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Os militares e a crise brasileira | João Roberto Martins
João Roberto Martins Filho Foto: Gabriela Di Bella/The Intercept
Em 2020, João Roberto Martins Filho publicou a segunda edição de O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969), adaptação da sua tese de Doutorado em Ciência Política, orientada por Décio Saes e defendida em 1989. Nesse livro, manteve a proposição de que as forças armadas brasileiras configuram um partido político fortalecido na emergência uma “ideologia militar fortemente calcada na repulsa à política civil”, cujas pautas correlatas e consequentes seriam a estabilidade social e a garantia da ordem. (p.55). A tese contrapunha-se à interpretação da experiência militar como um conflito entre dois ideais capitalistas: o internacionalismo da Escola Superior de Guerra (ESG) e o nacionalismo de grupos minoritários. Um ano depois da republicação, Martins Filho nos brinda com outro estudos sobre “militares” e “crise” dos anos recentes, reunindo dezessete autores vinculados a instituições de ensino e pesquisa nas áreas de Estudos de Defesa, Segurança Internacional, Relações Internacionais, Estudos Estratégicos, Ciência Política e História Contemporânea, Antropologia e, ainda, profissionais do jornalismo e da área militar.
Se o organizador registra que a proposição de 1989 ficou no limbo até 2005, agora restam poucas dúvidas de que os militares representam funções e estratégias de um partido político para si mesmos e que são corresponsáveis pelos ataques à democracia liberal brasileira, perpetrados, por exemplo, desde 2013. O leitor, contudo, encontrará alguma dificuldade para chegar às provas dessa responsabilização. A coletânea é qualitativamente desequilibrada e variada em termos de gênero textual. Verá divergências compreensíveis e saudáveis, em termos de fontes e interpretações. A credibilidade das Forças Armadas (FA), na última década, por exemplo, é tida como em declínio e em ascensão; as políticas dos governos progressistas em termos de defesa são vistas positivamente e negativamente; e a profissionalização dos militares é fundamental e nula para a sua submissão ao controle político civil. Leia Mais
Os militares e a crise brasileira | João Roberto Martins Filho
João Roberto Martins Filho | Foto: Gabriela Di Bela/The Intercept
Os militares e a crise brasileira é uma obra escrita a muitas mãos como declara o seu apresentador e organizador, o cientista político, João Roberto Martins Filho. São pesquisadores das ciências sociais e humanas que destrincham, com análises e evidências consistentes, o emaranhado em que nos encontramos, desde a retomada, em alta intensidade, da ação política das Forças Armadas quando vislumbraram em Jair Bolsonaro, o capitão “dono de uma fé de ofício pobre, reprovável, brutal e curta”, o representante para liderar a agenda autoritária que estava em latência desde o fim da ditadura militar que oprimiu o Brasil, de 1964 até 1985.
Os responsáveis pelos quinze textos da coletânea são parte significativa do conjunto de estudiosos sobre as Forças Armadas. Muitos estão conectados à Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e a maioria têm larga produção acadêmica na área. O livro é composto por quinze capítulos e uma entrevista com Héctor Saint-Pierre, concedida à Ana Penido. Na fala, esse especialista discorre sobre papel desempenhado pelas Forças Armadas no contexto internacional a partir de três temas: a autonomia diante do Estado e sua relação com a democracia; as percepções de hegemonia regional; e os conceitos de inimigo na dinâmica de guerra e paz. Leia Mais
Botas militares para salvar la democracia: miradas a las acciones de pacificación en la gobernación de Caldas 1953- 1964 | Jhon Jaime Correa Ramírez, Natalia Agudelo Castañeda, Edwin Mauricio López García
Un texto que a través de sus cinco capítulos y epílogo navega sobre dos singularidades. De un lado, la geografía e historia del antiguo Caldas, y de otro, el ejercicio del poder gubernamental de las Fuerzas Armadas. De esta doble «ecualización» surge Botas militares para salvar la democracia… como una ejercicio de historia bajo la pulsión de comprender no la Violencia en mayúscula como nos la enseñaron, sino los afanes de paz de un país que a comienzo de la década de 1954 vio la llegada de los militares al poder como un segundo proceso emancipatorio, con el ascenso del teniente general Gustavo Rojas Pinilla al poder tras el «golpe de opinión», que puso fin a la presidencia de Laureano Gómez y su reemplazo Roberto Urdaneta Arbeláez. En 72 horas, Colombia tuvo tres presidentes, una muestra de la crispación en la elite política tanto liberal como conservadora con el proyecto político corporativista de Laureano Gómez, inspirado en el gobierno de Francisco Franco en España. Leia Mais
A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas – TRINDADE (RBH)
TRINDADE, Hélgio. A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2016. 837p. Resenha de: GONÇALVES, Leandro Pereira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.
São 17 horas em Brasília. Com os olhos inchados, o rosto deformado pelos anos e após acordar de uma longa sesta, o antigo (e eterno, para os militantes) chefe dos integralistas concedeu uma entrevista ao então doutorando em Ciência Política da Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) Hélgio Trindade, que teve um segundo encontro com o líder dos camisas-verdes em São Paulo. Na ocasião das pesquisas, foram realizadas entrevistas com Miguel Reale, Dario Bittencourt e Rui Arruda, dentre outros integralistas ou simpatizantes, como Alceu Amoroso Lima e Menotti Del Picchia.
O momento não era nada propício para o desenvolvimento de uma pesquisa dessa estirpe, pois estávamos vivendo os duros tempos da ditadura civil-militar e muitos dos integralistas dos anos 1930 eram figuras ativas no contexto do regime autoritário, como o general Olympio Mourão Filho, que recebeu de pijama e chinelos o então doutorando em seu apartamento, em Copacabana. Detalhes pitorescos e impensáveis que serão descobertos nas 837 páginas do livro A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas.
Não há estudioso que não tenha esbarrado com o nome de Hélgio Trindade. A tese de doutorado denominada L’Action intégraliste brésilienne: um mouvement de type fasciste au Brésil, traduzida e publicada no Brasil, em 1974, sob o título Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30 (Trindade, 1974), é cada vez mais viva na Ciência Política e nos trabalhos historiográficos. Esse estudo promoveu a entrada da temática no meio acadêmico, sendo também responsável por tornar conhecido o movimento e tê-lo interpretado. O pesquisador gaúcho foi o precursor dos estudos e é referência cada vez mais atuante para os que buscam compreender esse fenômeno político do século XX que arrastou multidões e mobilizou milhares de pessoas em torno de um grande nome: Plínio Salgado.
