Posts com a Tag ‘Mito’
Viandante nel Novecento. Thomas Mann e la storia | Domenico Conte
Já definido como “monumental”, “rico”, “policromático” e “diverso”, o recente e imponente livro de Domenico Conte, intitulado Viandante nel Novecento. Thomas Mann e la storia, reúne, dividido em quatro partes (“História e mito”, “Política e primitivismo”, “Natureza e espírito”, “Benedetto Croce e Thomas Mann”), vinte e dois ensaios publicados pelo autor no período entre 2009 e 2018.
E precisamente o tempo, protagonista destas páginas juntamente com Mann, faz com que o tom do historiador da cultura napolitano em direção ao escritor de Lübeck, seja, sim, cheio de admiração, mas nunca subserviente ou temeroso, tornando-se cada vez mais familiar, tanto que se dirige a ele não apenas com o nome de batismo, Thomas, mas com o diminutivo Tommy. O que, como é evidente, representa uma marca de proximidade, uma intimidade cujas raízes devem ser procuradas no passado ou, aqui talvez seja mais adequado dizer: mais para lá, mais abaixo. De fato, o vínculo que une Conte a Mann é, como ele próprio confessa, “uma espécie de fidelidade”. Leia Mais
Passado a limpo: o estado capixaba e o seu mito fundador | José Pontes Schayder
Passado a limpo: o estado capixaba e o seu mito fundador é o mais novo livro do historiador capixaba José Pontes Schayder. Lançado em edição própria, o livro chega para os historiadores locais, intelectuais diletantes e demais interessados na história do Espírito Santo no ano de 2017. A densa obra é resultado de longos anos de pesquisa do autor sobre a história capixaba e revela um pesquisador amadurecido em comparação aos seus livros anteriores. Em formato de ensaio, o livro é um esforço de síntese monumental que se estende por 516 páginas apoiadas em vasta bibliografia documental e também numa erudição historiográfica formidável sobre o que se considera atualmente a história do Espírito Santo.
O objeto principal do livro é refletir e propor como problema o mito fundador da história (e também da historiografia) capixaba. Nesse sentido, o leitor é convidado a conhecer o personagem histórico Vasco Fernandes Coutinho para além de sua tradicional roupagem historiográfica e assim fazer a sua devida crítica. Orbitando a figura do capitão donatário, o leitor é apresentado ao que se sabe de concreto sobre o personagem histórico e como foi a historicidade de sua construção no seio da historiografia capixaba. Schayder nos apresenta uma nova forma de interpretar a história capixaba a partir da chave do mito fundador, que para ele é resultante de um constante e secular esforço de criação narrativa de historiadores em aliança com as tradicionais elites que forjaram o estado capixaba. Leia Mais
Padre Cícero do Juazeiro do Norte: a construção do mito e seu alcance social e religioso
A proposta da tese é ampla, desafiadora, trabalhosa e de perfil interdisciplinar e transdisciplinar. Diz seu autor:
Tomando a figura de Padre Cícero como referência é possível perceber um processo de santificação que coincide com a construção do mito. Porém este santo mitificado tem algo de específico: ele foi construído pela religiosidade popular e ainda hoje pertence a ela. Afinal, o patriarca do Juazeiro do Norte, carinhosamente chamado como “meu padim”, é um santo que “vive no sol” pelo fato de ter morrido afastado das Ordens sacerdotais (TOLOVI, 2015, p. 5). Leia Mais
A redenção de Deus: sobre o Diabo e a inocência | Alexandre M. Cabral e Jonas N. Rezende
O tema do paraíso fascina o ser humano desde longa data. Para muitos, o mais célebre jardim da história foi o Éden e sua representação bíblica goza até hoje de uma grande força figurativa. O relato bíblico apresenta o deus hebraico como um ser repleto de poderes agrícolas, pois foi ele quem criou a terra, a água, a vegetação e o homem (feito de barro). Não só isso. Para além da descrição idílica, o mito do paraíso também deixa vir a lume um conflito que não tem fim: a “guerra entre Deus e o Diabo”, da qual o homem não pode escapar. É com esse pano de fundo que os filósofos Alexandre Marques Cabral e Jonas Neves Rezende buscam explicar de que maneira essa lógica binária faz-se presente no imaginário social cristão ocidental. Trata-se de uma tarefa hercúlea, contudo os autores conseguem atingir os fins a que se propõem. A obra seduz do início ao fim o leitor por meio de linguagem e estilo de ensaístas literários que buscam destacar tanto as imagens simbólicas quanto as discussões filosófico-teológicas em torno dessa narrativa.
O livro divide-se em duas partes: um ensaio filosófico-teológico de Alexandre Marques Cabral e, em seguida, um poema de Jonas Rezende. Juntos, os autores visam desconstruir a oposição que se petrificou e que ainda faz-se sentir na cultura ocidental cristã: Deus e Diabo. Do primeiro, reteve-se o bom, o justo, a glória; do segundo, o pecado, a rebelião, a inveja. Como é sabido, esse pensamento um tanto maniqueísta gerou inúmeras contestações na história e é exatamente esse aspecto que os autores buscam desvendar ao longo da obra.
Já na introdução, denominada Mito, verdade e existência, Resende não entra na discussão de explicitar se o mito (mythos) é incompatível com a ciência. É verdade que, para o homem contemporâneo preso ao pensamento lógico (logos), cartesiano e racional, os mitos são geralmente considerados ilusórios, fantasiosos e mentirosos. Todavia, segundo o autor, é preciso empatia nessa discussão para se compreender que também o mito contém realidades profundas, ocultando um tipo específico de verdade. Por conseguinte, se o mito do paraíso possui suas mais puras e coerentes representações de cunho religioso, isso não é razão para o cientista social descartá-lo como mera construção fantasiosa. Essa postura poderia levar o historiador a negar falaciosamente, por exemplo, que a literatura ou a poesia, só para citar dois exemplos, tenham qualquer aspecto válido a ensinar acerca da realidade. Logo, não é porque o Éden não existiu no plano concreto que esse espaço tenha deixado de ser sonhado e buscado. Sua verdade e sua lógica não são teóricas. Ao contrário. Por isso, os autores concebem “o mito como uma metanarrativa que fala metaforicamente de um universo atemporal” (CABRAL, 2012, p.78). Nesse sentido, à luz das discussões de Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), perfila-se, ao longo da obra, pensar o real por intermédio do mito, admitindo que também o mito produz uma espécie de cosmovisão específica.
O primeiro capítulo, A lógica do paraíso, analisa os relatos presentes no Gênesis, explicando seu universo semântico, mas sem apresentar qualquer fórmula hermenêutica que encontre no relato uma “verdade absoluta”. O que mais interessa aos autores é compreender de que maneira o mito do paraíso perdido pôde ser apropriado criativamente pelos homens ao longo do tempo e quais elementos simbólicos foram perdidos após a “queda”; é esse aspecto que pode auxiliar pesquisadores das mais diversas áreas a entender a eterna “guerra entre Deus e o Diabo”. Enfatizando a primeira parte do mito do paraíso perdido, a obra auxilia o leitor a perceber de que maneira a representação do jardim paradisíaco foi sendo associada quase sempre a uma região verdejante impregnada de enorme beleza cênica que exprime conforto, alegria, paz. Por ser um santuário, era como um espaço em que o deus hebraico representativamente andava e se comunicava com o primeiro casal humano. Assim, o mito hebraico da criação instituiu no imaginário social uma divindade onipotente e perfeita em oposição ao diabo, sempre identificado como adversário, corruptor, enganador. A obra lembra, todavia, que satanás e o deus hebraico estavam juntos no jardim e que ambos pertenciam, cada um à sua maneira, à plenitude desse espaço. Para o autor, essa harmonia conflitiva entre um e outro compunha os traços do próprio jardim e exibia esses personagens como adversários, mas não inimigos.
O segundo capítulo, O fim do paraíso: a genealogia do mal, busca explicar como a “queda” deu origem ao que os autores denominam “teatro de horrores”, que engendrou e justificou ao longo da história ocidental uma pluralidade de sofrimentos. Explana que nada externo destruíra o paraíso. A rebelião, a bem da verdade, começou por dentro. Simbolicamente, a perda da região paradisíaca demonstrou que ali não era um espaço de necessidade, mas de liberdade. A tentação, o desejo que possuiu o fruto proibido, a possibilidade de “ser como Deus”, constituem características dessa parte do mito. Mas, com a expulsão do homem do jardim, confusão e pecado se introduziram no mundo. A natureza passou a assumir um aspecto de inimigo caótico e violento contra o qual teria o homem de lutar. Assim, “Fora do paraíso, Deus tornou-se um forasteiro e Satanás transformou-se em eterno companheiro” (CABRAL, 2012, p.174). A partir da “queda”, os humanos serão encarados como seres em eterna disputa entre o seu criador e o diabo. A dualidade entre o centro (paraíso) e a periferia (ermo), tão perfeitamente ancorada na organização concreta dos espaços vividos, é um aspecto interessante a se notar nesse mito, supondo outra dualidade que opõe interior e exterior. Disso resulta, segundo o autor, a valorização do centro positivo e sacralizado (por oposição à periferia) e uma interioridade vigorosa e protetora (por oposição ao exterior). A “expulsão” ou “a queda”, enquanto deslocamento para o exterior, significa, no nível simbólico, uma espécie de confrontação com um mundo diferente, outro espaço, “um vale de lágrimas”. A travessia reforça tão somente a perda de ligação com o lugar protetor conhecido (o ecúmeno), e por isso a realidade também passará a ser dividida entre dois reinos no cristianismo: Céu (alto, superior, bom) e Inferno (baixo, inferior, mal). Esse sistema binário ajuda a explicar em parte o porquê de o Cristianismo valorizar sobremaneira o futuro, o post-mortem, exigindo dos homens um eterno processo de purificação.
Esse é o momento em que surge a “geografia espiritual” para a consciência judaica. Deus, que fugira da Terra após a queda do paraíso, habita os “Céus”. Satanás, que caíra dos céus levando uma miríade de demônios, entrou na terra e passou a comandar o inferno. Alguns anjos perseveraram ao lado de Deus. Já Satanás e seus demônios passaram a marionetizar a Terra, manipulando seres humanos à perdição (…). A divisão Céu/Inferno foi acompanhada de uma imagem ambígua da Terra. Se Deus está para além da vida terrena, estar com ele é um evento post-mortem. Se o diabo está dentro da Terra, também para estar integralmente com ele é necessário morrer. Por isso, a terra tornou-se um campo minado: ora explodem as bombas dos demônios e ora aparecem as espadas e escudos dos anjos. Aqui se decidem o céu e o inferno, pois é aqui a bilheteria onde compramos a entrada para o Céu ou para o Inferno (CABRAL, 2012, p.181-2).
