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Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação – CARLAN (RAP)
CARLAN, Cláudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação. São Paulo: Annablume, 2013, 214p. Resenha de: RAMALHO, Jefferson. Revista Arqueologia Pública, Campinas, São Paulo, v.10, n. 2, p. 115-119, jun. 2016,
Trabalhar com moedas é algo diferente, inusitado […] é percorrer a história da humanidade em todas as suas facetas. É reunir e integrar dados reveladores de momentos áureos, de crises, de guerras […] É colocar no presente os mistérios do passado (LUDOLF, 2002: 199).
A atenção que moedas recebem é tão antiga quanto elas próprias. São artefatos peculiares e importantes para o estudo da História. A numismática é a ciência que estuda as moedas, podendo atingir um alto grau de precisão técnica e classificação. É um campo de estudo imenso, uma vez que esses pedaços de metal estão repletos de informações sobre os mais diversos interesses da História: Arte, Religião, Economia, Política, sobre sociedades e civilizações. Manoel Severin de Faria, sacerdote católico e numismata português do século XVII aponta que “nas imagens das moedas e suas inscrições se conservava a memória dos tempos, mais que em nenhum outro documento” (LUDOLF, 2002: 199).
A forja de uma ciência própria para o estudo desses pequenos objetos metálicos antigos inicia-se na Idade Moderna com as coleções: a busca pelo passado greco-romano. Francesco Petrarca e Guillame Budé são duas das figuras principais que ajudam a configurar a gênese formal dos estudos das moedas. Com o passar dos tempos e a consolidação do colecionismo, assim como o aumento de material (moedas) disponível para estudo e avanços museológicos, surgem as sociedades numismáticas.
O livro de Carlan, Moeda e poder em Roma, trata – inicialmente – da questão do colecionismo e sua gênese, culminando na ascensão de museus, como o Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro, e de gabinetes numismáticos, como o da Catalunha em Barcelona. Em seguida, apresenta um catálogo de moedas romanas – de grande valor, já que é fundamental para o trabalho numismático – separado por imperador, temas e exergo2 do reverso3. Sendo assim, o centro do livro é a análise de uma coleção composta por 1888 moedas, cunhadas no IV século do Império Romano, do MHN. Trata, também, dos diferentes tipos monetários da Antiguidade Tardia e todo seu contexto socioeconômico, político, e histórico. Por fim, analisa a propaganda por meio da moeda e relaciona a legitimação de poder com a vasta iconografia monetária.
É muito difícil tentar traçar as origens do colecionismo, já que o homem coleciona desde o Paleolítico e é difícil determinar o motivo (SOUZA, 2009: 01). Porém, o resgate do passado greco-romano remonta, como expõe o professor Carlan, aos tempos pós-invasões bárbaras e à formação dos jovens estados modernos. Durante o Renascimento, essa prática floresceu a partir de novos interesses e valores históricos e artísticos. Um trabalho importante, conhecido como um dos primeiros catálogos numismáticos do período foi o Illustrium Imagines elaborado por Andrea Fulvio que contém imagens de diversas moedas e bustos antigos. Além de abundantes e portáteis, a variedade de bustos, cenas, símbolos e figuras estampadas nas moedas antigas encantavam aos numismatas de uma época em que se tinha “fome” por imagens, em especial, greco-romanas. (CUNNALY, 1999: 12)
Já no século XVIII, a Vila Albani torna-se um centro de encontro de colecionadores e estudiosos do período que, como Wicklemann (1717 – 1768), buscavam imitar a cultura Clássica Antiga. A Society of Dilletani, também do XVIII, promoveu campanhas arqueológicas com o objetivo de estudar, conhecer e analisar as ruínas greco-romanas, o que contribuiu para o aumento do material numismático disponível para estudo (CARLAN, 2013: 41).
A atividade do colecionismo é somada aos avanços museológicos iluministas que, através da arte, buscavam um processo de regeneração cultural (burguesia x aristocracia, arte “racional” x arte rococó). O Museu Britânico de Londres é considerado o pioneiro e, de maneira geral, apresentou (e ainda apresenta) – sustentado pela arte – as diferentes etapas da cultura material em diversas sociedades.
Toda essa contextualização e explicação sobre museus é transportada, no texto, para a comparação entre o Gabinete numismático da Catalunha e o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. Ambos tiveram a mesma formação: através de doações em períodos relativamente próximos. Umas das diferenças seria a forte relação entre a fundação do MHN e o nacionalismo. Carlan ainda destaca que a numismática não está presa nos museus já que a moeda é um prato cheio para o estudo da História Econômica, Política, da Arte e as relações sociais existentes em sociedades monetarizadas4 (CARLAN, 2013: 48).
4 No vocabulário numismático, uma sociedade monetarizada é aquela – segundo os padrões modernos – que possui um sistema monetário que adotou a moeda metálica como meio de troca.
A análise seguinte é a de sete peças numismáticas de quatro imperadores diferentes: Constante (1 peça), Constâncio II (1); Honório (2) e Arcádio (3). As moedas antigas devem ser pensadas como um corpus documental que possui um emissor que quer transmitir uma mensagem – por meio de representações e signos – para um destinatário ou receptor. Sendo assim, a moeda possui uma função política, social, administrativa, militar, religiosa e econômica dentro da sociedade Romana (CARLAN, 2013: 64). Para o estudo seguinte no livro, utilizou-se do “esquema de Lasswell”5.
O centro analítico do livro são as 1888 moedas cunhadas nos século IV d.C.. A análise quantitativa executada separou as numárias em três: imperador (de Diocleciano a Galério), reverso (e seus temas) e exergo (local de cunhagem). O estudo recebe ainda, um amplo contexto histórico de cada imperador o que é fundamental para os estudos posteriores a serem elaborados a partir das mesmas numárias. O maior número de moedas do acervo (360) são as de Constantino com ênfase nos temas militares e religiosos. A explicação de Carlan para tal verificação é:
Era preciso pagar o exército, legitimar o poder dos imperadores perante a tropa, homenagear ou favorecer uma determinada legião, demonstrar a segurança do seu governo divulgando a construção de muralhas ou campos militares, representar a sua vitória – a vitória de Roma – sobre um determinado inimigo (CARLAN, 2013: 172).
O contexto histórico apresentado é o do século IV: Tetrarquia e a divisão de tarefas civis e militares entre os imperadores, as reformas da Tetrarquia, o processo de ruralização do Império Romano – ação de mão única -, crise institucional (assassinato de 19 imperadores), guerra contra o Império Persa, as legiões romanas e as modificações da guerra e a análise da economia do período com ênfase no fator numismático: é interessante notar que é neste trecho que Carlan aborda o outro lado da numismática e examina em detalhe a crise dos preços, o valor da moeda, a variação de pureza dos metais usados nas cunhagens e da balança comercial romana.
Por fim, é feito o estudo da moeda, propaganda e legitimação do poder. É fundamental ler os símbolos contidos nos reversos das moedas romanas que constituem um corpo de informação a ser interpretado pelo receptor. Busca-se as intenções e interesses que explicam a motivação do emissor ao cunhar aquele tipo. Sendo assim, faz-se necessário analisar ambos os lados da moeda que compõe um documento vastíssimo que, aliado a outras fontes, nos ajuda a produzir uma interpretação do passado.
De maneira geral, pode-se dizer que a obra de Carlan contribui para o fortalecimento dos estudos numismáticos acadêmicos no Brasil que ainda são considerados, de certa forma, incipientes. Há, entre os historiadores, certo preconceito sobre o uso de moedas como documentos, já que a maioria dos intelectuais da área prefere utilizar a antiga forma de documento: impressa em papel, catalogada e disposta em um arquivo ou biblioteca (CARLAN & FUNARI, 2012: 29).
Tal hábito vem se alterando desde os Annales, que contribuíram para uma nova concepção sobre documentos. A moeda – que sofreu suas devidas alterações ao longo da História – faz parte do cotidiano de todos e revela uma forma de produzir, aliada a outros tipos de fontes, uma interpretação do passado distinta: já que a moeda, antiga ou contemporânea, é capaz de nos dizer muito sobre sociedades, suas concepções, economia, arte, política e tecnicismo (maneiras de produção das moedas). O livro de Carlan é uma leitura interessante para aqueles já inseridos ou não na temática romana da numismática, pois aborda conceitos básicos mesmo durante reflexões mais profundas do tema.
Notas
1 Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas, bolsista do CNPq, meninivitor@gmail.com.
2 Local inferior do campo da moeda, onde se encontra a data e a casa monetária, quando existem tais informações.
3 Face oposta ao Anverso (lado principal da moeda que representa quase sempre a entidade emissora). Na gíria popular é conhecia como “coroa”.
5 Harold Laswell (1902-1978): pioneiro na análise de conteúdos aplicados à política e à propaganda. Levantou teorias sobre o poder da mídia de massa. O esquema de Laswell analisa os meios de comunicação partindo da “análise de conteúdo”: uma série de questionamentos relacionados aos meios de comunicação (no caso do livro de Carlan, a moeda na Roma antiga). Alguns exemplos são: “Quem?; Diz o que?; Em qual canal?; Para quem?; Com quais efeitos?”
