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La primera mentira. Mitos y relatos distorsionados en la enseñanza de la Historia | Daniel Jiménez Martín
La primera mentira. Mitos y relatos distorsionados en la enseñanza de la Historia, recoge los principales problemas a los que se enfrentan los historiadores a la hora de cubrir el apartado docente de obligado cumplimiento en su carrera profesional. Para ello realiza un amplio recorrido desde la época prehistórica hasta las etapas más recientes de la Historia, efectuando un repaso por todos los mitos construidos y mantenidos desde hace décadas o incluso siglos. Denuncia la falta de experiencia didáctica de buena parte de los docentes, en todas las etapas educativas, especialmente en la Educación Secundaria y la universitaria porque la formación de los profesores radica en la propia investigación histórica en vez de en la forma de transmitir ese conocimiento histórico. Leia Mais
Mitos Papais: política e imaginação na história – RUST (RBH)
RUST, Leandro Duarte. Mitos Papais: política e imaginação na história. Petrópolis: Vozes, 2015. 248p. Resenha de: BOVO, Claudia Regina. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.
Eis uma obra provocativa. Essa é a primeira constatação sobre Mitos Papais, trabalho que articula a análise histórico-historiográfica do poder pontifício com suas interpretações “mitológicas”, intepretações estas que ainda sustentam calorosos debates sobre qual deve ser o papel político do papado. Ah, a política! Sim, mais uma vez a política. Essa arte da negociação, área tão negativamente avaliada nos nossos dias, é o campo sobre o qual Leandro Duarte Rust se debruça para trazer a um público não acadêmico a construção histórica dos mitos em torno da atuação papal. A abertura do texto já marca o tom desafiador da proposta: “Mito ou realidade?”. Ao superar a dicotomia rasa que definiu vulgarmente o mito e as mitologias como a falsificação do real, Rust marca a abertura do seu texto reconhecendo outro modo de defini-los. Inspirado por Joseph Campbell, para quem a mitologia soava como poesia, Rust define os mitos como meio de se conhecer as relações políticas, forma de interpretar a política e também como maneira de expressá-la.
Essas experiências de significado são, nada mais nada menos, do que pistas para descortinar as potencialidades humanas, rastros da experiência humana no tempo, algo que se aplica ao que somos e explica como somos. Não há lugar para invenção, não há lugar para a desrazão, os mitos nos envolvem porque são um mecanismo de interpretação da experiência humana. Portanto, a ideia do livro não é simplesmente desconstruí-los, mas aprender com eles. Tirar deles o conhecimento que nos qualifica enquanto seres políticos. É importante reiterar que o objeto de análise aqui não está restrito ao papado, mas é extensivo à política e às suas diversas formas de negociação, conflito e acordo. Os Mitos Papais não poderiam ser melhor substância para exemplificar o exercício de análise proposto.
Com narrativa envolvente e cadenciada, o livro apresenta cinco mitos que ajudaram a estabelecer e a manter o papado romano no centro dos debates políticos da Contemporaneidade. Chamamos de contemporânea a leitura sobre a experiência política pontifícia do final do século XIX até os dias atuais. Desde a busca pela ossada de seu fundador – Pedro – ao silêncio pontifical durante o genocídio judaico promovido pelos nazistas, os mitos escolhidos por Leandro Rust aguçam a curiosidade de qualquer leitor ávido por história e, principalmente, ensinam como a historização das narrativas pode ajudar a instrumentalizar as consciências históricas contemporâneas. Um caminho investigativo que ajuda a nos aventurarmos pela complexidade das experiências históricas papais.
Interessado em aprender com os mitos, com a leitura histórica que eles fomentam, Leandro Rust trata no primeiro capítulo da empresa incentivada pelo papa Pio XII para encontrar, sob o solo da basílica de São João de Latrão, os restos mortais do apóstolo Pedro. Rust se pergunta “por que, a certa altura da vida contemporânea, a tradição religiosa deixou de saciar a certeza a respeito da realidade histórica do fundador da Igreja Romana?” (p.67). Em outras palavras, por que justamente durante os conturbados anos da década de 1940 houve o impulso a essa saga arqueológica para provar a existência das relíquias e da tumba de Pedro? A resposta segue esta lógica: só o discurso de fé não era mais suficiente. Era preciso uma prova material, com atestado científico, para legitimar a saga fundadora de Pedro. A narrativa do autor nos leva a atestar o papel dos mitos na política e a condição indelével do apelo à renovação cristã – Renovatio Christiana.
A saga lançada por Pio XII em busca da tumba de Pedro atuou como remédio para as políticas de secularização que havia algumas décadas esvaziavam as fileiras dos bancos católicos, resultando na atualização do discurso católico às demandas racionais da modernidade. Por meio da verificação científica de sua materialidade santa – o encontro com a tumba de Pedro – o catolicismo demonstrava sua base inequívoca. Conforme apresenta o autor, “o reencontro com o primeiro papa seria a prova de que o Vaticano tinha saída para superar os abismos que os homens cavam entre si e uni-los em uma harmonia palpável. Poucas instituições poderiam oferecer uma resposta tão contundente para populações mergulhadas em traumas e incertezas” (p.72).
Não é por acaso que o mesmo Pio XII que abre com destaque os Mitos Papais seja o mesmo personagem discutido no último capítulo do livro. Visto por alguns como o estandarte da modernização da Igreja Apostólica Romana e por outros como o “papa de Hitler”, a disputa pela memória coletiva de sua atuação pontifícia ainda está aberta. Santo dos católicos e algoz dos semitas, essa emblemática dicotomia sobrevive como mitos políticos de uma mesma experiência humana. Herói e vilão são interpretações conflitantes que figuram lado a lado quando se fala sobre a atuação política do papa Pio XII. Daí nossa insistência em definir a proposta deste livro como provocativa e desafiadora. Como demostra Rust, a luta pela memória a ser preservada sobre Pio XII tem início logo depois de sua morte. De peça de teatro que o ridicularizava ao boom literário dos anos 1990 que ora o criticou ora o valorizou, Pio XII representa o fardo dos Mitos Políticos. Ao mesmo tempo que se opõem, ambas versões se complementam. Dito de outra forma, ambas versões são expressões do modo de se pensar e se fazer política contemporaneamente, elas estão embasadas na premissa da divisão dicotômica das disputas políticas, da divisão partidária da vida social. Aventurar-se por esses mitos que envolvem a figura de Pio XII é ter a mais clara exposição das nossas relações políticas e de como não estamos alheios a elas.
Em tempos de impeachment, de estandartes e histerias coletivas que atribuem à política as mazelas do mundo, o mito aparece como meio de descortinar nossas práticas políticas, de compreendê-las. Enquanto meio de interpretação legítimo para conhecer as relações políticas o mito tira do senso comum, ou melhor, devolve a ele a necessidade de avaliação constante das expressões narrativas com as quais compactuamos, dessas razões práticas às quais, enquanto grupos sociais, recorremos “para justificar e legitimar nossos interesses”. Sim, nós fazemos isso; conscientemente ou não, fazemos.
Portanto, como bem advoga Rust, o mito político não é uma inverdade, mas uma narrativa que idealiza o passado para legitimar ou desacreditar um regime de poder. Uma chave de leitura do mundo que nos orienta a tomar posicionamentos – políticos, por sinal – nas disputas pelo poder. Cientes do que a leitura deste livro pode provocar, é preciso reconhecer: não há melhor maneira de escancarar a utilidade do conhecimento histórico e político. Ainda mais em tempos nos quais se dão amplas discussões da política pública educacional, cujo cerne é a ideia já batida de renovação: a Base Nacional Curricular Comum, a Base Comum para Formação Docente, a PEC da Escola sem Partido, a Medida Provisória do Ensino Médio. Nesse sentido, o livro de Leandro Duarte Rust nos desafia a olhar para dentro de nós mesmos, para aquilo que usamos como definição das coisas, e nos força a reavaliar, a reconhecer a historicidade de nossas razões práticas. A História, a Política, o Papado e a Idade Média não soam como perfumaria curricular. Pelo contrário, desses imaginários diversos, dessas mitologias pseudodespretensiosas, retiramos muitas interpretações que ainda respondem aos nossos interesses mais vorazes. Contextualizá-las ainda se faz necessário. Falar sobre elas é mais urgente do que nunca!
Claudia Regina Bovo – Departamento de História, Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Uberaba, MG, Brasil. E-mail: claudia@historia.uftm.edu.br.
[IF]Mitos papais: política e imaginação na História – RUST (Topoi)
RUST, Leandro Duarte. Mitos papais: política e imaginação na História. Petrópolis: Vozes, 2015. Resenha de: MARTINS, William de Souza. A Santa Sé e os impasses da modernidade. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.
Há um século, o historiador Benedetto Croce elaborou uma análise que marcou posteriormente diversas interpretações. Afastando-se da perspectiva segundo a qual a História contemporânea abrangeria apenas o passado muito próximo (“os cinquenta últimos anos, o último decênio, o último ano, mês ou dia ou mesmo a última hora ou minuto”), o erudito italiano entendeu que os fatos do presente mantinham relações próximas com diferentes temporalidades históricas: “somente uma preocupação da vida presente pode nos impelir a fazer pesquisas sobre um fato do passado”. Ou, dito de modo mais claro: “a contemporaneidade não é própria de uma categoria de histórias (…), mas caracteriza intimamente toda a história”.1
As considerações desenvolvidas parecem adequadas para introduzir a discussão do novo livro de Leandro Duarte Rust, professor de História Antiga e Medieval da Universidade de Mato Grosso, e autor, entre outras obras, de as Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média Central (São Paulo: Annablume, 2011). Buscando atingir simultaneamente o público acadêmico e o leitor não especializado interessado nas investigações históricas, o autor se propõe a analisar o que designa como “mitos papais”, quais sejam: o suposto pontificado de São Pedro, o apóstolo; o Cristianismo Primitivo; a Reforma Gregoriana; o papado de Alexandre VI, da família Bórgia; e o pontificado de Pio XII, que recentemente recebeu o cognome de “papa de Hitler”.