O terceiro capítulo, Ocidente e ascese: a falência da oposição entre Deus e Diabo, questiona se o paraíso é de fato o paradigma fundamental do Ocidente. Para tanto, os autores abordam a questão sob a ótica dos estudos do biblista alemão Julius Wellhausen e dos escritos de Platão. Os efeitos colaterais na busca de uma ascese são evidentes no Ocidente cristão: agir moralmente, ser autovigilante, subjugar os prazeres carnais, controlar as tentações. Disso depende a salvação individual. A partir desse férreo controle, existe a possibilidade de o cristão ser digno de “entrar no céu”. Todavia, longe de significar fidelidade para com os preceitos divinos, esse autocontrole denota que o homem ocidental tem, na verdade, temor de sua perdição. As consequências desse paradigma são bem conhecidas dos historiadores: ao longo da história os cristãos mataram, difamaram, perseguiram, destruíram e anularam os “elementos tentadores” (ateus, bruxas, homossexuais, etc.). Tudo isso em nome de um ideal maior. Por isso, cristianismo e terrorismo são irmãos siameses. Olhar para um sem ver a presença do outro é praticamente impossível: “Os fundamentalismos de toda espécie, a homofobia, a misoginia, etc. sempre estiveram a serviço de um ideal de bem supremo, que funcionaliza toda realidade, posicionando-a a seu serviço” (CABRAL, 2012, p.261, grifos do autor).
O último capítulo, denominado A redenção de Deus ou o desamaldiçoamento do Diabo, busca ressignificar os personagens principais da narrativa paradisíaca do Gênesis (o deus hebraico e o diabo), dando-lhes novos sentidos. Para tanto, os autores destacam o pensamento de Willian Blake, artista londrino que se notabilizou por suas pinturas e poemas. A “lógica do jardim” deveria ser analisada à luz da supressão da dicotomia Bem/Mal e da integração Deus/Diabo, uma vez que existe uma funcionalidade do diabo que o cristianismo tende a abafar.
São, dessa maneira, demasiadas as áreas de sombra que, provavelmente, emergirão dessa obra, o que recomenda doses de tolerância aos leitores mais exigentes. Afinal, sendo a Filosofia um estudo que se caracteriza pela intenção de ampliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido de apreendê-la na sua totalidade, ela guarda óbvias afinidades com a racionalização e as demais operações de que faz uso para compreender o homem. Eis uma obra ricamente erudita e repleta de informações filosóficas. É contundente a profundidade das colocações dos autores e, consequentemente, notável seu valor, bem como o prazer que se extrai do texto. Obra vigorosa que elucida o mito do paraíso e a oposição entre Deus e o Diabo e que age sobre as mais variadas concepções. Não é a esperança do paraíso celeste um desejo de retorno à felicidade perdida no Gênesis? De fato, como interpretar as utopias e seu singular adendo que é o tão aclamado paraíso? Simples fantasia literária? Talvez aqui, considerada em sua ampla dimensão histórica, a primeira hipótese comece a revelar-se mais interessante. E mais complicada.
Wallas Jefferson de Lima – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do CentroOeste (PPGH/Unicentro). E-mail: wallasjefferson@hotmail.com
CABRAL, Alexandre Marques; REZENDE, Jonas Neves. A redenção de Deus: sobre o Diabo e a inocência. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012. Resenha de: LIMA, Wallas Jefferson de. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.14, p.155-158, jan./jul., 2014. Acessar publicação original [DR]
Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos – DOMINGUES (SS)
DOMINGUES, Ivan. Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos. São Paulo: Edições Loyola, 2012. Resenha de: SILVA, Evaldo Sampaio da. O grau zero da diferença? Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 3, p. 591-9, 2014.
Quando publicou O grau zero do conhecimento, Ivan Domingues se defrontava admiravelmente com um objeto ao qual iria destinar toda a sua carreira desde então, a saber, o problema da fundamentação das ciências humanas, não por acaso o subtítulo dessa obra inaugural. Oriundo de uma tese de doutorado defendida na Sorbonne, o livro era inspirado por uma senda aberta sobretudo por As palavras e as coisas, cujo autor, Michel Foucault, Domingues teve a oportunidade de acompanhar in loco em dois cursos ministrados no Collège de France. Os cursos, intitulados “Le souci de soi” e “L’usage des plaisirs”, foram ministrados por Foucault, respectivamente, em 1981 e 1983, na cátedra de História dos Sistemas de Pensamento. Em 1982, Domingues também teve a oportunidade, no mesmo Collège de France, de acompanhar o último curso que Claude Lévi-Strauss ministrou, antes de sua aposentadoria, na cátedra de Antropologia social. Mas Domingues (1991) não pretendia simplesmente dar continuidade ao instigante programa de estudos entrevisto por Foucault, senão subvertê-lo em seu próprio solo conceitual ao propor que a noção de episteme – moderna – que surge das investidas genealógicas e arqueológicas do mestre francês não seria apenas uma, mas várias, e que, por isso, quanto às ciências humanas cultivadas entre os séculos XVII e XIX, poderíamos discriminar pelo menos três estratégias discursivas epistemicamente díspares, no caso, a “essencialista”, a “fenomenista” e a “historicista”. A estratégia essencialista se edificaria em torno da metafísica e do método lógico-metafísico (Port Royal) e metafísico-matemático (Spinoza); o discurso fenomenista fora instituído pela física, sobretudo com o método empírico-dedutivo (Montesquieu) e o matemático-experimental (Smith); já a terceira estratégia discursiva viria a lume dos estudos históricos conduzidos pelo método positivo-comparado (Bopp) e dialético-hipotético-dedutivo (Marx). Para justificar tais desconfianças, empreendeu-se ali uma leitura ampla e erudita por áreas como a economia, a linguística, a política e a história. O resultado foi “um ensaio sobre as diferentes formas de pensar que conformaram a Episteme moderna” (Domingues, 1991, p. 9) no qual se buscou explicitar, com base naquelas estratégias discursivas e seus respectivos métodos, o nascimento do “espírito geométrico”, do “espírito positivo” e do “espírito histórico”, os quais representam as distintas e irredutíveis figuras de pensamento que constituíram as ciências humanas no período. Dessas figuras de pensamento, o espírito ou consciência histórica, com sua inclinação relativista e niilista, instauraria uma conjuntura na qual o problema mesmo da fundamentação do conhecimento e, por conseguinte, da fundamentação das ciências humanas, cai em descrédito, sendo preciso doravante pensá-lo em “bases absolutamente novas” (1991, p. 10).
Após alguns trabalhos nos quais aquilatou e repercutiu as conclusões daquela primeira grande investida (por exemplo, O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história, de 1996, reeditado posteriormente em francês em 2000), Domingues publica o Epistemologia das ciências humanas, Tomo I: positivismo e hermenêutica, fruto de sua tese de habilitação para o cargo de Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Se a obra O grau zero visava o problema da fundamentação das ciências humanas quando de sua “pré-história” moderna e concluía pela necessidade de uma reconsideração de toda a problemática, chegara o momento oportuno de procurar tal reconsideração nos paradigmas e modelos das ciências do homem no século XX. Nesse ínterim, tratou-se ali das “formas de racionalidade e estratégias discursivas” (Domingues, 2004, p. 17) pelas quais Émile Durkheim (o “positivista”) e Max Weber (o “hermeneuta”) delinearam duas das principais vias das chamadas “ciências sociais” e, por conseguinte, de como a concretização destas contribui decisivamente para repensar a questão fundacional. Obteve-se assim um estudo de fôlego no qual o leitor se depara com duas concepções paralelas de “construtivismo social”, a saber, o projeto durkheimiano para instaurar a sociologia como ciência empírica autônoma, especialmente com seus estudos sobre o suicídio, e o projeto weberiano para fundar a sociologia como uma “ciência compreensiva objetivante”, principalmente com suas pesquisas de sociologia da religião. Mas o fio condutor para tal investigação adveio de “uma pequena e instigante passagem de Lévi-Strauss segundo a qual o grande desafio das ciências humanas é pensar a diferença”, ou seja, conciliar no pensamento fenômenos irredutíveis e por vezes conflitantes. Isto levou o epistemólogo à conjectura de que, no domínio do social, “a diferença é primitiva e a identidade derivada” (cf. Domingues, 2004, p. 22). Por tal conjectura é possível esclarecer, sob nova chave de leitura, por que o primado da categoria de identidade impediu as principais estratégias discursivas (essencialista, fenomenista, historicista) que permearam a pré-história das ciências do homem de responderem apropriadamente ao problema do fundamento e como isso levou essa questão a cair em descrédito. Além disso, auferir as várias maneiras distintas de tratar a diferença, a oposição e a contradição no âmbito do social permite ao epistemólogo enfim pensar o problema da fundamentação das ciências humanas em bases absolutamente novas. Para tanto, cunhou-se um repertório de conceitos e perguntas que lhe permitiram apreciar e comparar as doutrinas daqueles protagonistas das ciências sociais, tais como as chamadas tipologias das formas de racionalidade (que discriminam as articulações dicotômicas, triádicas, ramificadas etc., pelas quais são discutidas a diferença e a diversidade social), o tripé metodológico descrição / explicação / interpretação (que permite ponderar as dificuldades de ajuste entre o discurso, a teoria e a pesquisa empírica), a noção de objetividade nas ciências humanas proposta ou apenas pressuposta pelas abordagens examinadas (e como aquela as conduziu à condenação dos expedientes introspectivos e a tratar os fenômenos sociais como um conjunto de “formas objetivadas”) (2004, p. 17-9). A rigor, essa empreita sequer exigia que um Weber ou um Durkheim se comprometessem inteiramente com a primazia da diferença quanto às ciências do homem, sendo o suficiente que naqueles se encontrassem elementos apropriados para justificar conceitual e historicamente essa orientação.
