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Abordagens estratégicas em sambaquis – GASPAR; SOUZA (BMPEG-CH)
GASPAR, Maria Dulce; SOUZA, Sheila Mendonça de (Orgs.). Abordagens estratégicas em sambaquis. Erechim: Habilis Editora, 2013. 311 p. Resenha de MILHEIRA, Rafael Guedes. Metodologia de pesquisa em sambaquis: uma leitura sobre abordagens estratégicas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.9 no.1, jan./abr. 2014.
Quando me deparei na livraria com esta obra, intitulada “Abordagens estratégicas em sambaquis”, eu já sabia que o conteúdo traria grandes contribuições metodológicas para a área de Arqueologia no Brasil. É o tipo de trabalho que eu costumo chamar de “Arqueologia na veia”, pois trata de temas específicos da Arqueologia (no caso, técnicas de campo), de maneira ortodoxa e interdisciplinar, contribuindo na direção de como e por que fazer trabalhos de campo, otimizando recursos e maximizando resultados. Ao iniciar as primeiras páginas, foi ficando evidente que o livro, embora tenha um foco centrado na temática dos sítios sambaquieiros da costa litorânea brasileira, dialoga e propõe técnicas de campo que podem ser facilmente utilizadas em todos os sítios arqueológicos pré-históricos (e não seria exagero incluir os sítios históricos) do Brasil. Aliás, essa foi também a impressão de André Prous na apresentação do livro, ao comentar que “o presente livro será, sem dúvida, de grande utilidade para os estudantes e pesquisadores – não apenas para aqueles que estudam os sambaquis, mas também para todos os praticantes de Arqueologia”.
Na introdução, as organizadoras recorrem a um breve histórico das pesquisas em sambaquis no Brasil desde o século XIX, os avanços e desafios dos últimos anos, sobretudo com o acúmulo de conhecimento resultante de grandes projetos temáticos financiados, predominantemente, por agências nacionais e públicas de pesquisa, amplamente divulgados no cenário nacional e internacional. Esses projetos foram a base das experiências dos autores dos treze capítulos do livro, e é claro que as discussões amadurecidas só chegaram ao alto nível de qualidade por conta da formação de equipes interdisciplinares, experientes e altamente comprometidas com o estudo dos sambaquis da costa brasileira. O livro, além do formato impresso, é acompanhado (opcionalmente) por um CD-ROM, que é o “Guia ilustrado das abordagens estratégicas em sambaquis”. Esse guia é um banco de imagens devidamente legendadas, que exemplificam as orientações metodológicas apresentadas nos textos, tornando a leitura da obra mais didática e acessível.
Seria demasiadamente enfadonho sintetizar aqui o conteúdo e as discussões de cada um dos capítulos do livro. Porém, arrisco-me a classificar os temas dos textos em três tópicos latu sensu: prospecção e registro de imagens em campo; estudos e coleta para sedimentologia e geoarqueologia; análises e coleta de material bioarqueológico (zooarqueologia, arqueobotânica e antropologia física). Embora haja uma divisão de temáticas abordadas no livro, há algumas questões que permeiam todos os textos e que merecem ser destacadas, por exemplo: como coletar amostras em campo, para que coletá-las e como registrá-las e acondicioná-las devidamente para análises futuras em laboratório. São questões relevantes e que atormentam (pelo menos, deveriam atormentar) qualquer coordenador de campo, na medida em que nos fazem pensar sobre a fragilidade e sutileza do registro arqueológico, a facilidade em confundir, misturar e perder amostras e, portanto, dados arqueológicos. E, por fim, refletir sobre o tamanho adequado das amostras versus o tamanho, geralmente limitado, das nossas reservas técnicas espalhadas pelo Brasil.
Eis uma das principais contribuições do livro: os autores conseguem, com maestria, demonstrar que é possível realizar intervenções pontuais nos sítios arqueológicos, minimizando os impactos físicos aos pacotes deposicionais e maximizando os resultados interpretativos. Essa conta positiva é possível com a padronização adequada e experimentada de coletas amostrais, que permitem obter vestígios microscópicos oriundos desses sítios arqueológicos monumentais, materiais que, embora sejam micro em tamanho, ao serem identificados, permitem avançar em discussões de larga escala, que vão da economia e dieta alimentar até práticas de manejo da paisagem e conformação territorial; vide o caso dos parasitos, o estudo da fauna ictiológica e o estudo dos carvões que compõem as fogueiras rituais e de aquecimento residencial.