Não se trata assim de uma história linear da Igreja, como muitas já disponíveis. O leitor tem em mãos uma obra construída em torno de um problema de pesquisa bem delimitado. Além disso, salta aos olhos a habilidade do autor em alternar diferentes temporalidades históricas, indo do cristianismo dos primeiros tempos até o século XX, sem perder o fio da narrativa. Este modo de narrar resulta da forma como os mitos papais foram construídos. Nos cinco casos analisados, trata-se de narrativas estruturadas aproximadamente entre 1870 e 2000, período em que a Igreja se viu diretamente desafiada pelos processos resultantes da Modernidade, conforme será detalhado. Um dos argumentos centrais do autor é que tais narrativas mitológicas cumpriram a função de redefinir de maneira positiva o lugar da Igreja católica em geral, e da Santa Sé em particular, em um período marcado pela perda da sua influência social e política. A produção das referidas narrativas não foi obra de erudição desinteressada, resultando antes da necessidade de assumir posições políticas para combater projetos de poder rivais. Os mitos papais foram construídos no calor dos acontecimentos dos séculos XIX e XX, deixando-se impregnar pela contemporaneidade de que Benedetto Croce falava.
Antes de passar ao comentário dos mitos escolhidos pelo autor, cada um ocupando um capítulo à parte no livro, deve-se dialogar com a definição de mito utilizada na obra. O autor se baseia na análise de Christopher G. Flood, para quem os
Mitos políticos são perspectivas assumidas sobre a autoridade e a dominação, a resistência e a exclusão, a unidade e a separação. Quando narrativas deste tipo surgem conectadas, circulando em uma mesma época como armas empregadas na luta pelo controle do comportamento coletivo, elas formam uma mitologia política. (p. 27)
Mais conhecida pela historiografia brasileira, a obra de Raoul Girardet, Mitos e mitologias políticas, aparece citada somente de maneira pontual, para tratar da importância do apelo à unidade em tempos de crise (p. 71-72). Não obstante, a análise do professor Leandro Rust ganharia amplitude caso tivesse recorrido com maior frequência à obra do estudioso francês. A interpretação que Girardet propõe do mito político, segundo a qual este cumpre uma tripla função, a de fabulação, a de explicação e a de mobilização, se torna basilar para compreender as tramas conspiratórias e os complôs produzidos em série ao longo dos séculos XIX e XX, de que constituem exemplo as perseguições promovidas contra os judeus e os jesuítas.2 Sem dúvida, a gênese da produção deste tipo de mitologia política se situa um pouco mais além, no âmbito do imaginário das Luzes e da Revolução Francesa. A apropriação de alguns elementos do primeiro por parte de algumas monarquias setecentistas levou-as a medidas contrárias à Companhia de Jesus, que culminaram com a supressão da Ordem em 1773 pela Santa Sé.3 Além disto, esta se viu ameaçada com o corte de relações diplomáticas, como o que foi praticado por Portugal, entre 1759 e 1770.4 No que tange à importância dos eventos políticos da França para a produção de mitos, pode-se assinalar a contribuição de François Furet, segundo a qual a temida “conspiração aristocrática”, denunciada pelas lideranças revolucionárias, tornava-se a imagem invertida da ideologia democrática e igualitária promovida pela própria Revolução.5 Na sequência do processo revolucionário, e tornando-se porta-voz dos ideais laicizantes e republicanos da França, Napoleão Bonaparte ensejou uma farta produção de leituras e imagens míticas, “ancoradas seja na luta entre o bem e o mal, seja na perspectiva da vinda de um salvador, seja no regresso a uma idade de ouro, seja ainda, especialmente, na visão do anticristo”.6
Parece válida a chave interpretativa proposta por José D’Assunção Barros no Prefácio da obra, segundo o qual os mitos papais se situam nas “tensões produzidas pelas relações do papado com a Modernidade” (p. 17). Esta última deve ser compreendida no seu significado histórico e filosófico mais amplo de ruptura com a tradição: “a modernidade não pode e não quer continuar a ir colher em outras épocas os critérios para a sua orientação, ela tem que criar em si própria as normas por que se rege”.7 Segundo a conhecida análise de Koselleck, as condições para a afirmação plena da Modernidade foram dadas na segunda metade do século XVIII, quando o horizonte de expectativas dos sujeitos históricos se distanciava cada vez mais do espaço de experiência em que tinham sido formados, criando uma dinâmica de aceleração e de descontinuidade do tempo histórico.8 Ainda que o próprio autor não tenha recuado até o século XVIII para situar a perda de poder político e social da Igreja de Roma, talvez seja útil reconstituir aqui este contexto mais amplo para aprofundar a compreensão dos “mitos papais”.
Cabem também algumas palavras gerais sobre a composição da narrativa do autor. Em cada capítulo, é analisado um mito político particular a respeito da Santa Sé. O autor mostra convincentemente que narrativas míticas que evocavam pontificados da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento foram construídas muito tempo depois dos referidos acontecimentos ou, mais exatamente, entre 1870 e o pós-Segunda Guerra Mundial. Por trás da elaboração dos referidos relatos, situavam-se estudiosos e historiadores comovidos com o impacto das consequências da Modernidade sobre o poder da Igreja e do pontífice romano, como pilares dos valores da tradição e da cultura do Ocidente. Após a exposição das narrativas míticas, o autor promove a desconstrução das mesmas, valendo-se de farto material crítico, constituído por contribuições da historiografia especializada e por fontes de natureza muito variada. A partir das operações complementares de contextualização, de exposição dos mitos e da crítica, o autor fornece aos leitores valiosas pistas, que poderão levá-los a construir suas próprias visões sobre os papados em foco, atingindo o objetivo da obra historiográfica aberta a sucessivas contribuições e reinterpretações.
No primeiro capítulo, a autor discute o mito do pontificado de São Pedro. Ainda que os Evangelhos atribuam a Jesus a frase “também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja” (Mt, 16,18), está longe de consenso historiográfico a hipótese de que Pedro tenha sido o primeiro papa e fundador da Igreja de Roma. Não obstante, ao longo da Segunda Guerra Mundial, o papa Pio XII (1939-1958) promoveu escavações no subsolo da Basílica de São Pedro, a fim de obter informações que pudessem comprovar a atuação do apóstolo como primeiro pontífice. Em 1950, um relatório elaborado por uma equipe de arqueólogos e estudiosos convenceu o papa de que havia indícios suficientes sobre a descoberta da tumba e dos restos mortais do apóstolo. Esta última informação, bem mais difícil de auferir, foi encampada pela arqueóloga Margherita Guarducci, da Universidade de Roma. Para tanto, a estudiosa se baseou em diversas fontes, que são cuidadosamente apresentadas e contextualizadas pelo autor. Guarducci se apoiou também nos testemunhos das inscrições contidas na suposta tumba do apóstolo. Em diálogo crítico com a referida interpretação, o professor Leandro Rust mostra que as fontes citadas podem ser lidas de diversas maneiras, relativizando as conclusões da pesquisadora italiana. No pós-guerra, período marcado pela crise dos valores da civilização ocidental, a Santa Sé, amparada na pesquisa de diversos estudiosos, buscou se fortalecer por meio do mito do pontificado de São Pedro.
O conceito de “Cristianismo Primitivo” constitui o segundo mito analisado pelo autor. Ao longo do século XX, tanto na imprensa como em obras de natureza historiográfica, tornou-se corrente o uso daquela expressão para caracterizar o cristianismo dos primeiros tempos. De modo mais exato, o cristianismo dos três primeiros séculos, anteriores à ascensão de Constantino, que oficializou o culto cristão no âmbito do Império Romano. Além de encerrar definitivamente as perseguições dirigidas aos cristãos, o édito de Constantino teve o efeito de afastar os bispos da comunidade dos fiéis, acentuando as divisões hierárquicas na instituição eclesiástica, e de preparar o terreno para a posição central do bispo de Roma sobre toda a Igreja. Em contraste, segundo Max Weber, o “Cristianismo Primitivo” caracterizou-se pela “rejeição antipolítica do mundo”, isto é, “uma religiosidade voltada para a redenção através da fraternidade, da renúncia material, do repúdio à violência e da diferença perante o Estado” (p. 83).
O autor apresenta diversos elementos que matizam a tese weberiana, diminuindo os contrastes entre os períodos situados antes e depois da decisão de Constantino. Uma parte das elites imperiais já havia se cristianizado antes do ano 200. Outros indícios mostram que os cristãos tinham adotado previamente um código social mais pragmático, acomodado ao status quo. Em 197, o sacerdote Tertuliano defendeu a compatibilidade entre o cristianismo e a defesa dos poderes imperiais. De maneira complementar, o professor Leando Rust refuta a ideia de que o bispo de Roma teria assumido um poder centralizador sobre toda a Igreja, imediatamente depois das medidas de Constantino. Adotando o código moral das elites romanas, baseado na autoridade do pater familias e na exaltação da piedade, da castidade e da moderação, a autoridade dos pontífices romanos foi construída a partir de outras bases: “nos últimos séculos do mundo antigo, se outros bispos os obedeciam não era porque os enxergavam como líderes estatais ou soberanos, mas porque viam em suas ações e em sua retórica a patria potestas, ou seja, o poder paternal” (p. 103).