A nova produção de Hélgio Trindade é lançada em contexto acadêmico extremamente oposto ao do momento de divulgação da tese, em 1974, quando não havia amplos diálogos. A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas é uma espécie de “promessa” do professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1979, o ex-reitor da UFRGS e da Unila anunciou, na 2ª edição da tese, publicada pela Difel, que um volume seguinte teria como objeto de análise um conjunto de depoimentos gravados, inéditos, colhidos com dirigentes e militantes integralistas, mas, por implicações éticas, faria a divulgação após a morte de todos.
Há muitos anos os pesquisadores comentavam sobre as entrevistas, e muitos se questionavam onde elas estavam e se realmente existiam, visto que o material sempre foi objeto de desejo de todos os estudiosos do tema. Agora, finalmente, há a possibilidade de termos em mãos uma parte significativa dos depoimentos que foram concedidos a Hélgio Trindade. Vejo como um feito da publicação o trabalho que o autor teve em organizar as entrevistas de maneira temática, pois o livro não é apenas uma simples transcrição, há um árduo trabalho metodológico acompanhado por referências e contextualizações amplas sobre o período e o Movimento.
Em “Nota prévia” o autor defende o uso fascista para a caracterização do integralismo frente ao debate da década de 1970 e suas repercussões no contexto acadêmico contemporâneo, polêmica existente desde a defesa da tese. O prefácio da segunda edição (Trindade, 1979), reproduzido no novo livro e escrito pelo cientista político da Universidade de Yale, Juan J. Linz, falecido em 2013, destaca a importância da investigação no cenário acadêmico, principalmente por identificar um tipo fascista fora do contexto europeu, temática que segue a introdução escrita pelo autor, demonstrando em uma visão continental a particularidade do movimento integralista – “O fascismo na América Latina em debate”. Antes de nos brindar com as entrevistas, faz uma síntese da tese, expondo o universo ideológico do integralismo para que o leitor possa identificar elementos da estrutura da Ação Integralista Brasileira.
Plínio Salgado, o líder do movimento, mereceu um capítulo exclusivo: “Entrevistas com dirigentes e militantes da AIB”. Nele, o chefe supremo dos camisas-verdes aponta questões sobre o passado e sobre um presente utópico. São palavras que permitem ao historiador identificar elementos até então conhecidos no campo das hipóteses, nos aspectos político, cultural, internacional, religioso ou mesmo pessoal. Com as entrevistas, é possível contribuir com diversas investigações, como a força exercida pela intelectualidade portuguesa em Plínio Salgado, tanto na juventude, pela leitura de obras ligadas aos católicos lusitanos, como no contexto do pós-guerra, quando António de Oliveira Salazar estabeleceu papel preponderante na composição de um novo Plínio Salgado após o exílio (cf. Gonçalves, 2012).
Em “Imaginário da elite dirigente e Dirigentes e Militantes Locais” Trindade oferece entrevistas realizadas entre maio de 1969 e setembro de 1970 com representantes do movimento e líderes de destaque no cenário político: Frederico Carlos Allendi, Rui Arruda, Dario Bittencourt, Margarida Corbisier, Roland Corbisier, José Ferreira da Silva, Arnoldo Hasselmann Fairbanks, Antonio Guedes Hollanda, Américo Lacombe, José Ferreira Landin, Edgar Lisboa, José Loureiro Júnior, Jeovah Mota, Olympio Mourão Filho, Erico Muller, Zeferino Petrucci, Miguel Reale, João Resende Alves, Goffredo da Silva Telles, Ângelo Simões Arruda, Ponciano Stenzel, Antonio de Toledo Pizza e Aurora Wagner. Como as entrevistas estão no anonimato, uma relação foi inserida no fim do livro, mas no início de cada entrevista há uma pequena biografia do depoente que permite ao estudioso a identificação, mas isso não é tão simples para os demais leitores.
Em sequência, Trindade traz em “Olhares externos de intelectuais independentes” entrevistas de personalidades que viveram o período e que conviveram em algum momento com Plínio Salgado e outros membros do movimento: Alceu Amoroso Lima, Cruz Costa, Candido Morra Filho, Menotti Del Picchia e Antonio Candido, sendo este último o único depoente ainda vivo. Como não há relações políticas e comprometimentos em algumas passagens, os nomes desses são identificados nas entrevistas.
A obra, que marca o retorno do autor ao debate (apesar de nunca ter deixado de fazer parte da discussão),2 tem dois aspectos principais e de grande relevância: 1º) permite identificarmos o olhar do ator no contexto histórico; nas entrevistas é possível verificar passagens e trechos inimagináveis, pérolas recolhidas por Trindade; 2º) com tal produção, tem-se a possibilidade de revolucionar a historiografia, pois são documentos até então desconhecidos que, graças aos depoimentos, podem confirmar questões que se encontram no campo da hipótese ou verificar possibilidades investigativas. Além disso, o autor faz parte de um seleto rol de pesquisadores, pois, seja na história ou na ciência política, Hélgio Trindade é responsável pela construção de uma interpretação, um pensamento único e, portanto, estabelece uma composição central na esfera acadêmica.
Esta obra busca, além de identificar o imaginário dos militantes integralistas, contribuir para o entendimento de questões acaloradas da sociedade contemporânea, em que as forças políticas conservadoras estão cada vez mais atuantes e com tentações antidemocráticas, reflexões que são realizadas no epílogo: “Ainda a tentação fascista no Brasil?”.
O livro de Hélgio Trindade vem em momento oportuno, pois não pensemos que o pesadelo acabou, uma vez que a intolerância e o autoritarismo estão longe de ser página virada na história da humanidade, principalmente com a complexa crise política que culminou com as ações do dia 31 de agosto de 2016. O livro não poderia ter desfecho mais atual, pois ao citar Karl Marx, conclui: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.
Referências
GERTZ, René E.; GONÇALVES, Leandro P.; LIEBEL, Vinícius. Camisas Verdes, 45 anos depois – uma entrevista com Hélgio Trindade. Estudos Ibero-americanos, Porto Alegre, v.42, n.1, p.189-208, abr. 2016. [ Links ]
GONÇALVES, Leandro P. Entre Brasil e Portugal: trajetória e pensamento de Plínio Salgado e a influência do conservadorismo português. 2012. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2012. [ Links ]
TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. São Paulo: Difel, 1974. [ Links ]
_______. Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. 2.ed. São Paulo: Difel; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1979. [ Links ]
Nota
2 Em recente entrevista para a revista Estudos Ibero-Americanos, Hélgio Trindade aponta questões sobre sua trajetória e, principalmente, sobre o impacto da tese na academia brasileira (GERTZ; GONÇALVES; LIEBEL, 2016). Repercussões foram publicadas na edição seguinte e podem ser consultadas em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/fo/ojs/index.php/iberoamericana/issue/view/1032/showToc.