Referências bibliográficas
CARLAN, Claudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação, São Paulo, Annablume, 2013.
CARLAN, Claudio Umpierre; FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Moedas, a Numismática e o estudo da História. 1ª edição, São Paulo, Annablume/Fapemig/Unifal/Unicamp, 2012.
CUNNALLY, John. Images of the Illustrious: the numismatic presence in the Renaissance, Princeton, Princeton University Press, 1999.
LUDOLF, Dulce. “Que é Trabalhar com Moedas” In: O outro Lado da Moeda. Livro do Seminário Internacional. Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, p.199-200, 2002.
SOUZA, Helena Vieira Leitão de. “Colecionismo na modernidade” In: Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 25. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, p. 1-9, 2009.
Jefferson Ramalho – Doutorando em História Cultural (IFCH-UNICAMP) como bolsista CAPES e sob orientação do professor Dr. Pedro Paulo Abreu Funari, além de ser mestre em Ciências da Religião (PUC-SP) com licenciatura em História e bacharelado em Teologia. E-mail: cafeacademico@yahoo.com.br
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Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação – CARLAN (RAP)
CARLAN, Claudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação. São Paulo: Annablume, 2013. Resenha de: MENINI, Vítor Bianconi. Revista de Arqueologia Pública, Campinas, n.9, jul., 2014.
A obra Moeda e poder em Roma, do historiador Dr. Cláudio Umpierre Carlan, resultante de sua já reconhecida experiência nas pesquisas que relacionam História e Arqueologia, em particular o ramo da Numismática, contribui de maneira representativa ao empreendimento, já de alguns anos, de inserção dos estudos da Antiguidade Tardia na academia brasileira. Carlan, além de empenhado estudioso das moedas romanas, dedica-se à docência na Universidade Federal de Alfenas, em Minas Gerais, além de colaborar no Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte da UNICAMP, universidade na qual realizou deu doutoramento e realiza pós-doutoramento, sempre sob orientação do historiador e arqueólogo Dr. Pedro Paulo Abreu Funari.
Com apresentação da professora Dra. Margarida Maria de Carvalho (UNESP-Franca), Moeda e poder em Roma foi escrita de maneira clara, objetiva e fluida, apresentando desde o começo a importância de se compreender expressões e conceitos basilares em investigações dessa natureza, tais como: Antiguidade Tardia, Numismática, cunhagem, relações de poder, representações, catalogação, acervo, colecionismo, patrimônio, cultura material, entre outros.
Nas primeiras páginas, o autor já antecipa quais serão seus referenciais. Carlo Ginzburg, Roger Chartier e Michel Foucault destacam-se entre aqueles que irão compor a fundamentação teórica de Carlan em suas investigações. Da mesma maneira, além de dialogar com tais perspectivas que evidenciam a identidade epistemológica de seu trabalho, Carlan apresenta respeitadas referências na área da Numismática, tais como, Hubert Frère, Jean-Nicolas Corvisier, Charles Samaram, Pascal Arnaud, além do irlandês Peter Brown, cujos estudos em Antiguidade Tardia e, neste caso particular, sobre a numária constantiniana, têm indispensável importância.
No capítulo inicial, intitulado “O colecionismo e o Museu Histórico Nacional: origem, acervo e patrimônio”, Carlan desenvolve uma breve, mas muito precisa, revisão histórica desde o término da Antiguidade Tardia até o processo de ampliação das coleçõ numismáticas no século XIX. Destaca, por exemplo, o “renascimento carolíngio”, entre os anos 768 e 814, quando governou Carlos Magno, que propiciou considerável impulso nas atividades colecionistas. Tal ampliação do colecionismo já estará consolidado nos tempos modernos, à época dos Estados Nacionais, quando Luis XIV (1638-1715), tendo herdado as coleções do Cardeal Mazzarino e de Carlos V, as utilizará como modelo, passando a representar-se em suas próprias cunhagens tal como os antigos césares romanos, usando uma coroa de louros e, posteriormente, determinando que seus funcionários organizem e cataloguem toda a coleção.
Carlan, ainda no primeiro capítulo, não deixa de mencionar a importância do italiano Francesco Petrarca (1304-1374) como primeiro colecionador de moedas conhecido oficialmente, além de comentar acerca da influência do Iluminismo na organização dos primeiros museus da Europa, evidenciando tanto o caráter antropocêntrico daquela mentalidade como a ruptura – ainda que lenta – com concepção teocêntrica de mundo e de ser humano.
