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Microfísica do Poder | Michel Foucault
Um dos mais célebres pensadores do século XX, Michel Foucault escreveu textos que são considerados tratados na área de Ciências Humanas. Suas principais temáticas versam sobre sexualidade, poder, loucura, discurso, instituições, disciplina, vigilância… Ele não pode ser enquadrado em nenhuma categoria pré-estabelecida, pois seus trabalhos transpassam as Ciências Humanas de ponta a ponta.
O tema dos artigos, entrevistas e aulas que originaram o livro Microfísica do Poder, publicado pela primeira vez no Brasil em 1979 pela editora Graal, gira em torno da questão do poder nas sociedades capitalistas. É através da análise de dispositivos de segurança que Foucault fará o inventário da relação entre segurança, população e governo, assunto principal desta resenha.
Esse texto é uma versão da aula dada por Foucault no Collége de France em primeiro de fevereiro de 1978. O autor principia seu texto sobre governamentalidade, o último da série de XVII capítulos que constam no livro supramencionado, fazendo uma análise genealógica dos tratados sobre a arte de governar do século XVI ao século XVIII. O problema do governo havia sido remodelado no século XVI: problema do governo de si, governo das almas e das condutas, tema da pastoral católica e protestante, governo das crianças… Como governar? Como ser governado?
Esses questionamentos tiveram palco no século XVI devido a dois fatores: o movimento de concentração estatal que começava a instaurar os grandes Estados territoriais e a superar a idéia de feudalismo e, por outro lado, o movimento de dispersão e desavença religiosa encabeçado pelas Reforma e Contra-Reforma.
Foucault optou por opor a literatura emergente sobre a arte do governar a um único texto que segundo ele “do século XVI ao século XVIII, constitui um ponto de repulsão, implícito ou explícito, em relação ao qual – por oposição ou recusa – se situa a literatura governo: O Príncipe, de Maquiavel” (p. 278).
Antes de ser recusado, porém, o livro de Maquiavel foi reverenciado pelos seus contemporâneos e imediatos sucessores e retomado também ainda no início do século XIX quando desaparece a literatura da arte de governar e se coloca a questão de “como e em que condições se pode manter a soberania de um soberano sobre um Estado” (p. 278).
Nesse intervalo de tempo, porém, houve uma considerável produção de literatura anti-Maquiavel, umas claramente explícitas, outras nem tanto; livros de origem católica ou protestante. Foucault escolheu trabalhar o viés positivo dessa literatura, seus objetivos, conceitos e estratégias. Porém o aspecto negativo do pensamento de Maquiavel é o que mais salta aos olhos. Essa literatura da arte de governar vai contra um Príncipe caracterizado em Maquiavel como exterior a seu principado, transcendente, que recebe seus súditos como herança, aquisição ou conquista. Os laços que o unem aos seus súditos são de violência, de tradição; são artificiais, não existe uma ligação fundamental, jurídica, natural entre as partes. A relação, portanto, é tênue, frágil e pode ser abalada por fatores externos e internos. Nesse contexto o objetivo do exercício de poder, portanto é o de reforçar e manter os laços do príncipe com o que ele possui, com o que herdou ou adquiriu (território e súditos). É exatamente esse esquema proposto por Maquiavel que a literatura da arte do governar quer substituir.
O primeiro texto anti-Maquiavel que será analisado por Foucault é Espelho político contendo diversas maneiras de governar [minha tradução], de Guillaume de La Perrière. Foucault inicia pela análise morfológica do que La Perrière entende por governante e enfatiza que também se diz governar uma casa, um estabelecimento, uma ordem religiosa. Nessas literaturas da arte de governar, o príncipe não é o único em seu principado, como é o príncipe “maquiavélico”. A arte de governar mostra que há várias formas de governar, há várias pessoas que exercem essa função, são práticas coletivas de exercício de poder, onde o Estado é apenas mais uma modalidade. Maquiavel propõe uma singularidade transcendente do príncipe enquanto a literatura da arte de governar propõe uma pluralidade de formas de governos.
Na análise do texto seguinte de La Mothe Le Vayer, que escreveu um século depois de La Perrière, Foucault ressalta a tipologia das diferentes formas de governo que segundo Le Vayer são três: “O governo de si mesmo, que diz respeito à moral; a arte de governar adequadamente uma família, que diz respeito à economia; a ciência de bem governar o Estado, que diz respeito à política” (p. 278).
Na literatura da arte de governar há uma harmonia, uma continuidade (ascendente ou descendente) entre ética, economia e política; enquanto que na doutrina do príncipe há uma descontinuidade entre o poder do soberano e as demais formas de poder. Foucault cita, inteligentemente embasado na literatura da arte de governar, que se alguém quer governar o Estado deve antes saber governar a si, sua família, seus bens (em continuidade ascendente). E a continuidade descendente quer dizer que quando um Estado é bem governado, os pais de família sabem governar a si próprios, suas famílias, seus bens; e assim os indivíduos se comportam adequadamente. A instituição governamental que assegura a continuidade decrescente do bom governo do Estado passou a chamar-se Polícia. Inicia-se, assim, com a continuidade decrescente e a institucionalização da Polícia, uma coerção e vigilância sobre sujeitos individuais e as práticas coletivas.
O governo da família, que diz respeito à economia, é o elemento central da continuidade – seja crescente, seja decrescente. O papel essencial do governo foi mesclar em sua arte de governar a economia familiar e o exercício político, vigiando os habitantes, as riquezas e os comportamentos individuais e coletivos como um pai de família (p. 281).