Leandro Pereira Gonçalves – Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Pesquisador e autor de diversos estudos sobre o integralismo, notadamente, a trajetória de Plínio Salgado, é doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com estágio no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) e com pós-doutoramento pela Universidad Nacional de Córdoba (Centro de Estudios Avanzados), Argentina. Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: leandro.goncalves@pucrs.br.
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Guerra y democracia: los militares peruanos y la construcción nacional / Eduardo T. Medrano
“Guerra y Democracia” do historiador peruano Eduardo Toche Medrano, foi escrito após a conclusão dos trabalhos da Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) que investigou os crimes cometidos durante os vinte anos de combate às guerrilhas no Peru (1980-2000). A inquietação que moveu sua pesquisa foi compreender como se constituiu a relação entre as Forças Armadas e a sociedade civil peruana, que culminou na morte de milhares de camponeses indígenas que vivam em regiões onde atuavam grupos guerrilheiros.
Assim como o Brasil, o Peru contém uma população heterogênea, e há uma grande distância entre esta população e as instituições governamentais, incluindo as militares, o que, durante períodos de regimes autoritários, foi um dos fatores que influenciou o comportamento dos militares diante da população civil. Esta obra de Toche Medrano nos interessa especialmente por mostrar como foi construída dentro das instituições militares certa leitura da sociedade onde as figuras do “índio” e do “camponês” foram paulatinamente aproximadas a do “subversivo”, “terrorista” e finalmente do “narcoterrorista”.
O livro é dividido em três partes: “os inícios (a formação de critérios institucionais)”, “a sistematização da experiência” e a “ação no vazio (o esgotamento da doutrina militar peruana)”. Em cada uma das partes o autor, através de rica documentação, mostrou como as forças armadas se tornou o setor mais especializado e organizado do Estado e como se relacionou com outros setores da máquina estatal e da sociedade.
Na primeira parte, Toche Medrano valeu-se principalmente da Revista Militar Peruana, para mostrar que logo após o fim da ocupação do território peruano pelos militares chilenos (Guerra do Pacífico 1879-83), havia uma forte desconfiança entre elites civis e militares: culpavam-se mutuamente pela derrota e consequente perda de territórios para o vizinho do sul. Contudo, os dois grupos concordavam em responsabilizar pela derrota a falta de sentimento nacionalista dos indígenas, que eram a maioria da população, e não se engajaram contra os chilenos.
Deste modo, entre o final do século XIX e primeira metade do XX o discurso indigenista foi o grande mote nos meios intelectuais peruanos, fosse para criticar ou apoiar a ação do Estado oligárquico. Como a constituição de 1895 atribuiu às forças armadas o papel de: “defender o Estado das agressões externas, assegurar a integridade das fronteiras, a ordem interna e o cumprimento da Constituição” (TOCHE MEDRANO: 2008:37) os militares eram, nos rincões do país, muitas vezes a única manifestação da existência do Estado em meio a uma população indígena que em muitos casos sequer falava espanhol, o que fez com que se identificassem como a própria presença da “civilização”.
Toche Medrano mostra através da análise dos textos publicados pelos militares um amálgama entre o indigenismo e o positivismo que resultou na forma paternalista e autoritária como os militares, principalmente o exército, concebiam seu papel perante a população: deveriam educá-los, torná-los cidadãos, apesar de seus “vícios” típicos da “raça”. A função civilizatória das forças armadas era exercida através do cumprimento do serviço militar obrigatório, onde os recrutas além de marchar e cantar o hino nacional eram alfabetizados, além de aprenderem noções de trabalhos manuais. A ideia era que o recruta se tornasse um disseminador dos valores aprendidos no quartel entre sua comunidade.
Um dos objetivos do serviço militar obrigatório era promover a integração da população dentro dos valores que os militares acreditavam ser nacionais, porém, segundo o autor, o resultado foi que as condições de implementação acabaram reforçando preconceitos e dificultaram a almejada integração da população na “civilização”. Um exemplo interessante são as qualidades que os militares destacaram nos recrutas indígenas: “sua resistência a fadiga, sua adaptabilidade às condições rigorosas, o desprezo pela morte e sua docilidade ante às ordens” (TOCHE MEDRANO: 2008:68). O autor destacou também o movimento inverso: o governo estabeleceu entre 1943 e 1974 a instrução militar obrigatória nas escolas, demonstrando que uma parcela dirigente sociedade civil entendia que reforçar o nacionalismo era sinônimo de militarismo, pois as forças armadas eram portadoras por excelência do espírito da Nação.
Um segundo personagem importante cuja construção encerra primeira parte da obra é o “subversivo”. O surgimento do “personagem” está intimamente relacionado ao contexto internacional dos anos 1920–1930: o fortalecimento do movimento comunista internacional pós Revolução Russa. Especificamente no Peru, o Partido Comunista tinha pouca expressão, pois a maior parte dos trabalhadores estava na zona rural, portanto fora do apelo discursivo dirigido ao proletariado. O movimento que canalizou as reivindicações e a insatisfação da população com a exploração econômica e a falta de canais de participação política foi o indigenista foi o grande mote nos meios intelectuais peruanos, fosse para criticar ou apoiar a ação do Estado oligárquico. Como a constituição de 1895 atribuiu às forças armadas o papel de: “defender o Estado das agressões externas, assegurar a integridade das fronteiras, a ordem interna e o cumprimento da Constituição” (TOCHE MEDRANO: 2008:37) os militares eram, nos rincões do país, muitas vezes a única manifestação da existência do Estado em meio a uma população indígena que em muitos casos sequer falava espanhol, o que fez com que se identificassem como a própria presença da “civilização”.
Toche Medrano mostra através da análise dos textos publicados pelos militares um amálgama entre o indigenismo e o positivismo que resultou na forma paternalista e autoritária como os militares, principalmente o exército, concebiam seu papel perante a população: deveriam educá-los, torná-los cidadãos, apesar de seus “vícios” típicos da “raça”. A função civilizatória das forças armadas era exercida através do cumprimento do serviço militar obrigatório, onde os recrutas além de marchar e cantar o hino nacional eram alfabetizados, além de aprenderem noções de trabalhos manuais. A ideia era que o recruta se tornasse um disseminador dos valores aprendidos no quartel entre sua comunidade.