O ápice do primeiro capítulo acontece quando Carlan apresenta-nos uma informação pouco conhecida pelo povo brasileiro, que é a existência de um acervo numismático no Museu Histórico Nacional (MHN), no Rio de Janeiro, considerado o maior de toda a América Latina. Traçando um paralelo deste acervo com a coleção do Gabinete Numismático da Catalunha, sobretudo, acerca da origem de ambos os acervos, Carlan, que realizou estágio na Universidade de Barcelona junto ao professor catedrático José Remesal Rodríguez na ocasião de seu doutoramento, informa-nos que da mesma maneira que essa e outras coleções numismáticas foram agrupadas e expostas no Museu Nacional de Arte da Catalunha, no caso brasileiro a coleção doada pelo Comendador Antônio Pedro de Andrade, antes de serem organizadas e expostas em 1922 no MHN, encontravam-se na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Eram 13.941 moedas e medalhas, sendo 4.420 moedas cunhadas na Antiguidade. Hoje, o acervo do MHN conta com uma coleção numismática de aproximadamente 130.000 peças.
Após fechar o primeiro capítulo, tratando com riqueza de detalhes acerca da história do MHN, citando os argumentos de Ramiz Galvão e Gustavo Barroso de que a Numismática tem seu lugar ao lado da História e já ensaiando sua tese de que a orientação política ou mesmo religiosa de um soberano cunhadas em suas moedas evidenciam uma estrutura político-ideológica e transmitiam uma mensagem de poder por parte do governante, Carlan inicia o segundo capítulo no qual trata de maneira bastante específica acerca dos tipos monetários no Império Romano do século IV. [As cunhagens de ouro são as primeiras a serem comentadas, informando-nos que no acervo do MHN composto por peças da Antiguidade Tardia, foram identificados apenas os chamados solidi, ou seja, as moedas instituídas depois da reforma monetária que Constantino promoveu. Carlan apresenta e explica uma moeda cunhada durante a coroação de Constante, uma outra moeda cunhada entre 355 e 357 retratando Constâncio II, duas moedas cunhadas em Milão representando Honório e três moedas cunhadas também em Milão, representando Arcádio, irmão de Honório. Como Honório e Arcádio eram filhos de Teodósio I, justifica-se a presença do lábaro de Constantino representando as letras gregas X (khi) e P (rô), sobrepostas, em algumas dessas peças.
No mesmo capítulo, Carlan trata das moedas comemorativas, chamando atenção para aquelas cunhadas após 330 com o intuito de legitimar a importância de Constantinopla, nova capital imperial construída no território da antiga cidade de Bizâncio. Como o próprio autor nos informa, a moeda na Antiguidade exercia diferentes papéis: “função política, social, administrativa, militar, religiosa e econômica. Não podemos nos restringir à economia. Até hoje, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, a moeda ainda mantém o caráter propagandista” (p. 64). Daí fazer todo sentido a função que algumas moedas, sobretudo, as comemorativas, exerciam naquele cenário.
Antes de apresentar-nos o catálogo de moedas romanas que organizou, Carlan explica como fez tal catalogação, estabelecendo um corpus documental fundamentado no esquema de Harold D. Lasswell (1902-1978), iniciador desde 1927 das análises de conteúdo utilizadas em estudos de propaganda e de política. Tal esquema, grosso modo, estabelecia uma sequência analítica: análise prévia da documentação e estabelecimento do corpus, categorização, codificação e cômputo das unidades e, por fim, interpretação dos resultados (p. 65s). Foi por meio de uma análise comparativa entre as diferentes representações presentes nos reversos das moedas que Carlan identificou certos aspectos que explicitavam ideologias de caráter militar, religioso e, sobretudo, político.
Após um amplo catálogo explicativo de moedas de bronze, desde as 146 peças cunhadas no governo do imperador Diocleciano, incluindo as chamadas moedas militares, além das laudatórias que expressavam, entre outras coisas, compromissos do governante para com seus governados, passando pelas cunhagens dos imperadores de todas as formações tetrárquicas, havendo natural destaque para as 360 moedas de Constantino, bem como as que representavam sua mãe Helena, sua esposa Fausta, seus filhos, sobrinhos e sucessores, e, fechando com as moedas cunhadas nos tempos de Teodósio I e de seus filhos e familiares, Carlan parte para o terceiro capítulo de sua obra no qual tratará do contexto histórico do Império Romano no quarto século de nossa era.
