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Os Três Dedos de Adão. Ensaios de mitologia medieval II | Hilário Franco Júnior
Com esse seu novo livro, Os Três Dedos de Adão, Hilário Franco Júnior dá continuidade aos estudos sobre a mitologia medieval iniciado com seu livro de 1996, A Eva Barbada. Desta vez, nos apresenta mais 12 artigos, subdivididos em 6 tópicos: Mito e Método, que engloba os artigos “O Fogo de Prometeu e o Escudo de Perseu: Reflexões sobre Mentalidade e Imaginário” (p. 49-91) e “Modelo e Imagem: O ensamento Analógico Medieval” (p. 93-128). O segundo tópico, Mito e Sociedade trabalha com “O Conceito de Tempo da Epístola de Preste João” (p. 131-154) e “A Escravidão desejada: Santidade e Escatologia na Legenda Áurea” (p. 155-169). No terceiro, Mito e Identidade Coletiva reúne os artigos intitulados “O Retorno de Artur: o Imaginário da Política e a Política do Imaginário no Século XII” (p. 173-192) e “Joana, Metáfora da Androginia Papal” (p. 193-215). O quarto tópico, Mito e Utopia, reúne os artigos “As Abelhas Heréticas e o Puritanismo Milenarista Medieval” (p. 219- 241) e “O Porco, o Homem e Deus: a Utopia Panteísta da Cocanha” (p. 243-269). No quinto, Mito e Exegese, “Entre o Figo e a Maçã: a Iconografia Românica do Fruto Proibido” (p. 273-301) e “Ave Eva! Inversão e Complementaridade Míticas” (p. 303- 329). No último, Mito e Liturgia Hispânica, “A Circularidade do Quadrado: Uma Hipótese Interpretativa do Claustro de Silos” (p. 333-362) e o artigo que nomeia o livro “Os Três dedos de Adão: Liturgia e Metáfora Visual no Claustro de San Juan de la Pena” (p. 363-397). O livro ainda elenca Índices Míticos (p. 399- 402) que muito nos auxilia para uma visão mais articulada dos artigos.
Para muitos, ainda parece estranha a idéia de uma mitologia cristã. Todavia, mitos, crenças, costumes, ritos, não sobreviveram ou morreram, mas vivem porque ainda fazem sentido para muitos. É interessante pensarmos que o logos cristão, em suas origens, encontrou-se perante “a contradição de ter de desembaraçar-se do mito recorrento à mitologia”1. Os Três Dedos de Adão, é apresentado por Franco Cardini que comenta ser “legítima, oportuna e necessária uma <>, entendida como <>” (p. 19). Cardini ainda afirma, referindo-se aos mitos greco-romanos, que “a recusa consciente a uma coisa não significa a inexistência dela” (p. 22). “Basta-nos, prossegue, partir de uma base mínima – narrativa anônima e coletiva que condensa metaforicamente os conhecimentos intuitivos de uma sociedade sobre sua origem, caráter e destino – para chegarmos aos problemas centrais” (p. 27-28).
A continuação de manifestações culturais, presentes em épocas bem posteriores à sua origem, sofreu a tentativa da Igreja de desqualifica-las, sob o epíteto de “sobrevivências”, de “superstições” sem se aperceber que muito de suas práticas prolongava essas manifestações culturais. Dentre outras, o culto aos santos, que visa preparar para a salvação, não deixa de ser um ato supersticioso entre os crentes, prolongando de uma maneira inadvertida para a Igreja, a questão do culto aos heróis do paganismo. Assim, nos deparamos com a “Mentalidade”, no singular, “(…) instância que abarca a totalidade humana” (p. 63). “o nível mais estável, mais imóvel das sociedades´” revelando assim “seu papel de ‘inercia, força histórica capital’”(p. 59).
