chamado triênio liberal (1820- 1823). Os capítulos posteriores enfatizam que as Cortes de Cádiz (primeira constituinte espanhola reunida entre 1810 e 1814) estabeleceram os primeiros paradigmas constitucionais do governo espanhol e, por isso, são parte central na formação da realidade contemporânea. No entanto, não há no livro um artigo específico dedicado à Cádiz, e, talvez, o leitor necessite dessas informações.

Essa segunda parte é composta por apenas dois capítulos: um dedicado à França e outro ao México e, assim, não se refere diretamente à revolução liberal espanhola. Mas essas análises servem de patamar às duas partes subseqüentes, quando o livro fica mais harmônico e próximo do intuito enunciado na introdução. Nessas unidades, os capítulos sobre o liberalismo pós-revolucionário são pensados como complementares e conseguem aperfeiçoar o debate conceitual sobre monarquia e república durante o período. Os autores demonstram que a política espanhola da época, como em diversos lugares do mundo, estava dividida entre dois partidos – o progressista e o moderado – , cabendo o poder para o mais conservador deles.

Dois capítulos são dedicados a esses grupos políticos e apontam mais semelhanças do que diferenças entre eles porque “el punto de partida debería considerar que la monarquía constitucional no fue una concesión que los Progresistas hicieron a los moderados en aras del triunfo sobre el carlismo. El elemento monárquico formaba parte de su núcleo doctrinal” (Mateo, p.111). Ou seja, o rei não era o ponto de discórdia entre esses dois liberalismos, pois ambos estavam do lado da ordem. A defesa do princípio da soberania nacional feita pelo partido progressista aparecia como ponto de embate frente aos moderados, chocando-se com a defesa da soberania real.

Os artigos do livro sobre republicanismo insistem na falta de um projeto intelectual que acompanhe esse movimento, de forma que “la república, por su parte, se defendió más alrededor de dichos rasgos del Gobierno monárquico que a partir de sus cualidades intrínsecas como sistema político” (Peyrou, p.163). Os textos fazem ver um descompasso entre republicanos e monarquistas, em especial os conservadores, pois estes teriam um eficaz programa de governo.

No entanto, o artigo de Román Míguel Gonzáles aparece como contraponto a essa idéia, pois, ao analisar a breve experiência republicana de 1873, o autor identifica não apenas um projeto republicano, mas o embate entre vários:

Lo que ocurrió en 1873 no fue el fracaso de la primera experiencia republicana española debido a la carencia de proyecto claro por parte de un agente histórico republicano único, sino que la República Federal Española fue el marco de una lucha abíerta por la hegemonía en el proceso de construcción del Nuevo Régimen español (Gonzáles, p.248).

A harmonia conquistada nessas duas partes do livro começa a ruir, porém, quando a obra adentra o que denomina por sociedade de massas durante o final do século XIX e início do XX. Entretanto, podemos atribuir essa quebra a uma complexidade política maior do momento, a qual não foi possível apreender na mesma quantidade de páginas e capítulos das partes anteriores, forçando os autores a escolher objetos mais reduzidos de análise. Ao discutir o período isabelino (1833-1868) foi possível condensar as idéias sobre os conceitos de monarquia e república em três capítulos, divididos conforme as forças políticas correspondentes: progressistas, moderados e republicanos. No entanto, o desafio conceitual proposto pela organizadora se torna uma tarefa dificílima, porque os autores tratam de uma gama maior de opções políticas inscritas na realidade social e política posterior e concomitante à primeira república de 1873.

Os capítulos desta parte são completamente autônomos, dificultando o estabelecimento de um diálogo entre seus autores. Os temas trabalhados são exemplares da dificuldade em abordar a chamada sociedade de massas, pois tratam de dois partidos políticos que antes não existiam (o krausista e o socialista) e agregam a biografia de um rei, em uma abordagem que se distancia muito da proposta inicial baseada na história dos conceitos.