Desenvolvendo uma breve reflexão no sentido de compreender a Tetrarquia instituída por Diocleciano em 293, Carlan explica como a administração imperial funcionava, incluindo a divisão de responsabilidades militares e civis, tanto no Ocidente como no Oriente. A influência do cristianismo, as fugas de escravos, a anarquia militar, o surgimento do colonato e as invasões bárbaras são alguns dos fatores que, segundo Carlan, caracterizavam aquele contexto do Império Romano entre os séculos III e IV. Esse rápido passeio que se faz, desde os dias de Diocleciano até as mortes dos filhos de Teodósio I, sem a preocupação de ater-se a detalhes, demonstra, entre outras coisas, o interesse de Carlan em situar-nos enquanto leitores no tempo em que foram cunhadas as moedas catalogadas no segundo capítulo e listadas em tabela anexa ao final do livro.
O capítulo três encaminha-se para o seu término quando o autor descreve o cenário religioso do Império Romano desde o século II até a adesão de Constantino à religião dos cristãos. Em uma sociedade marcada por predominância politeísta, além do culto ao deus Sol Invictus desde o governo de Aureliano (270-275), começava-se a formar uma nova identidade religiosa que se tornará predominante algumas décadas mais tarde. Contudo, há que ser reconhecido o fato de que a conversão de Constantino à religião dos cristãos, tão bem arquitetada nos discursos de Lactâncio e Eusébio de Cesareia, autores mencionados e comentados por Carlan, foi determinante naquele momento de transição da história imperial, o que se mostra evidente, inclusive, nas moedas cunhadas por Constantino e seus sucessores. Tais moedas, algumas delas comemorativas, traziam, conforme já comentamos acima, o lábaro de Constantino representando as letras gregas X (khi) e P (rô), sobrepostas.
As questões militares, as mudanças na estrutura do exército romano, a evolução política, algumas batalhas em particular, tanto no governo de Constantino como no de seu filho Constâncio II ou mesmo de seu sobrinho e genro Juliano, são temas explorados por Carlan e que, por vezes, são representados nas moedas romanas a fim de legitimar a identidade e o poder do império. Mas, a situação crítica da economia romana desde o século III refletiu de maneira direta na produção numismática chegando a obrigar a emissão de moedas de prata com adulteração do metal, provocando um aumento exacerbado nos preços de escravos, suprimindo a participação do Senado na fiscalização das cunhagens, aumentando os impostos, reduzindo o território após uma sucessão de conflitos e, por fim, empobrecendo o Estado. São as reformas econômicas implantadas pela Tetrarquia que ocupam as últimas páginas do terceiro capítulo da obra.
Após expor as tentativas de controle da inflação, incluindo uma mal sucedida fixação dos preços que terá resultado em práticas de corrupção e contrabando, além de detalhar as diversas reformulações no processo de cunhagens das moedas de bronze, prata e ouro, desde Diocleciano até chegar aos governos dos filhos de Constantino, em particular Constante e Constâncio II, Carlan inicia o quarto e último capítulo de sua obra, tratando daquilo que ele, como intelectual crítico e dedicado que é, denomina “o poder da imagem”. A moeda, na perspectiva defendida por ele, serve como instrumento de propaganda e legitimação do poder imperial.
Perpassando pela trajetória da Tetrarquia romana, desde Diocleciano, até finalizar a narrativa com a clássica informação de que em meados do século V os Vândalos instalaram-se no território romano, os Hunos cruzaram a fronteira e o Império deixara de existir, Carlan evidencia sua opinião de que as moedas serviam para propagandear e legitimar tanto o poder político como as filiações religiosas. Constantino, segundo Carlan, jamais abandonara sua adoração ao deus Sol Invictus, pois em suas cunhagens manteve-o como símbolo principal, sobretudo, nos reversos das moedas, ora marchando triunfante, ora ostentando um cetro. E Carlan refere-se a moedas cunhadas entre 320 e 322, ou seja, oito a dez anos após a Batalha da Ponte Mílvia, episódio no qual, segundo Lactâncio e Eusébio, o imperador tornara-se cristão.
Apesar de listar reformas jurídicas instituídas por Constantino e de citar alguns efeitos na cristandade, tais como o falso documento conhecido como “Doação de Constantino”, cuja inautenticidade será comprovada apenas no século XV por Lorenzo Valla (1407-1457), Carlan aponta as continuidades dinásticas como insuficientes para impedir os conflitos que, ao final, resultariam na queda do Império Romano.
Na conclusão, além de enfatizar a importância do diálogo interdisciplinar entre História e Arqueologia, bem como da ampliação da noção de documento, Carlan encerra afirmando que as moedas transmitiam mensagens do governante aos seus governados. Intenções políticas e ideológicas, além de comerciais, consistiam, portanto, nos significados concretos de uma moeda. Assim, Carlan conclui frisando que em sua análise numismática foi possível constatar que na administração romana do século IV predominava a legitimação do poder imperial e de seus soberanos, o que pode ser explicado por meio do que ele próprio chama de tipos e subtipos religiosos e militares.