Com Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos, Domingues alcança o ponto nevrálgico de sua iniciativa epistemológica através de uma leitura abrangente e penetrante do maior antropólogo francês. Previsto inicialmente como o segundo tomo de Epistemologia I – e enfim escrito e publicado de modo independente –, este novo trabalho continua o projeto de refletir sobre a fundamentação das ciências humanas a partir do primado da diferença, porém tomando por objeto uma disciplina em particular, a antropologia, ou, mais precisamente, a antropologia estrutural. Mas por que, após um livro dedicado às estratégias discursivas exemplares das protociências humanas e outro concentrado nas principais abordagens positivistas e hermenêuticas das ciências sociais, Domingues escreve um terceiro ato que consiste em um estudo tão somente da antropologia estrutural de Lévi-Strauss? Em primeiro lugar, porque, como dito, fora uma passagem de Lévi-Strauss que fornecera a gazua para adentrar nas abordagens positivistas e hermenêuticas, sendo ele, portanto, uma referência primordial no percurso ora ensejado. Em segundo lugar, porque, como se verá a seguir, a urdidura do livro pretende mostrar como a antropologia estrutural lévi-straussiana – da qual a análise dos mitos representa o coração selvagem do sistema – parece fornecer ao epistemólogo o caminho mais fecundo, a despeito de seus obstáculos e riscos, para a fundamentação das ciências humanas.
O cerne de Lévi-Strauss e as Américas é composto por uma introdução de caráter programático e metodológico, seis capítulos temáticos e uma breve conclusão. A introdução repõe o problema da fundação das ciências humanas e, se é verdade que em nada contradiz ao programa geral redigido nos prefácios dos trabalhos anteriores, alcança um esclarecimento metódico superior. Novas perguntas sobre a questão fundacional incitam à distinção entre o “fundamento histórico ou arqueológico” (archaios), diacrônico e facultado à história ou sociologia da ciência, e o “fundamento epistemológico ou arquitetônico” (arché), conduzido pela ideia de princípio ou ponto de partida e da alçada da epistemologia da ciência (p. 15). Enquanto a história ou sociologia da ciência estudam as instâncias sancionadoras de um campo disciplinar sobretudo em seus aspectos públicos e institucionais, à epistemologia cabe inquiri-las em função do âmbito conceitual e sincrônico. O exame epistemológico dessas instâncias sancionadoras quando de uma ciência empírica requer uma atenção não apenas para o seu modus cognoscendi, porém igualmente para seu modus operandi (cf. p. 11), uma vez que a coerência interna do discurso precisa ser equilibrada com os procedimentos pelos quais os cientistas levam adiante suas pesquisas e assim constituem seus procedimentos de prova e contraprova. Daí que o problema da fundação das ciências humanas tenha por objeto um discurso científico e não somente proposições ou cadeias linguísticas, o que incita o epistemólogo a adotar uma via alternativa e polêmica àquelas comumente franqueados pela filosofia analítica, o positivismo lógico ou a filosofia da ciência de orientação popperiana. Dissonante ao exame “externalista” das instâncias sancionadoras públicas e institucionais ou às análises “internalistas” das proposições e das cadeias linguísticas, a pergunta pela cientificidade de uma ciência humana conduz a um estudo sobre como a coerência (conceitual) de um campo disciplinar se constitui em meio aos procedimentos pelos quais os próprios cientistas ratificam instâncias sancionadoras (históricas). Uma tal epistemologia histórica e conceitual da ciência se aproxima de autores como Bachelard, Canguilhem, Kuhn e permite refletir tanto o percurso já concluído por Domingues em trabalhos anteriores quanto aquele porvir, a saber, o estudo da cientificidade da antropologia estrutural.
Enquanto metadiscurso, a epistemologia reivindica que seu discurso-objeto tenha obtido certa estabilidade em sua prática teórica e institucional, a despeito de seus antagonismos. Constata-se que “houve um tempo (…) em que a antropologia foi considerada uma disciplina exótica e uma espécie de chiffonière das ciências humanas” e que, posteriormente, “já consolidada e com bastante lastro, a disciplina ganhou aura de prestígio e o status de ciência-piloto das ciências humanas” (p. 18). Que tal prioridade se tenha obtido sobretudo pela contribuição de Lévi-Strauss ratifica que o problema da fundamentação seja então posto em particular para essa disciplina-piloto e sob a perspectiva de seu mais destacado representante. Como nos seus primórdios a antropologia estrutural competia com a antropologia social britânica (cujos principais expoentes eram Malinowski e Radcliffe-Brown) e a antropologia cultural americana (com Boas, Kroeber, Tylor, Löwie e Morgan), dedica-se um primeiro capítulo (“O estruturalismo e as ciências humanas”) a explicar como o paradigma estrutural impactou as ciências humanas e, em particular, a antropologia lévi-straussiana. Retoma-se, inicialmente, a distinção entre a noção de “estrutura”, já registrada em francês desde o século XVI a partir do latim structura, que significava “construir, edificar e erigir (sentido próprio e figurado), e também, desde os tempos romanos, empilhar ou dispor em camadas”, e a noção de “estruturalismo”, que “ao incorporar novas e importantes significações, como disposição, forma, ordem e organização, chega às ciências humanas e sociais” (p. 27-8). Desse modo, pode-se resguardar a anterioridade e independência da noção de estrutura quanto ao estruturalismo, o que permite equilibrar a flutuação semântica deste termo e recontar o seu surgimento por três etapas: a proto-história, que, nos anos 1940, associa correntes díspares e sem relação direta umas com as outras, como a Gestalt, o Círculo linguístico de Praga ou a Escola formalista de Copenhague; a fase histórica, que registra a consolidação e apogeu do paradigma estrutural entre os anos de 1950 e 1980 e teria como marco regulador As estruturas elementares do parentesco, de Lévi-Strauss, bem como um conjunto de artigos e estudos de Jakobson no campo fonológico e literário; o pós-estruturalismo, cuja origem nos anos 1980 é uma consequência do lento e gradual processo de esgotamento e declínio institucional do paradigma que se seguiu ao “maio de 1968” (cf. p. 30-1). Após diferenciar nessa conjuntura quatro paradigmas estruturalistas (a saber, linguístico, antropológico, psicanalítico e semiótico-literário), Domingues discute como Lévi-Strauss constitui o paradigma antropológico por uma apropriação bastante peculiar da linguística estrutural e como tal apropriação obteve tanto êxito que, em seguida, a própria linguística estrutural será substituída pelo paradigma antropológico, como disciplina modelo e única capaz de conduzir o ambicioso projeto então em voga de unificação das ciências do homem. Para certificar como Lévi-Strauss transpõe para a antropologia os operadores da linguística estrutural, o capítulo reserva suas últimas seções a ilustrar como essa apropriação original ocorre de modo exemplar no estudo das estruturas do parentesco e dos mitos.
Uma vez dilucidado como se desenvolveu o paradigma estrutural a partir da noção mais ampla e anterior de estrutura, bem como se firmou o estruturalismo antropológico com base no paradigma estrutural das ciências humanas, o segundo capítulo, “Lévi-Strauss, a etnologia e a fundação da antropologia estrutural”, revela como o antropólogo francês encontra nos componentes que definem o programa estruturalista das ciências humanas – o “construtivismo epistemológico”, o paradigma da linguagem, o “modelo” e o tripé (metodológico) descrição/explicação/interpretação – uma alternativa às abordagens antropológicas de cunho social e cultural, afastando-se destas a tal ponto que se poderia falar mesmo de uma “refundação” desse campo disciplinar. A originalidade de Lévi-Strauss estaria em retomar temas tradicionais das antropologias concorrentes, tais como a análise do parentesco e da organização social, bem como do mito e das religiões primitivas, sob a hipótese de que “a estrutura será o elemento comum e o traço de união que permitirá ao antropólogo operar o diverso das comunidades humanas, reconhecendo as diferenças que as apartam e as semelhanças que as aproximam” (p. 94). Mais precisamente, em vez de buscar a cientificidade dos estudos do parentesco e dos mitos pelo inventário das gêneses e repertoriar as mudanças que estabelecem as funções das coisas, trata-se antes de “descobrir e evidenciar as estruturas que as abrigam e subjazem à diversidade dos fenômenos”. Como a noção de estrutura se constitui acima de tudo enquanto um sistema de diferenças e oposições, Lévi-Strauss não visará, portanto, a busca por semelhanças e sim “a tarefa de analisar e interpretar as diferenças” (p. 95). Diante de tais procedimentos, pode-se explicar como a antropologia estrutural conquista para a ciência um conjunto de temas até então difusos e mesmo disputados por diversas áreas, dentre os quais os sistemas mitológicos e as representações religiosas dos povos primitivos ocupam lugar de destaque. Enquanto tradicionalmente se recusou aos mitos qualquer racionalidade ou uma suposta racionalidade facultada pela sociedade ou pela natureza, Lévi-Strauss consegue com o paradigma estrutural obter “a chave [para a análise científica] do mito no próprio mito, em cuja base ele vê o trabalho do pensamento simbólico, em um processo que se passa por inteiro no interior do pensamento” (p. 151).
Ao garantir ao mito, ou, melhor dizendo, aos sistemas mitológicos, uma lógica interna que lhes atesta inteligibilidade própria e enfim torná-los objeto de investigação científica, Lévi-Strauss assegura a efetividade das ciências humanas num âmbito no qual até ali qualquer procedimento racional parecia arbitrário e extrínseco. Por isso, o terceiro capítulo, “A análise estrutural dos mitos: vias e variantes”, é decisivo para indicar como a antropologia estrutural tem no exame dos mitos a pedra de toque para a fundamentação das ciências humanas. Trata-se de elucidar em pormenor como LéviStrauss faz “ciência de uma coisa tão disparatada, em que a imaginação e o arbitrário” parecem se impor sobre “a lógica e a regularidade (…) onde imperam o tudo pode e as histórias contadas dão lugar a um verdadeiro breviário da estupidez humana” (p. 139). Após reconstituídas as mais influentes concepções sobre o estatuto do mito desde a Antiguidade até o estruturalismo francês, classificam-se e hierarquizam-se os vários trabalhos de Lévi-Strauss quanto ao tema, reconstituindo-se a intenção e os resultados por ele obtidos em seu itinerário. Para melhor precisar tais intenções e resultados, o quarto capítulo, “Um mito paradigmático: A Gesta de Asdiwal”, toma como exemplar uma série de formulações e reformulações do antropólogo francês em torno de um estudo alentado, inicialmente objeto de um curso proferido na École Pratique. A vantagem epistemológica de tomar a Gesta como paradigma e não, por exemplo, as Mitológicas, principal obra de Lévi-Strauss no estudo dos mitos, deve-se a que aquela, diferente da extrema fragmentação do corpus desta, oferece um mito completo e suas variantes, o que permite ao epistemólogo melhor avaliar a fecundidade e as adversidades da antropologia estrutural. Trata-se, portanto, de uma prioridade arquitetônica, a qual autoriza lançar luz sobre trabalhos historicamente anteriores e até mais relevantes, porém menos fecundos epistemologicamente.