No terceiro capítulo, o autor traz à discussão o tema da Reforma Gregoriana, que foi primeiramente elaborado na tese de doutorado de Augustin Fliche, publicada na década de 1920. De acordo com este erudito, sob a ameaça dos poderes dos senhores feudais e o do imperador, que interferiam diretamente na escolha dos bispos, o papa Gregório VII (1073-1085) tomou uma série de decisões, estabelecendo que somente o pontífice romano possuía a autoridade para a investidura dos bispos. Esta e outras medidas estabeleceram o primado do poder espiritual sobre os poderes temporais, transformando a Igreja em um protótipo de monarquia centralizada, responsável pela ordem pública e pela moralização da sociedade. O professor Leandro Rust salienta que a tese da Reforma Gregoriana se tornou um poderoso mito papal, cuja repercussão se encontra presente em contribuições historiográficas recentes. Elaborada em um contexto marcado pela derrocada dos impérios russo, Habsburgo e Otomano, a tese traz a marca de um pensamento tradicionalista, temeroso diante de um quadro político em que “as instituições estavam desacreditadas; a ordem, espatifada; a lei, desacatada” (p. 115). O mito da Reforma Gregoriana vinha reforçar o papel da Igreja como guardiã da unidade e da tradição, em uma época conturbada. Além de situar o contexto de produção do mito, o autor desenvolve um exercício semelhante ao praticado nos capítulos precedentes, mostrando que a suposta “monarquia papal” do século XI era mais frágil e incerta do que se imagina: “o papado comandado por Gregório VII não foi uma monarquia centralizada capaz de inaugurar uma época inteiramente nova. Ele foi uma instituição feudal, repleta de tensões e de limitações, como o mundo que a abrigava” (p. 139).
O quarto capítulo do livro analisa o pontificado de Alexandre VI (1492-1503), da família Bórgia. A fama negativa deste papado se deve à “lenda negra” construída em torno do cardeal Rodrigo Bórgia e de seu clã espanhol, que permanece arraigada até os dias atuais, a ponto de se considerá-lo “o pior papa da história” (p. 169). De acordo com o mito papal em questão, a corrupção da conduta moral da cúpula da Igreja e o favorecimento de parentes atingiram o clímax no pontificado de Alexandre VI. A própria eleição do papa foi marcada pela denúncia da compra de votos no colégio dos cardeais. Conforme assinala o autor, o mito em questão foi lavrado por Ferdinand Gregorovius. A obra A história de Roma na Idade Média foi redigida em 1870 pelo erudito alemão sob o impacto da perda dos territórios da Santa Sé para o Estado italiano e da proclamação do dogma da infalibilidade papal no Concílio Vaticano I, convocado por Pio IX (1846-1878). Adepto do ideal nacionalista, Gregorovius atribuía à “tirania” dos papas a ausência de unidade política na península italiana, colocando no mesmo plano o domínio estrangeiro dos Bórgia e o “despotismo” absoluto do papa Pio IX (p. 153 e 184).
Em contraste com as avaliações parciais do pontificado de Alexandre VI, o autor busca entendê-lo a partir dos condicionamentos coevos. Assim, “o favorecimento da própria família cumpria uma função política: redirecionando recursos da Igreja para filhos e parentes, o Papa Bórgia estruturava um grupo leal à sua autoridade” (p. 178). Ademais, estudos recentes a respeito do período do Renascimento e do Antigo Regime têm mostrado a importância dos vínculos de sangue na formação de redes de poder de famílias aristocráticas, em que a ocupação de posições no alto clero e na carreira eclesiástica em geral assumiam uma posição estratégica.9 Por fim, o autor mostra a ligação entre a imagem inteiramente negativa do pontificado de Alexandre VI com a “lenda negra” de tradicionalismo e obscurantismo associada à cultura ibérica (p. 185). Neste caminho, valeria a pena ter dialogado mais com a historiografia dos mitos políticos construídos em torno da Companhia de Jesus e da Inquisição, instituições eclesiásticas marcadas simultaneamente pela herança ibérica e pela vinculação à Santa Sé.10
No quinto capítulo, o autor discute o silêncio do papa Pio XII (1939-1958) diante das atrocidades cometidas pela Alemanha nazista. De acordo com o referido mito político, “traumatizado pelo envolvimento judaico com a luta política de 1918-1919, identificado com a cultura alemã e obcecado por fazer carreira no interior da Cúria Romana, Pacelli teria optado por uma conciliação com o nazismo” (p. 200). A tese foi difundida por John Cornwell na obra O papa de Hitler: a história secreta de Pio XII, publicada no Brasil em 2000. Pacientemente, o autor desmonta os argumentos do silêncio do papa. Sem exército e com um território mínimo, o Estado do Vaticano contava apenas com os canais diplomáticos como instrumentos de pressão externa. Em encíclicas publicadas em 1937 e em 1939, o papa condenou o antissemitismo, a exaltação da raça e a invasão da Polônia pelo exército de Hitler. Durante a Segunda Guerra, com a Itália ocupada pelas tropas alemãs, a Santa Sé mudou o tom das condenações formais, recorrendo à resistência indireta e fluida. Milhares de judeus foram poupados dos campos de concentração ao se abrigarem em estabelecimentos católicos, cuja imunidade tinha ficado assegurada pela concordata estabelecida em 1933 entre a Alemanha e o Vaticano, representado pelo cardeal Eugenio Pacelli, o futuro Pio XII.
Por trás dos mitos analisados, o autor mostra a existência de uma lógica simplista e maniqueísta que, derivada dos embates políticos, se revela incapaz de perceber as nuances e complexidades presentes no processo histórico. O livro constitui um ótimo exercício de como construir e descontruir histórias, e tem o mérito de se colocar ao alcance do público não especializado ou que está principiando os estudos na área.
1CROCE, Benedetto. Théorie et histoire de l’historiographie {1915}. Genève: Droz, 1968, p. 13-14. Grifos do autor.
2GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 9-62.
3A respeito dos discursos mitológicos envolvendo especificamente a Companhia de Jesus, ver FRANCO, José Eduardo. O mito dos jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX). Lisboa: Gradiva, 2006, v. 1, p. 19-45; WRIGHT, Jonathan. Os jesuítas: missões, mitos e histórias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006, p. 137-194.
4MILLER, Samuel J. Portugal and Rome, c. 1748-1830: An Aspect of the Catholic Enlightenment. Roma: Università Gregoriana Editrice, 1978, p. 232-245.
5FURET, François. Pensar a Revolução Francesa [1978]. Lisboa: Ed. 70, 1988, p. 80-84.
6NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal (c. 1808-1810). São Paulo: Alameda, 2008, p. 29.
7HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990, p. 18. Grifos do autor.
8KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 305-327.
9MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.). O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1993, p. 332-379; LAVEN, Mary. Virgens de Veneza: vidas enclausuradas e quebra de votos no convento renascentista. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 67-83.
10PROSPERI, Adriano. Tribunais da consciência: inquisidores, confessores, missionários. São Paulo: Edusp, 2013, p. 189-211, a respeito da “lenda negra” da Inquisição. A respeito dos jesuítas, ver a nota 3 acima.
William de Souza Martins – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: williamsmartins@uol.com.br.
Dinheiro, Deuses e Poder. 2.500 anos de lendas, mitos, símbolos, fatos e História Política das moedas – SPINOLA (RMA)
SPINOLA, Noenio. Dinheiro, Deuses e Poder. 2.500 anos de lendas, mitos, símbolos, fatos e História Política das moedas. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011. Resenha de: CARLAN, Claudio Umpierre. Revista Mundo Antigo, ano III, v. 3, n 05, jul., 2014.
Termo bárbaro, de uma maneira em geral foi utilizado para definir os povos germânicos, eslavos e tártaros-mongóis, que invadiram Mundo Romano, a partir do século III da era Cristã. A tradução tradicional, idealizada por gregos e, mais tarde, romanos, eram povos que não falavam latim ou grego, usavam calças compridas.
Essa construção, do século XIX, contou com apoio do historiador alemão Leopold Von Ranke (1795 – 1886), quando afirmou que a História não nasceu ciência, mas foi transformada em uma disciplina científica. Ranke defendia o uso apenas de fontes escritas, baseadas no rigor científico newtoniano. Arqueologia, cultura material, iconografia não eram consideradas documentos ou fontes históricas. Leia Mais
Historia de las tierras y los lugares legendários – ECO (RHYG)
ECO, Humberto. Historia de las tierras y los lugares legendários. Barcelona: Lumen, 2013. 478p. Resenha de: GOICOVICH, Francis. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.30, p.199-201, 2014.
No han pasado muchos años desde que el escritor, filósofo y semiólogo italiano Umberto Eco nos deslumbrara con la edición deLa Historia de la Belleza y La Historia de la Fealdad, trabajos que se han consolidado como importantes referentes para la investigación histórica. Aunque mucho menos complejo y ambicioso que sus predecesores, el presente libro no deja de ser digno de atención: más expositivo que reflexivo, con la erudición característica de la mayoría de sus trabajos, es indudable que se convertirá en una importante obra de consulta para los estudiosos de las mentalidades y la cultura, entre muchas otras sub-áreas de la investigación histórica.
La paciencia y meticulosidad del trabajo archivístico queda plasmada en una lujosa edición plagada de ilustraciones y fotografías que enmarcan los eruditos párrafos en que se estructura cada uno de los textos. En sus líneas e imágenes, y a lo largo de quince bien documentados capítulos, cobran vida la vieja idea de la tierra plana, los parajes bíblicos, las Siete Maravillas del mundo antiguo, las conquistas y leyendas que envuelven a Alejandro Magno, el Paraíso Terrenal y El Dorado, el mito de la Atlántida, la esquiva tierra de Thule, el misterio del Grial, el País de Jauja, las islas de Utopía, la Terra Australis, la creencia en seres que viven al interior del planeta, la intrigante historia del pueblo francés de Rennes-le-Chateau, y los lugares nacidos de la pluma de los escritores y que han quedado anclados en el alma y mente colectiva, incluso de quienes no son asiduos a la lectura: las tierras visitadas por Gulliver o el piso en que moraba Sherlock Holmes son solo un ejemplo entre muchos. En términos formales, un mérito incuestionable del autor es que consiguió establecer un cuidado equilibrio entre los textos, de amena escritura como es característico de Eco, y las reproducciones artísticas, sin que unas opaquen el protagonismo de las otras. Leia Mais
A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950) / Durval M. Albuquerque Jr.