Notas
2 Local inferior do campo da moeda, onde se encontra a data e a casa monetária, quando existem tais informações.
3 Face oposta ao Anverso (lado principal da moeda que representa quase sempre a entidade emissora). Na gíria popular é conhecia como “coroa”.
4 No vocabulário numismático, uma sociedade monetarizada é aquela – segundo os padrões modernos – que possui um sistema monetário que adotou a moeda metálica como meio de troca.
5 Harold Laswell (1902-1978): pioneiro na análise de conteúdos aplicados à política e à propaganda. Levantou teorias sobre o poder da mídia de massa. O esquema de Laswell analisa os meios de comunicação partindo da “análise de conteúdo”: uma série de questionamentos relacionados aos meios de comunicação (no caso do livro de Carlan, a moeda na Roma antiga). Alguns exemplos são: “Quem?; Diz o que?; Em qual canal?; Para quem?; Com quais efeitos?”
Referências
CARLAN, Claudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação, São Paulo, Annablume, 2013. CARLAN, Claudio Umpierre;
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Moedas, a Numismática e o estudo da História. 1ª edição, São Paulo, Annablume/Fapemig/Unifal/Unicamp, 2012.
CUNNALLY, John. Images of the Illustrious: the numismatic presence in the Renaissance, Princeton, Princeton University Press, 1999.
LUDOLF, Dulce. “Que é Trabalhar com Moedas” In: O outro Lado da Moeda. Livro do Seminário Internacional. Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, p.199-200, 2002.
SOUZA, Helena Vieira Leitão de. “Colecionismo na modernidade” In: Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 25. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, p. 1-9, 2009.
Vítor Bianconi Menini – Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas, bolsista do CNPq, E-mail: meninivitor@gmail.com.
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Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família – LAMOUNIER (RBH)
LAMOUNIER, Bolívar. Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família. São Paulo: Augurium, 2004. 431p. Resenha de: NOVINSKY, Anita Waingort. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.54 , dec. 2007.
Com uma obra que vem revolucionar a historiografia brasileira – Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família –, Bolívar Lamounier se lançou numa aventura histórica cujas proporções se estendem da mais profunda fantasia ao mais sério rigor científico.
Num volume de 431 páginas que lemos como se fosse o mais atraente romance, o autor mergulha no passado e fala a todos nós, leigos e historiadores, que buscam encontrar um elo entre o que somos e toda a galeria de antepassados, que não conhecemos, que viveram e lutaram antes de nós, para sobreviver com o trabalho, a caridade, o negócio, as plantas e a natureza.
Inicialmente, Lamounier partiu de um sentimento, uma curiosidade, uma curiosidade que nos preocupa a todos: quem somos? Não apenas como seres biológicos, mas como seres sociais.
Parte então fascinado pelos nomes. O que significam os nomes? E os sobrenomes? Como se formaram? Como evoluíram? Para responder a estas questões o autor penetra fundo no poço da história, vai ao Império Romano, vai à Idade Média, vai às Cruzadas. De onde veio seu nome? Buscou pistas, vasculhou o longínquo passado atravessando a realidade vivida pelos homens, suas lutas para sobreviver, suas misérias, até chegar ao grande tema político – a formação dos Estados Nacionais – e a alucinante corrida pela posse das riquezas. Mostra-nos que os apelidos e sobrenomes são derivados de ofícios, e isso é uma constante no mundo; entretanto, esse fenômeno não se verifica na onomástica brasileira durante o período colonial, talvez por causa da escravidão, talvez porque Portugal não permitia o desenvolvimento da colônia, limitada apenas a produzir para o Reino.
Os apelidos, na Europa em geral, têm origem em uma ocupação – que depois se generaliza e se transforma em sobrenome hereditário. Lamounier foi buscar seus ancestrais, longínquos, que viveram em outro universo, diferente do nosso, e caminhando através da história chega até nós – e até as fantásticas conquistas da técnica, sempre num crescendo até ancorar em Minas Gerais.
Vejamos o caminho percorrido pelo autor: partiu de quatro focos – o moinho, a esmola, a moeda e o limão. Partiu de um mundo onde a identificação das pessoas era precária e incipiente, para o mundo onde a identificação é completamente institucionalizada. Passou de um mundo ‘ignominioso’, sem nomes, ou de nomes difusos e instáveis, para o mundo atual, onde a identificação individual é minuciosa.