É, pois, “(…) a instância que abarca a totalidade humana” (p. 63). Disto se conclui que, tentar vislumbra-la em sua totalidade seria como olhar diretamente os olhos de Medusa, sem o reflexo no Escudo de Perseu. Melhor seria ter essa intermediação clareada pelo Fogo de Prometeu. Sempre utilizado de forma “mais intuitiva e vaga que propriamente conceitual” (p. 68) o imaginário, é “o espelho da mentalidade: revela, mas deforma” (p. 72). Ou, ainda, de maneira mais sintetica, imaginário é um tradutor histórico e segmentado do intemporal e do universal” (p. 70). Isto torna seu estudo “(…) mais exeqüível do que o da mentalidade com sua subjetividade quase etérea” (p. 90).
Devemos ter em mente que, na Idade Média, “prevalecia o gosto pelo semelhante, não pelo idêntico” (p. 95). Tal gosto, por seu turno, não excluiria o raciocínio lógico, que era estimulado pelo cristianismo. Também porque, em toda sociedade, “pensamento analógico e pensamento lógico são complementares, não excludentes” (p. 99). Assim, “(…) pensar por analogia significava estabelecer conexões entre o mundo divino e o mundo humano, entre o Modelo e suas imagens” (p. 105). Por seu turno, a Imagem “torna-se ela mesma modelo e passa a funcionar como mediadora para que todas as imagens alcancem o Modelo” (p. 128).
Após essas considerações, Hilário Franco Júnior passa a investigar a idéia de tempo questionando o conceito de Utopia (lugar nenhum) que “como qualquer criação humana, não sabe trabalhar fora de parâmetros temporais”. Mesmo se estes sejam “usados para marcar justamente a condição intemporal da sociedade utópica, por definição colocada no além-história” (p. 132), que seria o caso da Epístola de Preste João. A investigação de Hilário segue ainda a idéia da escravidão espiritual na Legenda Áurea, entrecruzando escatologia e urbanização, onde “O bom cristão deixa de ser vassalo e torna-se escravo, entrega-se totalmente ao Senhor” (p. 165) não importando aí as hierarquias sociais humanas. Por sua vez, o personagem Artur rei, que para alguns teólogos, “é também Deus e Cristo” (p. 181) através da sagração e da unção. Este Artur, por fim, demonstra que, “na longa duração histórica, o imaginário da política mantinha autonomia em relação à política do imaginário” (p. 192).
A sequência dos artigos passa pela metáfora da androginia papal, com o famoso caso da papisa Joana, crença que foi generalizada até o século XVI e permaneceria não “fosse a controvérsia gerada pela Reforma Protestante” (p. 195). Prossegue com a simbologia de certos animais como a abelha em narrativas de Raul Glaber e Landolfo, o velho, e que, metaforicamente aproximava-se do igualitarismo, da pureza e androginia, num contexto de heresias, de uma espiritualidade moralizante em que “católicos e hereges pensavam numa vida evangélica, num retorno ao passado que criticava o presente e acentuava a espera escatológica” (p. 223). A efervescência e transformações do século XII traz à tona a questão panteísta. Hilário argumenta que o aparecimento oral do Fabliau de Cocagne pertence a meados desse século (p. 252), onde ganha destaque a figura do porco. O animal é visto na perspectiva antropológica, econômica, literária, escatológica e religiosa buscando-se assim as razões de sua sacralidade (p. 256-258).
Quanto à iconografia do fruto proibido, Hilário apresenta várias possibilidades e, inclusive, com mistura de características. Mas “mesmo assim hesitava entre o figo e a maçã” (p. 277). O primeiro, estava ligado ao simbolismo do fígado (o que nos lembra o mito de Prometeu Acorrentado); mas a iconografia românica “usou como fruto proibido principalmente a maçã” (p. 283), (que também nos faz lembrar do Jardim das Hespérides) escolha ainda não muito clara, mas que “possivelmente estava ligada à sua forma arredondada e à sua cor vermelha, que a aproximavam do coração (…)” (p. 284- 285). A seguir, com artigo Ave-Eva, Hilário transporta-nos para o binômio Eva-Maria, acompanhando o crescimento da figura de Maria dentro do cristianismo a partir do século XII. Nesse mesmo século, um hino trata o binômio Eva-Maria como “a primeira mãe que abriu as portas da morte, a segunda mãe que as fechou” (p. 310), encerrando suas especulações com a idéia de que Maria era “mais uma complementação que uma negação da primeira mulher” (p. 329).