A padronização das amostras em volume, formato e registro são temas importantes e que foram amplamente discutidos no livro por quase todos os autores. Da mesma forma, os autores foram bastante contundentes ao incentivar o uso de protocolos de coleta altamente padronizados, que permitam a comparação das amostras no processo laboratorial. Porém, há um aspecto que me preocupou na leitura e que poderia ter sido mais bem conduzido, talvez, até mesmo, por um capítulo à parte: o perigo da ‘superpadronização’. Os autores demonstraram uma grande preocupação em tecer uma escrita que, não obstante tenha um caráter bastante técnico, consiga atingir os recém-iniciados em Arqueologia. É até curioso um texto acadêmico que ensina como segurar a pá, para que lado e em que sentido se deve realizar uma limpeza e retificação de perfil, e de que forma se deve preencher um diário de campo.
Com certeza, os autores estiveram preocupados em manter uma linguagem bastante clara e acessível, visto que, no cenário nacional universitário, novos cursos de graduação em Arqueologia vêm sendo criados sistematicamente, o que gera novos leitores. Eu, como professor de práticas de campo e laboratório, fico extremamente agradecido, pois vale lembrar que, nas graduações brasileiras, utilizar um texto em língua estrangeira é quase um atentado, portanto textos que ‘traduzam’, por assim dizer, técnicas e métodos difundidos internacionalmente são muito bem-vindos. Entretanto, retomando minha preocupação com a ‘superpadronização’, fiquei pensando que um jovem leitor poderá facilmente entender que as escavações arqueológicas devem atingir um alto nível de padronização, em que todas as informações devem ser protocoladas em fichas de conteúdo fechado e limitadas em seus campos de respostas, uma espécie de ‘ficha de ticar’, em que caberia ao arqueólogo coletar amostras em volumes pré-determinados, preencher os protocolos e armazená-las adequadamente para incorrer corretamente às análises laboratoriais. Certamente, não foi essa a mensagem que moveu o interesse dos autores ao compor a obra, contudo vale a pena lembrar os leitores de que fazer ciência requer um alto grau de sensibilidade e subjetividade e que, não seria incorreto dizer, em Arqueologia, pelo caráter empírico, confiar no feeling não é ceder à falta de objetividade.
Trago essa discussão exatamente pela minha experiência como professor de graduação e pós-graduação em Arqueologia, e por estar imerso num cenário em que essa disciplina é cada vez mais demandada pelos empreendimentos de engenharia no Brasil, por conta das práticas de licenciamento ambiental. No contexto das atividades de licenciamento, vem se tornando senso comum que a qualidade das pesquisas arqueológicas está relacionada ao volume de dados que gera e, sobretudo, à confiabilidade técnica que conformou os dados. Nesse sentido, a padronização das informações registradas em campo vem sendo tomada como essencial, refletindo qualidade e confiabilidade na pesquisa. Logo, o estabelecimento de um protocolo de coleta, em todas as etapas do quotidiano da pesquisa, permite aos arqueólogos gerarem dados ‘a toque de caixa’, com baixo índice de subjetividade científica e que nega ou dificulta o exercício da reflexão. Nesse sentido, é importante ressaltar que o livro em tela contribui para a divulgação de técnicas padronizadas, que devem ser adotadas nas diferentes pesquisas após reflexões aprofundadas, algo que, muitas vezes, a Arqueologia de contrato não atende.
Há, ainda, outro aspecto a destacar. A coleta e o estudo cuidadoso das coleções artefatuais e das amostras biológicas em campo elucidam uma discussão emergente no Brasil. Cada vez mais, arqueólogos têm se debruçado sobre uma tendência recente em desvalorizar, de certa forma, atividades interventivas nos sítios arqueológicos, baseando-se no discurso do preservacionismo e da limitação das reservas técnicas. Da mesma forma, desconsideram a importância de análises sobre coleções fragmentárias, argumentando que somente as coleções artefatuais mais significativas deveriam ser abordadas, pelo seu cunho elucidativo, simbólico e educativo. Porém, com a leitura da obra, fica também evidente que foi somente com novas intervenções arqueológicas em sítios já bastante estudados, e com base em análises de coleções até então desconsideradas pelo seu aspecto microescalar ou secundário, que novos modelos teóricos sobre as sociedades sambaquieiras puderam ser constituídos, ou seja, esses modelos são fruto de trabalhos de campo exaustivos, experimentação, discussões amadurecidas e publicação de dados. Invariavelmente, essas novas intervenções arqueológicas avolumaram as reservas técnicas, o que leva a discussão para além da Arqueologia tradicionalmente realizada no Brasil, invadindo temas como gestão do patrimônio arqueológico, reservas técnicas, ciência da conservação e museologia.