Os quatro primeiros capítulos constituem o primeiro arco do livro, seguindo uma direção que vai do mais geral para o particular – da noção de estrutura ao estruturalismo, do estruturalismo ao estruturalismo nas ciências humanas, deste ao estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss, e deste último a um estudo paradigmático de LéviStrauss, a Gesta. Os capítulos seguintes traçam outro arco no qual se trata de pensar a singularidade archeológica do que fora até aqui obtido, e assim a questão fundacional retorna ao primeiro plano em definitivo. O quinto capítulo, “As dualidades fundadoras da antropologia estrutural: o caso do sistema mitológico ameríndio”, para além das intenções e resultados manifestos pelo antropólogo em seus estudos sobre os sistemas mitológicos, oferece uma interpretação do pensamento lévi-straussiano segundo a qual este opera primordialmente com díades e instala um conjunto de operações binárias, mas também mediações pelas quais incorpora tríades e figuras mistas, extrapolando assim o binarismo inicial e constituindo enfim um “sistema aberto e plural” (p. 255). A hipótese de Domingues é que a maneira pela qual Lévi-Strauss articula essas categorias epistemológicas subjacentes, já avultadas quando do estudo de Weber e Durkheim no Epistemologia I, permite mostrar e justificar a superioridade da antropologia estrutural para “pensar a diferença”, de modo que seu exame oferece, no âmbito epistêmico, as tais novas bases para o problema da fundamentação das ciências humanas.
O sexto capítulo aborda “O impacto da obra de Lévi-Strauss: legados, críticas e caminhos”, complementando as incursões conceituais do capítulo anterior por um balanço das repercussões da antropologia lévi-straussiana, em especial dos principais desafios por ela enfrentados. Nesse ponto, alguns apreciadores e adversários do eminente antropólogo francês são trazidos à baila e suas contribuições avaliadas, as quais auxiliam o epistemólogo na tarefa de indicar os limites e as carências do projeto antropológico-estrutural. Dentre esses, merecem destaque as críticas de filósofos como Claude Lefort, para quem “Lévi-Strauss é um platônico [que] despreza a história e apreende na sociedade regras em vez de comportamentos” (p. 365); Paul Ricouer, segundo o qual Lévi-Strauss “esvazia o sentido dos mitos [e] professa um estranho kantismo” ao “instalar um sistema de categorias sem o sujeito transcendental” (p. 365); e Jacques Derrida, que acusa a antropologia lévi-straussiana de “logocentrismo” (p. 366). Por outro lado, há antropólogos da escola anglo-saxã, como Edmund Leach, para quem os métodos de Lévi-Strauss conduzem para “onde tudo é possível e nada é verdadeiro”, apreciação que é complementada pelo influente Rodney Needham, o qual vê nas categorias que vigoram nas Estruturas elementares do parentesco uma “generalização abusiva” (p. 367-8). Afora o debate mais amplo da obra de Lévi-Strauss, Domingues documenta o conflito especializado para com hipóteses e trabalhos específicos, como o “mito de Édipo” e, obviamente, as Mitológicas e A gesta de Asdiwal.
As virtudes e vícios do projeto antropológico-estrutural dão azo para um balanço final que confirma a fundação da antropologia – e, por conseguinte, das ciências humanas – e aponta os novos desafios que lhe são reservados. Em primeiro lugar, a despeito do fim da “moda estruturalista”, a obra de Lévi-Strauss parece ainda conservar o seu vigor, de modo que Domingues, rejeitando alguns seguidores do mestre francês, como Eduardo Viveiros de Castro, que o leem como um “pós-estruturalista” avant la lettre, defende que Lévi-Strauss manteve-se sempre fiel a sua orientação original, sendo, portanto, um “estruturalista da velha e boa cepa” e, seguramente, o último “epígono” e “fortaleza” do movimento (cf. p. 80). Em segundo lugar, para além dos estudos dos chamados povos primitivos e da temática do selvagem, a antropologia se volta agora para outras linhas de pesquisa, tais como a antropologia simbólica (Geertz), a antropologia da performance ou pragmática (V. Turner), a antropologia desconstrutivista pós-moderna (J. Clifford e G. Marcus) e a antropologia cognitiva (D. Sperber). Sem dúvida essas novas vias também se preocupam em “pensar a diferença”; todavia, parece que aqui há um dissenso quanto ao significado dessa máxima que chega às raias da antonímia. Se para essas antropologias recentes pensar a diferença significa tratar de assuntos e/ou grupos restritos e até marginalizados, para Lévi-Strauss a diferença precisa ser cogitada num âmbito mais primordial. A consequência direta disso é a contraposição consciente que o antropólogo francês entreviu entre seu projeto de “aderir às coisas mesmas” pela busca do “sentido virtual e de posição” e a empreita pós-moderna de perquirir o “sujeito” e o “sentido por trás dos sentidos” (cf. p. 395-6). Para o epistemólogo, essa bifurcação da antropologia – e, por que não dizer, das próprias ciências humanas – encena as variantes pelas quais os pensadores procuraram lidar com a diferença irredutível dos fenômenos humanos. Uma hipótese que Domingues não escancara, mas também não disfarça, é que essas linhas pós-modernas – sobretudo hermenêuticas segundo a avaliação de Lévi-Strauss – descenderiam justamente do abandono da questão fundacional após o advento do espírito histórico, já apresentado no desfecho de O grau zero. Assim, acompanhar a antropologia estrutural lévi-straussiana significaria caminhar junto daquele modo de pensar a diferença que ainda conserva consigo a relevância da questão fundacional.
Lévi-Strauss e as Américas é o desenlace de uma trilogia iniciada com O grau zero do conhecimento e seguida por Epistemologia das ciências humanas. Embora cada um desses trabalhos possa ser lido separadamente, a sua conjunção constitui o audacioso projeto de fundamentação das ciências humanas cumprido por Ivan Domingues nas últimas três décadas. Felizmente, a sensação do leitor não é a do esgotamento, porém a constatação das peças dispostas sobre o tabuleiro à espera de um vindouro lance inaudito. O livro prova que Domingues deixou o melhor para o final. Uma última consideração, talvez extemporânea. Com a consolidação da pesquisa filosófica de pós-graduação no Brasil – da qual o professor Domingues é parte efetiva no plano acadêmico e institucional –, o novo desafio (nem tão novo assim) é consolidar uma produção filosófica local e que ouse desbravar caminhos para além dos cânones da metrópole ideal. Há quem pense que isso significa fazer história da filosofia de pensadores nacionais, tratar de temas ditos “regionais” ou buscar desesperadamente por gêneses “tupiniquins”. Falta aqui alcançar a sagacidade de um Machado de Assis, o qual, numa fórmula célebre, atestara que um pensador pode ser “homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (Assis, 1979, p. 804), espezinhando aqueles que “só reconhecem espírito nacional nas obras que tratam de assunto local” (p. 803). Ora, assim como Lévi-Strauss não deixa de ser francês ao escrever os seus Tristes trópicos, no qual reflete antropologicamente sobre suas experiências com os índios brasileiros, Domingues não deixa de ser brasileiro ao refletir epistemologicamente sobre Lévi-Strauss. Ou seja, tanto como pareceu atual e pertinente aos europeus o que um antropólogo teria a dizer sobre os ameríndios, para nós é atual e pertinente ouvir o que um epistemólogo tem a dizer sobre o olhar antropológico projetado em nossos conterrâneos. A questão, portanto, talvez não seja de base “histórica ou arqueológica” (archaios), mas quem sabe “epistemológica ou arquitetônica” (arché). Nesse sentido, o projeto epistemológico que culmina com Lévi-Strauss e as Américas não estaria também a nos ensinar um caminho para o nosso amor à sabedoria?
Referências
COUTINHO, A. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979. 4v.
ASSIS, M. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: Coutinho, A. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979. v. 3, p. 801-9.
DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 1991.
_____ O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo: Iluminuras, 1996.
. _____. Le fil et la trame: refléxions sur le temps et l’histoire. Paris: L’Harmattan, 2000.
_____. Epistemologia das ciências humanas. Tomo I: positivismo e hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2004.
_____. Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos. São Paulo: Loyola, 2012.
Evaldo Sampaio da Silva – Departamento de Filosofia. Universidade de Brasília, Brasil. E-mail: evaldosampaio@unb.br
[DR]
Cultura, escola tradição: mitoteca na escola baniwa – PEREIRA (RHH)
PEREIRA, Maria Luiza Garnelo; ALLBUQUERQUE, Gabriel Arcanjo Santos; SAMPAIO, Sully; BRANDÃO, Luís Carlos (Org.). Cultura, escola tradição: mitoteca na escola baniwa. Trad. Guilherme Fernando, Trinho Paiva, Daniel Silva, Irineu Laureano. Manaus: Edua/Fapeam, 2005. 174p. Resenha de: SANTOS, Silvana Rossélia. Tradição oral, narração e mito: a Mitoteca Baniwa. Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 349-353 – 2013.
A Mitoteca Baniwa é composta de uma coletânea de narrativas orais do povo Baniwa, habitante do noroeste da Amazônia brasileira. A coleta, transcrição e tradução desses textos orais aconteceram no trecho médio do rio Içana, no município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas, na sede da Escola Indígena Pamáali, no período de 2004 a 2005, por uma equipe coordenada por Maria Luiza Garnelo, médica sanitarista e antropóloga do Centro de Pesquisa Leônidas & Maria Deane da Fiocruz/Amazonas, e por Sully Sampaio, cientista social e técnico do projeto Rede Autônoma de Saúde Indígena (Rasi) da Universidade Federal do Estado do Amazonas (Ufam).
Nessa equipe de pesquisa, a tarefa de organizador coube ao prof. dr. Gabriel Albuquerque e o design gráfico a Carlos Brandão. Essas narrativas vieram por meio das vozes de narradores anciãos que, convidados a lembrar o que sabiam sobre a atividade pesqueira de seu povo, prontamente recorreram às histórias contadas pelos seus pais e/ou avós, apresentando os mitos que explicam a origem dos rios e peixes do Içana para os Baniwa que habitam esta região do Amazonas.
Para uma percepção aprofundada da beleza do traçado mítico formador dessas histórias, é preciso antes fazer um esforço de compreensão do significado que essas narrativas têm para o povo que as profere. Cléo Busatto, para esclarecer a função da narrativa oral e para revelar como o mito atua sobre o imaginário dos Yanomami, relembra a fala da liderança Davi Kopenawa Yanomami: Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento.
Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há muito tempo, e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem nada dos espíritos, escutam os cantos dos xamãs, e depois querem ver os espíritos por sua vez. É assim que muito antigas, as palavras dos xapiripê sempre voltam a ser novas.1 Os narradores da mitologia baniwa compartilham do mesmo ideal de Kopenawa destacando-se que, além de repassarem os conhecimentos às novas gerações, querem que elas conheçam o quase esquecido, porque “Hoje em dia, só alguns sabem, outros não têm a mínima ideia do que seja isso”, justifica o narrador sobre a importância da rememoração das histórias dos antepassados.
Essa constatação revela um dos grandes males que os povos colonizadores – destaquem-se os catequizadores e evangelistas – causaram aos povos indígenas: o apagamento da cultura, em especial, do seu principal veículo, o mito. Esse que é carregado de um simbolismo, uma emoção, um pensamento, comportamentos sociais e morais muito particulares.
O mito remete os povos tradicionais à sua origem, ao início de todas as coisas, principalmente, do homem. Todos, na origem mítica, surgem por meio de ações sobrenaturais de deuses que objetivam estabelecer os padrões comportamentais pelos quais a sociedade deve se pautar sob pena de castigos insuportáveis e irreversíveis, caso esqueçam tais ensinamentos. Esses aspectos são legitimados no conteúdo das histórias da Mitoteca. O mito também é uma história que alimenta o sentimento de pertencimento ou enraizamento, adotando esse termo antropológico sobre a profunda ligação sentimental do homem ao seu espaço físico. O vínculo desse homem à terra e à natureza é fundamental para que sua herança sociocultural seja mantida. O elo homem-terra baseia sua vida e o mundo na tradição recebida e repassada essencialmente pela fala nas sociedades sem escrita durante as realizações das atividades diárias ou em celebrações específicas para esse fim, como é o caso do rito. O vínculo dos Baniwa com os espaços celestiais e geográficos também mostra como se dão suas ligações e relações terrenas, com as quais criam uma rede social e religiosa de difícil compreensão para os de visão dicotomizada e maniqueísta do mundo.
O mito baniwa, revivido não só no rito, mas também na rememoração desses narradores, traz à tona histórias de um tempo original marcadas de preocupações ainda atuais, tais como as relações entre os habitantes do mesmo espaço tribal, os acordos tácitos ou formais de bem viver, o sagrado como fonte de toda a vida, realizando a intersecção entre mundos extremos e complementares na dicotomia céu e terra, bem e mal, vida e morte.
Os mitos são, conforme Jack Goody, formas orais e, como tais, apresentam o elemento narrativo, apesar de os elementos da narratividade terem presença ‘tênue’ em sua composição. Por considerá-lo um texto que surgiu não de povos com acesso à escrita, mas anteriores a esta, o estudioso desconsidera o conteúdo do mito uma narrativa propriamente dita, justificando que ela nasce em povos com acesso à escrita. Contudo, o caráter narrativo desse texto eminentemente oral é passível de uma leitura literária em razão da presença dos elementos de narratividade, dos sentimentos e da visão de mundo que seus personagens, em tramas simples, com personagens metaforizando humanos tanto no mundo visível quanto no invisível, revelam sobre suas relações sociais e o espaço físico onde vivem.2 Sem pertencer a uma literatura popular ou erudita, estas demarcadas por aspectos conceituais carregados da distinção clássica inaugurada na modernidade entre a civilização e a primitividade, o mito resiste, apesar das interferências que naturalmente ocorrem. Interferências estas que dizem respeito ao contágio, por exemplo, que os povos indígenas sofreram durante o contato com outras culturas, em especial, a do branco.
Uma segunda dicotomia surge da distinção entre as literaturas oral e escrita. As narrativas de tradição oral de povos indígenas são muitas vezes classificadas indevidamente por aqueles mais desatentos que tendem a considerar as narrativas míticas como uma manifestação oral, popular, de um determinado povo, no sentido de narrativas folclóricas. É necessário salientar que os textos míticos transcritos da cultura oral não são folclóricos para quem os profere, ao contrário, são verdade suprema e revelada aos homens pelos deuses que aqui viveram num tempo primordial. Como afirma Junito Brandão, “são a linguagem imagística dos princípios. ‘Traduzem’ a origem de uma instituição, de um hábito, a lógica de um gesto, a economia de um encontro”. Os mitos são herdados dos deuses, portanto sua origem sagrada lhes confere autoridade e autoria únicas. Cada povo tem os mitos que constituem a sua identidade.
Não há estilos de narrativa no universo tribal. Para o indígena, o seu relato oral não é folclore, é, conforme a visão socioantropológica do mito, a história da sua origem, do começo do mundo e de todas as suas diversas relações com o sagrado. Eis a razão por que eles não podem ser confundidos com expressões de uma literatura oral popular: não são ficção, ou seja, histórias ‘inventadas’ pelo homem. Eles são verdade no sentido antropológico do termo. Por isso é bem mais complexo analisar textos oriundos da cultura oral do que puramente aplicar classificações tradicionais da crítica literária a eles.3 Para Câmara Cascudo, o mito não é folclore, não é literatura oral, mas os influencia, porque seu conteúdo sagrado trata também de sentimentos e pensamentos comuns ao homem. Os mitos indígenas baniwa contribuem não só para uma melhor compreensão da cultura amazonense, mas também para o entendimento das práticas folclóricas amazonenses das quais são referência, formando um conjunto muito particular de expressão. O mito circula entre as conversas do índio, do caboclo, do colonizador. Ele extrapola os limites da aldeia e permite aos de fora desse contexto conhecer o pensamento, os anseios, as inquietações, as explicações, os sonhos que povoam as narrativas míticas, as quais trazem também a compreensão e criação da nossa história, do homem como um ser movido por dúvidas, emoções e religiosidade, ávido por explicações e sedento de uma vontade de controlar e ordenar o mundo.4 Os relatos míticos baniwa levam a um tempo primordial em que a preocupação dos deuses do seu panteão era organizar o mundo atual de tal maneira que fosse muito melhor para a humanidade futura. Nesse contexto da tradição oral é que os relatos baniwa são uma manifestação da pluralidade de expressões culturais que pertencem à região amazônica, posto que trazem a cor, o tom, os lugares, as gentes, os sabores e o cheiro não só do indígena, mas também do caboclo amazonense. Esses relatos foram negligenciados por quatro séculos em função de uma preferência pela cultura erudita que valorizou muito os mitos gregos compilados por Homero e, em certa medida, pela cultura popular que, em última instância, aparece como um reflexo da mestiçagem brasileira, valorizando mais os elementos branco, negro e índio de outras regiões do país.
Os textos da Mitoteca provêm de uma sociedade iletrada. Sociedade de tradição oral cuja transcrição de mitos para sua própria língua e a tradução para o português são meios para o registro e compreensão da sua história, da sua tradição. Assim, a parceria entre narradores e tradutores não só rememora os saberes dos antepassados sobre as técnicas de pesca, os tipos de peixes, a forma de como prepará-los para o consumo, mas também dá a conhecer a base da sua formação social, cultural e religiosa por meio do conteúdo de sua linguagem poética carregada de metáforas e analogias a que a riqueza simbólica dessas histórias remete.
Notas
1 BUSATTO, Cléo. A arte de contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço. 3.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2001. p.10-11.
2 GOODY, Jack. Da oralidade à escrita: reflexões sobre o ato de narrar. In: MORETTI, F. (Org.). A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p.47.
3 BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. v.1. Petrópolis (RJ): Vozes, 1986. p.38.
4 CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio Ed.; Brasília: INL, 1978. p.105.
Silvana Rossélia Santos – Mestre em Estudos Literários. Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Avenida General Rodrigo Otávio, 6200, Coroado 1. 69077-000 Manaus – AM – Brasil. silencar71@hotmail.com.
Mito y realidad de la “cultura política latinoamericana”. Debates en Iberoideas | Elías José Palti
A primeira coisa que deve ser dita sobre a obra Mito y realidad de la “cultura política latinoamericana”. Debates en Iberoideas é que ela representa uma novidade promissora no campo editorial historiográfico em seu aspecto formal, extremamente caro aos historiadores, que é o do efetivo debate de ideias. A obra, organizada pelo historiador argentino Elías José Palti1 , é resultado de uma consulta ao foro virtual Iberdoideas2 , composto por um grupo de pesquisadores, estudantes e professores, de distintas origens geográficas e acadêmicas, ligados à história dos conceitos, à história intelectual e à história das linguagens políticas. A proposta do debate foi “pôr em discussão a ideia da existência de uma ‘cultura política latino-americana’” (PALTI: 2010, p.10), para tanto se selecionou uma série de textos recentes pertinentes ao tema, publicados no sítio do foro, entre 2006 e 2008, que foram submetidos ao escrutínio virtual dos membros do grupo na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa.
Cada um dos oito artigos que compõem o volume é acompanhado por uma série de comentários, respostas e tréplicas, o que evidencia o caráter dialógico da obra, a pluralidade de matrizes intelectuais em jogo e a vitalidade de um debate historiográfico, ainda recente nas praias latino-americanas. Leia Mais
Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração | Pedro Prado Custódio
“Seu nome assinala o fim de uma época e o começa de uma nova” Johann Gustav Droysen (Droysen, 2010: 37).
A máxima do historiador alemão Johann Gustav Droysen sobre Alexandre, o Grande, bem ilustra a magnitude em torno da figura do conquistador macedônico. Desde contemporâneos como Cúrcio e Arriano, passando por acadêmicos como o próprio Droysen no século XIX, e chegando aos dias atuais com a obra resenhada, muitos tentaram compreender como apenas uma pessoa conseguiu feitos tão soberbos que assumiram contornos lendários.
O gênio militar. O líder nato. O piedoso com os derrotados. Mas, também, o soberbo. Aquele que se entregou às opulências orientais, que ultrapassou os seres mitológicos.
As lendas em torno de Alexandre são infindáveis e recriadas em consonância com a época que as traz à tona [2]. A obra “Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração”, de Pedro Prado Custódio, toma a assertiva acima como base para analisar as interpretações em torno do filho de Felipe da Macedônia durante o Medievo, a partir do poema Roman d’Alexandre – na versão compilada de Alexandre de Paris – e datada de cerca de 1180-1189.