Os textos destacam a existência de krausistas e socialistas expressando uma nova relação com as idéias sobre monarquia e república, pois ambos não norteiam suas políticas para o estabelecimento dessas formas de governo e, de certa forma, utilizam as duas como instrumentos. Para os primeiros, o importante era estabelecer um estado de direito pleno, governado pela lei, e isto poderia ocorrer na monarquia ou na república. Para os socialistas espanhóis, que de início eram contra qualquer sistema político burguês, não havia necessidade de optar entre monarquia e república. Apenas com o decorrer dos fatos e com a perseguição infligida pela monarquia, esses socialistas foram forçados a uma remodelação teórica que acompanhava um movimento internacional. Passaram a apoiar a república, entendida agora como uma “superación de la monarquía” (Angosto, p.305), rumo ao fim último da humanidade, ou seja, o comunismo.

A obra nos mostra então que a sociedade espanhola de fins do século XIX “permitia” esses novos assuntos políticos, mas ainda era governada por um rei atuante. Javier Luzón demonstra que se tratava de um rei diferente – ativo e que buscava se identificar com a nação – , todavia sua conclusão, assim como outras antes no livro, faz-nos ver que a ditadura foi a etapa final da monarquia (Angosto, p.308), pois as idéias proclamadas pelo franquismo, para este autor, teriam sido gestadas durante o reinado de Alfonso XIII: “progreso económico y orden social en una España monárquica, católica, custodiada por el ejército, unida en su diversidad regional, reconocible en unas cuantas señas de identidad y con una notable presencia exterior” (Luzón, p.293).

Todos os assuntos convergem para a compreensão da segunda república (1931-1939) mas há apenas um artigo sobre esse período, o qual trata de Azaña, um dos principais líderes republicanos. O texto acaba por reforçar a figura de grande homem da época, por força da exclusividade do capítulo dentro do tema e por situar esse líder como defensor da democracia acima de tudo: “Parlamento, sufragio universal y prensa libre” (Egido, p.323).

O salto é feito, então, da segunda república para a transição da ditadura e, assim, o livro não aborda o franquismo (1939-1975). Essa é uma escolha questionável, mas talvez expresse a dificuldade em estudar uma época negra e tão recente na história espanhola e, dessa forma, o assunto é apenas tangenciado em capítulos isolados. Entretanto, o mais notável da última parte do livro é que os dois capítulos de história mais recente usam a imprensa como fonte documental primordial.

Assim, o livro reencontra o compromisso com a nova história política e apresenta um estudo sobre a imprensa, pensada não como reflexo da verdade ou como manifestação ideológica da classe dominante, mas como expressão de agentes políticos e diferentes apreensões da realidade.

O leitor de Monarquía y República deve se perguntar ao final do livro: qual projeto político venceu? O que é a Espanha contemporânea? Temos elementos para algumas conclusões. Em primeiro lugar, sabemos que o ditador Franco teve papel primordial na formação do novo regime, pois indicou seu sucessor – o rei Juan Carlos. Entretanto, constatamos também que o modelo político espanhol atual, a monarquia democrática, é diferente daquele implementado pelo regime ditatorial.

Os dois artigos que se dedicam à imprensa na transição do regime franquista confluem para uma conclusão similar: “Su papel [de la prensa] en la construcción de una imagen positiva del Rey y de una actitud social favorable hacia la monarquía es inegable” (Soro, p.346). Todavia, o capítulo de Javier Soro se diferencia por uma alusão clara ao presente e um posicionamento político definido. Talvez a questão colocada pelo autor esteja presente em todo o livro, implícita na maioria dos casos, e como posicionamentos políticos diferentes que incidem sobre o modo de escrita e o objeto historiográfico estudado.

De la transición española como modelo exportable y exitoso hemos pasado a revisar sus resultados en cuanto a la calidad de la democracia y sus silencios sobre lo que solemos llamar “memoria histórica”, mientras renace los círculos republicanos y en las manifestaciones surgen las banderas republicanas que se creía ya guardadas en los desvanes.