Podemos considerar Luiz Gonzaga como um dos muitos inventores do Nordeste, demonstrado em suas canções como lugar de tradições, do homem sertanejo sofredor em sua peleja cotidiana, enfrentando a seca, labutando na roça, lutando contra as agouras da vida. Esse mesmo sertanejo que se diverte e se encontra nos espaços das feiras nordestinas, um dos principais lugares de sociabilidade do homem nordestino, do comércio, da compra e venda “de tudo que há no mundo” e que “nela tem pra vender”.
Essa imagem caricata do Nordeste e do homem nordestino é refletida no último livro do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920 – 1930)3, vencedor do concurso Silvio Romero 2012 IPHAN/Conselho Nacional do Folclore e Cultura Popular.4 Atualmente, o autor é colaborador da Universidade Federal de Pernambuco e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Ao contrário do que se vê, se diz e se mostra, o autor propõe novas chaves de leituras e pesquisa sobre o Nordeste, espaço construído e delimitado já discutidos em outras obras.5 Como um lugar inventado a partir de um discurso que se repete hoje nos diversos meios de comunicação ao retratar, por exemplo, o Festival de Quadrilhas Juninas do Nordeste, ou Festival de Quadrilhas Juninas da Rede Globo Nordeste, ou ainda o Nordestão de Quadrilha, só para citar alguns casos, em que se representa a cultura legitimada por um discurso fabricador da imagem nordestina.
Em imagens, signos, são mitos de um lugar fabricado a partir do discurso de agentes que assumiram um posicionamento referente ao seu espaço regional. Conforme o estudo de Durval Muniz, que também teve motivos iniciais a partir de sua própria trajetória biográfica, ao trabalhar durante a adolescência em uma feira na cidade de Campina Grande no estado da Paraíba, e como homenagem a sua terra natal, por intermédio das reminiscências do espaço da feira como lócus privilegiado das muitas formas e significados elaborados sobre a cultura nordestina. A feira “da balburdia, do falario […] do aglomerado de pessoas, pela multiplicidade de vozes […] do mercado dos mais disparatados artefatos para serem consumidos” (p. 24) como cantado pelo rei do baião, Luiz Gonzaga.
Munido de um vasto referencial teórico,6 as questões sobre a fabricação do folclore e da cultura no nordeste, em um recorte temporal que não se restringe apenas as décadas de 1920 a 1950, mas que margeiam por temporalidades anteriores, num processo que se construiu desde o final do século XIX, época da crise dos setores agrários e a quebra do sistema escravista para o regime de trabalho livre no Brasil. Essa será umas das teses propostas por Albuquerque que pensa as manifestações folclóricas, os conceitos de cultura não como algo dado, mas como algo construído, desta forma, critica amplamente a historiografia que aborda o folclore e a cultura popular que “tende-se a confundir o conceito e a coisa, o conceito e a materialidade, o conceito e a empiricidade, o conceito e a forma” (p. 27).
Para Durval é necessário perceber a diferença entre conceitos e formas para se proceder a análise da operação discursiva que articula um e outro. Deste modo recorre aos estudos de Derrida (Pensar a desconstrução) e Foucault (Arqueologia do saber) para questionar a ingenuidade dos historiadores que faz com que normalmente confundam as empiricidades com os conceitos que as significam.
O livro é dividido em seis capítulos. No primeiro, “condições históricas de emergência”, o autor faz um inventário do processo de constituição cultural nordestina, como um novo objeto que será construído a partir de práticas e discursos, sejam eles da elite ou dos segmentos das camadas tidas como populares.
Ao delimitar o final do século XIX e início do XX como marco de profundas mudanças sociais no Brasil, surge nesse momento os primeiros usos da noção de cultura nordestina. Com o surgimento da sociedade burguesa e todas as distinções dos modos de vida que esta proporcionou, apresentando novos padrões de comportamento, nasce então uma “nostalgia pelo retorno a essa ordem social, vista como menos violenta, como mais harmônica e mais justa, e será partilhada por setores das camadas populares e das elites letradas, o que contribui para o encontro entre eles e com esse encontro a emergência da ideia de folclore ou de cultura popular” (p. 44).
As relações entre o regional e o nacional a partir da cultura legitimam-se quando o Estado Nacional assume com políticas econômicas as manifestações identitárias de cada região, sobretudo, se tomarmos como exemplo a partir do Estado Novo na década de 1930 e a criação de órgãos de proteção do patrimônio nacional.
No segundo capítulo aborda os mitos de origem da cultura nordestina interligada à construção da ideia de cultura brasileira quando se pensou um projeto de constituição da nação. Para o mito de origem do folclore ou da cultura nordestinos, e ao que parece o autor não faz distinção dos conceitos, toma como base a produção de folcloristas regionais. Uma bibliografia que aponta as primeiras obras que trataram da cultura nordestina ainda no século XIX, como as de Juvenal Galeno, Couto de Magalhães e Celso de Magalhães.
Os mitos de origem para os estudos de folclore e cultura popular estiveram atrelados a duas tradições influenciadoras nos estudos de folclore nordestino. Uma de inspiração romântica que, segundo o autor, estabeleceu a relação entre a cultura nacional e cultura popular, dando origem ao conceito de povo. No Brasil, Durval Muniz aponta o folclorista Juvenal Galeno como um dos precursores ao fazer uma genealogia dos estudos em torno da cultura nordestina. A segunda tem como representante Silvio Romero, de características positivista e evolucionista. Tais paradigmas tiveram grande recepção ao longo da produção folclórica no Brasil, tendo sido esses intelectuais os primeiros a fazerem uma releitura da bibliografia internacional, adaptando-as às pesquisas locais sobre a cultura do povo.
Tais tradições foram marcantes ao produzirem constante material para a elaboração da noção de cultura nordestina. A temática será retomada e explorada nos capítulos 04 e 05 quando o autor faz um levantamento dos dados biográficos dos produtores dessas obras e as fontes utilizadas como legítimas para a fabricação do folclore.
Os Acontecimentos no capítulo três referem-se aos casos e acasos dos primeiros autores que empregaram a denominação “Nordeste”, “Nordestino”. É importante destacar que o livro de Durval Muniz insere-se no contexto de análise da cultura escrita, por isso, não foge de suas interpretações do processo de fabricação da cultura nordestina, os procedimentos que, através da literatura regional, definiriam temáticas desta cultura.
É no processo de construção das obras e seus usos que o autor se debruça ao analisar os contextos de produção do livro do folclorista Leonardo Mota, publicado em 1921, com o subtítulo “poesia e linguagem do sertão cearense” e que em edição posterior a obra é apresentada como “poesia e linguagem do sertão nordestino”. Enquanto análise histórica, é preciso reconstruir as variações que diferenciam os espaços legíveis, ou seja, as formas discursivas e materiais, as leituras compreendidas como práticas concretas e como procedimento de interpretação7.
Ao tomar como análise a produção da obra de Leonardo Mota, Durval demonstra as variações que implicaram na ideia de nordeste incorporada nas obras dos folcloristas. A mudança do subtítulo deu-se, segundo Albuquerque, após encontros e debates que se firmaram em torno do Centro Regionalista do Nordeste criado no Recife durante a década de 1920 e que passou a disseminar essas questões. Outro autor é Gustavo Barroso e também o sergipano João Ribeiro que adota em livro publicado a denominação “Norte” para se referir ao que seria o espaço da região como um todo e, explicitamente, refira-se a “Nordeste” para designar a área de ocorrência das secas (p. 106).
Deste modo, percebemos o folclore em seu momento de fabricação, como algo inventado pelo próprio folclorista, num processo de (re) invenção, de criação (p.115). Ao citar diversos acontecimentos que dão conta da fabricação do folclore enquanto elemento constituinte de uma cultura nordestina, demonstrada a partir de autores regionalistas, onde definem seu lócus de atuação no espaço nordestino, para Durval Muniz, é “entre os anos 20 e 30 do século passado, que a emergência da ideia da existência de um folclore nordestino, de uma cultura nordestina, se afirma paulatinamente, até se tornar uma verdade inquestionável, um fato do qual ninguém mais escapa” (p. 117). O autor, assim, demonstra “genealogias de atitudes, práticas, ditos e escritos que vão paulatinamente dando forma a este novo objeto para o saber que é: o folclore nordestino, a cultura do Nordeste, mais tarde nomeados de cultura popular nordestina” (p. 117).
No capítulo 4, Os inventores, é lançado um ensaio de prosopografia dos letrados que adotaram os conceitos de folclore e de Nordeste. A prosopografia, segundo Giovanni Levi, ocorre nos casos em que as biografias individuais “ilustram os comportamentos ou as aparências ligadas às condições sociais estatisticamente mais frequentes”.8 Nesse capítulo, podemos perceber os laços de cooperação entre os folcloristas que adotaram a noção de folclore nordestino, ao passo em que fora analisado de modo geral “as atitudes e trajetórias individuais que terminam por configurar uma ação coletiva” (p.120).
O autor contextualiza com base nos estudos foucaultianos dos “pontos de cruzamento […] das redes de relações pessoais, sociais, culturais, políticas e intelectuais” (p. 121), ao buscar nos traços ou dados biográficos uma imagem de conjunto dos folcloristas responsáveis pela fabricação do folclore e cultura nordestinos.
