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Viagens e narrativas / História Social / 2003
No terceiro ato d’ A tempestade, Próspero vale-se de magia e conduz os náufragos até sua ilha, oferecendo-lhes farta mesa, servida por espíritos. “ – São fantoches com vida”, espanta-se Sebastião: “ – Agora creio / que haja unicórnios, que na Arábia serve / uma árvore de trono à Fênix, / que a reinar lá se encontra neste instante”. Antônio também opina, e confessa crer em “… tudo o mais que de hábito / tem sido posto em dúvida (…) / Os viajantes não mentem, muito embora / na pátria os tolos os acoimem disso”. Quem acalma os ânimos de Antônio é Gonzalo, sábio conselheiro:
“Ora senhor, não tenhas medo. Quando
nós éramos meninos, quem creria,
porventura, que houvessem montanheses
com barbela de touro na garganta,
a pender-lhe do peito, como um saco
balouçante de carne? Ou gente houvesse
com a cabeça no peito? Ora, tudo isso
nos é prontamente asseverado
pelos viajantes sobre os quais apostas
correm de um contra cinco”.[1]
Nem todos os viajantes, contudo, descrevem homens sem cabeça ou aves que renascem das cinzas, já que, do outro lado da ficção, espreita a sempre buscada verdade da história, ou – de modo menos enfático – uma quase tangível melhor versão, à qual se chegaria, a partir de procedimentos objetivos de criação, traçados por um tão ansiado quanto indemonstrável método historiográfico. Também sobre isto, muitas apostas correram e vão continuar a correr, opondo crentes e cépticos de vários matizes, os quais se acusam, mutuamente, de acreditar no que não viram ou imaginaram ver, ante a tensão sempre constante que opõe ausência e presença dos objetos históricos; o que foi e aquilo que sobrou nos vestígios documentais – em suma, a interpretação.
O problema é muito antigo, aparecendo, por exemplo, no conflito religioso-literário que opôs André Thevet e Jean de Léry, no século XVI, mas é na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto (1614) que ele aparece com saborosa evidência, conforme se lê no início do capítulo CXIII do livro: “por me temer que particularizando eu todas essas coisas que vimos nesta cidade, a grandeza estranha delas possa fazer dúvida aos que as lerem, e também por não dar matéria a murmuradores e gente praguenta, que querem julgar das coisas conforme ao pouco que eles viram, e que seus curtos e rasteiros entendimentos alcançam, de lançarem juízos sobre as verdades que eu vi por meus olhos, deixarei de contar muitas coisas que quiçá dariam muito gosto a gente de espíritos altos, e de entendimentos largos e grandes (…). Mas por outra parte não porei também muita culpa a quem não me der muito crédito, ou duvidar do que eu digo, porque realmente afirmo que eu mesmo, que vi tudo por meus olhos, fico muitas vezes confuso quando imagino…” [2]. O autor da Peregrinação dava-se conta de que o relato constitui a principal ponte entre o testemunho direto e o leitor distante; entre a observação presencial e a ausência interpretativa; entre uma possível verdade do fato e sua narrativa.
Embora as idéias de Paul Veyne sobre a oposição verdadeiro / verossímil – “a história é uma narrativa de acontecimentos verdadeiros” [3] – possam iniciar uma discussão do problema, é interessante lembrar, nesta breve apresentação, a indagação que fez Paul Ricoeur, ao tratar da questão da verdade em história: “aquela história que ocorreu [e que preencheria, portanto, segundo Veyne, a única condição básica “para ter a dignidade da história”] e que interessa ao ofício do historiador, prestarse-á a um conhecimento na linha da verdade, de acordo com os postulados e regras do pensamento objetivo postos em função nas ciências?”[4´] Para Ricoeur, objetividade é entendida no sentido epistemológico estrito; “é objetivo aquilo que o pensamento metódico elaborou, pôs em ordem, compreendeu, e que por essa maneira pode fazer compreender”, [5] ou seja, em história, a objetividade só se realiza – tornando-a verdadeira, portanto – quando ela é capaz de explicar (ou convencer), o que não quer dizer que seus procedimentos métodicos sejam os mesmos da física ou da biologia, a começar pelo fato óbvio de que à objetividade do historiador deve corresponder sua própria subjetividade, ou seja, os valores e escolhas que determinam seus passos, em meio aos alicerces monumentais sobre os quais constrói o seu trabalho, aliando pesquisa e erudição, esforço e sensibilidade, confiança e descrença.
Quando o tema são os viajantes, essas questões, aqui apenas esboçadas, ganham cores mais interessantes, já que, desde Heródoto (“Desejoso de saber, interrogo”), o testemunho de quem viu e pôs-se a contar tem servido à explicação da história. Além disso, embora os viajantes contem o que viram, fazem-no sempre a partir de processos de escolha e seleção, e mesmo considerando a insistência dos historiadores em buscar a generalização, os relatos valem, principalmente, como representações da diferença, já que – à exceção dos narcisistas, sempre numerosos – as imagens que devemos buscar no espelho dessa forma específica de conhecimento é aquela que nos define pela contemplação do Outro. É por isso que os textos de viajantes – trabalhados com maestria neste número especial da Revista de História Social – também se prestam à necessária expatriação do historiador, que se desloca através deles para, no retorno, pôr em cena uma terceira e fundamental personagem: o leitor, a quem os relatos – graças à sua mediação – acabam oferecidos.
Esta última instância, a do leitor, é a que oferece menos riscos, já que os comprometimentos dos viajantes e historiadores – cada um, a seu modo, vendo, selecionando, organizando e dando a conhecer – são sempre avaliados em função de sua capacidade de demonstrar, objetivamente, a veracidade do discurso: enquanto Paul Veyne considera que só os fatos verdadeiros podem aspirar à dignidade da história, para Paul Ricoeur, cabe aos historiadores buscar a dignidade da objetividade, construindo, assim, suas próprias verdades.
Depois, resta a sedução dos percursos e das boas viagens que se abrem nas próximas páginas.
Notas
1. SHAKESPEARE, William. A tempestade, trad. Carlos A. Antunes, Biblioteca Clássica UnB, 1982
2. PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Fac-símile da edição de 1952, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 329.
3. VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Lisboa, Edições 70, 1983, p. 22.
4. RICOEUR, Paul. História e verdade, trad. F. A. Ribeiro, Rio de Janeiro, Forense, p. 9.
5. Idem, p. 23.
Paulo Miceli
MICELI, Paulo. Apresentação. História Social. Campinas, n.10, 2003. Acessar publicação original [DR]