Um dos objetivos do serviço militar obrigatório era promover a integração da população dentro dos valores que os militares acreditavam ser nacionais, porém, segundo o autor, o resultado foi que as condições de implementação acabaram reforçando preconceitos e dificultaram a almejada integração da população na “civilização”. Um exemplo interessante são as qualidades que os militares destacaram nos recrutas indígenas: “sua resistência a fadiga, sua adaptabilidade às condições rigorosas, o desprezo pela morte e sua docilidade ante às ordens” (TOCHE MEDRANO: 2008:68). O autor destacou também o movimento inverso: o governo estabeleceu entre 1943 e 1974 a instrução militar obrigatória nas escolas, demonstrando que uma parcela dirigente sociedade civil entendia que reforçar o nacionalismo era sinônimo de militarismo, pois as forças armadas eram portadoras por excelência do espírito da Nação.
Um segundo personagem importante cuja construção encerra primeira parte da obra é o “subversivo”. O surgimento do “personagem” está intimamente relacionado ao contexto internacional dos anos 1920–1930: o fortalecimento do movimento comunista internacional pós Revolução Russa. Especificamente no Peru, o Partido Comunista tinha pouca expressão, pois a maior parte dos trabalhadores estava na zona rural, portanto fora do apelo discursivo dirigido ao proletariado. O movimento que canalizou as reivindicações e a insatisfação da população com a exploração econômica e a falta de canais de participação política foi o época, foi fundada a Escola Superior de Guerra (ESG), não nos moldes franceses, mas estadunidenses, curiosamente, desta instituição saíram quadros que nos anos 1970 se radicalizaram na proposta de que cabia ao Estado planejar a economia e desenvolver o país. O autor mostra que tais institutos foram fundamentais para a elaboração de um planejamento de desenvolvimento nacional, no entanto os critica porque na doutrina que elaboraram não reservaram espaço para a atuação política independente da sociedade civil.
Cabe aqui nos questionarmos se cabia às forças armadas, como defende o autor, delimitar em sua doutrina o espaço para a participação política dos civis, ou se, cabia a esta conquistar seu espaço. O fato dos militares ignorarem esta “concessão de espaço”, e do autor criticá-los por isso evidencia a fragmentação e a exclusão da sociedade civil peruana pela fraqueza da classe média, desprovida de um projeto político para o país, dirigido por uma oligarquia que impedia qualquer tipo de reforma e pelo alijamento da grande população indígena de qualquer participação.
Esta doutrina de segurança pautada pelo desenvolvimento foi experimentada logo no início dos anos 1960 durante o primeiro enfrentamento entre militares e as guerrilhas surgidas no Valle de la Convención, Cusco. Alí, ao exercerem a repressão contra a população se convenceram que o abandono desta pelo governo era a causa da guerrilha. Gradualmente, os militares entraram no jogo político, primeiro apoiando o candidato a presidência em 1963 Fernando Belaúnde, que defendia reformas. Logo, em 1968, em meio a uma forte crise, liderados pelo Gal. .Velasco Alvarado os militares tomaram as rédeas do país: nacionalizaram empresas estrangeiras, fizeram a reforma agrária, criaram estatais e tomaram outras medidas que visavam a industrialização e a criação de um mercado interno no Peru.
O governo reformista do Gal. Velasco foi apoiado por parte daqueles que militaram em movimentos de esquerda pelas suas propostas desenvolvimentistas e por sua política externa independente em plena Guerra Fria. Apesar de ter criado um órgão para canalizar a participação popular SINAMOS (Sistema Nacional de Mobilização Social), não conseguiu lidar com as manifestações de insatisfação, pois, apesar de suas medidas, o governo militar não conteve o aumento do custo de vida e, as importações requeridas pela indústria levou à falta de divisas e a uma grave crise. O projeto de desenvolvimento nacional militar aplicado entre 1968 e 1975 apesar de ter melhorado sensivelmente a distribuição de renda, foi insuficiente tamanho o era o abismo social, além disso não conseguiu integrar agricultura e indústria para o abastecimento interno.
A última parte do livro, “ação no vazio (o esgotamento da doutrina militar peruana)”, aborda desde a volta dos civis ao poder em 1980 até o final do regime fujimorista em 2000. Foi neste período em que, especialmente as regiões de Ayacucho e Junin, sofreram os efeitos perversos da guerra contra as guerrilhas especialmente o Sendero Luminoso. Nesta parte da obra o autor apoiou-se principalmente no relatório da Comissão de Verdade e Reconciliação e na imprensa.
Segundo Toche Medrano, ao mesmo tempo que se esgotaram as possibilidades do desenvolvimentismo militar, as teses neoliberais difundidas a partir do Consenso de Washington foram respaldadas pelas elites, confluíram de forma que a a violência foi a única resposta do Estado para os protestos sociais contra o desmonte do aparato de intervenção estatal e distribuição de renda montado durante o regime militar e contra a guerrilha. Assim guerrilha e oposição ao neoliberalismo foram tratados como se fossem um só fenômeno. Como agravante, um novo ator entrou em cena: os narcotraficantes interessados na tradicional produção cocaleira andina.
Toche Medrano mostra que os militares somente pacificaram o país quando separaram guerrilha, população camponesa e narcotraficantes: para combater os primeiros tiveram que superar a desconfiança dos segundos, e incorporar camponeses como recrutas em suas regiões de origem, organizá-los e armá-los, originando os comitês de autodefesa. Por esta atitude independente foram acusados pelos estadunidenses de apoiar as guerrilhas. Quanto ao narcotráfico, um dos motivos da queda do regime fujimorista foram denúncias de corrupção contra altas esferas militares que recebiam dinheiro para facilitar suas ações, comprovadas pela existência de bases militares próximas a pistas clandestinas de narcotraficantes.
O autor referiu-se à ausência de punição a muitos crimes denunciados pela Comissão da Verdade e Reconciliação, como os massacres de camponeses, e atos de corrupção, especialmente o envolvimento entre militares e narcotraficantes; tal impunidade foi explicada devido ao corporativismo das Forças Armadas. Toche Medrano conclui apontando a necessidade urgente na promoção de mudanças na relação de todo aparato estatal, com a população civil, porque muitos dos problemas sociais que levaram à explosão de violência continuam insolúveis como o acesso à justiça e a cidadania.