El recuerdo de la Segunda República supone no sólo una reivindicación histórica, ética y de justicia, sino que adquiere una intención política para el presente (Javier Soro, p.333. Grifos meus).

A organizadora, Ángeles Lario, também expõe uma posição na conclusão, conforme já havia anunciado em sua introdução. Nem monarquia e nem república, a luta política deve ser pela democracia: “Asi es que, cuando se dice que esta democracia es heredera de la republicana, tiene todo el sentido de poner en paralelo lo fundamental de ambos modelos, el fondo democrático, que es lo que nos debe preocupar para mejorarlo en su funcionamiento” (Lario, p.380).

Monarquía y República en la España contemporánea é uma leitura importante para aqueles interessados em história política, não só espanhola, pois é um importante demonstrativo das diversas tendências existentes no bojo dessa proposta historiográfica e retoma temas que remetem aos estudos constitucionais e outros aspectos de cunho cultural. Acredito que este é um grande mérito do livro, podendo ser compreendido por qualquer interessado, pois os autores se preocupam com uma certa “educação política”, patente na introdução.

Entretanto, o leitor deve ter consciência de que o desafio conceitual proposto não é esgotado e apresenta diversas lacunas. Os conceitos monarquia, república, liberalismo, constituição, entre outros, recebem relevantes abordagens iniciais, porém precisam ser mais trabalhados para adquirir a precisão desejada.

Lucas Soares – Graduando do curso de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/ Brasil) e bolsista da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas desta Universidade em projeto sobre a imprensa espanhola e as emancipações da América. E-mail: lderman@uol.com.br


LARIO, Ángeles. Monarquía y República en la España Contemporánea. Madrid: UNED, 2007. Resenha de: SOARES, Lucas. Monarquía y República en la España Contemporánea: Um esboço de história dos conceitos. Almanack, Guarulhos, n. 1, p. 165-169, jan./jun., 2011.

Acessar publicação original [DR]

Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo | Leila Rodrigues da Silva

Fruto da tese de doutoramento defendida em 1996 pela autora, a obra Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga reflete sobre o modelo de monarca presente nos escritos de Martinho, bispo de Braga, destinados ao monarca suevo Miro. Produzidos na esteira do processo de aproximação entre os bispos da Galiza de vertente católico-nicena e a monarquia sueva, tais escritos expressariam não somente a conjunção entre os entes político e eclesiástico como, em especial, destacariam o cunho moral e normativo da missiva eclesiástica dirigida à liderança germânica.

Ainda que evidentemente enriquecida pelas pesquisas desenvolvidas, desde então, junto ao Programa de Estudos Medievais (PEM-PPGHC/UFRJ), a publicação mantém estrutura similar à de sua tese de doutorado defendida em 1996, de caráter sistemático e enunciativo. Leia Mais

Tropical Versailles: empire, monarchy, and the portuguese Royal Court in Rio de Janeiro – SCHULTZ (VH)

SCHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles: empire, monarchy, and the portuguese Royal Court in Rio de Janeiro, 1808-1821. New York: Routledge, 2001. Resenha de: NEEDELL, Jeffrey. Varia História, Belo Horizonte, v.17, n.25, p. 255-258, jul., 2001.

Redefinindo a Monarquia em uma Sociedade Escrava1

É um antigo lugar comum observar a particularidade estabilidade política do Brasil no século dezenove. Normalmente, se discute que isso deriva de circunstâncias singulares da conquista da sua independência com a manutenção das instituições e do herdeiro da monarquia Portuguesa no Rio de Janeiro. É sempre sugerido que a estabilidade deveu-se, assim, muito ao fato de que as estruturas políticas e sociais da colônia brasileira se mantiveram relativamente intactas devido a essa singular transição. A bem sucedida história intelectual e cultural da Corte Real no exílio, de Schultz, deixa de lado esses lugares comuns ao examinar o quanto a monarquia mudou e como essa mudança foi percebida entre 1808 e 1822, e a forma com que essas mudanças foram vistas e se manifestaram no pensamento e no dia-a-dia.