Pedro Prado Custódio possui formação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo com a tese “As Múltiplas Facetas de Alexandre Magno no Roman d’Alexandre” e é membro da Associação Brasileira de Estudos Medievais. Como é dedutível, sua especialização faz com que o livro adquira matizes mais medievais do que Antigas, ou seja, seu objetivo precípuo não é descrever Alexandre em sua contemporaneidade e sim suas interpretações no Mundo Medieval e a forma como seus mitos adquiriram uma tintura da época: “O passado evocado no Roman d’Alexandre é mais uma representação idealizada e moralizante do presente (século XII)” (Custódio, 2006: 25). Portanto, Custódio enumera quatro das principais facetas alexandrinas e que dão os títulos para os eixos temáticos de sua obra: “Alexandre como soberano/suserano”, “Alexandre como desbravador/cruzado”, “Alexandre como messias/herói mítico”, “Alexandre como um rei orgulhoso: presunção e castigo?” Todos estes tropos estão representados no Roman d’ Alexandre e têm a intenção primordial de apresentar Alexandre como modelo ideal para a incipiente ordem cavaleiresca.
O capítulo “Alexandre como soberano/suserano” se inicia com uma salutar descrição do surgimento de uma literatura vernácula, voltada aos ignorantes em latim, em concomitância com o nascer da ordem supramencionada. Estes dois elementos se unem no Roman d’Alexandre – escrito em francês – e explicam alguns dos porquês de a obra ter desfrutado de grande penetração entre a alta e baixa nobreza e a nascente burguesia. Nesta primeira representação, Alexandre é descrito como um cavaleiro ideal: corajoso, leal, justo, generoso com seus pares e clemente com os vencidos (Custódio, 2006: 27). Ademais, é o precisar lembrar que a figura alexandrina também: “representa os interesses da nobreza em processo de fusão com a cavalaria, buscando sustentação ideológica para sua existência e demonstra muita preocupação com as alterações políticas e sócio-econômicas em curso, temerosa de ter seu status quo ameaçado” (Custódio, 2006: 37).
A partir destas elucubrações, pode-se aferir que havia um norte definido para a reconstrução do conquistador macedônico: a idealização do cavaleiro medieval, dotado de virtudes irrefragáveis, e que tinha suas raízes fincadas no Mundo Antigo. Eis a longa duração, e que possuía, não obstante, devires da burguesia e nobreza medievais. Isto leva à outra das facetas presente no Roman d’Alexandre: a de senhor feudal, por conta da capacidade de Alexandre em equilibrar forças antagônicas e interesses dissonantes dentro de seus domínios (Custódio, 2006: 57). Sendo assim, Alexandre é, a um só tempo, cavaleiro e nobre [3].
No eixo “Alexandre como desbravador/cruzado”, Custódio apresenta a fisionomia do filho de Olímpia como “campeão de Deus” (Custódio, 2006: 31). Partindo do pressuposto que o Mundo Medieval era marcado pela belicosidade e a pujança das práticas religiosas – que se uniram em eventos como as Cruzadas e a Inquisição – Custódio argumenta que: “No Roman d’Alexandre, ele (Alexandre) representa um cristão lutando contra inimigos identificados com muçulmanos, demônios, povos diabólicos do Gog e Magog e com o Anticristo” (Custódio, 2006: 99). Contudo, as associações entre Alexandre e os cruzados possuíam um viés idiossincrático: elas o apresentam mais como um desbravador que ruma ao desconhecido do que como um “missionário” que carrega o estandarte de sua fé, mesmo porque o macedônico não era cristão: “as viagens de Alexandre, no âmbito do cristianismo medieval, podem ser entendidas como peregrinações religiosas em busca de algum tipo de manifestação divina. Seriam como um sacrifício, uma penitência em troca de salvação” (Custódio, 2006: 132).
Destarte, chega-se a mais um dos apanágios do Roman d’Alexandre: uma tentativa de “cristianizar” seu protagonista, notadamente pagão, com o objetivo de aproximá-lo da realidade medieval.
O próximo tópico da obra é “Alexandre como messias/herói mítico”. Segundo o autor, a figura do herói místico é um processo de longuíssima duração, presente em diversas culturas e épocas e que possuía características como a capacidade de rechaçar a ameaça dos povos estrangeiros, repelir a anarquia interna e afastar as catástrofes naturais (Custódio, 2006: 151). Mas, neste caso do Roman d’Alexandre, houve uma readaptação destes ditames à realidade cristã e medieval, de forma que Alexandre apresenta uma ambigüidade em torno de sua origem, fruto de pais humanos e divinos – do ponto de vista do mito, – e que, por fim, acabam por impedi-lo de chegar à sonhada imortalidade (Custódio, 2006: 159).
A lenda do bravio herói e redentor de um povo é recontada mais uma vez, contudo, com um final diferente: “No momento em que Roman d’Alexandre foi produzido buscava-se um denominador comum que unisse as diversas camadas sociais que compunham a cavalaria, e havia também a pretensão de conter o avanço da burguesia ascendente, ameaçadora dos privilégios feudais. Por esse motivo, um herói já mitificado como Alexandre foi adaptado ao contexto da época e transformado no soberano e cavaleiro ideal” (Custódio, 2006: 161).
O último dos capítulos principais, “Alexandre como um rei orgulhoso: presunção e castigo?”, é também o mais exíguo, por se tratar de um sutil traço do conquistador macedônico. Nele, Custódio retoma as formas através das quais as antigas interpretações de um Alexandre desregrado, soberbo por suas conquistas militares, de atos intempestivos regados a vinho, adquiriram um certo verniz moralizante no poema do século XII. Nele, a grandeza dos feitos de um homem nunca deve se dissociar da parcimônia de seus atos.
Alexandre não seguiu este conselho e foi vítima do mais hediondo dos crimes para a sociedade medieval: a traição. Não apenas isso: os traidores – Antipater e Divinuspater – só levaram o crime a cabo por estarem sob os entorpecentes efeitos do vinho, em mais uma das opulentas celebrações daquele que se proclamou descendente do próprio Dionísio. A mensagem é clara: a grandeza de um homem não está apenas em seus atos e conquistas. Está em sua altivez. À glória da imortalidade só estão destinados aqueles de caráter inflexível. Em suma, Alexandre era: “um herói que encarna virtudes cavaleirescas e até messiânicas, mas que perdeu tudo por causa de seu orgulho e ambição, sendo punido com uma morte trágica e precoce” (Custódio, 2006: 231.
“Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração” se encerra com a redescoberta do conquistador macedônico em épocas modernas, nas quais adquiriu contornos que vão do monarca absolutista (Custódio, 2006: 235) ao super-homem nietzschiano (Custódio, 2006: 236). Neste ponto se encontra um dos grandes méritos do livro de Custódio: a sugestão para pesquisas que tomem estas redescobertas com objeto de estudo. Sabe-se que toda história, quando (re)contada adquire vieses dos períodos contemporâneos. Não foi diferente com as lendas em torno do arauto do Helenismo durante o Medievo. Alexandre é uma criatura de quatro faces: suserano, cruzado, herói mítico e até mesmo rei orgulhoso. Entretanto, estas quatro faces se encontram e se harmonizam no ideal do cavaleiro medieval: ele é justo, leal com seus pares, piedoso com os inimigos, defensor de sua fé, desbravador dos mais longínquos rincões, redentor de um povo e paladino da paz, de modo que sua feição adquire traços de herói místico. Contudo, as virtudes supracitadas de nada adiantam quando não estão na presença da sobriedade e da parcimônia. Aquele que ignorar este alerta encontrará uma morte precoce. O Roman d’Alexandre é, pois, um manual de cavalaria. Afinal: “a literatura cavaleiresca é mais prescritiva do que descritiva” (Custódio, 2006: 43).
Concluí-se que Pedro Prado Custódio apresenta uma obra sobremodo pertinente, de boa leitura, grande erudição – os trechos citados do Roman d’Alexandre em francês são traduzidos pelo autor – e densidade, em particular no que diz respeito às muitas fábulas de Alexandre em outras partes do mundo, mencionadas diversas vezes. Além de servir como modelo e base para outras pesquisas que trabalhem com a mitificação de Alexandre em determinado recorte temporal, os escritos de Custódio nos recordam de algo que o historiador jamais pode se esquecer: o passado é construído de acordo com os interesses do presente. Descobrir quais são tais interesses é nosso papel e missão fundamentais.
Agradecimentos
Agradeço meu orientador, Prof. Pedro Paulo Abreu Funari, pelo apoio acadêmico e pelos comentários feitos a respeito deste texto. Menciono, também, o suporte financeiro do CNPq em minha pesquisa de Iniciação Cientifica. As idéias apresentadas são de minha responsabilidade.
Notas
2. Segundo o próprio Pedro Custódio, tais lendas são recontadas: “assumindo feições diversas de acordo com o momento de sua reaparição” (Custódio, 2006: 19).
3. A seguinte citação ilustra bem este viés: “Cavalaria e nobreza têm seus antagonismos escamoteados e harmonizam-se mediante a sublimação dos interesses divergentes” (Custódio, 2006: 41).
Referências
CUSTÓDIO, P. P. Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração. São Paulo Annablume, 2006.
DROYSEN, J. G. Alexandre o Grande. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.
Thiago do Amaral Biazotto1 – Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
CUSTÓDIO, Pedro Prado. Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração. São Paulo: Annablume, 2006. Resenha de: BIAZOTTO, Thiago do Amaral. Cadernos de Clio. Curitiba, v.3, p.323-331, 2012. Acessar publicação original [DR]
Atlântida: pequena história de um mito platônico | Pierre Vidal-Naquet
Devolver o mito à imagem e à poesia, depois de ter
destrinchado sua história, é a dádiva que desejo a
todos aqueles que lerão este pequeno livro (VIDALNAQUET, 2008, p. 177).
Pequena obra-prima é como se pode definir este livro (Atlântida) de Pierre Vidal-Naquet (1930-2006), cujo trabalho renovou os estudos sobre a historiografia greco-romana do mundo antigo (mesmo considerando o fato que tenha sido especialista da Grécia clássica e helenística). Autor de uma vasta produção, em que se destacam: Os assassinos da memória (traduzido no Brasil em 1988), O mundo de Homero (2002), Os gregos, os historiadores, a democracia (2003), e em parceria com Jean-Pierre Vernant: Trabalho e escravidão na Grécia antiga (1989) e Mito e tragédia na Grécia antiga I e II (1991; 1999).