A pesquisa de Eduardo Toche Medrano contribui para elucidar uma relação complexa entre umas das instituições que fundam o conceito de Estado e seus habitantes, que no caso dos rincões do Peru e das barriadas (favelas) da capital, estão muitas desprovidos de qualquer garantia de cidadania. A Comissão da Verdade e Reconciliação que em nosso vizinho do noroeste investigou os crimes cometidos por agentes do Estado e por guerrilheiros contra a população civil, não resultou em punição para os primeiros, unicamente para segundos, apesar do parecer responsabilizar o Estado pelo clima de violência, deve-se salientar que, a apuração dos fatos consiste num primeiro passo, nada desprezível, rumo ao fortalecimento de instituições democráticas. Aqui no Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho lançou em 2005 a coletânea de artigos que tocam, de alguma forma, as relações entre militares e civis, Forças Armadas e política no Brasil (Jorge Zahar, 2005) contudo ainda não são muitos aqueles que se aventuram pela história militar numa abordagem cronológica relativamente ampla (aproximadamente dois séculos) e levantando questões tão importantes.
Referências
CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
Êça Pereira da Silva –Doutoranda do Programa de História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Minha pesquisa consiste numa comparação entre as doutrinas militares brasileira e peruana nos anos 1950 e conta com o apoio CNPq. E-mail: ecapereira@usp.br.
TOCHE MEDRANO, Eduardo. Guerra y democracia: los militares peruanos y la construcción nacional. Lima: DESCO/ CLACSO, 2008. Resenha de: SILVA, Êça Pereira da. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.20, p.177-182, jan./jul., 2012. Acessar publicação original. [IF].
Militares/ Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Su | Maria Celina D’Araújo
O papel dos militares na política do Brasil e dos demais países da América Latina, ao longo do século XX, é amplamente estudado, embora exista predominância do período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o da Guerra Fria, quando estiveram à frente do poder da maior parte dos países do subcontinente. Conquanto tenham sido um dos principais atores políticos dos países sul-americanos até meados da década de 1980, quando as ditaduras da região começaram a ser substituídas por governos civis, não perderam a grande relevância no cenário político interno e externo dessas nações. No livro “Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul”, Maria Celina D’Araújo1 analisa o papel contemporâneo das forças armadas no Brasil e nos demais países da América do Sul, com foco nas atuações em defesa dos regimes democráticos de direito, nas cooperações militares regionais, nos aspectos hodiernos da corporação. O supramencionado livro é dividido em duas partes principais, que tratam, separadamente, da América do Sul como um conjunto e do Brasil, individualmente, em oito capítulos. Leia Mais
Uma antropologia dos militares – Reflexões sobre pesquisas de Campo CASTRO; LEIRNER (A)
CASTRO, Celso; LEIRNER, Piero. Uma antropologia dos militares – Reflexões sobre pesquisas de Campo. Rio de Janeiro: FGV, 2009. Resenha de: ARIAS NETO, José Miguel. Nos caminhos da fé: história, religião e religiosidade da Antiguidade ao mundo contemporâneo. Antítese, v. 2, n. 4, p. 1137-1144, jul./dez. 2009.
Há uma “Antropologia dos Militares”? O livro organizado por Celso Castro e Pierre Leirner procura responder positivamente à questão. A obra divide-se em apresentação e onze capítulos, alguns mais teóricos, outros apresentando estudos de caso. Há estudos sobre as cadetes pioneiras da Academia da Força Aérea (AFA) por Emilia Takahashi, o serviço de comunicação do Exército por Lauriani Porto Albertini, mulheres de militares por Fernanda Chinelli, o mundo do quartel, por Cristina Rodrigues da Silva, rituais militares por Juliana Cavilha, formação de praças do Exército por Aline Prado Atassio. Ao lado destes, alguns textos que desenvolvem reflexões mais teóricas como os de Celso Castro, Piero Leirner, Alexandre Colli de Souza e Máximo Badaró. O único texto de um historiador é a bela reflexão que faz Adriana Barreto de Souza sobre a pesquisa em Arquivos Militares.
Outra característica que de imediato chama a atenção é o fato de que as mulheres são maioria neste grupo de pesquisadores que estuda predominantemente o Exército, com a exceção dos textos sobre as Cadetes Pioneiras da AFA e em parte o que explora o “mundo do quartel”, no qual Cristina Rodrigues da Silva relata a pesquisa que realizou também na AFA. Não há um texto sobre a Marinha do Brasil. É fato que este silêncio é significativo e deve-se refletir sobre ele, contudo, este não é o espaço pertinente. Também esta marcante presença feminina no campo dos estudos militares é alvissareira para a academia.
O livro, como qualquer obra coletiva, apresenta textos de diferentes níveis. Alguns, fruto de acurada reflexão teórica, apontam problemáticas bastante relevantes para os estudos militares na área de antropologia, ou melhor dizendo, para a constituição do que seria uma antropologia dos militares, ou seja, relativa aos militares como bem destaca Leirner à página 31. Outros se debruçam mais sobre a experiência realizada, apoiando-se nas reflexões desenvolvidas pelos pesquisadores seniores.
O subtítulo reflexões sobre pesquisa de campo indica o fio condutor, ou seja, a problemática que articula todos os textos da obra, da qual, derivam as questões apresentadas pelos autores.
Em outras palavras, é o importante momento em que o pesquisador reflete sobre a trajetória da sua pesquisa e como esta influenciou decisivamente nos resultados obtidos e nas conclusões apresentadas. Neste sentido, é o pensamento que se volta sobre si e se desdobra na indagação que todos nós devemos fazer: O que é esta pesquisa que eu faço? Como a faço? E de que maneira o modo como a faço influencia o que estou enunciando ao mundo sobre meu objeto. É, na linguagem dos historiadores, a busca do posicionamento do pesquisador, do lugar social da pesquisa: De onde falo? Para quem falo?, questões de há muito postas por vários pensadores, dentre os quais Claude Lefort no importante livro As formas da História e Michel de Certeau no belo A Escrita da História.
Assim, o movimento dos autores em seu exercício de reflexão sobre o processo de produção do conhecimento é aquele que descreve a formulação da problemática, a pesquisa, no caso em questão, a já tradicional observação antropológica participante e os resultados, mediados pelo contato com o “objeto” ou, como este grupo de pesquisadores se referem aos militares, “com seus nativos”. Estas experiências, embora, marcadas pelo traço comum do estudo de militares, são diferentes em cada caso e, por isto mesmo, narradas em diferentes registros do sensível, isto é, alguns com mais esperança e otimismo, outros nem tanto.