Na busca da popularização de uma abordagem estratégica bem pensada, que dialogue com pesquisas nacionais e internacionais, a obra contribui amplamente para o desenho de projetos de pesquisa e, com certeza, se tornará uma boa referência. Considerando o pool de pesquisadores que contribuíram para a tessitura do livro, e pelo seu conhecimento de técnicas importantes que ultrapassam as práticas de campo, fico na expectativa da publicação de um segundo volume, composto por abordagens metodológicas em laboratório, envolvendo as mesmas temáticas já abordadas na obra.
Rafael Guedes Milheira – Universidade Federal de Pelotas. E-mail: milheirarafael@gmail.com
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Arqueologia de La Represión y la Reistencia en América Latina 1960 – 1980 – FUNARI (CL)
FUNARI, Pedro Paulo A.; ZARANKIN, Andrés. (Org). Arqueologia de La Represión y la Reistencia en América Latina 1960 – 1980. Córdoba: Encuentro Grupo Editor, 2006. Resenha de: MILHEIRA, Rafael Guedes. Cadernos do LEPAARQ – Textos de Antropologia, Arqueologia e Patrimônio, Pelotas, v.2, n.4, ago./dez., 2005.
O livro Arqueologia de la Represión y la Resistencia en América Latina 1960 – 1980, editado pelos arqueólogos Pedro Paulo Funari e Andrés Zarankin, retoma uma discussão importante para a história contemporânea da América, pois trata de um momento histórico que não deve nunca ser esquecido, mas contrariamente a isso, sempre recordado e refletido.
O título do livro sintetiza com precisão o seu conteúdo, visto que a repressão e resistência são faces opostas de uma mesma moeda; são forças que se equivalem num sistema dialético e conflitivo, mas que, na visão dos autores, não podem ser simplesmente pensadas como um mero exercício retórico, pois são forças que ainda competem na atualidade e são responsáveis pela estruturação de parte das relações sociais vigentes. Nesse sentido, as forças políticas e os conflitos sociais, além de objeto de estudos da arqueologia, que visa à análise das práticas sociais a partir da materialidade, devem ser temas de reflexão dos pesquisadores com base na explicitação de suas posturas políticas.
Os nove capítulos do livro retratam experiências arqueológicas e históricas, relacionadas aos períodos ditatoriais e repressores, desenvolvidas em vários países da América Latina, a saber: Bolívia, Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, México e Colômbia. Nota-se uma preocupação constante dos autores em relatar, mesmo que brevemente, o contexto histórico-político dos países quando da instauração dos regimes repressores, bem como apresentando a estruturação das resistências políticas.
O primeiro capítulo, escrito por Roberto Rodriguez Suárez, relata a experiência arqueológica relacionada à busca dos restos corporais do General Che Guevara e companheiros na Bolívia. O autor enfatiza os caminhos metodológicos, envolvendo técnicas apuradas de campo para identificar a localidade das covas comuns dos guerrilheiros.
O texto de Rodrigo Navarrete e Ana Maria López é um estudo sobre os grafismos do Cuartel San Carlos – Venezuela. As paredes, tetos e chão do quartel serviram de mural para as representações gráficas do cárcere de presos políticos daquele país e permitem compreender o imaginário a partir de uma perspectiva material do regime político-repressor do estado.
Patrícia Fournier e Jorge Martinez Herrera refletem sobre o massacre da “Plaza de las Tres Culturas”, ocorrido no ano de 1968 no México, quando centenas de civis em passeata foram assassinados a queima roupa pelo governo dez dias antes da abertura das olimpíadas. Muitas vítimas desse massacre ainda estão desaparecidas, sendo necessários projetos que envolvam arqueologia, antropologia forense, história e direitos humanos para averiguar com maior precisão o genocídio cometido.
Carl Henrik Langeback trata de um estudo voltado para os aspectos epistemológicos e políticos da disciplina arqueológica na Colômbia. A reflexão teórica emerge da comparação entre o conhecimento arqueológico produzido pelos arqueólogos, tido no texto como classificatório e desprovido de significado de memória e, por outro lado, pelos intelectuais de esquerda, que sem base no registro arqueológico produziram conhecimento sobre o passado indígena pré-hispânico baseados na teorias marxistas.