Apresenta-nos então o ‘moinho’ e a ‘miséria’, que era percebida como condição imutável, para em seguida chegar à ‘moeda’, quando se formam os Estados Nacionais, que controlam a fabricação e a circulação do dinheiro – e por último, nos conduz ao ‘limão’. Desses quatro focos evolui o mundo na direção do progresso.
Assim, duas visões de mundo se confrontam: uma é hostil à modernidade, nostálgica de um mundo mais simples; outra valoriza as conquistas materiais e a cultura, como caminho para uma vida humana mais feliz.
Lamounier mostra-nos o destino humano em um tempo quando tudo era desígnio divino e inexistia a idéia de progresso. A pobreza era aceita como algo natural e os reinos praticavam a caridade não para ajudar o ‘outro’, mas para salvar sua própria alma. As esmolas, escreve Lamounier, eram vistas como recibos de depósitos a serem cobrados no céu. Essa visão de mundo se manteve durante séculos.
As restrições religiosas que bloqueavam o progresso científico são quebradas no século XVIII, até que no século XX, depois da Segunda Guerra Mundial, a Igreja passa por um processo de ‘esquerdização’, principalmente na América Latina, desaguando na Teoria da Libertação.
A industrialização e a modernidade tornaram a sociedade moderna extremamente vulnerável, e o socialismo aumentou ainda mais a centralização e a burocratização do Estado. Talvez, pensa o autor, as organizações não governamentais (ONGs) possam auxiliar na direção de uma nova política social.
Afinal, parece que nos encontramos numa situação angustiante e insolúvel, numa encruzilhada sem saída. De um lado, o mundo melhorou – hoje há muito menos pobres do que há dois ou três séculos. De outro, navegamos num agitado mar de violência destrutiva. Lamounier nos confronta com esse mundo paradoxal e pergunta: qual a saída?
Do moinho, da pobreza, da esmola, Lamounier passa para a moeda – e tece a mais curiosa história sobre sua origem e progresso. Durante séculos a escassez de moedas de pequeno valor dificultava as transações básicas da vida cotidiana e entravava o desenvolvimento do comércio. A moeda é uma criação recente – e seu desenvolvimento resultou de um processo lento que só se completou em estágio bem avançado do capitalismo. Como meio universal de troca, a moeda é um fenômeno do século XIX. Surgem então os patronímicos derivados da moeda.
Em se tratando de nomes, Lamounier lembra que há um mito corrente, de que os portugueses descendentes dos judeus, os cristãos-novos, traziam nomes de frutos e árvores, como, por exemplo, os Oliveira, Lima, Pereira, Carvalho. É verdade que esses nomes aparecem também entre os cristãos-velhos e em outros países, mas o que surpreende é a constância de alguns deles entre os cristãos-novos.
Sobre a mentalidade que na época predominava entre as elites dirigentes portuguesas, Lamounier nos mostra que estava conectada com a Contra-Reforma, a Inquisição e o Absolutismo. A falsa aparência de riqueza de Portugal coexistia com o seu obscurantismo – expresso numa instituição de terror, a Inquisição, cujos efeitos sobre a economia e a alma dos homens ainda não foram devidamente analisados.
No momento em que a Europa se reformula com o Iluminismo, quando filósofos expressam e criticam o mundo, a política, a religião, d. João V – chamado de “rei freirático”, porque todas as noites ia aos conventos dormir com as freiras – esbanja o ouro brasileiro para ostentar os famosos autos-de-fé, aos quais assistia com verdadeira paixão, rodeado de toda a nobreza.
Não creio que o furor inquisitorial tenha diminuído sob d. João V. Ao contrário, foi durante seu reinado que a Inquisição agiu com maior furor, prendendo e penitenciando centenas de luso-brasileiros, tanto em Portugal como no Brasil. Só fechou suas portas em 1821, continuando porém a existir no século XX, sob o nome de “Congregação para a Doutrina da Fé”, da qual foi diretor e ideólogo o atual papa Bento XVI.
Lamounier lembra-nos um aspecto sumamente interessante de nossa vida colonial no século XVII, o mandonismo de nossos fazendeiros de açúcar, que controlavam a Câmara e desacatavam os governantes enviados da Metrópole. Quem na realidade mandava no Brasil eram os senhores de engenho, que tinham verdadeiros exércitos, e os chamados “homens bons”, que controlavam todos os setores da vida – os preços, a construção de estradas e a Câmara.
Lamounier sugere uma resposta à questão formulada por Sérgio Buarque de Holanda e que permanece sem resposta até hoje: por que o Santo Oficio da Inquisição nunca estabeleceu um Tribunal no Brasil, se o tiveram México, Cartagena e Peru?
