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O discurso da natureza: ecologia e política na América Latina – MIRES (H-Unesp)
MIRES, Fernando. O discurso da natureza: ecologia e política na América Latina. Organização e tradução Vicente Rosa Alves. Florianópolis, Ed. da UFSC; Bernúncia Editora, 2012, 242 p. Resenha de: PERES, Jackson Alexsandro. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.
O livro O discurso da natureza: ecologia e política na América Latina, foi publicado originalmente em 1990 na Costa Rica, e depois também no Chile, Argentina, Itália e Alemanha, o que demonstra a relevância do tema. Somente em 2012, ganhou uma edição em língua portuguesa, traduzida e organizada por Vicente Alves e publicada pela editora da Universidade Federal de Santa Catarina em parceria com a Bernúncia Editora. Os 22 anos que separam a primeira publicação da edição de 2012 foram de crescimento dos movimentos ecológicos em todo o mundo e de surgimento de novos conceitos relacionados ao assunto. Porém, passados tantos anos, a obra se mantém atual em muitos aspectos. Nas palavras do autor Fernando Mires, na apresentação à edição brasileira, os problemas ecológicos, principalmente na América Latina, permanecem tão vigentes como no final da década de 1980.
Mires, sociólogo, nasceu no Chile em 1943. Até 1973 foi professor de Sociologia e História do Chile no Instituto de Sociologia da Universidade de Concepción. Atua desde 1975 como docente pesquisador no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Oldenburg, Alemanha, país que lhe concedeu o título de Privat Dozent na área de Política Internacional – máximo grau acadêmico conferido pelas universidades alemãs. Sua obra, aqui resenhada, constitui a primeira de uma trilogia na qual ele propõe o estudo de temas fundamentais para a construção do que ele considera uma “nova radicalidade social”. O segundo livro da trilogia citada é El discurso de la indianidad (San José, Quito, 1992); e o terceiro, El discurso de la miséria (Caracas, 1994). Neles, o autor discute as relações entre indianidade e política e a construção da miséria social e política, respectivamente. Em sua trilogia, o interesse de Mires é questionar a lógica interna da modernidade por meio dos antagonismos e contrastes que esta produziu, e em O discurso da natureza o objetivo central é apresentar os pressupostos para essa nova radicalidade social.
O livro está dividido em quatro capítulos e um comentário final. Mires já deixa claro seu intento logo na introdução da obra e a conceitua como polêmica, por ser uma proposta em contraposição às ideologias do crescimento econômico. Nesse ponto, os argumentos fica clara a atualidade de O discurso da natureza, visto que o crescimento econômico é ainda o objetivo que projeta a maioria dos países. Para se contrapor a isso, nos é apresentado o que o autor chama de “nova radicalidade social”. Uma nova radicalidade seria necessária porque, diante dos atuais problemas – como os feministas, os religiosos e também os ecológicos –, a concepção mais drástica até então contra a sociedade capitalista e de consumo, que eram as teorias socialistas, não é mais suficientemente radical para se opor a essa nova demanda.
A longa marcha da Ecologia é o título do primeiro capítulo. Nele se discute como a Ecologia, de ciência pura que residia dentro dos laboratórios, passou a fazer parte do meio político como um dos temas dominantes. Mires apresenta como documento inaugural do que ele chama de apogeu ecológico contemporâneo o relatório apresentado pelo Clube de Roma em 1972 sob o título “Os limites do crescimento”. Segundo o autor, o documento evidencia os problemas ambientais decorrentes do esgotamento dos recursos naturais, em tom catastrófico.
As avaliações feitas naquele relatório se tornaram tendências realistas no início da década de 1990, ano da primeira edição da obra. Transcorrem nesse capítulo as discussões sobre as proporções alcançadas pelo relatório de 1972 e suas polêmicas, e são discutidos outros documentos que, na época, formularam críticas a “Os limites do crescimento”. Aliás, este seria um título mais adequado ao primeiro capítulo, não apenas pela citação do relatório do Clube de Roma, mas por trazer, a partir desse documento, as discussões acerca da Ecologia e de sua dimensão política. Isso porque, quando se pensa em Ecologia e preservação, esbarra-se na pressão sociopolítica e nos discursos em prol do crescimento econômico, sendo este o foco da última parte do primeiro capítulo e também a discussão mais importante: as tensões entre Economia e Ecologia. Pensar ecologicamente é fazer uso daquilo que o autor chama de “segunda crítica à Economia Política”, equivalente à “nova radicalidade social”. Diferenciando-se da primeira crítica à economia burguesa atribuída a Karl Marx, essa segunda crítica à economia política pretende acusar a economia burguesa e marxista de ter ocultado o significado da natureza na formação do capital. Ou seja, quando se prega o desenvolvimento econômico, que nada mais é do que o desenvolvimento de métodos mais intensivos na exploração do meio natural, se omite o preço social da perda desse meio.