A discussão inicialmente toma como base os quatro autores considerados pioneiros quanto ao tema do folclore do Nordeste: Gustavo Barroso, Leonardo Mota, José Rodrigues de Carvalho e Luís da Câmara Cascudo, buscando traçar um “perfil de conjunto”. Em seguida, confronta com os traços biográficos dos intelectuais que viveram anteriormente a estes citados, interessados pelo popular, que foram posteriormente por eles utilizados e citados como os precursores dos estudos do folclore nordestino, sendo eles Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa. Por último, traça os dados daqueles que deram continuidade ao trabalho, reafirmando e reatualizando o conceito de cultura nordestina, como Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maio, contemporâneos no século XX.
Os inventores da cultura nordestina, os chamados pioneiros têm em comum suas trajetórias o pertencimento às elites sociais e políticas de seus Estados, articulados por vínculos de parentesco e/ou compadrio com as oligarquias dominantes nestes espaços, demonstrando logo em seguida o perfil dos intelectuais inspiradores desse grupo, elementos de contato e de continuidade, seja pela formação seja pelo pertencimento do mesmo grupo social, político e cultural.
Já aqueles que se interessaram pelas formas e matérias de expressão das camadas populares e serviram de inspiração para os pioneiros, Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa, têm como ponto comum o pertencimento à elite agrária decadente, onde em seus perfis elitistas demonstram um interesse inicialmente pelo estudo do popular. O autor coloca que os discípulos ou seguidores dos pioneiros foram os responsáveis por ampliarem, reafirmarem e darem legitimidade ao folclore nordestino, são eles: Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maior. Estes acabaram por assumir a tarefa de elaborar o que seria o folclore e a cultura popular de seus Estados, “ao mesmo tempo em que vão inseri-los no interior da identidade regional nordestina […] estes folcloristas assumirão a tarefa de incorporar o folclore de sua terra natal no interior do que seria a cultura regional ou nacional”. Esse era o contexto de produção do folclore, ao passo que instituições foram criadas com parâmetros de nacionalização de uma cultura integradora9.
Durval Muniz a partir dessa prosopografia busca visualizar o lugar social de produção do discurso acerca da cultura nordestina. O autor ao selecionar os folcloristas limita a fabricação do folclore e da cultura popular nordestina aos espaços de sociabilidades desses intelectuais, particularizando em seus estados, como Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas. Talvez isso se justifique pelo acesso às fontes produzidas por eles, em grande parte produtores de uma vasta obra sobre a cultura popular. Apesar disso, o estudo abre possibilidades de se ampliar as discussões com base em novas pesquisas sobre os estados não contemplados ao longo do livro.
No sexto e último capítulo, o autor discorre sobre as trajetórias de alguns agentes populares que contribuíram também para a emergência do que seria a cultura nordestina. Ao visitar essas trajetórias, como a de Leandro Gomes de Barros, considerado o primeiro cordelista nordestino e o primeiro produtor de folhetos a viver do seu ofício, e a de João Martins de Athayde, outro ícone da poesia popular, ao montar uma tipografia e imprimir seus próprios versos, o autor considera-os parte de uma importante “indústria de folhetos”, resultante do processo de mudança capitalista emergente na sociedade do final do século XIX e início do XX, onde aproveitaram as oportunidades mercantis da cultura, para sua subsistência. A prática desses homens, que não faziam parte da elite decadente, demonstra, segundo o autor, como sendo “atividades que criam o novo, utilizando-se de e remanejando um arquivo de matérias e formas de expressão que conhecem e que está à disposição desses agentes culturais, a partir do aproveitamento das condições novas oferecidas pela sociedade urbana de mercado” (p. 201).
Deste modo, são ressignificados a própria noção de “popular” e “povo” que, para Albuquerque, acaba se tornando complexa quando se leva em conta somente o público para o qual eram dirigidos os folhetos ou cordéis, seus preços, temas, mas ao adotar, por exemplo, a condição ou origem social de seus produtores e/ou editores, “a noção de popular já não será tão adequado” (p. 217). Para o autor, isso é um reflexo da emergência de uma classe média baixa “fruto do declínio de setores das antigas elites rurais ou da ascensão de dados indivíduos das camadas populares […] nomeadas de tradicionais, folclóricas […] que gozarão de maior espaço de ação […] onde suas habilidades estarão voltadas para o sustento (p. 218), como é o caso de Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e tantos outros de que não se tem um estudo específico.
Por fim, ao concluir um trabalho que deixa em aberto várias chaves de leitura e pesquisa, o autor lança uma crítica ferrenha aos estudiosos da cultura popular, sejam eles acadêmicos ou os próprios folcloristas. Durval Muniz critica o que ele chama de “síndrome de resgate” existente nos estudos de cultura popular ou organizações de grupos e manifestações classificadas como folclóricas, onde imperam a noção de resgatar das tradições, sem ao menos se fazer a crítica à volta ao passado através de manifestações populares no presente, tidas e entendidas por aquele como seriam praticadas anteriormente. A prática dessas manifestações no presente, tomada como a possibilidade de retorno do tempo, para Durval Muniz, é o principal mito com que opera essa síndrome.
Embora a crítica deste estudo esteja voltada às interpretações que se fazem do folclore e da cultura popular nordestina, o autor as reconhece como importante, pois permite a reflexão de todo o processo de fabricação da cultura, das práticas e operações as quais dão origem e significados e, consequentemente, implicam diversas formas de seu uso. Como último exemplo, podemos retornar ao rei do baião, como um de muitos que ao longo do século XX tornou-se um propagandeador da cultura nordestina fabricada pelos pioneiros e seguidores apontados ao longo da Feira dos mitos. Um livro indicado para os estudos sobre cultura escrita, sobretudo, do ponto de vista teórico-metodológica, onde o autor refaz os caminhos da pesquisa e seus métodos de análise, é fundamental para repensarmos os conceitos em torno do Nordeste. De maneira impactante, põem em questão estereótipos, “verdades” construídas.
Notas
- ALMEIDA, Onildo. A Feira de Caruaru In: Luiz Gonzaga. LP, 1957.
- ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p.
- O Concurso instituído no ano de 1959 foi idealizado com o propósito de estimular a produção de conhecimento científico sobre os diversos temas do folclore e da cultura popular. Lançado anualmente por edital confere ao primeiro e segundo colocados prêmios pagos em dinheiro, prevendo-se, ainda, até três menções honrosas, selecionadas por comissão de especialistas indicados pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Disponível em: < http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=52> Acesso em: 29 junh. 2014.
- ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877 – 1920). Campinas: Unicamp, 1988 (Dissertação de Mestrado em História); A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2011.
- Jaques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Michel de Certeau, Reinhart Koselleck e outros.
- CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UNB, 1994.
- LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da História oral. 8 ed. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006, p. 168-169.
- Para mais detalhes sobre o processo de institucionalização dos folcloristas, cf. ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas. Editora Olho d’água, S.D; VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947–1964). Rio de Janeiro: FUNARTE: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
Valério Rosa de Negreiros – Mestrando em História Social. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. valerionegreiros@yahoo.com.br.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p. Resenha de: NEGREIROS, Valério Rosa de. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.18, p.318-324, 2014. Acessar publicação original. [IF].
Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional – GRAMMONT (Bo)
GRAMMONT, G. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Resenha de: GARNICA, Antonio Vincente Marafioti. Da Historiografia: campos, mitos, biografias. Bolema, Rio Claro, n. 34, p. 283-294, 2009.
“Toda vida narrada, biográfica ou auto-biográfica, é sempre habitada por uma dupla tentação: transformar os acasos e imprevistos de uma existência numa implacável necessidade; sustentar, com irredutível singularidade, o que foi um destino fragmentário.” (Roger Chartier)
“It ain’t necessarily so
It ain’t necessarily so
De things dat yo’ liable to read in de Bible
It ain’t necessarily so
/…/
Dey tell all you chillun de debble’s a villain But ‘taint necessarily so.”
(Gershwin)
Na apresentação ao recente livro de Guiomar de Grammont – sua tese de doutorado em Literatura Brasileira defendida na Universidade de São Paulo em 2002 – Roger Chartier sensatamente avalia o trabalho como uma demonstração de que “é possível escrever a história sem ficar prisioneiro de fórmulas herdadas”. O tema, bem como o esboço de cada um dos cinco capítulos, vem explicitado na Introdução da autora: “Esta não é a história de um personagem. É a história de uma imagem que se desdobra em outra e outra”. Trata-se, portanto, não de apresentar Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e suas obras, mas de descortinar a trajetória que alçou o personagem à condição emblemática de mito, herói nacional, genial expressão do espírito barroco. Os mitos e heróis são predestinados a serem e fazerem aquilo que se deseja que sejam e façam, sendo suas existências atestadas, grande parte das vezes, à revelia de documentação que as sustente. Uma vasta busca em arquivos e uma cautelosa análise das referências bibliográficas fundadoras da mitificação permite à autora afirmar que a história do Aleijadinho (e de sua obra), “reconstituída, na medida do possível, apenas a partir dos dados que se encontram nos documentos, resulta prosaica e comum, muito menos espetacular do que se supunha. Como costuma ser, aliás, a maior parte das vidas humanas.” O tom configurador desse mito barroco é inaugurado pelo texto de Rodrigo José Ferreira Bretas1, obra meticulosamente analisada pela autora.