Este registro do sensível é importante, pois, ele revela um aspecto fundamental da pesquisa do etnólogo: o envolvimento direto e pessoal com o seu “objeto”. E causa ao historiador certa surpresa a perplexidade que estes antropólogos revelam quando diante de “seus nativos”.
E que perplexidade é esta? E por que ela causa surpresa? Para iniciar retomo as formulações, por demais conhecidas, de Bacon sobre as relações entre saber e poder, retomadas contemporaneamente por Foucault.
Estas formulações enunciam que não só o conhecimento, mas principalmente sua produção é sempre fruto de relações de poder. Disto também já sabiam, no século XVI, nossos primeiros etnólogos, como Bernardino de Sahagún que ao longo de quarenta anos escreveu junto com os caciques astecas a Historia General de las cosas de Nueva España. Buscava ele, inicialmente, conhecer a cultura asteca para extirpar o pecado da idolatria. Isto porque logo os espanhóis perceberam que os nativos adoravam seus “falsos deuses” no interior dos rituais e dos templos cristãos.
Assim, para esses missionários-etnólogos o conhecimento adquirido, a partir da sua posição de conquistadores, permitiria uma real cristianização dos nativos. Sabemos que o resultado, como bem destacou Tzvetan Todorov em A conquista da América, a questão do outro, não foi o esperado pelos próprios missionários, que passaram, especialmente no caso de Bernardino a admirar e amar a cultura de “seus nativos”, numa espécie de reverso da conquista que constitui um dos mais ricos processos de mestiçagem cultural no período.
No caso do livro organizado por Celso Castro, esta questão é quase que enunciada como uma novidade. Em seu texto, no qual narra sua experiência na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), relata que a pesquisa foi vista como “inusitada” por oficiais e cadetes da escola. Um diálogo particularmente interessante ocorre quando chegando à Academia pela primeira vez, o major que chefiava o serviço de relações públicas, lendo sua carta de apresentação exclamou: “Já sei! Já entendi o que você quer! Agora entendi tudo! Você quer fazer uma coisa tipo aquele trabalho do Gertz sobre a briga de galos em Bali!”.
Ao que Celso Castro observa: Inusitado por inusitado, não sei o que era mais: se minha pesquisa, o se me ver diante de um “nativo” que fazia esta afirmação. Pior que isso, ele passou a perguntar qual a minha “tendência”: se era a do Lévi-Strauss, a do Gertz, a do Malinowski… Confesso que, do alto dos meus 23 anos de idade e apenas um semestre de curso de mestrado, fiquei aterrorizado com a perspectiva de ter que discutir teoria antropológica com meus nativos, desde o primeiro dia da pesquisa de campo. (p. 23-24).
Esse tipo de “leitura do real” remete à questão de como o pesquisador “pensa” o seu sujeito, no caso em questão, como Celso e seu grupo pensam “seus nativos”, os militares. E aqui é importante demonstrar as características específicas do grupo a ser estudado.
Celso Castro começa a estudar militares, ele mesmo vindo de família de militares, no ano de 1987, isto é, no momento de democratização do país após quase vinte anos de regime militar. Assim, as instituições militares e os militares, eram amaldiçoados pela tradição de “esquerda” bastante forte nas faculdades de Filosofia, onde se encontravam os cursos de Ciências Sociais e História. Por outro lado, a visão do mundo universitário que tinham os militares também não era, por assim dizer, muito alvissareira. Querer estudar militares neste período e mesmo em períodos posteriores –como bem mostra o livro– era e, em certo sentido, ainda é um desafio. Pode-se dizer que atualmente a situação é bastante diferente quer de um lado, como de outro. Mas as mudanças na situação política não alteraram a natureza de instituições como as Militares ou como a Universidade, dotadas de suas hierarquias ritualizadas, processos disciplinares e procedimentos próprios.
Assim, o pesquisador que se debruça sobre temas militares vai se deparar com instituições totalizantes, cujos eixos centrais são a hierarquia e a disciplina.
E é esta realidade que vai marcar o andamento e desdobramentos de seu trabalho. Assim, antes de começar uma pesquisa ele pode, atualmente, através do livro organizado por Castro e Leirner ter uma idéia da realidade com a qual vai se deparar, e neste sentido o livro é importantíssimo, pois inserir-se como observador em uma estrutura totalizante requer um conhecimento prévio de suas características básicas e de seu funcionamento.
E é este o fundamento da perplexidade do antropólogo. Como testemunha o próprio Celso Castro: A maior parte da antropologia foi e até hoje continua sendo feita com grupos de alguma forma socialmente subalternos em relação ao antropólogo, ou que não dominam a linguagem acadêmica. A pesquisa com camadas médias ou elite pode, todavia inverter o sentido desta relação de dominação/subordinação. Em muitos momentos da pesquisa , ficou evidente que alguns de meus nativos sentiam-se numa posição intelectual, social ou moral superior à minha (p.24).
A fonte deste sentimento prossegue Celso Castro, é coletiva, não individual. Ela repousa nas características dos militares, que de acordo com ele e os demais autores, tem uma visão de mundo fundada em jogos de oposições: mundo civil/mundo militar, amigo/inimigo. É a partir, portanto, destas categorias, que o pesquisador que adentra uma instituição militar vai ser analisado e julgado e deste julgamento depende o sucesso ou fracasso de seu trabalho ou, pelo menos, da impossibilidade de realização deste como observador participante na instituição.
Assim, no momento em que estão desbravando e inaugurando um novo campo de abordagem da antropologia, os pesquisadores depararam-se com duas contingências estruturantes de seus trabalhos e de sua visão sobre os mesmos: o histórico –a democratização brasileira e o sociológico– a natureza de uma instituição militar. E ficam perplexos diante da recusa de seu “objeto”, ou de “seus nativos” em serem elementos apenas “observáveis” – como se isto fosse possível e algum dia tivesse realmente acontecido– e daí o sentimento de horror quando um militar, não apenas quer discutir antropologia, mas quando a instituição militar controla e limita as condições em que o trabalho etnográfico ocorre, pois, não apenas no contexto da democratização, os militares querem garantir a transmissão ao mundo de determinada memória do passado (remoto e próximo), mas também fixar uma imagem no presente e projetá-la no futuro como continuidade, no caso em questão, de um grupo que se sacrifica em benefício da pátria, isto é, de todos nós.