Por mais que esse estudo se deva aos últimos dez ou vinte anos da moderna história cultural, ele se baseia em um estudo muito meticuloso de fontes de arquivos e trabalhos contemporâneos publicados. De fato, algumas das preocupações centrais do livro são baseadas na minuciosa leitura de correspondência particular e do Estado, registros policiais, teatro e literatura, panfletos de política contemporânea e da coleta invejável de outras fontes publicadas da época, tanto em Portugal quanto no Brasil. Além disso, Schultz lucrou com a recente preocupação de seus colegas em torno dessa época, citando um número de trabalhos recém-publicados e teses não publicadas e dissertações no Brasil e nos Estados Unidos. Também merece comentários a imparcialidade de suas análises e conclusões. Por mais provocativos que fossem os assuntos, ela transporta a perspectiva dos contemporâneos com cuidado e chega a sua própria avaliação com criteriosa objetividade.

Inevitavelmente há imperfeições. Na minha leitura, elas parecem se acumular no terceiro capítulo, onde, freqüentemente, uma ou duas fontes são a única evidência para o pensamento ou a resposta a um número de pessoas (e. g., pp. 73-74, 78-80, 81, 85), ou no terceiro e quinto capítulos, onde as citações nem sempre suportam o peso das interpretações (e. g., 73-75, 103,164, 166). Também me pergunto porque, em um livro em que se faz tão boas observações com tão boas evidências, a autora se sinta obrigada a citar tantos autores recentes no texto (ao invés de fazer nas notas) para apoiar seus argumentos ou sugerir questões em comum. Mas nenhuma dessas faltas ocasionais é de importância no argumento central do livro, e elas são um pequeno preço a se pagar pela informação, pela análise e pelas sugestões que a autora nos dá aqui.

A contribuição do livro deve ser entendida no contexto historiográfico. Pode-se dizer que o sentido político da monarquia Brasileira sofreu terrivelmente de uma extrapolação ahistórica, na contramão do seu sucesso histórico. Isto é, a unidade da América Portuguesa depois da independência e a sua relativa estabilidade política tendem a serem dadas por certas. A maioria dos historiadores, por algum tempo, gastou sua energia em estudar a monarquia posterior, para entender a passagem do regime, ou, mais freqüentemente, eles compreenderam a história política da monarquia como algo que não mudava e se concentraram na análise de história social ou econômica, particularmente, sobre a escravidão e a abolição. Essas modas vêm se revertendo vagarosamente tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos.

José Murilo de Carvalho teceu competentemente uma elegante análise política das preocupações sócio-econômicas na publicação portuguesa de 1980 de sua dissertação feita em Stanford em 1974. Em 1985, Emilia Viotti da Costa retrabalhou muitos dos seus artigos originais em uma história do império; em 1988, Roderick Barman nos forneceu uma impecável narrativa política explicando a formação nacional entre a última década do século dezoito e 1853. Richard Graham tentou fazer um modelo provocativo do comportamento político nos níveis local e nacional, em 1990. Outros se ativeram a análises políticas mais particulares, como Thomas Flory, em 1981, sobre a ideologia e as reformas da oposição liberal dos anos de 1820 e 30. Neill Macaulay escreveu um delicioso estudo revisionista do primeiro imperador, em 1986. Eul-Soo Pang tentou desenvolver um entendimento da nobreza, em 1988, Barman forneceu aguda e completa biografia do segundo império, em 1999, e , no mesmo ano, Judy Bieber publicou estudo de caso da história política e comportamento no interior de Minas Gerais. Artigos bastante recentes de Jeffrey Mosher e Jeffrey Needell sugerem livros a serem publicados sobre a história política de Pernambuco e do Partido Conservador , respectivamente, e também temos artigos e livros de autoria de Hendrik Kraay (2001) e Peter Beattie (2001) interligando a instituição da monarquia, o exército, à história política e social do regime. No Brasil, o trabalho de Carvalho foi precedido por uma rica e pioneira antologia a respeito da independência, editada por Carlos Guilherme Mota em 1972, e então seguido pelo ambicioso estudo de Ilmar Rohloff de Mattos, sobre a ideologia do estado, em 1990. Em 1998, temos a sofisticada análise da cultura pública da monarquia colonial tardia e da recém-proclamada monarquia nacional de Iara Lis Carvalhos Souza e o tour fascinante de Lilia Moritz Schwartz sobre cultura pública e a iconografia do Segundo Reinado. Em 1999,Cecilia Helena de Salles Oliveira forneceu sua análise investigativa dos interesses sócio-econômicos influenciando a independência; em 2000, Isabel Lustosa publicou sua instigante análise da imprensa periódica política da segunda década do século dezenove, porta-voz dos interesses e das ideologias dominantes.