Fundado em 1838 e tendo como patrono o imperador Pedro II, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) esforça-se para iniciar uma historiografia nacional, da qual necessariamente faria parte o resgate de personagens, localidades e eventos que, em seu conjunto, definiriam “a” identidade nacional. O IHGB, com a intenção enunciada de apropriar-se do passado como fonte de experiência que visasse a uma sustentação para o futuro da Nação, praticava uma história teleológica, não só “conferindo ao historiador um papel central na condução desse fim último, que seria o patriotismo, o amor pelas instituições monárquicas e o sentimento religioso” como também, nas palavras de Lilia Schwarcz, “nas mãos de uma forte oligarquia local, associada a um monarca ilustrado, o IHGB se autorepresentará, nos certames internos e externos, enquanto uma fala oficial em meio a outros discursos apenas parciais”. Nesse cenário não é estranha a criação de um prêmio, em 1842, aos melhores trabalhos estatísticos e históricos sobre as províncias brasileiras. Particularmente interessantes seriam as notas biográficas sobre nossas “celebridades”, das quais surgiria um panteon de heróis nacionais. Tendo ou não sido escrita com a intenção específica de permitir a Bretas o ingresso no IHGB, o certo é que a obra sobre o Aleijadinho abre a ele as portas do Instituto, do qual passa a fazer parte como sócio-correspondente.
A obra de Bretas cria o Aleijadinho e torna-se não um texto a ser lido segundo a perspectiva da ficção – como são os retratos biográficos encomiásticos – mas como uma síntese documental encorpada com fontes orais e, portanto, a descrição de um conjunto de “fatos reais”. E “o retrato realizado por Bretas não apenas servirá à invenção romântica do artista como monstruoso gênio que a doença teria tornado taciturno e solitário, mas também provocará leituras da obra do monstro como retrato expressivo da sua personalidade atormentada. /…/ Na urgência de destacar um personagem da massa anônima dos artesãos coloniais, já não se sabe quem é autor, quem é obra”. O Aleijadinho de Bretas carrega a pesada cruz dos heróis, cujos destinos são sempre acompanhados de provação e dor. O sofrimento é condição essencial para que os consumidores de mitos reconheçam, nesses heróis, sua própria finitude e com eles sejam solidários, tornando-se co-criadores e perpetuadores dos heróis, apropriando-se inclusive de sua redenção e vitória sobre o mal. “Em Bretas”, afirma a autora, “já se inicia a associação entre o artista sofrido, martirizado (como Cristo, naturalmente) e a idéia, germinal, de nação. Aleijadinho e a nacionalidade brasileira nascem juntos na mesma manjedoura, ou seja, envoltos pela força da Igreja, força que atravessou, incólume, um século XIX de transição para a República, marcado por conflitos sangrentos, mas setorizados. Aleijadinho chega quase a tornar-se um mártir a serviço da pátria: ‘jazeu por quase dois anos, tendo um dos lados horrivelmente chagado, aquele que por suas obras de artista distinto tanto havia honrado a sua pátria!´.”
Embora a documentação existente não dê garantias sobre a paternidade do Aleijadinho, Bretas a atribui a Manuel Francisco Lisboa, artesão branco e relativamente reverenciado nas Minas dos Oitocentos: “Na sociedade rigidamente hierarquizada de então, o ‘homem bom’ é aquele que tem um bom nascimento. O filho de um homem sábio e honrado será necessariamente sábio e respeitado2. Além disso, note-se que, ao fazê-lo, Bretas dá a seu personagem uma origem branca, que o dignifica, mesmo no século XIX, quando, supõe-se, essas clivagens raciais fossem um pouco mais tênues do que no século anterior”.
Também os viajantes, interessados em explorar a exótica terra brasilis e descrevê-la a seus conterrâneos, criam uma imagem da arte mineira e, por conseguinte, operam no sentido de atribuir uma identidade ao Brasil frente ao mundo civilizado que representam. Essa visão estrangeira será por vezes negada e por vezes servirá de fundamentação aos modernistas, nas primeiras décadas do século XX, ainda que sustentando discursos em sentidos distintos: “No discurso dos viajantes do século XIX, como Saint-Hilaire, Burton, Eschwege e outros, observamos sempre a comparação implícita com manifestações artísticas e monumentos europeus, para fornecer imagens verossímeis, que possam aproximar mais da visão de seus leitores aquilo que descrevem. A comparação, contudo, sempre é efetuada segundo um padrão de inferioridade da colônia americana em relação à Europa /…/. No discurso modernista, o movimento é contrário: a ordem é revalorizar a arte local para integrá-la no vasto programa de ‘redescoberta’ das raízes da arte brasileira, enfatizando aspectos como a miscigenação racial e cultural, projeto no qual foi integrado o mito do Aleijadinho. O que chamamos de ‘redescoberta’, contudo, em nossa perspectiva, significou, efetivamente, a invenção de um país que é o Brasil modernista, baseado na invenção das raízes culturais. O barroco teria um papel fundamental na constituição dessas ‘raízes’.”
Para o viajante estrangeiro, as artesanias nacionais sempre foram arremedos da alta arte praticada nos países “centrais” dos quais provinham; interessava-lhes mais a fauna e a flora exóticas e as possibilidades que elas abriam ao desenvolvimento das ciências européias. Os relatos dos viajantes, entretanto, convém notar – como ressalta a própria autora – “costumam ser utilizados como fontes históricas ‘primárias’, capazes de fornecer informações de ‘primeira mão’ sobre os acontecimentos. Raramente essas obras são analisadas como ficção literária em si mesmas /…/. Não são apenas ‘fontes históricas’, mas fontes privilegiadas, em acordo com o pressuposto positivista de que a distância conferiria certa ‘imparcialidade’ ao olhar.” O modernismo, ao contrário, tenderá a valorizar as produções nacionais, ávido por repensar nossa identidade. O projeto de constituição dessa identidade, entretanto, afasta-se daquele anteriormente praticado pelo IHGB que era, ao mesmo tempo, uma continuidade da tradição ilustrada já iniciada no século XVIII e uma alteração quanto aos seus objetivos: no século XIX, o IHGB “tinha o objetivo completamente novo de produzir uma reflexão sistemática sobre os problemas da nação e do Estado emergentes, como um projeto civilizatório de uma elite, uma vez que /…/ a maior parte de seus membros pertencia aos aparelhos burocráticos e administrativos da hierarquia dominante no Império.” Apostando na construção da idéia de Nação num momento em que a escravidão ainda existia e parametrizado por uma visão de História apoiada na noção de progresso, não caberia identificar a cultura nacional a uma arte produzida por mulatos e indivíduos situados em escalas sociais inferiores (daí a necessidade, em Bretas, de “clarear” Antônio Francisco Lisboa e aproximá-lo da casta mais nobre, atribuindo-lhe um pai branco e até certo ponto endinheirado). Os “mitógrafos do império” tenderão, de forma mais ou menos clara, mais ou menos explícita, a desvalorizar a arte barroca ou jesuítica. No Modernismo, ao contrário, a intenção de repensar a identidade nacional não teme a aproximação com a discussão sobre a identidade racial: torna-se visceral a idéia da pluralidade étnica e, conseqüentemente, passam a ser valorizadas as contribuições dadas pela mistura de raças diferentes, ainda que as relações entre o Modernismo (leia-se Mário de Andrade) e o Estado Novo (leia-se Gustavo Capanema) não tenham sido totalmente cordiais principalmente devido ao desacordo quanto a essa questão das etnias raciais3. Do modernismo surge o Aleijadinho mulato genial, representante de uma artesania emblemática que simbolizaria a riqueza e a originalidade da arte brasileira, expressão mesmo da “alma nacional”.
Se os três primeiros capítulos do livro de Guiomar de Grammont voltam-se mais à biografia (lacunar) e à constituição do mito do artista genial a partir dessas caracterizações biográficas e interesses diversos, o capítulo quarto inicia uma discussão mais pormenorizada sobre a produção do Aleijadinho que, se já havia sido evocada nos capítulos anteriores – dada a vinculação sempre estabelecida entre autor e obra – começa então a ser tratada com mais detalhamento. O pressuposto da autora, enunciado já no primeiro parágrafo do capítulo, é o de que técnicos e historiadores da arte, via-de regra, operam “sem questionar a historicidade das categorias nas quais se baseiam para construir seus objetos. Fundamentando-se em pressupostos como ‘estilo’, ‘autoria’, ‘diretos autorais’ etc., os críticos costumam analisar obras de tempos e lugares diferentes do seu, aplicando, anacronicamente, categorias de análise contemporâneas.”
A noção de autoria – cujas origens Foucault supõe radicadas no final do século XVIII e início do século XX e que Chartier, preenchendo as lacunas cronológicas deixadas por Foucault, fixa no começo do século XVIII – pressupõe a construção de um autor que, de alguma forma, teria a prerrogativa de propriedade em relação a sua obra. Ainda que atualmente a idéia de autoria – em vários campos, mas principalmente no da arte, onde autoria está diretamente vinculada à questão financeira – nos seja usual, ela só é consolidada no século XVIII, embora tenha começado a desenhar-se na idade média (“com o revivescimento das cidades [e] a conseqüente formação das corporações de ofícios”) e fortalecida durante o Renascimento. Certamente a autoria encontra ressonância e tem sua importância maximizada num mundo que transforma tudo em mercadoria. Os ateliers mineiros do século XVIII, entretanto, funcionavam como uma coletividade produtora de obras cuja execução era “arrematada” em leilões pelos mestres desses núcleos que congregavam os mais distintos artesãos. Dessa feita, os mestres coloniais seriam bons negociantes, mas não necessariamente os artistas mais hábeis de sua corporação. Sem ater-se a esses “pormenores”, a atribuição de obras ao Aleijadinho passou a ser feita a partir de um suposto “estilo próprio”, categoria bastante interessante ao ideal onipresente de destacar, dentre a multidão de artífices mineiros, os criadores originais e, dentre eles, o genial criador dentre os criadores. Do estilo Aleijadinho, segundo os críticos, destacam-se, “além dos polegares na mesma posição dos outros dedos, /…/ os olhos amendoados, o furo no queixo, o nariz afilado com as ventas bem marcadas, as maçãs salientes do rosto; os bigodes e a barba bem delineados, apontando para baixo, barba partida no queixo /…/ etc.” O estilo é a norma a partir da qual todo o resto é definido como mesmice e vulgaridade. A discussão sobre os parâmetros que dariam conta da autenticidade da obra, assentados em princípios anacrônicos, despreza tanto as lacunas documentais relativas às obras quanto despreza as condições reais de produção à época: “em um tempo em que a locomoção de uma cidade a outra não era nada fácil, Aleijadinho teria trabalhado em cerca de trinta igrejas em diversas cidades de Minas, e realizado um número incalculável de pequenas imagens, oratórios, castiçais etc. Quantos artífices anônimos não se ocultam sob a sombra desse mito?”.