Esta operação de construção e transmissão de uma imagem do passadopresente e futuro como uma continuidade, isto é o controle da memória e da representação do grupo no universo público, é de fato uma característica específica das Instituições Militares, ou é comum aos vários grupos sociais contemporâneos? Faço a questão pensando, por exemplo, em trabalhos como o de Michael Pollak que demonstra o controle da memória exercido pelos alsacianos, cujo território foi ocupado e dominado sucessivamente ora por franceses, ora por alemães. O que o livro Antropologia dos Militares demonstra é que há, dadas as características dos militares, modos específicos de controle da memória na engenharia do poder que se instaura no interior das instituições e que tem por objetivo não apenas reificar a visão “oficial”, por assim dizer, para “os de dentro”, mas também conquistar ou, numa linguagem mais política, cooptar “os de fora” fazendo com que todos compartilhem da mesma visão, sobre si mesmos e sobre suas instituições. Por isto, o antropólogo sempre deve estar em campo, como bem ressalta Castro, isto é, sempre atento para não ser apanhado nesta rede.
Uma segunda questão, diz respeito ao discurso mais ou menos homogêneo do grupo de antropólogos e da historiadora que participam do livro acerca da “epopéia” para conseguir realizar uma pesquisa em uma Instituição Militar. Este discurso funciona como uma espécie de “narrativa fundadora” do próprio grupo de pesquisadores de modo a valorizar o empreendimento realizado. E este valor é sempre correlacionado às dificuldades existentes, isto é, quanto maiores forem os obstáculos vencidos, maior é o valor do que se realiza. Esta é uma operação fundadora bastante comum, por exemplo, em grupos migrantes em áreas novas de colonização, mas também, por exemplo, para nos situarmos na academia, da História Oral. Fundada por Heródoto, desvalorizada e repudiada pelos “positivistas”, a Historia Oral contemporânea ganha força, vitalidade e legitimidade como campo novo no âmbito da História. Mas para isto, que dificuldades enormes tiveram os historiadores orais que vencer!, que tradições assentadas no texto escrito tiveram que questionar e superar até provarem o seu valor! Este tipo de narrativa fundadora é uma operação fundamental na constituição da legitimidade do campo, e seu público, no caso dos antropólogos é duplo: a academia e o quartel. O discurso dirigido para a acadêmica visa demonstrar que é possível, apesar das dificuldades, trabalhar com os militares sem passar a amá-los, isto é, sem ser “cooptado”. Já para o quartel, a mensagem é: somos capazes de estudá-los e compreendê-los objetivamente, sem aceitar esta categorização amigo/inimigo na qual vocês procuram nos enquadrar. Nosso trabalho transcende esta categorização e conseqüentemente ultrapassa os limites do mundo pensado por vocês como divisão entre civis e militares.
O que me remete à minha última questão. O tratamento dado aos militares como “meus nativos”. Este tratamento, usado sistematicamente por todos os autores do livro, parece ser uma espécie de reação à perplexidade que o antropólogo sente diante do seu “objeto participante”. Na medida em que se descobre em uma relação de poder na qual se encontra em “desvantagem”, ou em uma posição “subordinada” à autoridade, poder e rito das Instituições Militares o pesquisador acaba por usar uma “categoria nativa” dos antropólogos para “enquadrar” os militares dentro de sua própria visão de mundo de modo a inverter esta relação de desvantagem em que se encontra. A contrapartida, portanto, à designação de “paisano” ou “civil” dada pelos militares é tratar a estes como “seus nativos”.
Confesso que esta categorização, como modo de operar um distanciamento em relação ao “objeto” de estudo me causa surpresa. Isto porque, em parte, o termo “nativo” contraria a idéia do livro de que o militar é um constructo histórico-cultural, como tudo o mais que existe neste mundo criado pela humanidade. Em segundo lugar, os cientistas sociais são treinados para identificar as estratégias narrativas que o induzem ao comprometimento com a visão de seu interlocutor, esteja ele morto ou vivo, especialmente no caso dos Historiadores.
Por exemplo, o ambiente familiar criado por Joaquim Nabuco no seu magnífico livro O Estadista do Império, visa, entre outras questões, glorificar a monarquia e os liberais monarquistas. A leitura do livro de Nabuco introduz o leitor em uma experiência de familiaridade. É como se o leitor participasse do diálogo que Joaquim trava com Thomaz e com os políticos imperiais. Esta sensação de “familiaridade” criada por Nabuco tem por objetivo criar uma empatia do leitor com a sua visão e mobilizá-lo para sua causa. Esta é a operação historiográfica que fazem os historicistas como bem observou Walter Benjamin: trata-se de criar uma empatia com os vencedores e perpetuá-los como tais. Por outro lado, dado à sua enorme erudição e profundo conhecimento das fontes, Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Do Império à República cria também um ambiente familiar ao fazer com que o leitor participe da conversa que estabelece com a elite política imperial. O mecanismo operacional e o estilo são opostos aos de Nabuco. Também oposta é a finalidade desta operação, pois Sérgio Buarque, que não tem nenhuma simpatia, quer pela monarquia, quer pelo imperador, visa com esta familiaridade destruir por dentro a representação da monarquia criada pelos monarquistas pós-queda do regime e perpetuada por intelectuais, como Oliveira Viana. Não é possível estabelecer uma empatia com o regime monárquico após a leitura do livro de Sérgio Buarque.
No caso do livro Antropologia dos Militares o termo “nativo” com o qual os militares são tratados denota a vontade de criar um afastamento, por todas as razões já aqui apresentadas, como forma de evitar a construção ou a demonstração de uma empatia. A terminologia, entretanto, soa bastante artificial, quando se verifica que os pesquisadores possuem uma familiaridade com seus temas e um conhecimento de sua pesquisa realizada por meio de uma intensa “observação participante” através da qual estabelece relações e vínculos bastante fortes e significativos com os militares. Esta familiaridade não resulta de modo algum em empatia, ou em outras palavras, como já observou Tzvetan Todorov no seu livro Em face do Extremo, compreender não é justificar. Ele se refere no caso, à compreensão dos regimes totalitários. Diria, portanto, que a familiaridade é fundamental para o trabalho do cientista social, mas o desenvolvimento de uma empatia com seu objeto ou não, é uma questão política de primeira grandeza, pois se refere a uma opção que deve ser assumida publicamente.
Assim, a experiência da leitura de Antropologia dos Militares é fundamental para os iniciantes no campo dos estudos militares perceberem a intensa relação de poder que se estabelece no processo de construção da compreensão de determinado fenômeno e como esta relação caracteriza o conhecimento que temos dos “outros” e de “nós” mesmos.
BRÜGGER, Niels (ed.). Web History, Nueva York, Peter Lang, 2010, 362 p.
José Miguel Arias Neto – Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor Associado da Universidade Estadual de Londrina (UEL) / Brasil.