Numa pesquisa minuciosa, o que o autor procura identificar nesta obra é a elaboração de uma historiografia sobre o mito da ‘Atlântida platônica’, ao cotejar evidências arqueológicas e dados etnológicos, que ao longo do tempo serviu para justificar interpretações filosóficas, religiosas e políticas, em cujas ambições estavam: a) a de reconstituição de uma civilização perdida; b) de demonstrar as origens de um povo cuja ‘identidade’ havia sido pouco valorizada; c) de empreender jornadas a lugares distantes, com fins políticos e comerciais; d) e ainda de explorar ilhas e territórios desconhecidos. Em todas essas situações, a narrativa mítica foi se adequando aos novos contextos e espaços geográficos, reconfigurando momentos decisivos (como o de seu desaparecimento), ou se transpondo para outros povos, no interior destas novas narrativas e interpretações. Definir quais foram esses momentos, quais seus interpretes e que mutações foi sofrendo, o mito da ‘Atlântida platônica’, foi à tônica da narrativa de Pierre Vidal-Naquet, coberta de análises criteriosas, mas sem dispensar a fina ironia que é comum aos trabalhos do autor. Leia Mais
Les Lacustres. Archéologie et mythe national | Marc-Antoine Kaeser
A coleção “Le savoir suisse” (www.lesavoirsuisse.ch ) conta atualmente 34 títulos dedicados a tornar acessíveis ao grande público as pesquisas universitárias da área francófona suíça, com temas históricos e questões pertinentes à identidade nacional da Confederação Helvética – mas, por estranho que pareça, não há ainda um volume dedicado aos helvécios. A presente obra, n. 14 da coleção, tem por objetivo refazer e criticar o mito da origem dessa mesma identidade nacional: os povos lacustres, os habitantes pré-históricos cujas características peculiares teriam marcado o ponto de partida da cultura alpina nessa região de montanhas e lagos que hoje se conhece pelo nome de Suiça.
Marc-Antoine Kaeser tem um perfil que o assinala como um cientista que há tempos vem se debruçando sobre o tema: entre suas publicações estão as que versam sobre a ideologia do suposto pacifismo lacustre (1997), a busca de antepassados operacionais (1998), o mito do fantasma lacustre (2000), as representações coletivas e construção da identidade nacional (2002) – temas que se destacam nos títulos que já publicou, e que mostram uma intenção clara de corrigir o discurso e a mentalidade políticas alimentadas por teorias científicas mais idealistas do que realistas. A frase com que abre este volume é bem explícita: “Há um século e meio a aldeia lacustre ocupa um lugar privilegiado na representação coletiva do passado pré-histórico da Suíça” (p. 9). E, contudo, hoje em dia os suíços se perguntam: esse povo lacustre existiu mesmo, dessa maneira como nos descrevem os historiadores? E eles são de fato os nossos antepassados? A resposta vem logo (ib.) radical: “A arqueologia contemporânea responde simplesmente com uma negação categórica – porém circunstanciada”. De fato ao longo do livro M.A. Kaeser tempera bastante essa negação: os povos pré-históricos alpinos não viviam em aldeias lacustres de palafitas, mas as povoações construídas nas margens dos lagos tinham algumas casas edificadas sobre postes dentro de água. Não existiram aquelas grandes plataformas que avançavam lago adentro, suportadas por colunas de madeira, e por sua vez suportando toda a aldeia. No sentido tradicional do termo não houve povo lacustre nem civilização lacustre entre as montanhas alpinas, mas houve uma população dispersa e variada, subsistindo com diversos tipos de economia além da pesca no lago, que construiu aldeias junto aos lagos – não sobre eles.
O autor passa a descrever a origem e evolução da “mitologia nacionalista”, começando pela grande seca de 1853/54 que, tendo posto a descoberto extensos trechos nas margens dos lagos, permitiu aos estudiosos identificar e reconstituir as populações ditas lacustres; e coube ao Presidente da Associação dos Antiquários de Zurique, Ferdinand Keller, iniciar uma série de publicações que constituíram o início da construção desse mito da origem nacional suíça. Numa época em que, após os tumultos das invasões francesas, a consciência nacional se afirmava por toda a Europa, a descoberta de que a Suíça também tinha um passado pré-romano, e que esse passado era digno de memória, dava aos suíços antepassados dos quais podiam se orgulhar. Daí até à representação gráfica idealizada das aldeias lacustres foi um passo. Kaeser ilustra a sua obra com muitos desenhos desse período, quando os “proto-helvécios” apareciam como vivendo em paz e harmonia com a natureza. Inspirados em Rousseau os historiadores suíços discípulos de Ferdinand Keller repassaram para esses ancestrais imaginários as virtudes que os suíços contemporâneos se atribuem: austeridade, pureza, não contaminação pelos males da civilização, cultivo da paz; o povo lacustre teria ainda sido o criador da linguagem, e, portanto, seria a sociedade humana mais antiga – um oásis de tranqüilidade no meio do mundo agitado (p. 62), um paraíso perdido para os demais, mas preservado para os suíços.
O autor vai descrevendo a construção popular dessa identidade nacional, mostrando o papel político da arqueologia. Contudo na década de 1920 os arqueólogos alemães, na seqüência dos trabalhos de Hans Reinerth, iniciaram o combate à “ideologia lacustre suíça”, negando a originalidade dessa sociedade e até sua existência; os suíços viram na destruição da representação dos lacustres uma agressão não só à pré-história nacional, mas à própria identidade nacional suíça, e, portanto, um atentado perpetrado pelo imperialismo alemão, secundado pelas ambições nazistas. A reação nacionalista não se fez esperar, mas a retomada das pesquisas arqueológicas sob outras perspectivas acabou dando razão, parcial, às críticas. Concluiu-se que os povos pré-históricos que ocuparam o atual território da Suíça viviam em diversos tipos de meios físicos (não só nos lagos), portanto em culturas diferenciadas (não homogêneas), e apenas alguns deles construíram algumas casas sobre plataformas de palafitas. As pesquisas arqueológicas de Emil Vogt na década de 1950 estabeleceram novos parâmetros de investigação que foram se afirmando até hoje, e que o autor vai apresentando numa narrativa acessível mesmo para quem não conhece arqueologia nem está a par dos embates doutrinários do nacionalismo suíço; mapas, gráficos, uma breve cronologia (desde o fim da glaciação de Würm até à submissão dos helvécios em 58 a.C.) além de uma bibliografia sucinta ajudam o leitor a acompanhar a argumentação de Marc-Antoine Kaeser.
A obra termina com algumas considerações e retrospectivas: por um lado o “mito da civilização lacustre” persiste, mas, menos ingênuo e menos “crença” adaptou-se eficazmente a idéias recentes incarnando o ideal de uma Suíça “harmoniosa, pacífica, igualitária e solidária”: mais ainda, a aldeia lacustre passou a ser uma referência para a doutrina ecológica (p. 132). Por outro lado, a arqueologia tomou suas distâncias com respeito a essa representação coletiva: “a arqueologia deve reconhecer e assumir o fato de que a interpretação do passado comporta quase inevitavelmente uma dimensão ideológica”; porém onde essas representações incluem visões errôneas e imaginações fictícias o arqueólogo tem obrigação de intervir e desmenti-las. Deve fazê-lo, contudo, de maneira pontual, e não atacar o mito como um todo, pois este é um saber que dá significado ao presente. O arqueólogo, ao contrário, deve abster-se do presente e dos saberes não científicos “para interrogar e compreender o passado” (p. 133).
João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
KAESER, Marc-Antoine. Les Lacustres. Archéologie et mythe national. Lausanne: Presses polytechniques; Universitaires romandes, 2004. Resenha de: LUPI, João. Povos lacustres: arqueologia, história ou mito? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 55-56, 2006. Acessar publicação original [DR]
A princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888) – GRAÇA FILHO (VH)
GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume. São João del Rei: UFSJ, Funtir, 2002. Resenha de: BOTELHO, Tarcísio R. Varia História, Belo Horizonte, v.20, n.31, p. 275-277, jan., 2004.
Desde a guinada de final dos anos 1970 e princípios dos anos 1980, a historiografia econômica e demográfica de Minas Gerais tem conhecido enormes avanços. Ela tem contribuído para uma revisão do significado dos séculos XVIII e, sobretudo, XIX na constituição do mercado interno, na demografia escrava e em outras dimensões da vida brasileira do período. A obra de Afonso de Alencastro Graça Filho vem acrescentar novos detalhes ao quadro já traçado e enriquecer as perspectivas com que se tem elaborado as interpretações sobre a província mineira. Versão revisada da sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História do IFCS/UFRJ, sob orientação da professora doutora Maria Yedda Linhares, ela se inscreve em um duplo esforço coletivo: de um lado, a preocupação com a história agrária e regional, que marca a atuação de sua orientadora; e de outro, o esforço em repensar o passado provincial mineiro.
O livro tem por objetivo acompanhar a evolução da economia e das estruturas agrárias da região do Termo de São João del Rei, cabeça da Comarca do Rio das Mortes. A região sempre se caracterizou como o celeiro das Minas Gerais, posto que desde o século XVIII a agricultura sobrepujou a mineração como sua atividade central. O trabalho em análise, contudo, focaliza o século XIX, mais precisamente as décadas de 1830 a 1880. As hipóteses de trabalho prendem-se à capacidade de acumulação endógena dessa economia voltada para o abastecimento. Em relação ao comércio, o autor pretende demonstrar que “além de possuir uma boa capacidade de acumulação de capitais na intermediação dos negócios interprovinciais, especialmente na primeira metade do século XIX, suas estratégias de apropriação alcançavam outra dimensão, esquecida pela historiografia, de centro financeiro” (p. 25).
Para realizar a empreitada, o trabalho estrutura-se em cinco capítulos, além da introdução e das conclusões. Na introdução, são revistas algumas das principais abordagens historiográficas sobre a economia mineira no século XIX, justifica-se o enfoque regional e apresenta-se algumas perspectivas teóricas a serem adotadas. O Capítulo 1, intitulado “A Comarca do Rio das Mortes e a princesa do oeste: o ouro da lavoura das vertentes”, descreve em rápidas linhas a evolução político-administrativa de Minas Gerais ao longo dos séculos XVIII e XIX e apresenta um primeiro quadro geral da economia da região escolhida para análise. Com base em dados demográficos e em evidências colhidas de inventários post-mortem e de relatos de viajantes, o autor aponta para a capacidade de acumulação de capitais por parte da elite sanjoanense, sobretudo a partir de suas atividades comerciais.
O Capítulo 2 (“O comércio de São João del Rei: comendadores e endividados”) procura dissecar o conteúdo e a natureza desse comércio. Em primeiro lugar, são apresentadas estatísticas de produção, de exportações e de importações e informações sobre licenças comerciais e de ofícios da vila de São João del Rei. Em seguida, os inventários de grandes comerciantes são analisados a fim de expor as relações de endividamento e os mecanismos de financiamento da produção e do consumo locais. As relações familiares entre os endinheirados locais também serviam para reforçar a acumulação desses capitais. O padrão dos investimentos mostra como esses homens compartilharam atividades comerciais e agropecuárias. Além disso, à medida que avançava o século XIX, cresciam os capitais alocados em títulos públicos ou investidos em companhias industriais, estabelecimentos financeiros e empresas de transportes (a Estrada de Ferro Oeste de Minas e a Companhia União e Indústria).