Em seu último segmento, no penúltimo artigo, Hilário avança suas análises sobre a simbologia numérica que inspirou a edificação do claustro do mosteiro de Silos. A proposta é a de que, apesar da imposição da liturgia romana, a leitura iconográfica resgatava antigos elementos da liturgia moçárabe. Sinal disso seria o baixo relevo do ângulo Sudeste, no qual a mão divina recorre aos dois dedos estendidos. A explicação pode estar no fato do escultor optar por uma mensagem “antigregoriana do claustro” (p. 338) pensa Hilário. O número oito é mysticum numerum (p. 346), cuja força simbólica é muito antiga, ligado à idéia de “rito de passagem” (p. 346). Com um sentido ritual, encantatório, sacramental e até mesmo mágico, as interpretações de Hilário poderiam ser acrescidas aí pela análise da harmonia musical.
Por fim, o artigo que dá título ao livro. Trata do gesto de Adão em um dos capitéis de San Juan de la Peña levando apenas três dedos entre o pescoço e o peito. Hilário se questiona se não haveria aí uma arbitrariedade do escultor e, mesmo com essa hipótese, aprofunda algumas possíveis interpretações. Também considera a polissemia dos símbolos e o conhecimento executor do capitel sobre “as imagens canônicas do pecado” (p. 366). Situado na rota de peregrinação a Santiago de Compostela, em nenhum outro mosteiro encontra-se uma iconografia que se aproxime, que seja ao menos semelhante. Seria uma forma de protesto contra a imposição do rito romano (1080) e uma confissão de fé no dogma trinitário? (p. 382) Certo é que trata-se de uma forma de se evocar o pecado original. Seria, pois, uma forma de “resistência cultural”? (p. 383). Após diversas considerações, Hilário levanta a hipótese de que “o inusitado gesto do capitel de San Juan de la Peña funcionava de fato como crítica velada à nova liturgia [a imposição do rito de Roma] e todas suas implicações” (p. 385).
Dessa forma, Hilário encerra esse brilhante arrazoado sobre a mitologia medieval. De fato, com Os Três Dedos de Adão, ele não apenas solidifica a existência dessa mitologia como possibilita também uma compreensão mais densa de seus primeiros ensaios em A Eva Barbada. Percebemos, na verdade, que essa “mitologia cristã” apresentou-se, inicialmente, como uma mitologia cristianizada, pois o cristianismo não se ergueu sozinho no Ocidente e não se constituiu a partir do nada. Teve que realizar diversas negociações religiosas em razão das quais, fica difícil distinguir o que corresponde à ortodoxia cristã e aquilo que foi importado de outras diversas tradições. Livro muito denso, Os Três Dedos de Adão representam um marco extremamente significativo e importantíssimo na evolução dos estudos sobre a Idade Média Ocidental.
Notas
1. CAPRETTINI, G.P. et. al. “Mythos/logos” in ROMANO, R. (Dir) Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987, p. 91, v. 12.
Ruy de Oliveira Andrade Filho – UNESP-ASSIS. E-mail: ruy.andrade@uol.com.br
FRANCO JR., Hilário. Os Três Dedos de Adão. Ensaios de mitologia medieval II. São Paulo: EDUSP, 2010. Resenha de: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Mitologia medieval. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.11, n.1, p. 107-109, 2011. Acessar publicação original [DR]
A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval – FRANCO JUNIOR (VH)
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: EDUSP, 1996. Resenha de: RIBEIRO, Daniel Valle. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.16, p. 174-177, set., 1996.
A Editora da USP acaba de lançar estudo acerca da mitologia medieval. Trata-se da coletânea de trabalhos antigos e novos ensaios com que Hilário Franco Júnior se apresentou ao concurso para a livre-docência na Universidade de São Paulo. Autor de inúmeros estudos na área de História Medieval, Franco Júnior busca neste livro captar o inconsciente da psicologia coletiva através da análise do imaginário da sociedade. Para tanto, selecionou com sensibilidade o essencial e colheu com argúcia o importante no social.