Em uma frase, o magistral trabalho de tais pioneiros como Murilo de Carvalho, Viotti da Costa, e Barman nos permitiu atacar partes menores de um todo, suprimindo muito que era pobre e superficialmente entendido. O livro de Schultz é, então, apenas a última contribuição à redescoberta e reavaliação da história política da monarquia. É, no entanto, especialmente convincente na metodologia, informando sua idéia e a centralidade do seu foco. A transição Portuguesa e Brasileira para monarquia constitucional e a independência foram habilmente traçadas por Macaulay e contribuintes da antologia de Mota (particularmente Maria Odila Leite da Silva Dias, Francisco D. Falcon e Ilmar Rohloff de Mattos), e Barman, entre outros. Estes, e mais recentemente Salles Oliveira, já nos serviram com narrativas políticas detalhadas e análises baseadas em fatos sobre a transição em termos de ideologia, contingência política e interesses sócio-econômicos. A contribuição de Schultz está em ir além dos eventos e das forças sócio-econômicas ou políticas dirigindo-nos a um entendimento de como a transição ocorreu na experiência vivida no centro político do Brasil.

Shultz faz essas coisas quando amarra a análise arquivística típica da melhor historiografia tradicional com as inovadoras preocupações dos estudos de cultura política comuns entre os novos historiadores. Ela o faz em um estudo de como a fuga e o exílio da Corte Portuguesa levou a uma reavaliação e reconstrução da instituição da monarquia em uma época revolucionária e em uma sociedade escravista marcada por distinções raciais. Os capítulos são organizados cronologicamente, amarrando questões chave: o impacto do exílio na natureza do império Português e a legitimidade da monarquia, a metamorfose do posto de vice-rei do Rio de Janeiro na Corte de um império, o impacto da proximidade monárquica dos seus vassalos americanos, a ambigüidade do papel da monarquia com respeito à instituição da escravidão, a metamorfose do comércio do Atlântico e o papel dos brasileiros, portugueses e ingleses em tudo isso e o desafio do constitucionalismo liberal na antiga metrópole e no novo reino do Brasil.

Nesses capítulos ela demonstra que o exílio transformou a monarquia de um regime absolutista Europeu com colônias no além-mar em uma regenerada, até mesmo nova, monarquia e então, finalmente, em uma instituição constitucional tentando conter revoluções políticas e equilibrar os reinos de ambos os lados do Atlântico. Ao fazê-lo, ela explora a forma com que discourso político e cerimonial indicam e incorporam as mudanças e desafios da época, e são refletidos nos usos da monarquia, no aparecimento da cidade, nas medidas de repressão e controle dos escravizados, na correspondência e nos memorandos dos oficiais e cortesãos da Coroa e na percepção e controle dos pobres e cativos. Essa aproximação cultural e íntima leitura ideológica são contribuições inovadoras com claro potencial para futuros trabalhos de outros historiadores. De fato, isso é algo que Schultz faz alusão quando nota que muitas das contradições da transição da monarquia foram legadas de forma intacta ao Império do Brasil. É um livro bem vindo, escrito claramente, vigorosamente discutido, e potencialmente seminal. Certamente vai resistir.

Nota

1 Em parceria com H-LatAm e H-Net.

Jeffrey Needell – History Departmente/University of Florida/USA.

Acessar publicação original

[DR]