No Capítulo 3 (“A civilização do milho: a estrutura agrária de São João del Rei”), expõe-se o padrão de financiamento da agropecuária local, demonstrando como São João del Rei drenava o crédito e o comércio atacadista da Comarca do Rio das Mortes e com isso criava laços de dependência com produtores de vastas regiões da província. A agricultura regional, por sua vez, apresentava uma estrutura produtiva diversificada, comportando desde pequenos agricultores até fazendas escravistas de alimentos que estavam à altura das médias e grandes fazendas da agroexportação quanto à posse de escravos e à concentração fundiária. Também para os agricultores, as relações familiares eram importantes para sua reprodução social, o que se reflete na importância dos dotes e das terras herdadas. A análise dos inventários desse grupo mostra sua diferenciação face aos comerciantes: não investiam em apólices ou ações, concentravam suas riquezas em imóveis rurais e escravaria, apresentavam um monte-mór médio inferior a metade do observado entre os comerciantes.
O Capítulo 4, intitulado “Barões e roceiros: simplicidade e ostentação na sociedade sanjoanense”, é o mais curto de todos. Em oito páginas, procura mostrar que a riqueza em São João del Rei apresenta um grau de concentração significativamente menor que outros lugares, notadamente Salvador e Rio de Janeiro.
Esses quatro primeiros capítulos apresentam um quadro bastante expressivo da economia regional, embora pequem pela falta de uma maior ordenação dos argumentos de modo que o leitor possa navegar de forma mais tranqüila pela enorme massa de informações e dados. Todos esses problemas, porém, são superados pelo que se descortina no quinto e último capítulo.
O Capítulo 5 intitula-se “Preços e salários: os ciclos econômicos de São João del Rei”. Em primeiro lugar, o autor constrói séries de preços com base nos dados dos livros de receitas e despesas da Santa Casa de Misericórdia de São João del Rei. Divididos entre gêneros de importação, gêneros de produção e consumo local, gêneros de exportação e produtos de origem animal, foi possível estabelecer períodos de alta e de baixa para os diversos produtos que apareciam nas pautas de compras da Santa Casa. Com esses dados, construiu-se um índice geral de preços (não ponderado) que permitiu acompanhar as conjunturas de flutuação dos preços. Ao compará-los com o observado para o Rio de Janeiro e para Salvador, o autor pôde concluir que “a concordância entre as conjunturas de preços de São João del Rei e outras cidades brasileiras nos permite questionar o caráter ‘natural’ ou ‘vicinal’ da economia do sul de Minas, particularmente na segunda metade do século XIX” (p. 190). Trata-se de uma conclusão extremamente relevante, já que pela primeira vez é possível testar essa hipótese da economia vicinal mineira a partir de evidências empíricas bastante sólidas. A partir daí, o autor procura articular a análise dessa economia regional com as discussões recentes sobre a economia escravista brasileira em geral e as possibilidades de uma acumulação endógena de capitais. Nesse sentido, o seu trabalho contribui não apenas para a compreensão da dinâmica regional, mas colonial/nacional como um todo. Na seqüência desse capítulo, a observação do mercado de terras, das condições de reprodução do contigente cativo (via reprodução natural e tráfico) e do movimento de salários tornam ainda mais sofisticada a análise das condições de reprodução das fazendas escravistas de alimentos e de todo um mercado regional que se estruturava a partir delas.
Como se vê, trata-se de uma obra de leitura obrigatória para todos os que se interessam pela história regional (e não apenas pela história de Minas Gerais), bem como para aqueles envolvidos com o debate em torno do caráter da economia escravista brasileira e seus rumos no século XIX. Alguns problemas de revisão (como a numeração de notas finais e outros) e de editoração (dadas as dificuldades para se ler os mapas e os gráficos de preços e salários), que podem ser resolvidos em uma segunda edição, não tiram o brilho da publicação, ainda mais pela incorporação de interessante iconografia de São João de Rei e sua elite.
Tarcísio R. Botelho – Professor da PUC-MG.
[DR]
Cleopatra: Beyond the Myth – CHAUVEAU (CSS)
CHAUVEAU, Michel (translated from the French by David Lorton). Cleopatra: Beyond the Myth. Ithaca and London: Cornell University Press, 2002. 104p. Resenha de: Canadian Social Studies, v.38, n.3, p., 2004.
In Cleopatra: Beyond the Myth, Michel Chauveau attempts, as far as possible, to set the record straight regarding the myriad myths and facts which have followed this ancient queen through the centuries. Perhaps one of its greatest traits is that it is a relatively short book, making a somewhat complex and intimidating subject accessible. He does an admirable job of such an arduous task, and I found this a compelling, engaging and titillating book that left me wanting to learn more.
Chauveau is a former member of a noted French archaeological institute in Cairo and, at press time, was director of studies at L’Ecole Pratique in Paris. While this lends a great deal of credibility to his work, the extensive list of citations, in French, German, Italian and English, further demonstrates a wide and varied research base for his subject. This book may be useful as a secondary text by college professors, or as a supplementary resource at lower levels. Maps are provided on a front overleaf and following the Translator’s note which helps to orient the reader as to the time and place covered by this work. A small note of caution should be considered as this is a translation, and some of the nuances of the subject may have been lost or altered in that translation. The book is made up of straight text with a Chronology of the Ptolemies and a few selections from Ancient Texts, as well as excellent notes, bibliography and index.
Chauveau explains early on that the ancient accounts of Cleopatra’s life are limited. He notes that Egypt at that time was a satellite of Rome, and that it is likely, in part, due to her stormy affairs with both Julius Caesar and Antony that we know as much as we do. He also states from the beginning that he is trying to sift truth from fiction and provide a somewhat more accurate understanding of this complex woman.
Woven throughout Cleopatra are a great many details about the functioning of Roman society which was so entwined with Cleopatra’s rise, rule and eventual demise. It is largely through Roman documents that many of the facts about her have been verifiable. Some knowledge of this period of history is definitely beneficial, and makes the understanding of events much easier.
Cleopatra’s family history is detailed and her birthright to the Egyptian throne is established through a long line of powerful women of the Lagide family. Chauveau does, however, raise the question of her legitimacy when he describes her as daughter of the royal couple, fruit of a morganatic union, or even illegitimate (p. 9). From the very beginning, her life is shrouded in mystery and unanswered questions. What is not in doubt, however, is her intelligence and the fact that she must have had a considerable and extensive education. She spoke at least seven languages Hebrew, Aramaic, Arabic, Ethiopian, Median, Parthian, and Latin at a time when even royal women were not usually extensively educated.
The future queen’s formative years were filled with conflict and intrigue as her family tried to come to terms with Roman aggression and she learned many ruthless lessons regarding power and alliance during this period. It is also suggested that once her father had died, she may have displaced her brother on the throne, overthrowing the dying king’s wishes. Then, through a series of intrigues, Cleopatra ultimately became victorious and took her place as sole ruler of Egypt. Part of why this was possible is that she came to power during the Roman Civil War. Caesar went to Egypt to plunder its riches in order to support Roman military exploits, and it was at this time that one of the famous myths of Cleopatra occurred. Chauveau maintains that she slipped through enemy lines, persuaded a friend to wrap her in a carpet and deliver her to Caesar’s private quarters, where she used seduction, intelligence and compassion to win him over. This verifies one of her well-known adventures, and clearly demonstrates a great deal of audacity and creativity on her part. Her relationship with Caesar is also authenticated by this as he describes their close relationship, her travelling to Rome and staying in his house, and eventually Caesar’s acknowledgement of Cleopatra’s son as his own.
That this famed Egyptian queen was ruthless and manipulative is beyond question. Chauveau insinuates that she had her 15-year-old brother killed so that she could usurp total control. In another instance Caesar called for her help and while she publicly refused aid, one of her generals sent a fleet to assist him. By these means she could await the outcome of the battle and denounce or support Caesar’s actions whichever served her purposes best. While these traits are not unique to Cleopatra, they are more often attributed to male rulers, but since she was a ruler and acted as such, was she really any more remarkable than her male contemporaries? Once Caesar was killed, Antony became a strong force in the Roman Empire, and he too turned to Egypt to see what support he could garner from it. To that end he summoned Cleopatra and her arrival at Tarsos and lavish display flattered him immensely. Clearly she knew how to manipulate powerful men. When he visited her at Alexandria and stayed for months it was clear that he too had fallen for her romantically. Chauveau clearly states that they were lovers (p. 46), and Antony also later acknowledged two of her children as his own.
Perhaps one of the most noted legends about Cleopatra is about how she met her end. Her army had been defeated and her rule was clearly at an end, so friends helped her to seal herself up in her mausoleum with her treasures. Chauveau presents it as fact that Antony was told she was dead and so committed suicide. He was, however, hauled up by ropes to where she was concealed and died in her arms. Octavian, a long time enemy, captured her and her treasure and confronted her with her past errors. Whether Octavian gave consent, or whether Cleopatra’s friends managed to help her without his knowledge, she did commit suicide. Literature and Hollywood perpetuate the myth of her inducing snakes to bite her, but it is more likely that she used poison. So ended the life of one of the most fabled, and perhaps misunderstood, women of history.
The legacy which Cleopatra left, regardless of the truth of the myths, is quite significant. According to Chauveau, she had reconstituted in large part the Lagide Empire of her forbears, which had dominated the Mediterranean world in the third century (p. 52). Using her considerable intelligence, beauty and ruthlessness, she accomplished what many men before her had done. Perhaps because she was a woman in a time of male dominance such exploits became the stuff of speculation, and were embellished through the ages.
While Chauveau’s work clears up many discrepancies, it also raises more questions. For example, did Cleopatra really commit suicide or was she murdered by Octavian’s minions? What would her role have been in a new Egypt had she survived? Was she merely a lusty, adulterous manipulator, or where her actions truly designed to assure the greatness of Egypt? Perhaps these questions are precisely that part of Cleopatra’s mystique that will live on forever.
E. Senger – Henry Wise Wood High School. Calgary, Alberta.
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Mith into Art: Poet and Painter in Classical Geece – SCHAPIRO (RHAA)
SCHAPIRO, Harvey Alan. Mith into Art: Poet and Painter in Classical Geece. Sn.: Routledge, 1994. 196p. Resenha de SARIAN, Haiganuch. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.2, p.355-357, 1995/1996.
Haiganuch Sarian – Universidade de São Paulo, Brasil.
Acesso somente pelo link original
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