Após essa contextualização, o autor busca entender, agora no segundo capítulo, Rumo à formação de um pensamento ecológico na América Latina, o porquê de a Ecologia haver demorado tanto tempo para penetrar nos círculos políticos da América Latina. É apontado ainda um atraso no que concerne ao uso da Ecologia como arma crítica e analítica, ao comparar os países latino-americanos com alguns da Europa e com os Estados Unidos da América. Nesse ponto, o argumento que Mires utiliza para defender sua tese é que os países latino-americanos possuem características socioculturais e ambientais que são refletidas no discurso desenvolvimentista hegemônico neles proferido. A dificuldade em desenvolver um pensamento crítico acerca das discussões ecológicas resulta, segundo ele, da crença compartilhada por políticos, empresários e teóricos de esquerda e direita de que a América Latina atravessa uma revolução industrial, como aquela vivida na Europa nos séculos XVIII e XIX. Dessa crença emerge a ilusão de que existem ainda enormes áreas não utilizadas que estão à espera de conquistadores. Esse pensamento faz com que governos – e neste ponto o Brasil é citado muitas vezes – incentivem a ocupação dessas áreas. Outro viés usado em prol do desenvolvimentismo seria o “álibi da dependência”, ou seja, a culpabilidade dos países imperialistas, em uma versão nacionalista dos discursos. Assim, o discurso dita que a preocupação com temas ecológicos deveria ser dos países ricos e industrializados, já que os países pobres têm outros problemas a sanar, como a fome e a miséria. Outro ponto recorrente é culpar os países imperialistas de utilizar ideologias ecológicas como uma manobra para impedir o crescimento de países pobres.
Para uma leitura ecológica da realidade latino-americana – como o próprio título do terceiro capítulo sugere -, se ocupa em mostrar que, apesar de parecer que não existe consciência ecológica na América Latina, ela subsiste. A diferença é que, enquanto nos países europeus essa consciência alcançou notável grau de expressão política, na América Latina ela se mantém dissimulada, em nível cultural, nas “economias naturais”. Os grupos que o autor menciona como praticantes desse tipo de economia são as próprias vítimas da modernização: índios e camponeses. Por isso, utiliza o termo Etnoecologia, o que não levaria em conta somente os supostos sistemas naturais objetivos, mas sim os sistemas naturais que estão relacionados com os seres humanos, trazendo exemplos dessa relação com dois povos distintos: os Shuaras (Shuar) e os Aimarás. Para Fernando Mires, as origens da modernidade latino-americana ocorreram com a colonização hispano-portuguesa, pois as crenças trazidas pelos colonizadores continuam atuais. A crença eurocêntrica como um ideal de desenvolvimentismo e a crença de que os recursos naturais do continente são infinitos são as mais recorrentes.
O quarto capítulo, intitulado O modo de produção amazônico: ou os milagres da antiecologia, revela uma interessante reflexão sobre os desdobramentos da ocupação da Floresta Amazônica, incentivada pelas crenças apresentadas no capítulo anterior. É, portanto, segundo o autor, o melhor exemplo da imposição de relações de valor, ou seja, de impor a lógica de lucro e de acumulação aos consumidores imediatos da natureza (indígenas e camponeses) e também o lugar no mapa onde se comete em grande escala atos programados de “ecocídio” e “etnocídio”. Em resumo, Mires conceitua o modo de produção amazônico como um complexo econômico orientado pela destruição da natureza em virtude da obtenção imediata de lucros. Discute, além disso, algumas situações ocorridas principalmente no Brasil, como o alagamento de grandes áreas devido à construção de barragens para produção de energia elétrica e o desmatamento da floresta para abrir áreas de plantio, em razão do mito da fertilidade milagrosa do solo amazônico. A discussão, em todo o capítulo, gira em torno daqueles que são imediatamente afetados pela ideologia do crescimento por esses processos. Os povos que são imediatamente afetados são chamados pelo autor de “sujeitos da resistência ecológica”. Isso porque, além de enfrentar policiais, empresários e latifundiários, esses atores têm ainda que modificar sua própria cultura.
Ao apresentar seu comentário final, Mires retoma os pontos discutidos nos quatro capítulos reforçando a ideia de que a Ecologia por si só não possui um valor político, tampouco ditará os modelos de ações políticas, mas é, sobretudo, parte do que se espera de uma nova radicalidade social. Podemos corroborar o argumento do autor ao classificar o livro como polêmico. Também é uma importante referência para entender, sob o ponto de vista social, como se deu a trajetória percorrida pela Ecologia: de ciência pura para uma consciência coletiva que culmina em debates políticos e econômicos. Atual na grande maioria de suas discussões, o livro também o é, principalmente no que concerne à ideologia do crescimento, deliberadamente em prática nos países latino-americanos. Por outro lado, 22 anos é muito tempo, principalmente se pensarmos na velocidade com que ocorreram as mudanças no século XX. Devido a sua importância, uma atualização se faz necessária, principalmente no tocante aos termos conceituais e a práticas e discursos de movimentos ecológicos. Apesar disso, concordamos que o discurso ecológico não conseguiu ainda desativar o discurso economicista e que é necessário que o livro, em breve, deixe de ser um livro atual.
Jackson Alexsandro Peres – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC.