Lógicas e métodos – Das Filosofias às Teorias da História

The work of the critic 2. comic ar 650433 Imagem IFIAMidjourney jun. 2023 Lógicas e Métodos
The work of the critic 2. comic –ar 650:433 | Imagem: IF/IA/Midjourney (jun. 2023)

 

Colegas, boa tarde!

Neste texto, avançamos na empreitada de comparação entre manuais de Lógica e manuais de Teoria/Metodologia da História. Nosso o objetivo é reforçar uma hipótese: a ideia de que a estrutura dos mais conhecidos discursos sobre o método copia a estrutura dos manuais que ensinavam a arte de ordenar os raciocínios ou a Lógica.

Assim, na primeira parte do texto, inventariamos fins e temas de manuais de Lógica e examinamos o lugar do “método” nesses instrumentos propedêuticos. Na segunda, buscamos os significados de “método” nos textos de Lógica e algumas apropriações de Lógica nos manuais de Teoria e Método da ou para a Ciência Histórica.

Boa leitura!

Introdução

Manuais de Lógica, principalmente os produzidos em cátedras universitárias de Filosofia, na Itália, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha, são um bom objeto de comparação com manuais de Teoria e Metodologia da História (TMH), mas, apenas em termos de analogia, isto é, como estímulo à compreensão de algumas escolhas dos escritores e não por encarnarem supostos ancestrais dos manuais propedêuticos.

É provável que o primeiro (entre os historiadores do método) a exercitar a comparação sistemática dos escritos de TMH do século XIX com os escritos de Lógica dos três séculos precedentes tenha sido o Filósofo (e autor de livros de Lógica) Giovanni Gentille (1875-1944), em artigo (bastante elogiado por B. Croce) publicado no ano de 1909.

Gentille (1909, p.138) foi também o primeiro historiador, entre os historiadores do methodus a identificar o par “investigação / exposição” ou, como ele mesmo escrevia, as operações de “metodologia” e as operações de “ars historica1 tanto nos manuais de “método histórico” como nos manuais de Lógica do século XVII. Ele, contudo, não gostou do que leu porque viu demasiada ênfase nas operações de comunicação em detrimento da pesquisa.

Cem anos antes deste artigo de Gentille, o Teólogo e professor de Filosofia da Universidade de Marburg, Ludwig Wachler (1767-1838) escrevera, talvez, a primeira história da Historiografia europeia, ressaltando a dicotomia que seria desprezada por Gentille tanto no título, História da pesquisa e da arte histórica (Geschichte der historischen Forschung und Kunst seit der Wiederberstellung der litterarischen Cultur in Europa 1812/13), como nos elementos textuais do seu trabalho, onde “pesquisa” designava matéria metahistórica e “arte” representava as coisas necessárias à escrita histórica de material substantivo (Wachler, 1813, p.vii, p.834-936).

Da nossa parte, percebemos o valor do par (investigação / apresentação) e da necessidade da comparação quando nos deparamos com a esparsa (embora crescente) referenciação de títulos de Lógica (o Órganon de Aristóteles e o Novo órganon de Bacon), autores de Lógica (I. Kant e W. Hegel) e, de modo mais significativo, com os apelos que os escritores de propedêutica histórica faziam aos termos “lógico” e “logicamente” para justificar os usos de procedimentos analíticos e sintéticos, por exemplo.

Vamos aprofundar essa comparação, inventariando fins e temas de manuais de Lógica e examinando o lugar do “método” nesses instrumentos propedêuticos.

Em seguida, vamos buscar os significados de “método” nos textos de Lógica e demonstrar algumas apropriações de Lógica nos manuais de Teoria e Método da Ciência Histórica ou para a Ciência Histórica, entre os séculos XVIII e XIX, nos ambientes de produção intelectual situados nos países que hoje conhecemos como da Itália, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha.


1.  Fins e temas

A primeira analogia entre os domínios da Lógica e as concepções de methodus dos nossos escritores pode ser feita em termos de fins e temas para cada empreendimento.

No que se refere aos fins, os textos de Lógica2 poderiam ser classificados, tipicamente, como auxílios formais do conhecer – e é o que fizemos aqui (SILVA, 1813, p.446. v.1). Ao fundo de cada conhecimento professado estavam posições (céticas, dogmáticas ou críticas) sobre a possibilidade de apreender ou representar os objetos (as coisas ou a realidade), sobre lugar onde a realidade poderia ser encontrada, percebida e concebida (sentidos externos, imaginação e entendimento) (KANT, 2013, p.612-614) e, ainda, sobre a moral que governaria os fins e os meios prescritos pelos domínios da Lógica.

Na Introdução à doutrina da razão e no Exercício da doutrina da razão (1691), ambos escritos pelo professor de Direito da Universidade de Halle, Christian Thomasius (1655-1728), por exemplo, tal domínio tinha por objeto as regras para a descoberta e a comunicação das verdades racionais e das verdades históricas, cuja aquisição era uma obrigação de todo “ser decaído” (em versão agostiniana).

Inferiores (embora não opostas) à “verdade revelada” dos livros sagrados, as verdades do mundo deveriam ser buscadas, inicialmente, com o auxílio de um professor e, depois, sob os esforços dos poderes mentais de cada um, como forma de aperfeiçoar “diariamente” a sua compreensão sobre o mundo. (Thomasens, 1719, p. 5).

Contingências desse e de outros tipos (sobretudo, de compreensões mundanas) foram as principais razões para a variação dos fins, entre as primeiras iniciativas modernas de reforma do Órganon de Aristóteles, a exemplo da Lógica de Petrus Ramus (Ramee), e as Lógicas concomitantes à publicação dos textos propedêuticos de Droysen e Langlois e Seignobos, como aquela Lógica empiricista produzida por S. Mill (1843) e também aquela outra, opositora racionalista, escrita por W. Wundt (1883).

Assim, os textos de Lógica foram construídos como instrumentos viabilizadores da declaração da verdade ou da falsidade (Ramee), da certeza demonstrada e da natureza interpretada (Bacon), da verdade distinguida e bem julgada (Descartes) e do juízo verdadeiro e exato (Arnauld e Nicole).

Também foram os seus fins a verdade conhecida e racionalmente justificada (Balmes), o conhecimento certo / aprendido e o conhecimento provável / recitado (Meier) e as regras do julgamento ou o conhecimento avaliado ou retificado (Kant).

As variações, como vemos, além das clássicas divergências em termos de Moral, concepções de origem do conhecimento e de utilidade da Lógica, estavam, sobretudo, no número de coisas da Lógica, como nos casos da simples disputa ou raciocínio (Ramee) e da aprendizagem e da recitação (Meier).

As variações estavam também nos limites do alcance das suas normas, traduzíveis, por exemplo, nos graus de certeza de Bacon e nas regras necessárias (inatas) ou contingentes (dependentes dos sentidos externos) de Kant.

No fundo, excetuadas as situações nas quais os lógicos ocuparam todo o seu texto na definição de verdade (Hegel) ou se afastaram da função utilitária imediata demandada pela docência – a exemplo do ensinar a raciocinar por silogismos (Kant) –, as respostas sobre as finalidades da Lógica convergiram, dominantemente, para as generalizadas expressões de identificar as regras do conhecer e identificar as regras de comunicar.

Essa mesma estrutura predominante nas Lógicas foi empregada pelos escritores de textos de TMH, expressas, por exemplo, sob as díades conhecer e representar (Mortet), investigar e expor (Bauer e Ballesteros) e descobrir e sintetizar (Firth).

O vigor dessas estruturas em alguns escritos e a sua instabilidade em outros tantos, no século XIX, em países europeus, guardam certamente alguma relação com as mudanças no ensino de Lógica, efetivadas no século XVII.

Naquela época, o Organon de Aristóteles permanecia modelo escolástico (combinado ou contraditado com proposições extraídas de Platão ou dos filósofos Pré-Socráticos).

Contudo, da insatisfação com os seus limites emergiram alternativas que refletiam a arquitetônica dos programas de ensino em colégios de Artes ou em faculdades, reformados por seus respectivos catedráticos.

O aprendizado clássico (aristotélico) do instrumento necessário ao conhecimento das coisas prescrevia, então, as macro operações de conhecer e demonstrar: conhecer a estrutura de palavras, as proposições e as formas gerais de expressão (verdadeiro, provável ou falso) e demonstrar a verdade (analítica), a probabilidade (dialética) ou falsidade (sofística) das proposições.3

Por uma série de razões reiteradamente narradas nas histórias da Lógica,4 essa estrutura do instrumento do conhecer aristotélico foi alterada entre os séculos XVI e XVIII.

Naquele tempo, a operação de descobrir (inventar ou investigar) ganhou maior importância e o comunicar (expor ou compor) ganhou certa autonomia ou recebeu novas metas provenientes dos domínios da Retórica e da Poética.

A leitura de obras produzidas nesse período (ver quadro 1) nos possibilitou a clara percepção de que os escritores oscilaram entre a ênfase na operação de comunicar, a ênfase na operação de descobrir ou o equilíbrio entre a demonstração e a investigação, explicitada nas tarefas escolares de aprender para si e aprender para ensinar aos outros.

Um dos exemplos mais citados dessas mudanças foi a experiência de Giacomo Zabarella (1533- 1589), descrita no livro Opera logica [1597].

Condicionado pelas demandas dos alunos da Faculdade de Medicina, esse aristotélico ortodoxo e professor de Filosofia Natural da Universidade de Pádua reconheceu a existência de dois métodos relacionados às finalidades do conhecer e do aprender (ASHWORTH, 2008, p.615-616). Ao primeiro nomeava “methodus” (método “resolutivo” ou de conhecimento) e ao segundo “ordo ou ordines” (método “compositivo” ou de demonstração).

Para os fins atribuídos à Lógica no seu cotidiano de professor, entretanto, Zabarella priorizou as operações da “demonstração”, valorizando esse domínio como ferramenta para a melhoria da aprendizagem. (MIKKELI, 1992, p.81-82, p.86-87).

Outra mudança importante, efetuada na Lógica por Zabarela, foi a separação entre “Historica” e “ars historica” (MIKKELI, 1992, p.75-76), base para as diferenciações de “história” (evento, representação do evento e reflexão sobre o evento a partir das representações escritas), explicitadas pelo lexicógrafo Benjamin Herderich (1645-1748), em 1709. (Pandel, 1990, p. 130).

No seu Guia para as ciências históricas mais nobres (1709),5 ele empregou a palavra “método” apenas uma vez, atribuindo-lhe o significado de modo compacto para apresentação de um conjunto de “ciências auxiliares”. (HEDERICHS, 1711, p. viii-ix).

Mediado por Hederich, Zabarela também serviu à invenção de conceitos e à estruturação de domínios típicos da “Historiografia” (tomada como Teoria da História) e da “Historiomathia”, entendida como responsável pelas regras de aprender História (autodidática) e regras para ensinar História (didática).

Foi esse o esquema que Johann Christoph Gatterer (1727-1799) criou na Universidade de Göttingen (Pandel (1990, p.130-131, p.135; GEIGER, 1908, p.42, p.45), no último terço do século XVIII, interpretado como ponto zero da Teoria da História ou do método histórico por uns e, também, anacronicamente, como iniciativa de institucionalização da História na Universidade sob modelo interdisciplinar.

Foi também esse esquema dicotômico de significar methodus – conjunto de regras para escrever e conjunto de regras para ensinar – que Moeller (filho) recuperou como modelo formativo para os pós-graduandos em História e/ou futuros professores de História na Bélgica, no último quartel do século XIX. E ele fez isso mesmo sabendo que o seu responsável (Moeller-pai) havia escrito a proposta na primeira metade do século XIX, inspirando-se na experiência como aluno de universidades alemãs, onde a orientação de propostas semelhantes a de Gatterer (“historiografia” / “historiomathia”) era bastante comum.

A Lógica aristotélica também foi modificada com a agregação de operações do domínio da Retórica escolástica.

A inventio e o iudicium, segundo os desejos do francês Pierre Ramee (1515-1572), deveriam constar como elemento da Dialética (RAMEE, 1555, p.121). Diferentemente de Zabarella, que queria aprofundar o conhecimento sobre a Filosofia Natural, já abordada no texto de Aristóteles, nosso já conhecido Ramee era um professor de Eloquência e Filosofia, interessado em facilitar a aprendizagem e demonstrar a utilidade dos estudos de humanidades prescritos pela Universidade de Paris.

Seu propósito não era tanto a descoberta de novos conhecimentos e sim a sistematização e a organização dos argumentos conhecidos, ou seja, a melhoria do currículo, em termos de estratégias de ensino e de aprendizagem. A Lógica, então marcada pelas operações de análise e síntese, deveria ser útil aos alunos em todas as “artes” (História e Literatura, por exemplo).

Esse interesse o fez negar a diferença entre o “methodus” (com o significado de descoberta) e método como “ordo” (com o significado de ensino) e defender o emprego dos dois conjuntos de operações para uma mesma tarefa, no seu caso, a leitura dos antigos: decompor um texto em seus elementos lógicos e compor um texto seguindo os procedimentos adotados para a análise textual que se findava. (ERLAND, 2016).

Essa tentativa de unificação dos métodos inventada por Ramee foi o que possibilitou, em parte (VASOLI, 1996, p.8), a construção de uma das primeiras e mais controversas ideias de método histórico do século XVI: Methodus ad facilem historiarum cognitionem (1566).

Evidentemente, o seu responsável, o jurista Jean Bodin (1530-1596), não se empenhava em tornar científico um domínio chamado História. Seus interesses estavam bem longe dos debates sobre teoria do conhecimento histórico do final do século XIX.

Apoiando-se nas ideias de método de Ramee, os escritos de História examinados por Bodin foram transformados em instrumento para sistematizar corpos legais dispersos no tempo e no espaço e viabilizar a invenção e uma espécie de Direito Universal.

O método que lhe facilitaria a tarefa, a “aplicação da análise à leitura das histórias”, consistia na classificação dos gêneros de histórias, de historiadores e, adiante, a comparação de conteúdos substantivos como as formas de Constituição e de governo em várias partes do mundo. (BARROS, 2012, p.172, p.180, p.186- 187).

Bodin foi citado como exemplo positivo e negativo por quase todos os historiadores da passagem do século XIX ao XX que historiaram o “método”, o “método histórico” ou a “crítica histórica”.

Até mesmo o experiente escritor Bernheim, que cultivava a ciência Histórica como investigação e representação, atribuiu valores exagerados (BERNHEIM, 1888, p. 128) àquela invenção bodiniana de “método histórico”, centrado em práticas de classificar e de ler histórias.

Dois exemplos bem mais conhecidos de iniciativas modificadoras da estrutura das Lógicas de base aristotélica, deflagradas pela diferenciação dos objetivos perseguidos por seus cultores, foram o Novo organon (1620), de Bacon, e o Discurso do método (1637), de Descartes.

Ambos compreenderam a Lógica, respectivamente, como operações de “invenção” de “novas verdades” e operações para o “aperfeiçoamento do espírito”. Bacon quis “inventar” ou descobrir uma nova arte (as Ciências Naturais) e Descartes prontificou-se a aprender a usar melhor a sua capacidade de julgamento. (ROUX, 2012, p. 11-12, p. 15).

Os dois punham ênfase na investigação (descoberta) de novas verdades e reclamavam da insuficiência dos instrumentos disponibilizados pela escolástica: “nós rejeitamos (declarava Bacon) a prova por silogismos [método de indução] porque ela opera em confusão [de palavras e imaginação] e permite que a natureza escape de nossas mãos. [O silogismo está] bastante divorciado da prática e é completamente irrelevante para a parte ativa das ciências.” (BACON, 2014, p. 19).

Descartes (1989, p. 43) fazia crítica idêntica ao afirmar que a Lógica baseada em silogismos servia muito “mais para explicar a outrem as coisas que já se sabia”. Além disso, haveria nos silogismos bons preceitos, mas também preceitos “nocivos e supérfluos”, sendo quase tão difícil separá-los quanto tirar uma “Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado.”

Quando comparamos essas concepções, fins e temas de Lógica dos filósofos e as concepções fins e temas de método dos escritores de propedêutica histórica, percebemos com facilidade que a Lógica de Descartes (as condições do conhecer e as quatro regras fundamentais) foi consumida por Tardif e o princípio básico do raciocinar cartesiano – a dúvida metódica – atravessou as operações de interpretação de Seignobos.

Percebemos ainda a dedicação de Droysen à construção de um Órganon – uma Lógica – para a Ciência Histórica, com referências aos idola baconianos que depurariam a imagem construída pelo historiador, resultante da relação entre o que ele percebia nos restos do acontecido e o que ele desejava que pudesse acontecer no seu entorno.

Por fim, reiteramos, é fácil detectar o desprezo pelo silogismo aristotélico, não apenas como instrumento do conhecer em Ciências Naturais, mas também na História filosófica (ou na Filosofia histórica). Essa prática foi manifestada por Collingwood na construção da sua Lógica da História. Com esses casos, chegamos ao terreno dos métodos nas Lógicas e nas Ciências Históricas.


2.  Significações de método

Na Lógica de Aristóteles (2010, p. 347-350), o silogismo estava situado na Dialética (também chamada de Tópica). Era um instrumento para raciocinar que servia à invenção (investigação) e também demonstração (sustentação do argumento).

Aristóteles já grafava “métodos”, mas Ramee (1555, p. 3), como vimos, acusou um erro do estagirita: a distinção entre os caminhos para a demonstração da verdade (Analíticos) e os caminhos para a demonstração da opinião (Dialética). Para Ramee (1555, p. 119-120), contudo, haveria apenas um método, realizado no dispor as coisas no discurso (sintaxe). Método, na versão de 1555, significava “disciplina’ [ordem] e “disputa” a serviço do julgamento.

 

Quadro 1 – Lugares do método na arquitetônica dos textos de Lógica (Século XVI – Século XIX)
Autor
Ano
Estrutura
Aristóteles
335/323
Categorias / Interpretação / Analíticos / Dialética / Sofística
Ramee
1555
Invenção / Julgamento
Zabarella
1578
Lógica / Sylogismo / Método / Conversações, demonstrações em
definições…
Bacon
1620
Divisão das ciências / Novo órganon / Fenômenos do universo…
Descartes
1637
Discurso do método / Ótica-Meteorologia-Geometria
Port-Royal
1662
Concepção / Julgamento / Raciocínio / Método
Wolff
1712
Discurso preliminar / Teorética / Prática
Berkeley
1710
Princípios do conhecimento / [A segunda parte é desconhecida]
Meier
1752
Conhecimento / Aprender / Ensinar / [Características] do estudioso
Kant
1800
Analítica ou Doutrina Geral dos elementos / Dialética ou Doutrina
geral do método
Hegel
1812/13
Doutrina do Ser / Doutrina da Essência
Mill
1843
Nomes e proposições / Raciocínio geral / Indução / Lógica das
Ciências Morais
Balmes
1846
Faculdades auxiliares / Faculdade principal – entendimento / Método
Wundt
1880/83
DG do Método / Matemática / C. do Espírito / C. Históricas / C. de
Leis / Filosofia
Produzido pelo autor a partir de: Ramee (1555), Zabarella (1758), Bacon (1620), Descartes (1637), Port-Royal (1662), Wolff (1712), Berkeley (1710, Meier (1752), Kant (1800), Hegel (1812), Mill (1843), Balmes (1846) e Wundt (1880). Obs.: (DG) – Doutrina Geral.

Na estrutura do discurso de Bacon (1909, p.62, p.78, p.235), o instrumento de descoberta das ciências ocupava a parte central (quadro 1, linha 5). Seu método reunia os movimentos de (1) inferir os axiomas e (2) fazer novas experiências a partir dos axiomas já formados, designados como indução-experimentação e dedução-experimentação.

Já os movimentos sugeridos por Descartes (1637, p. 20-23) seguiam quatro regras: (1) evidência-intuição, (2) análise, (3) dedução e (4) enumeração. O Método era a primeira parte da publicação. A segunda demonstrava a serventia do instrumento para o cálculo e as respectivas descobertas no campo da Ótica. Observando a estrutura do Discurso de Descartes, percebemos que o seu “método” praticamente assumiu (ROUX, 2012, p. 6-7) as antigas funções da “Lógica”.

O mesmo não podemos dizer de Bacon que isolou as operações de método em uma parte da obra (com majoritário significado de ensino) e preferiu, dominantemente, os termos “via”, “ratio” e “organum” para referir-se aos caminhos da descoberta e avaliação do conhecimento (MENNA, 2014, p.12n).

Foi com esse tipo de informação e procedendo por analogia inversa no tempo (passado / presente) que conseguimos minimizar o nosso estranhamento em relação às Teorias de Droysen e de Seignobos, ou seja, a legítima possibilidade de a palavra e as coisas do “método” situarem-se como parte de uma Teoria (o Esquema de Droysen, versão 1882) ou serem transformadas, praticamente, em toda a Teoria da História (o “ensaio sobre o método”, de Langlois e Seignobos, e a primeira versão do Esquema de Droysen – 1857/8).

Quadro 2 – Métodos de análise e de síntese na Lógica Port-Royal (1662)
Análise
Síntese
Fins da Lógica
Descobrir a verdade
Provar a verdade aos outros
Designações de Método
Método de resolução
 
Método de invenção
Método de composição
 
Método de doutrina
Elaborado pelo autor a partir de Arnauld e Nicole (1668, p.391-392).

Na Lógica de Port-Royal (1662) – uma expressão exemplar da Lógica cartesiana (quadro 2) –, os jansenistas radicados em Paris, Antoine Arnauld (1612-1694) e Pierre Nicole (1625-1695), apresentavam apenas duas possibilidades de método, destinados, respectivamente, à resolução de problemas (problemas de palavras e de coisas) e à demonstração dos seus resultados.

Tal prescrição, situada na última parte do escrito jansenista, nos deu uma nítida ideia da profusão de termos e de significados para método (caminho para o descobrir / provar ou caminho analítico / sintético) que seriam empregados adiante em outros domínios e gêneros (quadro 2) e também no manual de Tardif (método de ensinar e método de investigar) que, por sua vez, se orgulhava de empregar a Lógica e a erudição francesas.

Uma dessas distinções (método como investigação e método como exposição) foi mantida na Arte de cultivar a razão (1712), texto seminal de Lógica em língua alemã, de C. Wolff (1735, p.46).

Wolff declarou que o conjunto de regras destinadas ao raciocínio e empregadas na Filosofia era o método matemático, ou seja, aquele que prescrevia o uso de sujeitos e predicados precisos, ordenados e admitidos como verdadeiros.

Wolff (1735, p.1, p.166-168) também referiu-se às verdades históricas como não demonstráveis e sim acreditáveis. Se esse tipo de conhecimento não possuía fundamentos incontestáveis (definições, axiomas e experiências claras), estabelecidos de modo irrefutável (via silogismos), “História” não seria, evidentemente, uma “ciência”, ele afirmou.

Esse raciocínio (entendido por nós a partir das premissas de Wolff) pode ter sido o problema que mobilizou os esforços de Johann Martin Chladenius (1710-1759) a construir uma Lógica para a História (História qualificada como Geschichtswissenschaft e não ars historica) a qual designou de Ciência Histórica geral (1752).

Era, então, o mesmo Chladenius abonado por Langlois e Seignobos no seu “ensaio sobre o método”. Contudo, apesar de oferecer caminhos para a aquisição da “certeza” e da “probabilidade” históricas, do “aprender uma História” e da “arte de escrever História” (temas, respectivamente, relativos à analítica, dialética, análise e composição), Chladenius (2013, p.231, p.257, p. 282, p. 292) não usou “método” ou “metodologia” (seja em latim, seja em alemão). Preferiu “regra” ou “regras gerais” para codificar o processo de produção do conhecimento histórico.6

Da segunda metade do século XVII ao início do século XIX, as Lógicas permaneceram como modelos de estrutura para os discursos sobre regramento da pesquisa e da exposição históricas e base para justificação dos métodos e de partes do método de escritos qualificados como “de História.” (CHLADENIUS, 1752, p. 21).

As mesmas dicotomias que acompanhamos no início desse texto seriam agora flagradas nos manuais enciclopédicos que circulavam nos Estados alemães, ganhando a estrutura de três ou quatro elementos e ressignificando o termo “metodologia histórica”.

No Esquema de ciências históricas auxiliares (1802), J. E. Fabri (1808, p.440-443) empregava esse termo7 para designar as coisas da “heurística”, “crítica”, “técnica” e “sofística” e constituir um domínio que servia à Cronologia, Genealogia, Diplomática, Heráldica, Numismática e à Geografia.

Era metodologia prescritora de princípios e regras para a “produção”, “composição” e “comunicação” históricas (regras para a Historik ou ars historica) e regras para o conhecimento das obras e dos conteúdos e os seus respectivos usos na vida prática (Historiografia).

Vemos aí uma estrutura similar (embora anterior) ao quadripartidismo de Droysen e de Bernheim, fundado em elementos da Lógica aristotélica: descoberta (heurística e crítica) / demonstração (concepção e representação).

Na Enciclopédia de ciências históricas auxiliares (1808) de J. G. Fesmaier a situação se inverteu: “método histórico” tornou-se elemento da “Crítica Histórica”, uma das ciências auxiliares históricas.

Tal método compreendia princípios para a apresentação (acadêmica e pragmática) (FESMAIER, 1802, p.202-293, p.308-309), cujas formas eram derivadas das regras da Lógica.

Para Carl Traugott Gottlob Schönemann (1765-1802), “metodologia abarcava as operações dos “estudos históricos” e do “ensino” histórico: preparação do material (busca e crítica de fontes) e tratamento do material (seleção, concatenação e representação) (SCHÖNEMANN, 1799, p.12) do mesmo modo que as díades privilegiadas pelos citados Moeller e Tardif.

Durante o século XIX, dada a sofisticação, por exemplo, nos escritos já canônicos de Kant e de Hegel, a apropriação das Lógicas se deu de modo mitigado (mesmo em termos de “método” – a palavra e a coisa atribuída pelos filósofos apropriados).

Na versão mais elaborada da lógica transcendental, inserta na Crítica da razão pura (1781/87),8 Kant (2013, p.96-97) dissertou sobre as regras do conhecer conceitual, isto é, sobre as leis que governavam o entendimento ou faculdade de pensar, mas distinguiu a Lógica do “uso universal do entendimento” (“Lógica elementar”) e a Lógica do “pensar corretamente sobre um certo tipo de objetos” (“órganon”).

Resultante da sua concepção fenomenológica (da separação entre o sujeito conhecedor e um objeto com hipotética existência em si mesma), a Lógica Geral Pura foi reservada ao estudo das formas do pensamento intuitivo ou conceitual, classicamente conhecidos como os imperativos categóricos tempo e espaço.

Sob a designação de “Lógica Transcendental”, o escrito de Kant (2013, p.40) determinava, desse modo, “a origem, o alcance e a validade objetiva” dos conhecimentos a priori (independentes dos objetos experimentados).

Foi justamente essa parte da Lógica kantiana (o entendimento do tempo como intuição pura e mais abrangente) que Droysen empregou para fundamentar parte da sua versão de Ciência Histórica. Ele caracterizou o domínio como modo de ver as coisas em sucessão (diferenciando-o da Geografia que, por sua vez, seria o modo de ver as coisas em simultaneidade). (DROYSEN [1882] 1977, p. 421; KANT, 2013, p. 71, p. 79-80).

Em polo oposto, foi justamente essa a parte da lógica de Kant que Xenopol reprovou em sua Teoria da História. Ele preferiu a concepção de tempo e espaço como coisas exteriores ao sujeito do conhecimento, apoiando-se na Lógica do inconsciente de Eduard von Hartmann (1842-1906).

Quanto à Lógica particular, que pensava objetos específicos constituintes de ciências particulares, ela não foi desenvolvida por Kant e se algo fizesse de semelhante, estaria, provavelmente, direcionado às Ciências Naturais.

Quem levou adiante a possibilidade de uma lógica particular aplicada à História foi Bernheim. Ele a desenvolveu sob a designação de “metodologia da História” (1889). Tratava-se de um novo domínio histórico que ofereceria os princípios e procedimentos práticos constituintes dos métodos empregados na pesquisa histórica, dentro dos mesmos critérios referidos e abonados por Kant.9

Mais à frente, a sofisticação de Kant, em termos da relação sujeito-objeto, foi ampliada por Hegel (2015, posição 697) que estabeleceu a integridade matéria-conceito (ou ser e vir-a-ser).

Hegel também tratava das leis do pensamento, mas admitia ser inapropriado abstrair a Lógica de todo “conteúdo” (o pensado): “uma vez que o pensar e as regras do pensar devem ser seu objeto, ela já possui imediatamente seu conteúdo peculiar.” Essas leis e regras do pensamento (forma e conteúdo da Lógica) constituíam para Hegel as coisas do “método” ou do “método científico”.10

Tais regras foram referidas intensamente na primeira parte do seu texto (doutrina do Ser). Contudo, foi o conjunto das operações distribuídas ao longo da sua Lógica (e experimentadas na constituição do Ser e da Essência) que ganharam algum espaço nos manuais de TMH produzidos na passagem do século XIX para o século XX.

Essa ideia hegeliana de que a realidade é pensamento (e vice-versa) e de que o pensado se configura nos movimentos de afirmação, negação e síntese (ou “ser”, “nada” e “tornar-se”) foi designada como “método dialético” e serviu de molde ao próprio Hegel para a invenção de uma História da Humanidade, provocando reações positivas e negativas por parte de escritores de TMH.

Em relação à forma dessa História (o método dialético), encontramos aprovações no texto de Collingwood, adversário do método experimental e de propostas realistas ingênuas do conhecimento.

Por outro lado, encontramos reprovação do método dialético no texto de Villari que defendia o “método experimental” e/ou o “método positivista” como freio à desreferencialização da realidade na representação disseminada do passado. As negações em termos de conteúdo, por seu turno, foram esboçadas na TMH de Labriola (embora, nesse ponto, já estejamos avançando muito mais para o campo da especulação metafísica).


Considerações finais

Nas histórias do método histórico ou nas histórias de como a História veio a se tornar “ciência”, é comum reivindicar a contribuição de um ou outro domínio de diferentes campos do conhecimento.

A Filosofia, em seus ramos retórico e dialético, mãe, madrasta ou concorrente da História, é o sujeito preferencial de comparações quando o século XIX ajuda a constituir o objeto historiado. A Lógica, ao contrário, tem merecido pouco atenção.

Com as breves informações sobre os conhecimentos e o ensino de Lógica e os conhecimentos e o ensino de História, via o exame de manuais propedêuticos em longa duração, esperamos que uma conjectura muito previsível tenha sido razoavelmente demonstrada e testada a respeito do tema: a ideia de que a arquitetônica dos mais conhecidos discursos sobre métodos históricos, produzidos na passagem do século XIX para o século XX, copia a arquitetônica dos manuais que ensinavam a arte de ordenar os raciocínios ou a Lógica, produzidos, principalmente, entre os séculos XVI e XIX.

A reflexividade de domínios dos Estudos Históricos em domínio da Lógica fica mais clara quando comparamos a segmentação (em quantidade e substância) flagrada em textos de Lógica e a segmentação operada pelo escritor de História que dele se apropriava, principalmente, ao tratar da divisão do methodus (histórico) em operações bi, tri ou quadripartite.

Entre meados do século XIX e meados do século XX, percebamos ainda alguns professores de Filosofia, produtores de manuais, impondo lógicas para a(s) ciência(s) da História – John Stuart Mill (1806-1873), Heinrich John Rickert (1863-1936), Wilhelm Maximilian Wundt (1832- 1920), Francis Herbert Bradley (1843-1924), William Brindley Joseph (1867-1943) e Henri Berr (1863-1954) – ou, de modo raro, aceitando a reflexão sobre objetos, fins e métodos produzidas por autodenominados historiadores como produtos dignos de figurar em compêndios gerais de Lógica – Susan Stebbing (1855-1943).

No mesmo período, contudo, assistimos à proliferação de manuais de TMH, com idêntico poder dos impressos de Lógica, legitimados que estavam com a instituição da História na condição de licenciatura em muitos países.

Nesse novo tempo, as escritas já praticavam verdadeiros programas de Lógica (busca da verdade, métodos destinados à investigação e à exposição), mas sem a preocupação de citar esse ou aquele filósofo ou sistema.

Além disso, incorporavam como históricas as questões relativas à natureza da verdade e às respectivas regras de validação, construídas sob ideais de imparcialidade e de objetividade.

A situação, agora, se invertia, estando as Lógicas dispersas no interior dos manuais de Teoria da História ou de Introdução aos Estudos Históricos.

Notas

1 A literatura sobre a ars historica é extensa. Consultamos apenas os textos da coletânea de Giana Pomata e Nancy Siraisi (2005) e os trabalhos monográficos de Antony Grafton (2005, 2007).

2 Para o mapeamento dos textos mais influentes na construção dos manuais de Lógica, consultamos sínteses de “História da Lógica”(FRANK, 1838; BLAKEY, 1851; NEIL, 1859; CROCE, 1917; BELNA, 2014), os volumes do Handbook of the History of Logic (GABBAY; WOODS, 2004/2009) e artigos monográficos sobre autores e manuais.

3 Segue a descrição das partes da Lógica de Aristóteles: 1. “Categorias” – formas do pensamento; “Interpretação” – formas gerais de expressão do pensamento (verdadeiro, provável ou falso); “Analíticos” (demonstração) – formas de expressão da verdade; “Dialética” (ou “Tópica”) – formas da probabilidade; e “Sofística” – formas do erro. O método (ou a Lógica) é constituído pelas três formas de expressão: Analíticos (demonstração), Dialética (tópica) e Sofística. Categorias e Interpretação são partes propedêuticas.

4 Uma das mais significativas, para o nosso trabalho, foi contada recentemente por Sellberg Erland (2016), que explora as disputas pelas significações de “método” (adquirir ou exibir conhecimento), de “ordo” (ensinar ou exibir conhecimento) ou da maneira correta de proceder (do geral para o particular e vice-versa).

5 [Anleitungzudenfuernehmsten historischen Wissenschaften].

6 [Die allgemeinen Regeln der hiſtoriſchen Erkentniß].

7 [Historische Methodologie]

8 Nas notas de aulas ministradas, desde 1765 e publicadas em 1800, método é definido como a “maneira pela qual há de se conhecer completamente um certo objeto, ao conhecimento do qual ele deve ser aplicado” (p.37). Método tem como objeto as regras e como fim a “perfeição lógica do conhecimento”. (KANT [1800] 1992, p.158, p.160, p.163).

9 “A lógica do uso particular do entendimento contém as regras para pensar corretamente sobre um certo tipo de objetos. [Pode ser denominada] o organon desta ou daquela ciência [e] é apresentada nas escolas, muitas vezes, como propedêutica das ciências.” Kant (2012, p.97).

10 Também grafa “método do cálculo infinitesimal”, “método do cálculo diferencial”, “método matemático” (geométrico e analítico).

Referências

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Para citar este texto:

FREITAS, I. Lógicas e Métodos – Das Filosofias às Teorias da História. Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Critóvão, v. 16, n. 31, p. 98 – 116, 3 fev. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/logicas-e-metodos-das-filosofias-as-teorias-da-historia/>.

Isaac Newton and the Study of Chronology: Prophecy, History and Method | Schilt Cornelis J.

Cornelis J. Schilt Imagem Corpus Newtonicum Lógicas e Métodos
Cornelis J. Schilt | Imagem: Corpus Newtonicum

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Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência – CONDÉ (PH)

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência. Curitiba: ED. UFPR, 2017. 171 pg. Resenha de: SILVA, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da. Internalismo versus externalismo em história da ciência: uma proposta de integração. Projeto História, São Paulo, v.62, Mai-Ago, pp. 388-395, 2018.

Mais do que uma análise histórica sobre uma das maiores controvérsias existentes na História da Ciência, entre as escolas internalista e externalista de teoria científica, o livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, do Professor Titular de História da Ciência na UFMG Mauro Lúcio Leitão Condé, desenvolve a ideia de superação da dicotomia entre essas duas perspectivas metodológicas. O objetivo da obra é construir a categoria epistemológica “historicidade da ciência”, uma proposta que promoveria a articulação entre os elementos sociais com as dimensões empíricas do real.

O livro é resultado do minicurso ministrado em setembro de 2013, por Condé, na Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência – ligada ao Departamento de Filosofia da UFPR. Observada a trajetória acadêmica do autor, podemos concluir que esse estudo apresenta uma síntese de investigações que Condé vem desenvolvendo há quase três décadas. Em Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência o autor faz uso tanto de autores com os quais trabalha desde o início da carreira, como Wittgenstein e Thomas Kuhn, quanto de pensadores que começou a discutir com mais frequência nos últimos tempos, como Alexandre Koyré, Ludwik Fleck e Edgar Zilsel.

Como o problema da historicidade da ciência é de natureza epistemológica, esse estudo deve ser visto em um contexto disciplinar mais amplo. Para além das fronteiras da História da Ciência, o livro se alinha com outras áreas que investigam os pressupostos metateóricos que fundamentam a produção do conhecimento científico, tais como a Sociologia, a Filosofia e a Antropologia. Embora o texto atinja uma notória profundidade teórica, é desenvolvido em uma linguagem simples e inteligível, sendo sua leitura indicada tanto aos iniciantes interessados em compreender a dicotomia externalismo versus internalismo, quanto aos iniciados que buscam aprofundar-se na temática.

Para operacionalizar sua análise, ou seja, para inter-relacionar as duas perspectivas metodológicas, Condé se utiliza do método comparativo. Em um primeiro momento, o autor elege representantes de cada uma dessas linhas teóricas – Koyré e Zilsel – e lança luz sobre seus principais pontos de divergência. Constatada a querela, Condé passa a analisar como a proposta externalista ganhou, a partir de Kuhn, proporções inimagináveis, ofuscando, inclusive, o que há de meritório na análise internalista. Por fim, o autor, resgatando ideias de Fleck e fazendo uso da filosofia da linguagem de Wittgenstein, procura desenvolver uma proposta de integração na qual tanto o internalismo como o externalismo são utilizados na confecção de uma epistemologia que analisa as influências socioculturais do cientista sem negligenciar o papel da natureza, a historicidade da ciência.

O livro se divide em prefácio, introdução, quatro capítulos e uma conclusão. O prefácio, escrito pelo professor da UFPR Eduardo Salles de O. Barra, busca introduzir o conceito de historicidade da ciência. Para Barra, o esforço de Condé se dá em compreender como o conhecimento científico é produzido por um profissional que está inserido em um determinado contexto. O que Condé, aos olhos de Barra, quer dizer é que o cientista não se encontra em uma ilha isolada quando pratica seus experimentos. Na realidade, existe um conjunto de valores sociais, de pressupostos, de imaginários, que, mesmo não intencionalmente, condicionam o cientista em suas atividades. A “esterilização” laboratorial não levaria em conta que o próprio cientista, na prática da ciência, já estaria partindo de pressupostos, tradições, consensos acadêmicos, refutando, assim, a possibilidade de se atingir um conhecimento pretensamente positivo.

Mas essa forma de analisar a ciência como uma prática social observando seus condicionantes externos – ou seja, a visão externalista – teria se radicalizado em estudos do final do século XX, valorizando em demasia a abordagem sociológica da ciência e atingindo nuances próprias ao relativismo (p. 16). Estudos sobre a teoria científica desenvolvidos pelo Programa Forte da escola de Edimburgo acabariam por retirar a importância da natureza na prática científica, dando, assim, excessivo valor às dimensões sociais presentes no “fazer ciência”. Para Barra, o grande  mérito do livro de Condé está, justamente, em propor uma epistemologia ligada aos estudos sobre a teoria da ciência que, como veremos, pense a atividade científica como um produto da interação linguística entre o aspecto social, próprio do contexto do cientista, que não negligencia o papel do dado empírico proveniente da investigação do mundo natural.

Na Introdução, denominada A ciência tem uma história, Condé anuncia uma de suas teses centrais: a de que, para além da conclusão óbvia de que as ciências têm uma história, a forma como essas histórias são construídas também influenciam o próprio processo de produção científica. Isto é, constatada que a visão dos homens é condicionada historicamente, essa premissa é estendida aos cientistas e às atividades laboratoriais: “Todo conhecimento da natureza é tecido a partir de sua historicidade social e linguística” (p. 28). Mais do que história, as ciências possuem historicidade.

O Capítulo 1, intitulado O filósofo e as máquinas: Koyré, Zilsel e o debate internalismo versus externalismo, tem como objetivo mostrar que as origens desse debate remontam à controvérsia sobre as origens da ciência moderna. Os internalistas, representados na figura de Alexandre Koyré, defendem que a Revolução Científica aconteceu por conta de uma mudança na “atitude metafísica” (p. 32), uma alteração de pensamento no plano teórico, que desbancou a escolástica medieval e instaurou um novo cenário intelectual que possibilitou o desenvolvimento da ciência moderna e, consequentemente, das novas tecnologias. Do lado oposto, os externalistas, representados por Edgar Zilsel, advogam que a Revolução Científica foi protagonizada pelas mudanças oriundas da união do saber prático dos artesãos-engenheiros (o “saber-fazer”) com a racionalidade e o saber teórico da tradição filosófica (o “saber-pensar”), gerando o método experimental que caracterizou a ciência moderna. A emergência do capitalismo e a valorização da tecnologia e da mercadoria teriam influenciado esse processo. Assim, enquanto Koyré e os internalistas entendem a Revolução Científica como uma mudança de “atitude metafísica”, Zilsel e os externalistas a compreendem como uma consequência do novo contexto social e econômico que caracterizou a Modernidade.

Condé argumenta que, embora Koyré e Zilsel tenham lançado duas importantes perspectivas metodológicas para os historiadores da ciência, seus modelos continham imprecisões. O internalismo koyreniano, amplamente baseado no realismo matemático de perfil platônico e cartesiano, desconsiderava a influência do contexto na atividade dos cientistas. Já o externalismo, na forma como apresentada por Zilsel, além de não produzir o conceito de historicidade, já que não desenvolveu a ideia de que a história de uma ciência afeta o seu resultado, dava excessiva importância à tese de que a ciência moderna surgiu da união do “saber-fazer” com o “saber-pensar”. Este argumento foi questionado pelos internalistas que observaram que os antigos romanos também contavam com essas duas práticas em sua sociedade e não produziram a ciência moderna. Assim, mais do que desenvolvimento técnico, os internalistas defendiam que as mudanças trazidas pela Revolução Científica se davam na “atitude metafísica”.

No Capítulo 2, O elo perdido: Fleck e a emergência da historicidade da ciência, Condé mostra como a ideia de historicidade da ciência, amplamente divulgada por Kuhn na década de 1960, já existia desde a década de 1930, desenvolvida pelo médico e filósofo Ludwik Fleck. Este pensador teria sido o primeiro a refletir sobre as conexões que se estabelecem entre a ciência e a sociedade. Segundo Condé, Fleck inaugura uma nova epistemologia para se pensar a prática científica na qual a ciência não pode ser vista separada de seu contexto histórico e social. O conhecimento científico não seria apenas fruto do “estilo de pensamento” de um determinado coletivo de cientistas, mas de toda a sociedade na qual o praticante da ciência está inserido. A partir dessa constatação, Condé conclui que não existe conhecimento fora do social e, consequentemente, fora do tempo. Essa seria a noção de historicidade da ciência que Fleck chamaria, na década de 1930, de “ciência das ciências”. Essas ideias entrariam em conflito com o objetivismo característico do neopositivismo do Círculo de Viena, vertente epistemológica hegemônica da época, o que acabou por relegar Fleck ao ostracismo.

No Capítulo 3, “Um papel para a História”: historicidade versus relativismo em Thomas Kuhn, Condé analisa Kuhn em dois momentos. No primeiro, quando, na década de 1960, publica A Estrutura das Revoluções Científicas, afirmando a importância do contexto histórico no “fazer científico” – premissa que foi de encontro às pretensões de objetividade do “racionalismo crítico” de Popper. E, em um segundo momento, a partir da década de 1970, quando alguns de seus seguidores conduziram o estudo da dimensão social da prática científica às últimas consequências, o que acabou por ocasionar o surgimento de grupos de pesquisas que desabilitavam qualquer pretensão objetiva de investigação da natureza – o Programa Forte de David Bloor seria um exemplo. Estes grupos, chamados socioconstrutivistas, foram considerados por Kuhn como relativistas. Segundo Condé, o autor da A Estrutura das Revoluções Científicas passaria o resto da carreira tentando desenvolver uma teoria que conciliasse a dimensão social com a natural. Entretanto, teria morrido antes de terminar esse projeto. Assim, a “tensão essencial” para Kuhn seria o paradoxo insolúvel no qual “sociedade” e “natureza” são, supostamente, inconciliáveis. Mas Kuhn teria deixado algumas pistas que apontavam para uma possibilidade de inter-relação linguística entre esses dois mundos. Abandonando a noção dos paradigmas, Kuhn passaria a estudar o diálogo entre os diferentes grupos científicos a partir da teoria da linguagem e da tradução dos seus respectivos “campos léxicos”.

Entretanto, segundo Condé, a teoria da linguagem científica desenvolvida por Kuhn defendia a “coisa em si” kantiana, o que o teria impedido de levar a análise linguística às últimas consequências. E é a partir desse horizonte que Condé, no Capítulo 4, Wittgenstein e a gramática da ciência: linguagem e práticas sociais no conhecimento científico, utiliza a filosofia da linguagem desenvolvida por Wittgenstein para estudar uma possibilidade de congregar os três conceitos: a sociedade, a linguagem e a natureza. A partir da ideia de “gramática da ciência” o autor propõe que a “historicidade do conhecimento” é feita pela linguagem, a partir da “tessitura”, ou entrelaçamento, dos aspectos sociais e dos dados empíricos obtidos do mundo natural.

Condé nega qualquer tipo de essência transcendental na linguagem, assumindo, por meio de Wittgenstein, que seu uso nos diferentes contextos é regido por regras – as “gramáticas” –, e que essas categorias de linguagem estão em permanente construção, sendo, portanto, produto da “práxis social”. O que Condé está defendendo é que a “coisa em si” kantiana é questionável nessa abordagem linguística e que a própria cultura científica estabelece, em um movimento permanente, as regras que normatizam as práticas científicas. Diferente do relativismo socioconstrutivista do Programa Forte, Condé admite que essa construção linguística da prática científica é feita, também, em diálogo com a natureza, compreendida como “objetos, fatos, ações” (p. 150). Assim, o autor argumenta que a epistemologia sugerida pela historicidade da ciência reconhece na linguagem a possibilidade de articulação da dimensão social com a natural e empírica do trabalho científico.

Na Conclusão do livro, Condé, além de desenvolver uma síntese das discussões dos capítulos anteriores, afirma que a historicidade da ciência pode ser um horizonte epistemológico produtivo para os analistas interessados em compreender a prática científica como um fenômeno de linguagem que congrega tanto a dimensão social quanto a natural.

O livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, mais do que apresentar de forma relevante uma possibilidade de superação do problema internalismo versus externalismo, fornece, com agudeza, novas diretrizes epistemológicas para o estudioso da teoria da ciência interessado em refletir sobre as historicidades possíveis na relação entre o “sujeito” e o “objeto” a partir de uma perspectiva linguística.

Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva – Bacharel em História pela Universidade de São Paulo, é aluno do Programa de Pós-graduação em História da UNESP/Assis. Tem experiência na área de História da Ciência. Número ORCID: 0000-0001-8697-2799. E-mail: luiz.cambraia.silva@usp.br.

Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX – DEMETRIO et al (RIHGB)

DEMETRIO, Denise Vieira; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos; GUEDES, Roberto (orgs.). Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. Resenha de: TAVARES, Luiz Fabiano de Freitas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 178 (474) p.343-349, maio/ago. 2017.

Segundo um de nossos mestres maiores, Sérgio Buarque de Holanda, uma das funções sociais do historiador consistiria em exorcizar os fantasmas do passado. Entre os espectros do nosso Brasil podemos contar a experiência histórica da escravidão, que ainda nos assombra, passados já cento e trinta anos da abolição. Objeto ainda de discussões sobre o presente e de polêmicos projetos para o futuro do país, o tema convida sempre o historiador a retomar e renovar a reflexão sobre esse fenômeno social que gostaríamos talvez de esquecer. Assim sendo, são sempre bem -vindos estudos como Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos, organizado por Denise Vieira Demetrio, Ítalo Domingos Santirocchi e Roberto Guedes.

Vale destacar, antes de tudo, a qualidade de composição da obra enquanto conjunto, uma vez que os capítulos se articulam com notável harmonia, complementando-se mutuamente de modo muito consistente – virtude importantíssima para qualquer obra coletiva. Não vemos no livro uma colcha de retalhos apressadamente costurada, mas um conjunto orgânico, dando-se a perceber como fruto de um diálogo amplo e continuado entre seus autores, ligados aos projetos Governos, resgates de cativos e escravidões (Brasil e Angola, séculos XVII e XVIII) e Testamentos e hierarquias em sociedades escravistas ibero-americanas (séculos XVI -XVIII), ambos coordenados pelo professor Roberto Guedes desde 2011.

O próprio título já é bastante feliz: a contraposição entre “escravizar gente” e “governar escravos” explicita as incontornáveis tensões e contradições vivenciadas em sociedades baseadas no trabalho escravo, exploradas de modo muito rico em suas múltiplas facetas ao longo dos capítulos do livro. Recorrendo à diversificada gama de fontes primárias, os autores perseguem com grande consistência empírica os rastros documentais tanto da gente escravizada quanto da gente que governava escravos – por sinal, gente que, às vezes, tanto foi escravizada quanto governou escravos, em diferentes momentos da vida, no que poderia parecer um paradoxo para nós do século XXI. Evitando compromissos fáceis com modismos acadêmicos ou causas sociais e políticas do presente, os autores analisam suas fontes sem ceder a interpretações de ordem teleológica acerca de problemas que ainda hoje nos acompanham, nem ao uso anacrônico do conceito de racismo, que, como salienta Guedes, em certas abordagens historiográficas recentes “se tornou tão largo que explica tudo, ou nada”2.

Recorrendo a testamentos, registros de batismo, recenseamentos, correspondências administrativas, periódicos e relatos de viagem, entre outros gêneros de documento, os autores nos apresentam um curioso elenco de personagens célebres ou nem tanto do mundo escravista dos dois lados do Atlântico, como Maria Correia de Sá, forra e senhora de escravos, Braz Leme, apresador de índios e pai de muitos mestiços, D. Paschoal, jaga de Cassange e (suposto) vassalo da coroa lusitana, D. Antônio Viçoso, “bispo ultramontano e antiescravista” ou ainda László Magyar, aventureiro húngaro nos sertões e costas angolanos, entre muitos outros.

Os capítulos alternam diversas escalas de análise, alguns centrados em trajetórias individuais, outros voltados à análise serial em escala regional, por vezes combinando métodos quantitativos e qualitativos de análise. A exemplo de outros grandes trabalhos em história atlântica, os estudos exploram de modo rico as dimensões partilhadas e imbricadas de experiências americanas e africanas. Sob esse aspecto, há que ressaltar a atenção concedida às práticas de escravidão vigentes em África, lançando nova luz sobre alguns aspectos da vivência da escravidão na América, apontando interseções e divergências entre as duas margens daquele “rio chamado Atlântico”. Também do ponto de vista cronológico há grande variedade de abordagens, enfatizando tanto processos de curta quanto de longa duração, de modo a desvelar as complexas e variadas temporalidades da escravidão atlântica entre os séculos XVII e XIX. O desdobramento dos capítulos permite refletir sobre continuidades e descontinuidades ao longo de todo esse período, apresentando a escravidão não como um bloco monolítico, mas como uma série de momentos distintos, um conjunto de experiências singulares, interligadas, mas não homogêneas, cada uma delas refletindo e refratando as dinâmicas mais amplas de uma América portuguesa, uma África não tão lusitana e um mundo atlântico em perpétuo movimento. Bom exemplo disso são as complicadas relações entre o jaga de Cassange e a coroa lusitana exploradas por Flávia Maria de Carvalho, que, embora vertidas no familiar idioma da vassalagem, revelam dimensões muito mais complexas, nem de parceria, nem de rivalidade, nem de dominação, nem de submissão – ou melhor, são um pouco de cada, à medida que se mostram diplomáticas, tanto quanto dialéticas: desdobram-se na duração, a partir dos encontros e desencontros de tensos cúmplices do trato negreiro3.

Uma característica digna de destaque é o apuro terminológico da obra, cujos autores se mostram atentos aos riscos de usar variados termos de modo anacrônico, reducionista ou reificado, salientando muitas vezes que essas noções não eram usadas de maneira linear ou uniforme em todos os contextos abordados, lembrando a polissemia de diversas palavras importantes no léxico da escravidão. Nesse sentido, são interessantes as anotações de Éva Sebestyén sobre as categorias de escravos que o idioma ovimbundu distinguia, como háfuka (escravo de penhor), em oposição ao pika ou dongo (escravo de compra), cujos respectivos estatutos jurídicos e perspectivas de vida no sobado de Bié eram bastante diferenciados, ou ainda sobre as distintas formas de fuga reconhecidas, como vatira, tombika ou kilombo. Seguem caminho semelhante as observações de Silvana Godoy acerca dos ambíguos significados de termos como alforria ou liberdade nos testamentos da São Paulo seiscentista. Da mesma forma, Guedes propõe interessantíssima discussão acerca do uso das “qualidades de cor” como negro, preto, mulato, pardo ou branco – qualificações que, muitas vezes, podiam ser aplicadas ao mesmo indivíduo em momentos, e principalmente, em circunstâncias distintas4.

Algumas problemáticas atravessam diversos capítulos da obra. Uma delas é a questão da heterogeneidade da classe senhorial; longe de constituir um grupo homogêneo e coeso, sua composição aponta para um caráter extremamente diversificado. Entre os senhores de escravos se encontravam desde os grandes pecuaristas e senhores de engenho aos pequenos agricultores e mesmo boa quantidade de egressos do cativeiro, alguns até nascidos em terras africanas; senhores que contavam seus escravos nos dedos de uma mão, e aqueles que os contavam às centenas. Ao que tudo indica, é provável que esses senhores com perfis tão variados mantivessem relações igualmente diversificadas com seus cativos. O estudo de Ana Paula Souza Rodrigues Machado investiga testamentos em busca de pistas sobre como diferentes senhores no recôncavo da Guanabara conduziam suas respectivas escravarias, enquanto o capítulo de Márcio de Souza Soares traça amplo panorama das peculiaridades da demografia da escravidão na região de Campos dos Goytacazes entre 1698 e 1830; Nielson Rosa Bezerra e Moisés Peixoto, por sua vez, estudam as trajetórias de duas senhoras egressas do cativeiro. Por fim, como ressalta Demetrio, a coisa podia se complicar ainda mais quando o senhor de escravos era também funcionário a serviço da Coroa5.

Outra rica problemática explorada pela obra é a questão da alforria em seus múltiplos aspectos. As situações de alforria estudadas pelos autores são interessantes não apenas enquanto testemunhos dessa prática, mas pela luz mais ampla que jogam sobre o próprio cotidiano da escravidão.

Em seu conjunto, os estudos enfatizam que em episódios específicos as modalidades jurídicas sob as quais a prática podia se dar contavam tanto quanto – ou até menos que – as motivações para sua realização, bem como os diferentíssimos significados com que os envolvidos em cada caso podiam investi-la. As detalhadíssimas instruções testamentárias deixadas por alguns senhores, alforriando certos escravos e deixando outros no cativeiro, legando aos libertos mais ou menos bens, exigindo ou impondo condições diferenciadas para cada remissão sugerem quanto de singularidade as relações entre um senhor e cada um de seus cativos podia comportar. O livro nos apresenta a alforria como fenômeno complexo, envolvendo dimensões de barganha e disciplina, cálculo econômico e gratidão, afeição e piedade cristã, entre outras possibilidades.

Desse modo, os autores exploram a alforria para além da prosa jurídica, abordando-a como um costume cujas implicações repercutiam em todas as esferas da sociedade escravista; longe de ser mero problema de razão econômica, atravessava os domínios da sexualidade e da religiosidade, do cotidiano doméstico e da governança pública, do nascimento e da morte.

Em seus variados registros documentais, os episódios de alforria permitem entrever a multiplicidade de vínculos entre senhores e escravos, livres, libertos e cativos, superando as simples relações dicotômicas entre opressores e oprimidos.

No desenrolar de seus capítulos, a obra também explora, com significativo rendimento analítico, as imbricações entre a escravidão e a religiosidade cristã; não poderia ser de outro modo numa sociedade profundamente católica e amplamente escravista. O cativeiro era, obviamente, objeto de controvérsias teológicas, mas essas interseções são igualmente visíveis enquanto problema moral, nas alforrias concedidas por amor de Deus ou por descargo da consciência, como discute Godoy. Também se refletia nas dimensões litúrgicas da vida, como o batismo, que tanto produzia parentesco espiritual como conformava o cotidiano de escravos, libertos e livres nas relações de compadrio, como Maria Lemke analisa cotejando registros de batismo. Também era tema de política eclesiástica, conforme exploram Ítalo Domingos Santirocchi e Manoel de Jesus Barros Martins em seu excelente capítulo sobre D. Antônio Viçoso, que propõe questionamentos importantes acerca das relações históricas entre a Igreja Católica e a escravidão no Brasil, convidando a repensar os significados do ultramontanismo no Império, bem como o conteúdo específico do conservadorismo professado pelo clero ultramontano, para além de estereótipos historiográficos consagrados6.

Por fim, vale mencionar os últimos capítulos do livro, centrados principalmente nas dinâmicas escravistas em solo africano, enfatizando principalmente as dimensões diplomáticas das relações estabelecidas entre autoridades lusitanas e poderes políticos africanos, como o estudo de Ariane Carvalho, devotado às dinâmicas guerreiras entretidas em terras angolanas, ou ainda o capítulo onde Ingrid Silva de Oliveira Leite explora

as sutis nuances dos escritos de Elias Alexandre da Silva Correa, militar português que servira em África no século XVIII7.

Evidentemente nenhum livro conseguiria exorcizar os fantasmas da escravidão em nossa formação nacional, mas Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos certamente traz valiosas contribuições para se pensar sobre o assunto a partir de um trabalho empírico denso e metodologicamente robusto, escorado em interlocuções historiográficas consistentes e questionamentos teóricos instigantes, a um só tempo olhando para o passado e dialogando com questões atuais de modo delicado, prudente e desapaixonado, com as melhores ferramentas que a crítica acadêmica pode oferecer.

1 – Luiz Fabiano de Freitas Tavares – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional. Autor dos livros Entre Genebra e a Guanabara – A discussão política huguenote sobre a França Antártica (Topbooks, 2011), Da Guanabara ao Sena – Relatos e cartas sobre a França Antártica nas Guerras de Religião (EdUFF, 2011) e A ilha e o tempo – Séculos e vidas de São Luís do Maranhão (Instituto Geia, 2012).

2 – Cf. GUEDES, Roberto. “Senhoras pretas forras, seus escravos negros, seus forros mulatos e parentes sem qualidades de cor: uma história de racismo ou de escravidão?”. In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Ítalo Domingos e GUEDES, Roberto (org.). Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017, pp. 31-33, 43-45.

3 – Cf. CARVALHO, Flávia Maria de. Uma saga no sertão africano: o jaga de Cassange e a diplomacia comercial portuguesa no final do século XVIII. In: DEMETRIO, Denise Vieira. SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 227-252.

4 – Cf. SEBESTYÉN, Éva. Escravização, escravidão e fugas na vida e obra do viajante explorador húngaro László Magyar (Angola, meados do século XIX); GODOY, Silvana. Alforrias de forros indígenas: pelo amor de Deus e por descargo da consciência (São Paulo, século XVII). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 173-196, 291-312.

5 – Cf. MACHADO, Ana Paula Souza Rodrigues. Testemunhos da mente: elites e seus escravos em testamentos (Fundo da Baía do Rio de Janeiro, 1790-1830); SOARES, Márcio de Souza. Angolas e crioulos na planície açucareira dos Campos de Goytacazes (1698-1830); BEZERRA, Nielson Bezerra e PEIXOTO, Moisés. Gracia Maria da Conceição Magalhães e Rosa Maria da Silva: os testamentos como documentos autobiográficos de africanos na diáspora; DEMETRIO, Denise Vieira. Artur de Sá e Meneses: governador e senhor de escravos. Rio de Janeiro, século XVII. In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 51-108, 125-172.

6 – LEMKE, Maria. Nem só de tratos ilícitos se forma uma família no sertão dos Guayazes. Os Gomes de Oliveira diante da pia batismal, c. 1740-1840; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos e MARTINS, Manoel de Jesus Barros. “Quanto ao serviço dos escravos, eu os dispenso”: D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo ultramontano e escravista (século XIX). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. org.), op. cit., pp. 109-124, 197-224.

7 – CARVALHO, Ariane. “E carrega de cativos os vencedores”: guerra e escravização no reino de Angola (1749-1772); LEITE, Ingrid Silva de Oliveira. Tráfico e escravidão em Elias Alexandre da Silva Corrêa (Angola, século XVIII). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 253-290.

Platão e as temporalidades: a questão metodológica – BENOIT (RA)

BENOIT, H. Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: SOUZA, Eliane de. Revista Archai, Brasília, n.16, p. 351-360, jan., 2016.

Foi finalmente publicada a primeira parte da tese de Livre Docência em Filosofia de Hector Benoit, defendida em 2004 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. o trabalho original era uma tetralogia dramática e, para fins de publicação, foi dividido em duas partes. Benoit apresenta, nessa primeira parte, um trabalho metodológico que serve como preparação para a publicação futura do romance filosófico A odisseia de Platão, mas que pode também ser lido como um livro autônomo.

O livro, que conta com apresentação do professor Arlei Moreno, da Unicamp, procura aproximar o leitor da situação de um leigo que lê Platão sem nenhuma informação, sus pendendo os pressupostos teóricos que envolvem o texto dos diálogos e afastando -o da metafísica ocidental. a proposta é deixar de lado a ideia de que Platão é o autor supremo de uma doutrina sistemática e começar a ver a cena dos diálogos como análoga à da poesia homérica e trágica. Nesse sentido, o livro tem um caráter negativo, ao colocar em suspensão as interpretações que impedem a aproximação a um Platão conceitualmente poético. Seu intuito é preparar o leitor para ler os diálogos sem o recurso da tradição interpretativa, o que permite contemplar a sua lexis (modo de exposição). a disposição ordenada dos textos em uma temporalidade construída com os elementos léxicos revolucionaria a interpretação desses textos e o processo hermenêutico de toda a história da filosofia, segundo Benoit.

O livro é dividido em cinco capítulos. O capítulo 1, Platão e a poética do logos, levanta a questão da relação entre discurso filosófico e poesia a partir do logos de Platão, questão que, segundo o autor, não foi bem compreendida até hoje, nem mesmo por Heidegger. O problema passa a ser investigado a partir de um histórico de narrações que relatam Platão como sendo inicialmente um poeta e que, ao se tornar discípulo de Sócrates, se afasta da poesia e se transforma em seu inimigo. Esse percurso biográfico de Platão, que Benoit considera lendário, foi divulgado por Apuleu no século II d.C., sustentado no neoplatonismo por Proclus no século V d.C. e relatado no manual anônimo Prolegomena, texto do século VI d.C. A descrição de Platão como crítico da poesia perdura até Nietzsche, causando, na interpretação do texto platônico, uma tensão entre arte, moral e metafísica. Essa tensão se repete em Heidegger e permanece na maioria dos comentários contemporâneos que se referem a Platão como aquele que expulsou os poetas da cidade, dentre os quais Havelock. Graças a esse tipo de interpretação, até artistas e pensadores de vanguarda se voltaram contra Platão, mostra Benoit. O autor coloca uma dúvida: como é possível que Platão tenha tentado destruir a poesia e, ao mesmo tempo, tenha escrito obras filosóficas que são também estéticas e dramáticas?

Benoit considera que não existe diálogo que seja propriamente narrativo. Todos os diálogos são dramas não narrados diretamente ao leitor, mesmo aqueles que a tradição reconheceu como narrativos. Como exemplo, faz um exame do Protágoras, do Cármides e da República para mostrar que são diálogos e não narrações, como se costuma interpretar. Se os diálogos forem lidos a partir da forma dramática e da imitação, propõe, a obra de Platão se aproxima da lexis poética da tragédia e da comédia. Os diálogos seriam então uma das formas supremas da arte grega.

Para Benoit, a cena da metafísica ocidental é uma visão exterior da obra. Nietzsche, ao pretender romper com essa cena, paradoxalmente encontra na filosofia de Platão seu alicerce. a dúvida do autor é até que ponto se pode aceitar essa posição de Nietzsche e de seus seguidores. O livro é um esforço metodológico para mostrar que as acusações de que Platão expulsou os poetas e a poesia da cidade se fundamentam em uma tradição interpretativa duvidosa, da qual Benoit acredita que ainda não nos libertamos. Em vez de excluir a poesia, o autor opta por seguir a lexis platônica em busca da construção conceitualmente poética das temporalidades presentes em seu pensamento.

No capítulo 2, Os diálogos entre Homero e Proclus, Benoit faz uma escolha pela tautagoria, forma de leitura sem qual quer interpretação, que procura trazer apenas o que se manifesta em suas relações de superfície, em detrimento da interpretação alegórica, que procura uma outra coisa sob as coisas que se manifestam e um outro dizer com significado profundo. Benoit reconstrói historicamente a transformação do discurso autônomo, não instrumentalizado, em um discurso que passa a velar o mundo. Com o surgimento das formas mercantis, o logos deixa de ser parte da physis e exige técnicas de interpretação para a descoberta de significados profundos. A preocupação do autor é mostrar como, a partir do século V a.C., toda a tradição antiga é submetida à exegese alegórica, começando pelos mitos e poemas homéricos e chegando até Platão no neoplatonismo. Ele elege como exemplo dessa tradição exegética neoplatônica a leitura que Proclus faz de uma passagem da Ilíada, segundo a qual busca -se compreender a doutrina secreta sob os versos de Homero e absolvê -lo das acusações que Platão faz a ele na República. Para Proclus, as imitações poéticas escondem manifestações onto-teológicas e seu esforço corresponde à uma leitura de Homero à luz dos diálogos de Platão. Deve -se a Proclus também uma vasta interpretação onto-teológica dos diálogos, que Benoit considera tão arbitrária e fantasiosa quanto aquela dedicada a Homero.

Benoit denuncia, nas leituras de Proclus e de seus antecessores, as origens da interpretação de como Platão criador do mundo supra -sensível, interpretação essa que surgiu às custas de sucessivas camadas de hermenênutica neoplatônica, e coloca em dúvida se as interpretações modernas e contemporâneas não trazem esse legado de mutilação da lexis  platônica. o que Benoit propõe, então, é um grande trabalho arqueológico para fazer surgir o texto platônico mais próximo de Homero, fora do âmbito alegórico do neoplatonismo; propõe não priorizar a doutrina filosófica, ao modo de Proclus, mas ler os diálogos como organismos internamente e externamente articulados.

O Capítulo 3, Uma obra sem autor e sem doutrina, é uma busca de Platão no interior dos seus próprios diálogos. Em uma época em que os gregos afirmavam a autoria de seus escritos, Platão está ausente dos diálogos, seja como autor, seja como defensor de uma doutrina. Seu nome aparece poucas vezes como personagem, porém de modo breve ou que às vezes, sus- peita Benoit, se faz presente por sua ausência. Por isso, uma leitura com suspensão das suposições tomadas pela tradição como certezas irrefutáveis levará o leitor a ver que pouco resta da presença de Platão como identidade. Personagens como Sócrates, Crítias, Parmênides e o Estrangeiro de Eleia não são portadores da palavra de Platão e não há, nos diálogos, um único autor que centraliza uma dou trina positiva, coerente e sistemática, já que os diálogos são discursos entrecruzados de múltiplos personagens e não podem expressar uma doutrina filosófica única.

O privilégio da fala de Sócrates, além de diversas estratégias que suprimem a dramaticidade do diálogo, transformaram o texto em monólogos e daí, explica o autor, se deduz uma “doutrina platônica”das ideias e, em torno dela, outros “dogmas”, como a ideia de Bem, a oposição sensível -inteligível, a teoria da reminiscência, a teoria da mímesis que condena os poetas, a paideia platônica e o projeto de cidade ideal. a questão que Benoit levanta é: em que medida recortes de discursos de diversos personagens podem, de maneira legítima, ser tomados como a doutrina de Platão? Se hoje essa questão não faz sentido para os leitores e intérpretes, Benoit nota que a antiguidade não teve tanta certeza a respeito da existência de uma doutrina platônica. Para mostrar isso, faz uma exposição de testemunhos antigos que negavam um Platão dogmático.

Uma leitura conceitualmente poética de Platão exige um olhar sem mediação da tradição, por isso o capítulo termina com uma introdução ao tema da temporalidade da lexis, mostrando que os personagens dos diálogos são marcados por esta temporalidade e não seres imutáveis como, em geral, tradição os representa. a maioria dos diálogos possuem demarcações temporais objetivas inscritas nos próprios textos, como fatos ou acontecimentos históricos, que os situam em certa diataxis ou disposição geral.

Segundo o autor, essas demarcações temporais já eram utilizadas em edições dos diálogos desde o século III a.C. A primeira edição teria ordenado os textos em trilogias que obedeciam às demarcações lexicais. Benoit faz então um histórico da ordenação dos diálogos nas edições, que passam de trilogias para tetralogias, e salienta que até o século II d.C. a disposição era feita por demarcações lexicais, quando então passa a obedecer a uma nova ordem exigida por uma suposta “doutrina”de Platão. Só em 1920 a publicação da Société d’Édition “Les Belles Lettres” rompe com a tradição das tetralogias e passa a dispor os diálogos a partir do suposto tempo cronológico de produção da obra. Constrói -se, então, um Platão socrático, dos primeiros diálogos, e um Platão da maturidade, dos diálogos metafísicos. Desde 1950, o problema do ordenamento foi sendo abandonado como teoricamente irrelevante para a compreensão dos textos de Platão, com exceção das interpretações de Schleierma cher e Munk.

O capítulo 4, a diátaxis  enquanto temporalidade da lexis,  tenta encontrar a disposição dos diálogos a partir da lexis, sem qualquer interpretação. Entre os vinte e nove diálogos reconhecidos como autênticos, Benoit data com precisão dezenove diálogos entre os considerados mais importantes do ponto de vista do conteúdo da filosofia platônica e consegue uma datação aproximada dos outros. a disposição da temporalidade da lexis obedece uma periodização em cinco momentos. após a exposição de seu trabalho de datação de cada diálogo, Benoit chega ao seguinte esquema geral da temporalidade da lexis: primeiro momento (450) – Parmênides; segundo momento (434 a 410) – Protágoras, Eutidemo, Lysis, Alcibíades I, Cármides, Górgias, Hipias Maior, Hípias Menor, Lákhes, Mênon, Banquete, Fedro; terceiro momento (410 a 399) – Re pública, Timeu, Crítias, Filebo; q uarto momento (399) – Teeteto, Eutífron, Crátilo, Sofista, Político, Apologia, Criton, Fédon; quinto momento (356 -347) – Leis.

No capítulo 5, a lexis e outras temporalidades, Benoit reconhece, em Platão, além de uma temporalidade da lexis, outras três temporalidades que partem desta e se articulam: uma temporalidade da noesis, correspondente ao pensamento lógico -conceitual de Platão; uma temporalidade da genesis, correspondente aos acontecimentos que envolvem a história dos personagens, do pensamento e da história factual grega; e uma temporalidade da poiesis, correspondente à ação temporal de produção da obra, a sua cronologia.

Em geral, nota o autor, os comentadores privilegiam uma ou outra dessas temporalidades como filosoficamente pertinente. Sob essa perspectiva, faz críticas a tais comentadores, principalmente à corrente estruturalista de Victor Goldschimidt, que teria privilegiado a temporalidade lógico -conceitual.

A partir da temporalidade da lexis, seguindo o critério metodológico, pode -se chegar primeiramente à temporalidade lógico -conceitual de um modo não mais arbitrário, como aquele que propôs o estruturalismo. a disposição ordenada dos textos segundo a temporalidade da lexis  poderia indicar a intencionalidade do autor, ou seja, a forma final através da qual Platão procurou ordenar seu logos. Teremos então o sentido de cada diálogo no tempo geral de sua obra. assim, a temporalidade da lexis  deve ser pensada como não meramente literária, sob o risco de alterar a temporalidade conceitual dos diálogos.

Depois de descobertas lexis e noesis, haverá a possibilidade de reconstruir (em maior ou menor medi- da) a temporalidade da genesis –  a história biográfica de Platão –  e daí se pode finalmente chegar à temporalidade da poiesis –  a cronologia de sua obra. a ordem metodológica das temporalidades é lexis­ ­noesis ­gênesis ­poiesis, embora a ordem objetiva de construção dos textos seja genesis ­poiesis ­noesis ­lexis. a lexis deve ser sempre o ponto de partida metodológico para os leitores de Platão.

A temporalidade da lexis não pressupõe que o Platão tenha o projeto de sua obra acabado desde o começo. Benoit considera lexis e noesis como resultados de toda a produção do autor. Portanto, a temporalidade da ge­ nesis e a temporalidade da poiesis não coincidem com elas. Tanto lexis quanto noesis são posteriores às outras duas temporalidades porque, afirma, provavelmente somente no fim da sua produção Platão conseguiu decifrar o enigma do tempo conceitual de sua obra.

***

A publicação do livro se fazia necessária porque traz aos estudiosos em Platão e público em geral uma ideia que vem há anos influenciando alunos e colegas de Benoit. Também é um alerta para que o leitor de Platão questione se o Platão que está lendo não é um texto recortado e completamente afastado da cena dramática. Benoit provoca o leitor a ler o texto platô- nico na sua arquitetura e no seu movimento e mostra que Platão está muito além daquele filósofo dogmático dos dois mundos, que condenou o corpo, o amor e a arte. ao sabermos a origem dessa interpretação, podemos colocá -la em dúvida e olhar o Platão criador de uma filosofia poética. ao encontrarmos nos diálogos um sinal de que o pensamento de Platão só estava terminado depois de sua obra ter sido escrita, de que sua filosofia foi um pensamento dinâmico sempre em construção, não uma doutrina, podemos ler os diálogos sem procurar neles um sentido pré -determinado.

Há que ter o cuidado, no entanto, de não nos deixarmos tomar por um medo das interpretações a ponto de cair em uma espécie de ódio aos intérpretes, lembrando a misologia à qual Sócrates se refere no Fédon. A leitura de um texto antigo não é um fim em si mesmo, nem que tenha um objetivo de reconstrução histórica. Quando se trata de uma leitura filosófica, a leitura que se faz, as questões que se coloca, têm a ver com nossa realidade, por isso dependem de ferramentas hermenêuticas. Várias interpretações aproximam os problemas filosóficos levantados por Platão a problemas filosóficos atuais e é isso que move a discussão e faz com que Platão seja um filósofo estudado ainda hoje.

O que Benoit propõe, um trabalho liberto de toda e qualquer exegese, é um primeiro trabalho metodológico necessário ao exame dos diálogos. Minha dúvida, porém, é se deve ser definitivo ou se o trabalho metodológico de Benoit pode ser um guia para reconhecer uma boa interpretação, aquela que ajuda a refletir sobre Platão sem mutilá -lo. Talvez não seja impossível conciliar a leitura que Benoit nos proporciona com a leitura da vasta e importante pesquisa em Platão. Como Benoit mostra, Platão tem muitos logoi. Por que não pode ser lido de várias maneiras?

Eliane de Souza – Universidade Federal de São Carlos (Brasil) elianech@ufscar.br

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Sociologia no Espelho. Ensaísticas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970) – BLANCO; JACKSON (PH)

BLANCO, A.; JACKSON, L. C. Sociologia no Espelho. Ensaísticas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2014. Resenha de: TEDESCO, Alexandra Dias Ferraz. Historiadores e sociólogos no espelho. Projeto História, São Paulo, n. 54, pp. 322-330, Set.-Dez. 2015.

A obra de Luiz Carlos Jackson e Alejandro Blanco que comentaremos nesse espaço, Sociologia no Espelho – Ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970), publicada em português pela Editora 34, em 2014, traz, em seu título, algumas das implicações e tensões que constituem o próprio cerne da hipótese do livro. A proposta chama atenção não apenas pelo recorte temporal (datas paradigmáticas nos dois países, que sugerem ainda um período de constantes choques políticos e tensões sociais) mas, principalmente, pela multiplicidade de agentes em análise e em interação, que abre caminho para a hipótese estruturadora da análise dos dois autores: a ideia de que as trajetórias intelectuais operam em relação dinâmica com o contexto de institucionalização das referidas áreas acadêmicas e, ainda, que se pautam – em maior ou menor grau – pelas vicissitudes dos processos sociais que se desenvolvem na esfera não-acadêmica. Assim, embora a proposta do livro aborde, com riqueza de detalhes, algumas oscilações epistemológicas importantes, as questões políticas e sociais não aparecem de forma sorrateira na análise, outrossim, constituem matéria de base para a compreensão da relação entre ensaístas, cientistas sociais e críticos literários nos dois contextos.

Seguindo a proposta dialética da obra, o lugar intelectual de que falam os autores é um dado importante para a compreensão mais ampla da proposta metodológica contida na obra. Alejandro Blanco, graduado em sociologia pela Universidade de Buenos Aires e doutor em História pela mesma universidade, atualmente pesquisador do CONICET, desenvolve uma série de pesquisas no âmbito da História Intelectual, notadamente sobre o processo de institucionalização da sociologia na Argentina.1 Luiz Carlos Jackson, por seu lado, professor de Sociologia da Universidade de São Paulo trabalhou, em sua tese de Livre Docência na mesma Universidade com a perspectiva da Sociologia Comparada.2 Essas breves considerações biográficas ajudam a contextualizar o esforço conjunto do qual resulta Sociologia no Espelho, na medida em que as problematizações buscadas na obra refletem uma importante flexibilidade disciplinar, fundamental, em nosso ponto de vista, para dar corpo a um projeto comparativo que trabalha na fronteira entre a sociologia da cultura, a análise das trajetórias e a história intelectual. É nesse amalgama, inclusive, que o livro ganha centralidade também nas discussões historiográficas, notadamente naquelas que pretendem abrir-se a diálogos transversais, abrindo mão de uma visão laudatória de suas fronteiras epistemológicas. O esforço por operar com um escopo metodológico tão amplo e diversificado dá a tônica, como veremos, da estruturação dos capítulos.

A obra, que conta com prefácio do professor Sergio Miceli, está dividida em três capítulos. São eles, A Batalha dos Gêneros, focado nas relações nem sempre amistosas entre a sociologia e as disciplinas já consolidadas nos campos intelectuais dos dois países – notadamente com o ensaio, Sociologias Comparadas, momento em que os autores aprofundam a reflexão teórica e descortinam as vinculações temáticas dessa sociologia que emerge, nos dois países, a partir das décadas de 1930 e 1940 e, por fim, Terrenos da Crítica, onde a análise se dirige para as relações desse processo de institucionalização da sociologia com o amadurecimento de uma crítica literária profissional nos dois países.

É importante destacar que, ademais da clareza da divisão dos capítulos, há fios condutores evidentes entre eles, quais sejam: a natureza dinâmica do método que evita comparações estanques, procurando lançar uma luz conjunta aos dois contextos, a relação entre o processo de institucionalização da sociologia com os processos político sociais mais amplos e, não menos importante, a articulação das hipóteses a partir da trajetória do que os autores denominam como os “quatro ases” desses processos: Gino Germani e Adolfo Prieto, no caso argentino, e Florestan Fernandes e Antonio Candido, no caso brasileiro. Detenhamo-nos agora, brevemente, aos desdobramentos da hipótese.

O primeiro capítulo parte da ideia de que os embates pelos quais a sociologia procurou se colocar no rol das instâncias de fala acadêmica autorizada foram, nos dois contextos, distintos, sobretudo no grau desses enfrentamentos. No caso argentino, a existência de uma ampla rede de financiamento privado de revistas e circuitos intelectuais operando à margem de uma Universidade que, embora mais antiga que as brasileiras, esteve permanentemente exposta às intervenções do campo político, contribuiu para uma relação de enfrentamento mais branda em relação às tradições consagradas da tradição intelectual argentina, notadamente o ensaio. Além disso, a composição social argentina das décadas de 1930 a 1950 – com a entrada maciça de imigrantes e o aumento de demandas de inserção da classe média – fomentou uma composição mais diversificada para o recrutamento dos universitários na década de 1950. Essa circunstância favoreceu, na análise dos autores, a emergência da sociologia como voz paralela no campo acadêmico, na medida em que a tônica dos ensaios que circulavam na Argentina nas décadas de 1930 e 1940 – e que eram dominados por autores amplamente lastreados por vinculações pessoais e familiares com o mercado privado de instâncias culturais tradicionais, como cafés e salões – não se propunha a reconstituir os nexos históricos e sociais da formação do país, estando muito mais vinculados à chamada “literatura de crise”.3 Comparativamente, o caso brasileiro apresenta um panorama distinto. Nesse caso, o processo de institucionalização dos estudos sociológicos é confrontado com um campo literário consolidado, desde meados do Segundo Império, em torno do romance. Nesse campo já bastante articulado, a relação estreita entre essa tradição romancista e os ensaístas dos “estudos sociais” brasileiros, como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda, promoveu uma configuração salutar: na medida em que as propostas sociológicas desenvolvidas na USP e na ELSP confrontaram-se em termos metodológicos de forma mais dura que em relação ao caso argentino, o fato de esses literatos pertencerem a uma larga tradição de vinculação burocrática e institucional, leva a uma flagrante continuidade nos temas, pelo menos até a década de 1950.4 Em suma, o problema da “formação da nação” marca essa confluência de temas, muito embora a “forma” literária fosse questionada pelo projeto empírico que se gestava nas instituições de sociologia de São Paulo.

No segundo capítulo, uma pergunta inicial aglutina e justifica as digressões teórico-metodológicas que se seguem. Precisamente, como explicar, apesar das diferenças sugeridas no capítulo anterior, o aparecimento de empreendimentos intelectuais tão bem sucedidos, como os de Gino Germani, no caso argentino, e de Florestan Fernandes, no caso brasileiro? A resposta passa por uma análise da questão estrutural das Universidades em que operam esses agentes. A partir de um histórico da formação das três instituições centrais da análise, quais sejam, a Faculdad de Filosofia y Letras da UBA (1896), a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP (1934) e a Escola Livre de Sociologia e Política (1933), o cotejamento dos autores se direciona a pensar de que forma as condições institucionais desses três centros viabilizaram, oportunizaram ou dificultaram um projeto acadêmico bastante ambicioso que une dois “ases” desse processo: Gino Germani e Florestan Fernandes. Na análise comparada, chegam à conclusão de que enquanto Florestan operava a partir de uma tradição mais consolidada e de uma ampla rede de apoiadores (formada, o que não é destituído de importância, por sumidades como D. Pierson e R. Bastide), Germani não conta com essa retaguarda, tampouco com um capital cultural acadêmico comparável ao brasileiro. Sinteticamente, “o brasileiro caminhou da ciência à política, o argentino trilhou o caminho inverno” (161).

Essa condição é fundamental pois é a partir das respectivas tradições intelectuais e institucionais em que se inseriram que os sociólogos desenvolvem suas estratégias de legitimação no espaço público. As Universidades argentinas, como apontado anteriormente, sofreram com longas intervenções – especialmente, a Universidade de Buenos Aires. Posto isso, os espaços acadêmicos atuaram como peça fundamental no acumulo de capital cultural dos intelectuais argentinos, motivo pelo qual a relação do mundo intelectual com o mundo político é comparativamente mais permeada por tensões e oscilações. No caso brasileiro, onde o Estado foi o grande empregador dos “homens de letras” ao longo de toda a primeira metade do século XX, a estrutura universitária era substancialmente mais rígida, o que torna os empreendimentos da sociologia mais orgânicos institucionalmente e, ao mesmo tempo, mais heterônomos em relação à tradição intelectual já estabelecida.

Já postas, dessa forma, as vicissitudes do processo inicial de enfrentamento da sociologia e constituição como uma disciplina autônoma nos dois países, e já balizados seus principais articuladores teóricos em confluência com as questões institucionais, passa-se para o capítulo final, Terrenos da Crítica. Nesse momento da análise a sociologia desponta, enquanto disciplina institucionalizada e em vias de especialização, enquanto legitimadora de uma série de prestígios acadêmicos, relações fundadas tanto no projeto teóricoepistemológico desenvolvido nos dois contextos, quanto nas trajetórias de seus dois protagonistas, que dão uma medida da posição de destaque que a sociologia ocupou, nos dois países, em relação a outras disciplinas do campo acadêmico.