Com o estudo filológico, sociológico e histórico da palavra “economia”, Foucault foi capaz de afirmar que no século XVI esse termo significava uma forma de governo, e no século XVIII será entendido como uma realidade, “um campo de intervenção do governo através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para nossa história” (p. 282).
Foucault analisa os elementos que constituem o objeto de exercício de poder, ou melhor, quais são os encargos do governo. Há uma diferença de abordagens entre Guillaume de La Perrière, que vê o governo como aquele que conduz coisas a um fim conveniente, enquanto que Maquiavel entende que governar significa exercer poder sobre um território e seus habitantes. Há que ser explicado, porém, que para La Perrière “coisas” significam as relações sociais, quer seja entre homens, com as riquezas, objetos, instituições, recursos, território e fronteiras, costumes, hábitos, cultura, acidentes, desgraças, fome… Foucault exemplifica sobre governo de “coisas” falando sobre o funcionamento de um navio. Quem quer que seja o governante, ou qualquer outra determinação que o valha, terá de exercer seu poder sobre a nau, a carga, bem como prestar atenção no mar, se ocupar dos passageiros e dos marinheiros… “O essencial é portanto este conjunto de coisas e homens; o território e a propriedade são apenas variáveis” (p. 282).
Segundo a afirmação de La Perrière “governo é uma correta disposição das coisas de que se assume o encargo para conduzi-las a um fim conveniente” (p. 283). Essa passagem esclarece que a finalidade é intrínseca ao governo e é esta característica que o diferencia da soberania. A finalidade do exercício da soberania é o bem comum e a salvação. Sobre autoridade e soberania, Pufendorf, um autor do século XVII, cita: “Só lhe será conferida autoridade soberana para que ele se sirva dela para obter e manter a utilidade pública” (p. 283).
Para La Perrière, porém, a finalidade do governo não está no bem comum, mas sim na condução das coisas a um objetivo adequado a cada uma delas, portanto os seus fins são múltiplos e específicos. Para que atinja seus propósitos, a teoria do governo não estabelece leis aos homens, utiliza-se, pois, mais de táticas do que de leis, ou faz das leis, táticas. Não é, pois, através da lei que os objetivos do governo são atingidos.
É importante entender em que contexto pôde emergir a teoria da arte de governar no século XVI. Ela estava ligada ao aparelho administrativo monárquico territorial, ao conhecimento da ciência do Estado e estava intimamente relacionada com as práticas mercantis.
É no final do século XVI e início do século XVII que há uma primeira forma de cristalização da arte de governar devido à racionalização do Estado que “se governa segundo as regras que lhes são próprias” e tem sua própria racionalidade (p. 286). Pode-se entender que esta razão de Estado foi um entrave para o desenvolvimento da arte do governo que durou até o início do século XVIII.
Esta cristalização deveu-se a uma série de grandes crises do século XVII, momentos de urgências militares, políticas e econômicas que impossibilitavam a arte de governar de se expandir. A estrutura institucional e mental do século XVII também contribuiu para este bloqueio. Com a primazia do problema da soberania e suas instituições e enquanto o exercício do poder era pensado como exercício da soberania, “a arte do governo não pôde se desenvolver de modo específico e autônomo” (p. 286).
Houve, no século XVII, uma tentativa de compor a arte de governo com a teoria da soberania. Foi através dessa tentativa que se formulou a teoria do contrato: “a teoria do contrato fundador – o compromisso recíproco entre soberano e súditos – se tornará uma matriz teórica a partir de que se procurará formular os princípios gerais de uma arte de governo” (p. 286).
O desbloqueio da arte de governar, portanto o fim da cristalização que estamos comentando, se deu por vários fatores de expansão (demográfica, monetária, agrícola), mas, sobretudo, está estritamente vinculada com a “emergência do problema da população” (p. 288). Com esse novo problema posto, pode-se repensar a noção de economia não mais vinculada estritamente à família. A família estaria agora no interior da população e seria seu instrumento fundamental. Porém a população tem características próprias e produz efeitos econômicos específicos, independentes dos da família. A família, então, passa de modelo econômico da arte de governar a segmento privilegiado da população. O que permite, portanto, o desbloqueio da arte de governar é a população ter eliminado o modelo de família de constituição do governo.
O novo conceito forjado no século XVII de economia política só pôde existir devido à concepção da população como o novo objeto do governo. Bem como o a passagem da arte de governo a uma ciência política, e de um governo com técnicas e modelos da soberania para um regime de técnicas de governo, só pôde existir em torno da população, quando a idéia de família como sustentáculo econômico havia sido superada.
O conjunto configurado no século XVII entre governo, população e economia é o modelo que predomina em nossos Estados. Há ainda que se questionar sobre o que é esse Estado. Foucault diz: “o Estado não é mais do que uma realidade compositória e uma abstração mistificada, cuja importância é muito menor do que se acredita” (p. 292).
O Estado deve ser entendido, atualmente, a partir do seu modelo de governamentalidade e não de estatização. Foucault termina o texto dizendo que suas próximas aulas no Collège de France continuariam tratando desse assunto e finaliza com a afirmação de que: a “pastoral, novas técnicas diplomático-militares e finalmente a polícia” (p. 293) foram os três pilares sobre o qual se fundou a governamentalização do Estado.
Bibiana Soldera Dias – Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (bolsista do CNPq). E-mail: bibiana.dias@gmail.com
FOUCAULT, Michel. A Governamentalidade. In: Microfísica do Poder. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993. Resenha de: DIA, Bibiana Soldera. Aedos. Porto Alegre, v.1, n.1, p. 325-329, jun. / dez., 2008.