Pedro Paulo Funari e Nanci Vieira de Oliveira refletem sobre a emergência da arqueologia do conflito no Brasil, enfatizando que a história das sociedades é a história das relações conflitivas. Os autores, dessa forma, contextualizam a arqueologia brasileira e pensam sobre as bases epistemológicas dessa arqueologia, que não se debruça em estudar o passado recente e repleto de indicadores de conflitos sociais relativo à repressão do período ditatorial militar.
Luis Fondebrider realiza um breve balanço sobre os 21 anos de desenvolvimento da antropologia forense na Argentina, através da participação da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF). O autor enfatiza a necessidade de fortalecer institucionalmente a participação dos arqueólogos na sociedade contemporânea. Destacam-se no texto as imagens fotográficas de escavações de covas comuns de presos políticos assassinados nos regimes repressores da Argentina, Etiópia e Congo.
A relação entre tortura, verdade, repressão e arqueologia na Argentina é o tema tratado por Alejandro F. Haber. As práticas de tortura, desenvolvidas pelos aparelhos repressores, servem não somente como repressão do corpo e da mente, mas também como um meio de estabelecer a auto-narração da verdade, imposta à força e sem diálogo, não levando em consideração a memória social das vítimas.
Como disciplina que constrói narrações sobre o passado, a arqueologia da repressão se diferencia daquela estritamente acadêmica em função da utilização da memória social, sobretudo dos parentes e amigos dos desaparecidos políticos, para desenvolver interpretações subjetivas sobre o passado. A não utilização dessa mesma prática de inclusão da memória social na explanação sobre o passado indígena foi responsável pela constituição de um conhecimento desprovido de memória e significado sócio-político José Lopéz Mazz relata experiências de atividades de arqueologia forense desenvolvidas no Uruguai com o objetivo de entender os aspectos materiais do aparelho repressor, bem como compreender as relações sociais estabelecidas no cárcere e a estruturação material da resistência.
A arqueologia da arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da Argentina é o objeto de estudo de Andrés Zarankin e Cláudio Niro. Os CCD’s foram tratados como estruturas físicas do aparelho repressor que comportam, no seu registro material, aspectos da memória do período ditatorial da Argentina. O espaço arquitetônico dos CCD’s denota a planificação da estrutura de repressão e permite que a relação torturador-torturado adquira sua forma mais explícita. Além dos aspectos objetivos de análise da estrutura arquitetônica dos CDD’s, existe uma preocupação constante dos autores em estabelecer uma conexão entre as práticas arqueológicas objetivas e a memória subjetiva das vítimas, referente às experiências sofridas no cárcere. O relato do cárcere de Cláudio Niro, enquanto vítima da ditadura elucida a possibilidade metodológica de construção de narrativas do passado com base na articulação entre arqueologia e memória em contraposição à história oficial.
Nesse sentido, as palavras mais usadas nos textos: política, direitos humanos, arqueologia da repressão, esquerda política, repressão, direita política, aparato de controle, manipulação do poder, resistência, governo, ditadura militar, conflitos sociais, memória, democracia, passado, narração, marxismo, etc., refletem o conteúdo e a postura política dos autores, não somente com relação à ditadura, mas também com relação à concepção teórica narrativa sobre o passado.
A arqueologia é refletida desde suas bases epistemológicas e é chamada a ser comprometida com a dinâmica social, ou seja, conclama-se que a arqueologia tenha uma função social de conscientização e sirva como ferramenta para interpretar o passado e compor uma memória alternativa à história oficial. “El investigador puede así, de manera explícita, asumir una posición activa en el proceso de interpretación de un pasado que ya no es el verdadero, sino apenas una interpretación” (Zarankin e Niro, 2006, p. 165).
De forma crítica, os autores com base em influência marxista, criticam e refletem sobre as bases epistemológicas da disciplina desde sua formação até a atualidade e nos questionam o seguinte: qual o papel da arqueologia e do arqueólogo frente à dinâmica social? Que postura deve tomar o profissional de arqueologia, na medida em que esse lida com aspectos da memória social coletiva? E, por fim, que tipo de conhecimento sobre o passado a demanda social requer?
Rafael Guedes Milheira – Mestrando em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE- USP), Brasil. Pesquisador do Laboratório de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (LEPAARQ – UFPel), Brasil. E-mail: rafamilheira@gmail.com
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