Junto aos critérios de autoria e estilo surge, para os historiadores da arte, a difícil questão da originalidade. Estudos sobre Manoel da Costa Ataíde mostram claramente que a originalidade não era um critério a nortear os trabalhos dos artífices coloniais. Há evidências eloqüentes quanto à existência de modelos prévios, gravuras e desenhos comercializados e/ou disponíveis em bíblias e outras obras. A originalidade do Aleijadinho – defendida chamando à cena seu autodidatismo, suas limitações físicas, a enorme produção em um período de tempo tão exíguo – sempre foi uma prova de sua genialidade. Há que se considerar, entretanto, que não há prática – artística ou qualquer que seja – genuinamente autóctone, e as evidências face às cópias e emulações naturais à artesania colonial levaram a uma redefinição no conceito de originalidade de modo a perpetuar mitos de genialidade artística: aos originais, o artista genuinamente genial agrega características próprias, que definem a arte nacional frente aos modelos importados. As igrejas de Aleijadinho, por exemplo, seriam “borromínicas”, mas sua apropriação do estilo seria nova e consistiria em algo totalmente diferenciado.
“Em sua definição contemporânea” – afirma Chartier logo na apresentação do livro – “a obra [de arte] supõe a originalidade da expressão, fortes relações entre as experiências do artista e suas criações e a inalterável propriedade do criador sobre os produtos de sua imaginação. É sobre tais categorias que, a partir do século XIX, foram escritas as histórias da literatura, da pintura e da escultura”. Aplicadas anacronicamente à produção artística de um escultor (ou de vários escultores) mineiro do século XVIII, esses postulados vão se conformando para sustentar a genialidade de um personagem intencionalmente constituído para louvar a nação e provê-la com uma identidade. Na confluência desses fatores tantos surge um Aleijadinho inventado a partir de documentos que, ao mesmo tempo, servem para diferentes fins, “na medida em que se imponha a eles a interpretação desejada”. Constrói-se, pois, o Aleijadinho, e tal construção – alerta Chartier – atua como um silogismo: “Aleijadinho é o escultor barroco por excelência; o barroco é a expressão mais completa da identidade brasileira; portanto, o barroco é a nação brasileira em sua essência e Aleijadinho seu profeta, reconhecido como tal pelo Estado e suas instituições. Guiomar de Grammont retira (como se diz em relação à restauração de um quadro) as diferentes camadas de verniz depositadas sobre o traço histórico do Aleijadinho”.
O que justifica, entretanto, uma resenha deste trabalho, elaborado em searas aparentemente tão distantes, num Boletim de Educação Matemática?
A aproximação de outros campos de produção cultural e acadêmica – temos defendido – é vital para repensarmos nossas próprias práticas e, num processo de apropriação criativa, dão novo fôlego e permitem a configuração de novos rumos às nossas investigações. Assim, alguns elementos claramente perceptíveis no livro de Grammont podem, sim, servir de guia principalmente aos que atualmente exercitam-se na interface entre História, Matemática e Educação Matemática.
Como primeira contribuição, aponta-se a clareza com que a autora – e o prefácio de João Adolfo Hansen, orientador da pesquisa que originou o livro – explicita a posição do IHGB que, como sabemos, é uma das matrizes – se não a matriz – da historiografia nacional e, especificamente, da historiografia da Educação. Não parece ser vão entender os mecanismos de favores e interesses que sustentavam o projeto historiográfico elitista e teleológico do Instituto, afinando-o como um aparelho ideológico cuja função precípua era inventar a nacionalidade de modo a propagar os valores imperiais. São, essas, algumas das raízes do nosso modo de conceber e produzir História, e aliar-se ou afastar-se dessas intenções talvez seja uma opção mais adequadamente feita ao se analisar versões sobre suas “origens”. Note-se, entretanto, que nem todas essas versões sobre o IHGB são tão radicais. A reportagem “Os inventores do Brasil”, de Lorenzo Aldé, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional em comemoração ao aniversário de 170 anos do IHGB, relativiza a situação do Instituto e seus sócios em relação à tutela do Império: “D. Pedro II foi assíduo freqüentador dos debates. O fato de ter o imperador como patrono e mecenas costuma render à instituição o rótulo de ‘chapa branca’. Embora não haja dúvidas sobre o monarquismo do IHGB no século XIX, essa impressão soa anacrônica, segundo Lúcia Guimarães: ‘Era um espaço de contraposição de interpretações. As idéias eram debatidas, não impostas. A versão sobre a independência que se consolidou nos livros didáticos tinha opositores no Instituto. Varnhagen combatia a idéia de que o episódio tinha sido fruto da vontade de José Bonifácio, D. Pedro I e do povo’ /…/. Ou seja, a idéia de ´chapa branca´ faz sentido atualmente, mas não é adequada para se pensar um tempo em que os contornos do Brasil mal existiam. Literalmente falando. Em 1841, convocado ao Parlamento para expor informações sobre os limites do país, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Aureliano de Souza Coutinho, teve que confessar que…não sabia. Quando D. João voltou para Portugal, em 1821, levou com ele os mapas originais.”
Nas práticas do IHGB ficam claras as intenções quanto à construção de um panteon nacional de heróis a partir de biografias. O fascínio pelas biografias, entre alguns, perdura até hoje, e por vezes a elaboração de descrições de personagens e situações “como realmente ocorreram” confunde-se com a própria função da historiografia. Dos livros didáticos (inclusive dos de Matemática) provêm grandes contribuições para a divulgação dessa concepção distorcida de história. A “ilusão biográfica”, expressão cunhada por Bourdieu, nos dá “a ilusória unidade de uma identidade específica, aparentemente sem contradições, mas que não passa de uma máscara sob a qual se oculta uma miríade de fragmentos e versões. A utopia biográfica”, continua Grammont, “é a ilusão de que a narrativa pode reconstituir autenticamente um destino”. Esforços contemporâneos, portanto, têm a intenção de “desnudar essa utopia, de desconstruir – a contrapelo – uma história tornada verdade pela repetição e por sua adequação aos diversos interesses de momentos específicos da historiografia brasileira”. O desnudamento da utopia, porém, implica trazê-la à cena: por que as verdades fabricadas deveriam ser rechaçadas, postas à margem do histórico? Não somos também as verdades que nos impomos e segundo as quais pretendemos ou quereríamos viver? Qual o problema em aceitar o relato de uma vida que se faz relato exatamente para que o passado seja purgado, para que o presente seja mais aceitável? Tal relato não nos diz tanto quanto o relato que o nega? E ainda que alguma checagem fosse feita, ainda que alguma divergência nos surgisse no processo mesmo sem checagem alguma, não seria mais produtivo indagar-se por que essa divergência? O que ela nos ensina sobre o sujeito, sobre suas verdades, sobre seu tempo e seu modo de constituição do mundo? Recentemente numa revista nacional de grande circulação debatia-se, na seção de cartas dos leitores, sobre a autoria da conhecida frase “O Brasil não é um país sério”. Foi Charles De Gaulle, afirmam alguns. Foi Celso Vieira, embaixador brasileiro na França, rebatem outros. Foi um assessor de De Gaulle? Foi Carlos Alves de Souza, embaixador em Paris? Perguntaríamos: o que faz com que o eco dessa frase ressoe tão significativamente até hoje? Por que esse fascínio com uma autoria? O que esse fascínio nos revelaria? Que percepção de país a frase nos permite vislumbrar? Na História da Matemática, Gauss realmente determinou com presteza, quando ainda criança, a soma dos cem primeiros naturais? Como saber? Como garantir a isenção dos biógrafos de Gauss? Por que essas perguntas afetam de modo tão inclemente os historiadores da Matemática? Não seria mais operativo perguntar-se que tipo de concepção essa afirmação – e sua trajetória pelos tempos – desvela? Qual Gauss esse registro permite construir? Qual Gauss esse registro quer construir? Obviamente, na esteira de uma história-problema, não se negam as questões: afirma-se a necessidade de analisá-las sob diferentes perspectivas.
Ademais, a criação de mitos e heróis para defender posições e construir verdades “compartilhadas” não é nova, não foi inventada pelo IHGB, nem termina com o Império.
Joaquim José da Silva Xavier – apelidado Tiradentes pela habilidade em arrancar dentes sem ter formação específica para isso – é um dos maiores heróis nacionais, tido como mártir do movimento que levou o Brasil à independência de Portugal. Tiradentes foi enforcado no Rio de Janeiro em 21 de abril de 1792. Tanto sua biografia quanto os traços de seu caráter são incertos, vagamente registrados: de Tiradentes não conhecemos um esboço fisionômico confiável, nem podemos decidir se foi um consistente revolucionário ou apenas uma personagem útil às causas da República implantada no país em 1889. Dentre tantos revolucionários de biografia mais documentada, com configuração de caráter e fisionomias menos lacunares, foi Tiradentes o escolhido a representar o sucesso da causa republicana: tão logo proclamada a República, já o dia 21 de Abril de 1890 foi feriado. O regime militar, em 1965, declarou Tiradentes “Patrono da Nação Brasileira”.
Os espaços em branco no registro de sua trajetória permitiam que ele fosse visto por uns como o defensor dos valores que os militares pretendiam representar e, por outros, como um revolucionário contrário aos valores defendidos pelos militares. Sobretudo, agradava à população a fusão de dois aspectos – o Tiradentes herói defensor da Pátria e o Tiradentes ícone religioso que, como um quase-Cristo protagonizou uma paixão, percorrendo seu calvário. Mas, principalmente – e este é o traço que pretendemos realçar – Tiradentes havia nascido no estado de Minas Gerais. Ao contrário de outros estados brasileiros onde viveram grandes revolucionários, defensores das causas da Pátria, Minas Gerais constituiria, já em meados do século XIX, com os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, o centro político do país.
IHGB, Modernismo, Império, República, Tiradentes, Aleijadinho… em tantas alterações, quantas permanências. Face a essas observações, mantemos (e defendemos como legítima) a posição de que se escreve história a partir da detecção e análise dos mecanismos – ora contrários, ora complementares – que sustentam alterações e permanências, de que é possível escapar à sina de escrever História a partir de estratégias consagradas – muitas vezes pelo senso comum –, apostando na história-problema, querendo com isso significar que “a história não deveria ser propriamente vista como uma ciência do passado, mas como uma disciplina que procuraria estabelecer um ‘diálogo do presente com o passado, e no qual o presente tomaria e conservaria a iniciativa’”, como aponta Miguel. Essa não é, definitivamente, uma posição hegemônica dentre aqueles que, em Educação Matemática, se inscrevem na região cujas preocupações orbitam no binômio História – Educação Matemática. Dentre as tantas justificativas possíveis, essa talvez seja a que mais eloqüentemente indique a pertinência da leitura, entre nós, educadores matemáticos, do livro de Guiomar de Grammont.
Notas:
1 Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa (o Aleijadinho), publicado no Correio Oficial de Minas em 1858.
2 Segundo a autora, o postulado de que os filhos se assemelham a seus pais está radicado na noção de genus, da retórica de Quintiliano que Bretas – especialista em retórica – certamente conhecia.
3 Segundo Guiomar de Grammont, o projeto do governo Vargas propunha a erradicação das raças, ao contrário do Modernismo que defendia a integração e louvava a miscigenação: “Houve, então, um prepotente esforço do governo nacionalista de criar as bases de um novo conceito de nacionalidade por meio da educação, da cultura e de versões oficiais da história, visando, pela unificação da língua e padronização do ensino, à ‘erradicação das minorias étnicas, lingüísticas e culturais’ em todos os níveis.”
Referências
ALDE, L. Os inventores do Brasil. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 4, n. 39. Rio de Janeiro: Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional, pp. 56-61. Dez./ 2008.
CARVALHO, J. M. de. A Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GRAMMONT, G. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
HORTA, J.S.B. O hino, o sermão e a ordem do dia: a educação no Brasil (1930-1945). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.
NEMER, J.A. A mão devota: santeiros populares das Minas Gerais nos séculos 18 e 19. Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2008.
VIDAL, D.G., A escrita da História da Educação e seus múltiplos olhares In: SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MATEMÁTICA.PACHECO, n. 7, 2007, Guarapuava. Anais… Guarapuava: SBHMat, 2007. p. 97-108.
Antonio Vicente Marafioti Garnica.
[P…]Deuses e mitos do norte da Europa | Hilda Roderick Ellis Davidson
Recentemente vem ocorrendo um grande resgate da cultura Viking. Dezenas de livros, documentários, eventos acadêmicos e descobertas arqueológicas vem demonstrando o valor da Escandinávia para o estudo da formação do Ocidente Medieval e Moderno, bem como a desmitificação de muitos estereótipos e fantasias2. Dentre todas as áreas de investigação, algumas das mais promissoras são os estudos de mitologia e religião pré-cristã, extremamente importantes para se entender o posterior processo de estruturação da mentalidade religiosa na Europa.
Uma das mais famosas pesquisadoras de mitologia germânica é a inglesa Hilda Davidson, autora do clássico Gods and Myths of Northern Europe, originalmente publicado em 1964 e que agora recebe a primeira tradução para a língua portuguesa3. Esta obra se tornou um marco das investigações na área, tanto por seu caráter sistematizador quanto pela utilização de diversos tipos de fontes, sejam elas históricas (documentos e livros de caráter nobiliárquico/institucionais), literárias, epigráficas, iconográficas e arqueológicas. A obra é dividida em oito capítulos, seguidos de uma interessante relação de referências onomásticas e de um índice remissivo. Leia Mais
Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (século XVI-XVIII) – PALAZZO (VH)
PALAZZO, Carmen Lícia. Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (século XVI-XVIII). Coleção Nova Vetera. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. Resenha de: PIERONI, Geraldo. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.26, p. 153-155, jan., 2002.
André Thevet, Jean de Léry, Claude d’Abbeville, Yves d’Evreux… Voilà les français! Estes são apenas alguns dos Messieurs que atravessaram o mar oceano e, deslumbrados, desembarcaram na costa brasileira. O que procuravam nesta imensa Terra Brasilis estes nossos cultos viajantes? Talvez poderíamos arriscar uma resposta comum a todos eles: conhecer o Novo Mundo: exótico, diferente, antítese da Europa civilizada.
Relatar o que eles observaram não é o objetivo primeiro de Carmen Lícia Palazzo ao escrever Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII). Sua intenção vai muito além do evidente. A autora, historiadora experiente, doutora em História pela Universidade de Brasília, com muita competência e domínio da historiografia, apresenta ao leitor um excelente trabalho. Sua investigação é criteriosa acerca dos múltiplos e matizados olhares que os viajantes franceses lançaram sobre o Brasil, desconhecido em muitos aspectos, porém fascinantemente atraente.
Os documentos utilizados foram, sobretudo, os registros de viagens e obras eruditas de pensadores que debruçaram, embora muitas vezes sem o contato direto, sobre estas novas terras d’além mar.
Com relação à idéia sobre o Brasil, há interrupção ou prosseguimento nos olhares dos franceses? Problematizou a autora! Sua conclusão foi que estes viajantes e pensadores dos séculos XVI ao XVIII deixaram registrados inúmeros comentários e obras onde se pode perceber pontos de vista que foram se transformando. Este movimento de mudanças, no entanto, não se dá no ritmo dos cortes cronológicos tradicionais. Uma leitura cuidadosa dos escritos e, a título complementar, da iconografia de cada época, permitiu à historiadora detectar continuidades relevantes inseridas no universo mental dos viajantes – continuidades estas que se mantêm até quase o final do século XVII. Somente a partir do século XVIII, particularmente com o iluminista La Condamine, é que se pode verificar uma efetiva mudança nas visões francesas do Brasil.
Recorrendo aos recursos da história comparativa, a historiadora aborda e confronta dois momentos específicos: o das permanências (séculos XVI-XVIII) e o da ruptura capturada pelas visões da modernidade (século XVIII).
A exemplo de Jacques Le Goff, defensor, entre outros, de uma “longa Idade Média” que se prolonga até quase às portas da Revolução Industrial, a autora utiliza semelhantes conceitos fixando-os no contexto das grandes viagens e mentalidades culturais dos séculos XVI e XVII. A própria iconografia corroborou a idéia das permanências. Gravuras e telas da época evidenciaram elementos que remetiam ao imaginário medieval. As narrativas e ilustrações dos viajantes assimilaram abundantemente figuras extraordinárias, demônios e monstros. Seus discursos são destoantes das características culturais e políticas da Idade Moderna. Neles prevalecem os componentes ainda amarrados ao imaginário Medievo. O espaço dedicado aos mitos e utopias é enorme: o fantástico predomina. Só a partir do século XVIII, com a razão iluminista, é que se evidenciam as rupturas da assim chamada modernidade. Daí para frente ciência e razão são os principais instrumentos para a leitura do Outro – distante e diferente – para buscar entendê-lo e, sobretudo, explicá-lo. E como conclui a autora: “Com o abandono de mitos e maravilhas, é o espaço do sonho que se retrai”.
O trabalho de base contido no livro permite melhor compreender os mecanismos das transformações que se tornam visíveis somente se inseridas no tempo longo. Foi exatamente este recurso teórico que Carmen Lícia utilizou para confeccionar a textura do seu livro. No prudente labor de perceber as mutações na longa duração, como já referido acima, foram estudadas iconografias da época e escritos de pensadores, como o abade Raynal, Voltaire e Buffon. Neste conjunto de representações é possível desvelar perfis de comportamentos e imagens que, prolongando ou alterando-se gradativamente no tempo, resultam novas e movediças nuanças das representações do Brasil.
Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (século XVI a XVIII) é uma obra profundamente instrutiva e sua cronologia é primorosa. Rupturas ou continuidades? Permanências medievais ou triunfo das Luzes? Neste caso a razão iluminista não foi mais aberta à alteridade do que o foram os viajantes anteriores que aceitaram o mítico e o maravilhoso como explicações para a diferença.
Geraldo Pieroni – Doutor em História pela Université Paris-Sorbonne (Paris IV). Professor na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Autor, entre outros, dos livros: Os Excluídos do Reino, editora UnB, Brasília: 2000 e Vadios, Ciganos, Heréticos e Bruxas: os degredados no Brasil colônia. Editora Bertrand do Brasil, Rio de Janeiro: 2000.
[DR]
Platon, les mots el les mythes – BRISSON (PR)
BRISSON, L. Platon, les mots el les mythes. París: Maspero, 1982, 238p. Resenha de: AMORÓS, Pedro. Panta Rei – Revista de Ciencia Y Didáctica de la Historia, Murcia, n.2, p.145-147, 1996.
Pedro Amorós
P U JIW A ,4IORÓSAcessar publicação original
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