O emprego da palavra mitologia no contexto da cultura medieval pode parecer inadequado, já que a tradição cristã da época sempre opôs aos mitos a verdade da Revelação, como nota com pertinência Jean-Claude Schmit no prefácio. Assim, mito e cristianismo aparentam incompatibilidade insanável. Franco Júnior, entretanto, sobrepõe-se às dificuldades e desempenha com brilho a tarefa a que se propôs. História Medieval no Brasil é uma fatalidade a que estão condenados heróis ensandecidos. Ora, em país pouco voltado para o estudo do medievo, de historiografia quantitativamente pobre na área, é meritório um trabalho de alto nível como o de Franco Júnior, que alarga o horizonte de pesquisa quase sempre voltado para temas nacionais.
O livro reúne doze ensaios bem articulados, distribuídos em capítulos com subdivisões, tendo o mito como tema central. Há, pois, sólida unidade temática. Alguns deles resultam de longa pesquisa em arquivos da França, e de trabalho ao lado de Jacques Le Goft e Jean-Claude Schmitt, da Écola des Hautes Études en Sciences Socialies. Franco Júnior lança-se a território novo. Tendo inventariado, em 1991, a produção historiográfica dos medievalistas franceses nos últimos vinte anos, Jacques Berlioz, Le Goft e Anita Guerreau-Jalabert concluíram que o campo ainda está por explorar. Com efeito, estudar o universo mitológico da Idade Média pode parecer desconcertante, pois a mitologia era vista (e ainda parece estranha aos medievalistas) como uma expressão cultural da Antigüidade e das culturas primitivas. As referências bibliográficas e o competente uso das fontes comprovam a autoridade do professor da USP. Franco Júnior deu ao cristianismo tratamento histórico, ou seja, procedeu à análise crítica e interpretação que se aplicam às outras religiões. Para ele, estudar o universo mitológico da Idade Média “é um caminho fundamental para se entender em profundidade a sociedade medieval e, portanto, as origens da civilização ocidental” (p. 20).
Hilário Franco Júnior vê o cristianismo como mitologia. Identifica o mito ao folclore, ou seja, o conjunto de tradições orais e ritos que se formaram e se desenvolveram à margem da cultura religiosa oficial e de resistência aos valores eclesiásticos. O historiador analisa o contexto social em que se manifestam, e retoma as observações de Jacques Le Goft, pondo em relevo o papel da pequena e média aristocracia no reflorestamento do folclore através de seus representantes – os cavaleiros ou milites. Hilário Franco Júnior mostra como esses mitos folclóricos enriqueceram acultura medieval cristã, através da “cultura intermediária”. Mas está atento também às versões e alterações dos mitos cristãos, como se nota na sua aguda interpretação da “Eva Barbada”, afresco da abóboda da abadia de Saint-Savin-sur-Gartempe.
O historiador consagra a primeira parte do volume a duas discussões teóricas: o conceito de cultura intermediária e o problema historiográfico relativo ao cristianismo e mitologia. Hilário Franco Júnior pondera a seguir a importância das atitudes mentais em relação à política. O conflito entre os poderes temporal e espiritual insere-se no ensaio Construção de uma Utopia, quando examina a figura lendária de Preste João. Sustenta que “no século XII a formulação eclesiástica ofical era a célebre teoria dos dois gládios de São Bernardo” (p. 89-90). Na verdade, o abade de Claraval retoma no De conversatione a alegoria das duas espadas, com base em textos evangélicos (Luc 22, 26 e Mat 16, 52). Registre-se ainda que, não obstante sustente o poder eminente do pontífice romano – a plenitudo potestatis -, mais que Honório Augustodunensis e Hugo de Saint-Victor, São Bernardo reconhece certa autonomia do pode temporal. Hilário Franco Júnior notou com argúcia que a adoção do epíteto sacrum, dado por Frederico Barba Ruiva (1157) ao Romanum Imperium, tinha a clara intenção de atribuir ao imperador o direito de intervir nas questões eclesiásticas. De fato, o Império se tornou Sacrum Imperium para competir, em condições de igualdade, com a Sancta Ecclesia e fazer frente a ela. Frederico I ancorava-se na legislação romana e na tradição carolíngia, segundo as quais os direitos imperiais se baseavam não na outorga do papa, mas na conquista. Tanto que perguntado de quem recebera o poder, Barba Ruiva respondeu: “De Deus, apenas”.