Depois da expulsão dos holandeses e durante a crise do açúcar, Portugal se ergue economicamente com o descobrimento do ouro, e, enquanto o Brasil manda toneladas do metal para Portugal, o povo morre de fome. A metrópole não permitia a livre iniciativa, a criação de uma universidade, nem a existência da imprensa, e proibia qualquer atividade que não fosse a extração do ouro.
O quadro de Minas Gerais que Lamounier nos pinta, revela o desastre da colonização – a Inglaterra enriquecia com o nosso ouro, e Portugal comprava luxo às custas do Brasil. O que impressiona é ler sobre a violência e as crueldades da sociedade mineira – que para o autor são conseqüência do regime absolutista.
Segundo certos autores, quando o ouro acabou, a população de Ouro Preto ficou reduzida – a economia murchou, a população empobreceu, as terras das minas foram abandonadas e surgiu outro tipo de sociedade. Mas Lamounier discorda de Celso Furtado sobre a atrofia econômica de Minas depois da extinção do ouro, e analisa opiniões controversas de diversos autores.
Através da busca curiosa de si próprio, Lamounier se lança na investigação crítica da história, atravessando campos diversos das ciências humanas. Parte da singularidade para chegar ao todo. Às vezes parece esperançoso, às vezes cético.
Como evoluiu a vida material do homem, como progrediu a sociedade, com seus desastres e suas vitórias, com suas cruezas e suas generosidades – e para onde partimos?
Lamounier nos mostra os paradoxos da trajetória humana. De um lado, a luta para preservar o que já está estruturado, de outro a ânsia de mudança. Se de um lado decaímos – pois à medida que evoluímos, evolui a crueldade, a violência, a anti-ética –, de outro, materialmente, quanto progresso e quanta inovação!
Depois de percorrer o mundo, reconstituir o cotidiano, refletir sobre a violência e a crueldade dos homens, os meios de subsistência, os alimentos, a casa, o mobiliário, os costumes, os talheres, as baixelas, as políticas reais e a mentalidade, depois de nos conduzir ao moinho ao século XX, Lamounier volta às suas memórias e origens. Retorna ao século XVIII, quando vivia seu antepassado Afonso Lamounier, que aos 20 anos chega sozinho de Lisboa para a Comarca do Rio das Mortes. O que o trouxe para as Minas? Aventura, ascensão social, dinheiro? Ou talvez, quem sabe, o estigma de sua ascendência na sociedade racista de Portugal?
No Brasil, Afonso Lamounier recebe terras e sesmarias, e seu bisneto Lamounier Godofredo faz parte do primeiro Congresso Republicano. Bacharel em Direito, deputado do Império, pronuncia-se enfaticamente sobre a separação entre Estado e Igreja, sobre a liberdade de culto e liberdade de consciência; luta pelo direito do voto feminino, pela reforma salarial e pelo anti-militarismo, participando da Constituinte de 1891.
E ainda outro Lamounier, Gastão Marques Lamounier, cujo talento o levou para a carreira de músico, e o curioso Levindo Lamounier, trineto daquele primeiro jovem que chegou ao Brasil e foi viver no sertão.
É interessante que a ‘obra aberta’ de Bolívar Lamounier nos mostra diversos caminhos – e nos sugere as mais diversas idéias e considerações. A mais sugestiva que perpassa o pensamento do leitor é, talvez, a sua identificação com a Sobornost, palavra que designa os princípios fundamentais do ‘viver russo’, pelos quais cada ser humano é visto como uma singularizarão da vida de muitos.
Compreender o ser humano como a singularização de muitos, como nos ensina Gilberto Safra, significa que cada ser humano é a singularização da vida de seus ancestrais, assim como o pressentimento daqueles que ainda virão. Quando estamos frente a alguém, estamos frente à singularização dos ancestrais. Cada indivíduo é único – e é também múltiplo. Não é possível abdicar à condição humana sem pensar o homem através da história. Porque o homem não é só ser natural. É também histórico. A vida de cada um de nós só pode ser percebida na estrutura e forma da nossa própria família. Ao mesmo tempo em que o homem é filho da natureza, é fruto de seus ancestrais.
A obra de Bolívar Lamounier identifica-se com essa concepção de forma magistral. Deu-nos uma lição para repensar quem somos. Escreveu um livro sobre história do Brasil e encontrou o seu próprio lugar nessa história, compartilhando seu destino com os que estão, com os que foram e com os que virão.
Anita Waingort Novinsky – Laboratório de Estudos sobre a Intolerância – Universidade de São Paulo (USP). Av. Prof. Lineu Prestes, 159 (prédio da Casa de Cultura Japonesa, subsolo), Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, Butantã. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil. E-mail: anitano@terra.com.br
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