Propónense algunos inconvenientes de la Milicia de estos tiempos, y su reparo (Estudio crítico de Eduardo De Mesa Gallego) – AYTONA (LH)
AYTONA, Marqués de, Discurso militar. Propónense algunos inconvenientes de la Milicia de estos tiempos, y su reparo (Estudio crítico de Eduardo De Mesa Gallego), Madrid: Ministerio de Defensa, 2008. Resenha de: COSTA, Fernando Torres. Ler História, n.57, p. 156-158, 2009.
1 O Discurso Militar do marquês de Aytona, publicado inicialmente em 1654, foi reeditado em 2008 na colecção de clássicos do pensamento militar do Ministerio de Defensa de Espanha. Esta reedição é precedida por um estudo crítico da autoria de Eduardo de Mesa Gallego, no qual se apresentam os aspectos fundamentais do Discurso e uma biografia detalhada do seu autor.
2 Para um estudioso da guerra travada, de 1641 a 1668, entre o «Portugal Restaurado» e os exércitos da Coroa dos Áustria de Espanha destacam-se alguns momentos da sua trajectória. O marquês de Aytona, figura de primeiro plano na Corte de Filipe IV e cabo destacado da Guerra da Catalunha, depois caído em desgraça, foi mais tarde governador da Galiza, em tempos de confrontação com os portugueses, e teve um papel marcante nos Conselhos de Estado e de Guerra durante a década decisiva de 1660. Importa por isso mesmo olhar com atenção para os inconvenientes da milícia que o autor identifica.
3 O Discurso Militar de Aytona confirmaria, se tal fosse necessário, que não é a ausência de diagnóstico e de ideias para uma reforma militar nos homens que ocupam lugares cimeiros do aconselhamento dos reis que explicam as dificuldades encontradas na organização das forças bélicas. Metodologicamente, tal significa que não podemos deduzir a capacidade de governação militar a partir dos textos e da sua difusão. Os textos podem ser interessantes (como é o caso deste) e permitem a demarcação do horizonte mental de uma época, mas não esclarecem as dificuldades práticas da eventual aplicação de uma reforma.
4 A redacção do Discurso de Aytona foi o resultado paradoxal de uma circunstância acidental: a prisão do autor. Foi uma daquelas detenções prolongadas, entre Dezembro de 1647 e Fevereiro de 1652, que, naquela época, em diversas latitudes, parecem ser o resultado dos jogos das redes de inimigos, pois a pena surge desproporcionada da acusação que foi formulada, desembocando no perdão e na nomeação, em 1653, de Aytona para o Conselho de Estado. O Discurso Militar foi, pois, uma peça na reposição da honra de um nobre, após um período de desventura. O marquês virá a estar presente na celebração na paz dos Pirinéus com o rei de França (1659), sendo depois nomeado «caballerizo de la reina» (1663). Em 1665, terá sido o único homem laico presente no momento da morte de Filipe IV (p. 72). Depois disso, ainda será nomeado «mayordomo mayor de la reyna» (1667).
5 Destaco algumas dimensões que, a partir do discurso do marquês, traduzem a proximidade cultural das forças em presença na «Guerra da Restauração». Alguns detalhes estão cheios de significado. Assinala Eduardo De Mesa Gallego que, governando a Galiza, pediu a formação de um exército de 16 mil homens e que obteve apenas seis mil, número definido pelos governos das cidades. Quanto à sua actividade nos Conselhos de Estado e de guerra e nos anos de 1660, sobre os quais continuamos a ter um conhecimento muito escasso, relata-nos que saiu em defesa do marquês de Caracena (p. 72). Encontramos no Discurso de Aytona capítulos especialmente interessantes para a identificação das dificuldades estruturais de formação da força militar, caso do que respeita às levas e recrutas (pp. 119-123) ou de um outro sobre a vantagem de ser permitido aos generais levarem consigo para onde forem os seus cabos conhecidos e particulares (pp.138-142), as duas cruciais manifestações sociais da impossibilidade em produzir um exército de acordo com o estilo militar consagrado doutrinalmente.
6 O marquês apresenta um panorama muito negativo da formação do exército. Escreve ele que «como falta para las levas la gente voluntaria, se há acudido para cumplirla a la quintada, y forzada, y como tan costosa de juntar, por aliviarse se han hecho y hacen levas por asiento» que têm seis grandes inconvenientes (p.101). Não cabendo neste âmbito pormenorizar os efeitos apontados da acção dos «tropistas» (assim se designam estes assentistas), destaco a desconsideração pela conservação dos «pueblos», pela qualidade dos homens reunidos, o uso de patentes em branco oferecidas aos que levantem homens e a quantidade de oficiais inúteis que se reformavam. Outra causa de descrédito militar, acrescenta o marquês, era a frequência com que se fazia a mudança dos cabos (p.102).
7 A outra dimensão é a que evidencia que os oficiais se organizam em função do posicionamento em redes de inimizades e da constituição de séquitos protectores. O marquês enumera os inconvenientes que tem o desrespeito pela possibilidade de cada general levar para o governo dos exércitos os cabos particulares que o seguem. O primeiro inconveniente é que «enviando cabos que van más a acusar que a ayudar, es desconfiar del General, limitarle y dividirle el poder, lo cual es muy dañoso…» (p.138).
8 Para o estudioso da guerra do século XVII é também significativa a notícia (que nos dá o biógrafo do marquês) de que, em finais de Fevereiro de 1658, Aytona deixou o governo da Galiza porque não lhe haviam dado o que queria, acrescentando que «la pugna con los letrados volvía a frenar su carrera» (p.71). Os fidalgos (tal como em Portugal) negociavam as condições para a aceitação e exercício dos postos.
9 Do mesmo modo é muito elucidativo que o marquês escreva, a propósito do preboste general, oficial responsável pela repressão dos delitos dos homens de armas, que é «grande» a «desestimación en que se tiene esta ocupación entre nosotros» (p.146), ou sobre os custos da fortificação das praças, que «hay muchos que presumen saber fortificación, cuando aún los primeros rudimentos ignoran» (p.147).
10 Em suma, a leitura do Discurso militar do marquês de Aytona é uma leitura indispensável para a compreensão do exército que combateu contra as forças portuguesas na Guerra da Aclamação. Havendo importantes diferenças, em ambos os campos encontramos dificuldades que se filiam numa relação idêntica entre as forças sociais e a formação dos exércitos.
Fernando Dores Costa – Dep. História – CEHCP – ISCTE-IUL