Quando Hilário Franco Júnior assevera que “o modelo oriental [Império de Preste João] servia perfeitamente aos propósitos da Igreja, apenas naturalmente depurado de nestorianismo e com o papa no papel de rei-sacerdote” (p. 99), o que diz tem fundamento. Ora, Inocêncio III (1198-1216) evocou Melquisedeque, rex etsacerdos, e deixou claro que, se o sacerdócio e o reino estavam unidos na pessoa do patriarca, em troca estavam separados na sua jurisdição e sua atividade. Pretendia com isso demonstrar que o chefe da Igreja era, de uma parte, o supremo pontífice, e, de outra, o rei supremo. A argumentação de Inocêncio, no entanto, repousava em nova concepção do papado, que fazia do papa não apenas o detentor de poderes essencialmente religiosos, mas o vigário de Cristo exercendo os poderes de Cristo, soberano tanto dos corpos como das almas, sacerdote supremo e rei (PL 226,721). O ensaio Valtário e Rolando: Do Herói Pagão ao Herói Cristão retrata a realidade cotidiana da “doce França”. Para Rolando, os francos são o novo povo eleito. Note-se como um autor do século XII retoma a idéia de grandeza e do caráter providencial da missão dos francos, expressa inicialmente quando do advento da dinastia carolíngia na correspondência emanada da Chancelaria da Sé Romana para a corte franca.
A parte final do livro é uma análise segura e densa do papel da alquimia na realização da utopia de Dante Alighieri. O texto revela, mais uma vez, a cultura e o domínio do tema por Hilário Franco lúnior. Despertará provavelmente grande interesse, tendo em vista a pouca informação que ordinariamente se tem da história da ciência medieval. É indicada, aí, a estreita relação entre alquimia e astrologia. Poder-se-ia dizer que a alquimia e a astrologia são relacionadas porque, enquanto a primeira procura estabelecer uma relação horizontal do homem com o mundo que o rodeia, a segunda busca ligar verticalmente o mesmo homem com o mundo intangível acima de sua cabeça. Ambas têm como objetivo o conhecimento dos princípios e das operações que governam aqueles dois tipos de relação. Na perspectiva acentuadamente escatológica de Dante, havia necessidade da recuperação da androginia primordial, única condição para se retornar à justiça dos primeiros tempos. Para se chegar a isso, a alquimia procurava obter a fusão das partes masculina e feminina da matéria – a androginia dos minerais. Através do elixir ou da pedra filosofal seria possível o retorno às origens. Tenha-se em mente que a busca do elixir na alquimia chinesa, de origem teoísta, adquiriu característica diferente do que sucedia entre os alexandrinos, árabes e europeus. Sendo a China um país pobre em ouro, ao contrário do Egito, por exemplo, a busca do elixir consistiu em transformar o ouro (metal incorruptível) em uma forma assimilável pelo corpo humano, de modo a dotá-Io da mesma incorruptibilidade do metal precioso.
Os historiadores da cultura parecem atualmente fascinados pelo uso da linguagem como metáfora. Também Hilário Franco Júnior mostra-se atraído pela decodificação de ações simbólicas. Mas é cuidadoso e não comete os excessos de muitos. Procura com seu belo livro abrir novas perspectivas e possivelmente permitir, como se escreveu, que o historiador moderno possa sentir o cristianismo medieval através do seu próprio caráter mítico. A Eva Barbada – Ensaios de Mitologia Medieval, obra de um historiador fecundo e criativo, é comparável ao que de melhor produz a historiografia européia sobre o tema.
Daniel Valle Ribeiro
[DR]