Embora a esta altura já esteja claro que os embates da sociologia para estabelecer-se enquanto disciplina autônoma foram gradualmente distintos nos dois países, a tensão que se observa entre essas perspectivas sociológicas ascendentes e o campo da crítica literária é um fator em comum em ambos os contextos. Em síntese, “nos dois casos e quase ao mesmo tempo a crítica literária aproximou-se da sociologia, esforçando-se por obter um estatuto mais científico do que detinha até, aproximadamente, a primeira metade do século XX” (pg.

167). Como explicar, no entanto, esse movimento compartilhado? Para encontrar essa resposta, Blanco e Jackson trazem mais dois “ases” para o desenvolvimento do argumento: o argentino Adolfo Prieto e o brasileiro Antonio Candido. A análise dessas trajetórias procura levar em conta as tradições intelectuais nas quais se plasmam e, especificamente, as formas de inscrição institucional da crítica literária nos dois países. Salientando a relação díspar dos dois autores em relação ao polo central, representado então pela sociologia, os autores historicizam essas trajetórias cuidadosamente, considerando aspectos às vezes tidos como marginais, como a repercussão das publicações periódicas na definição de um espaço de autonomia para a crítica literária. Ao fim e ao cabo, a posição marginal do crítico literário Adolfo Prieto – atuante em universidades marginais da Argentina – e a posição central de Candido – ligado originalmente ao grupo de Florestan Fernandes na USP – contribuem para entender as disputas epistemológicas travadas por eles dentro de um quadro mais amplo, constituído em função da estrutura dos campos intelectuais em que se inseriram.

Nesse sentido, para dimensionar o impacto da sociologia na Crítica Literária é fundamental ter em vista que o método empírico, repertório teórico e epistemológico que une os projetos de Germani e de Florestan, logrou tornar-se, nas décadas de 1950 e 1960, o próprio paradigma através do qual deveriam se legitimar as análises sobre a modernização nos dois países. Dessa forma, observar de que forma os críticos literários foram confrontados com esse critério de validação, e de que forma se apropriaram do mesmo, é, indiretamente, perscrutar a circulação acadêmica do projeto sociológico, considerando suas distinções mas entendendo-o, como está suposto na proposta da obra, sob o mesmo foco de luz comparativo.

Os capítulos, como pretendemos demonstrar, abordam as tradições intelectuais dos dois países, as vicissitudes das organizações acadêmicas do Brasil e da Argentina e, por fim, as trajetórias dos “quatro ases” a partir de uma perspectiva comparada. A defesa do método, contudo, não é apenas um artifício narrativo, mas constitui o centro da hipótese, e perpassa os capítulos de forma sincrônica, conferindo a eles uma perspectiva contingente, atenta aos perigos de naturalizar determinadas relações entre sujeitos e objetos de pesquisa.

Consideramos, nesse sentido, que a contribuição do livro passa pela consideração das estratégias dos discursos científicos, acadêmicos, intelectuais, enquanto constituintes das dinâmicas de prestígio que organizam as relações entre as disciplinas. Dessa forma, é nessa trincheira entre auto-referenciamento disciplinar e cooperação metodológica que o livro ganha relevância, também, para historiadores.

Entender a disputas entre sociólogos, ensaístas e críticos literários – admitindo, quando é o caso, suas continuidades – em termos de estratégia de legitimação específicas pode indicar, no campo da história, um caminho de auto-reflexidade importante: assim como os “ases” do baralho em que se movem os sujeitos da pesquisa oscilam nas posições dentro do campo, as fronteiras disciplinares não respondem, somente, à discordâncias epistemológicas: são organizadoras do campo e, como tal, exigem, permanentemente, a “vigilância epistemológica” sugerida por Pierre Bourdieu.5 Não se trata, dessa forma, de obscurecer especificidades, mas de abrir-se ao diálogo, de abrir-se a um esforço conjunto de entendimento do mundo intelectual.

Notas

1 Além de uma série de artigos sobre a recepção de autores como Weber e Simmel na Argentina, é possível consultar, também, Razón y Modernidad, publicado em 2006 pela Editora Siglo XXI.

2 No caso de Jackson é possível consultar, além de seus estudos sobre a chamada Escola Paulista de Sociologia, a obra Os Parceiros do rio Bonito e a Sociologia de Antônio Cândido, publicado pela Editora da UFMG em 2002.

3 Esse é um dado importante para compreender os embates dentro do campo intelectual argentino, na medida em que, nesse caso, dá-se uma separação entre o campo acadêmico universitário (mais diretamente influenciado pelas hecatombes políticas das décadas de 1930 e de 1940) e uma longa e consolidada tradição de circulação de ideias e intelectuais nos ambitos privados, restritos às sociabilidades criollas. Exemplo dessa condição é o próprio CLES (Colégio Livre de Estudos Superiores) que atua – nos momentos de intervenção peronista na Universidade – como alternativa aos intelectuais que tiveram suas cátedras caçadas durante o regime. A existência e a força dessas plataformas de consagração acadêmica extra-universitárias, portanto, contribui para que a sociologia que emerge dentro do mundo acadêmico, na década de 1950, não dispute a mesma posição no campo intelectual. É um contraste bastante marcado em relação ao caso brasileiro, onde a tradição literária esteve, desde sua origem, vinculada às instituições acadêmicas, tanto por seu público como pela trajetória de seus principais autores.

4 Os autores levam em conta, nessa análise comparativa, que enquanto Buenos Aires era o grande centro da vida intelectual argentina, centralizando a maior parte desses embates, o caso brasileiro apresenta um outro fator de complexidade: as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro vivenciaram processos radicalmente distintos. Enquanto na primeira, pela questão da imigração e da relativa distância dos centros políticos de decisão, foi possível pensar a sociologia enquanto um projeto de cunho científico, no caso carioca a precoce criação de institutos ligados ao poder governamental tornou os embates mais imbuídos de conteúdo político. Essa relação é perene ao longo de todos os capítulos do livro, na medida em que se, em certos sentidos, Buenos Aires aparece em relação de similitude com o Rio de Janeiro – pela proximidade do poder e pelas redes de burocracia oficiais que se constituíam num fator dificultador da economia -, em termos de base de recrutamento e de projeto teórico e metodológico, a capital portenha possuía paralelos importantes com a cidade de São Paulo.

5 BOURDIEU, P. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2001.

Alexandra Dias Ferraz Tedesco – Mestre em história pela UNESP, campus de Franca, e doutoranda do programa de Pós Graduação em História da UNICAMP, bolsista do CNPq.

A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história – RUST (RBH)

RUST, Leandro Duarte. A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história. Cuiabá: Ed. UFMT, 2013. 246p. Resenha de: DUARTE, Magda Rita Ribeiro de Almeida. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34, no.68, jul./dez. 2014.

O Papado Medieval continua sendo um tema que atrai atenções, principalmente em decorrência da redescoberta de antigos acervos e de novas interpretações que possibilitam a renovação historiográfica. O modelo político centralizador ao estilo do Estado Moderno atribuído àquela instituição por estudiosos oitocentistas e novecentistas tem sido questionado por pesquisadores que se dedicam a estudar as relações de poder no medievo.

Nos últimos 7 anos, mais precisamente a partir de 2011, com a publicação da tese Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média Central e de outros relevantes trabalhos como O sagrado Gregoriano: o político como religiosidade, Leandro Duarte Rust é reconhecidamente o historiador brasileiro que provocou uma reviravolta na história política do papado medieval. A proposta do autor reside em refletir acerca das já canonizadas fórmulas de compreensão do poder papal na Idade Média, notadamente dos séculos XI ao XIII, sob perspectivas diferentes. Conceitos como “monarquia pontifícia”, “Reforma Gregoriana” e “poder” são revisitados e tomados, muitas vezes, como fruto do tempo do historiador que os consagrou. O leitor desatento poderia até insinuar que os trabalhos de Rust invalidam a imensa historiografia consolidada sobre o tema, mas, ao contrário, o historiador maneja com grande traquejo seu método de análise, valorizando não só a documentação pertinente, mas também tomando esses antigos trabalhos como objeto de pesquisa, como instrumentos para apresentar ao leitor a construção daqueles conceitos, além dos problemas suscitados por essas interpretações. Entendemos que foi sobre essas bases que A Reforma Papal foi produzida: um exercício de construção histórica permeado pela historiografia (antiga e recente) e a (re)visita aos documentos.

A obra está dividida em seis bem elaborados capítulos. O liame que há entre eles é a construção da noção de “Reforma Papal” e os inúmeros pontos controversos que existem na compreensão desse conceito. Os dois primeiros capítulos refletem acerca de duas correntes historiográficas que atribuem à época entre 1050 e 1150 a ideia de Reforma Gregoriana ou de Revolução Papal. No primeiro caso, Rust destaca a obra de Augustin Fliche, La Réforme Grégorienne, como inauguradora da noção de Reforma, e considera a situação da Europa secularizada, belicamente marcada pela miséria e pelo descumprimento da promessa de prosperidade que o Estado laico fizera. Portanto, um cenário propício para o desenvolvimento de sínteses históricas como a desse católico que buscou resgatar na Idade Média a possibilidade de “salvação da ordem pública europeia”. A Sé Romana teria sido, durante os séculos XI e XII, na perspectiva de Fliche, a única instituição capaz de livrar os cristãos do precipício da anarquia e da desordem, e a figura estadualista de Gregório VII é o exemplo inspirador de liderança, soberania e autoridade, necessárias à dita ordem pública.

Acerca da segunda ideia, a de “Revolução Papal”, Rust apresenta uma vasta historiografia desde Eugene Rosenstock-Huessy, Norman Cantor, até trabalhos mais recentes como os de Karl Leyser e Timothy Reuter. As discussões sobre o conceito giram em torno da impressão de que os gregorianos estavam bem “à frente do seu tempo”, e que seu projeto de mudanças, bem como suas ações, resultaram em um processo revolucionário que podia ser comparado às revoluções liberais do Setecentos ou à revolução comunista do primeiro quartel do século XX. Um dos principais pontos controversos dessa corrente, na opinião de Leandro Rust, seria a negação, por parte dos “revolucionários”, das práticas sociais do mundo senhorial em que viviam, algo que se torna ainda mais complicado quando colocado na perspectiva dos ideais políticos da virada do século XIX para o XX, presentes na análise daqueles defensores da via revolucionária. Para o autor, “o conceito implica uma negação sociológica, pois induz à certeza de que uma sociedade dominada por elites senhoriais é incapaz de mover positivamente os equilíbrios internos de uma época” (p.64). A ideia de “revolução” ganhou inúmeros adeptos ao longo do século XX, e Rust assevera que apesar do antagonismo em relação à perspectiva de “Reforma”, os dois conceitos têm em comum características do Estado Moderno e que nenhuma das duas noções dá conta de explicar, de maneira satisfatória, as experiências do homem medieval no seu próprio tempo.

Nos capítulos seguintes, o autor mostra como os dois conceitos abrigam a noção do sagrado ligada à cultura e às práticas sociais daquele período. A visão religiosa dos curialistas encontrava respaldo na vivência social. Dessa maneira, os reformadores tentavam separar o sagrado do profano para “monopolizar” a “gestão do sagrado”. Nesse sentido, Leandro Rust destaca a fatídica saída de Gregório VII para o exílio, frente à invasão de Henrique IV a Roma. Os atos do papa, cuja memória seria retrabalhada mais tarde (no século XVI), deram-lhe uma aura sagrada, miraculosa e triunfal. Tal memória construída sobre o ataque germânico e, antes, pela desobediência do rei, foi a de que o papa estava alinhado aos desígnios celestes – que o próprio Deus abençoava aqueles que lutavam em favor do bispo de Roma. A estratégia que sacralizou essas ações do campo político baseou-se na tentativa de superar a fraqueza que supuseram as perdas materiais e políticas originadas do conflito com o rei germânico. O objetivo de Rust ao destacar o “sagrado gregoriano” é ressaltar as particularidades que fazem da Igreja Romana uma instituição descentrada que negociava, a todo tempo, as relações, os pactos e os desacordos entre clérigos e leigos. Portanto, noções generalizantes, como “Reforma” e “Revolução”, não ajudariam a entender essa “Era Gregoriana”.

Além disso, Rust desenvolve uma reflexão acerca das pesquisas que defendem o período em apreço como uma época de “ascensão de uma cultura jurídica definida pela descoberta da lei escrita”. Sua conclusão é que, apesar de a historiografia já consolidada insistir no contrário, não há uma significativa substituição da oralidade pelo direito escrito. Argumenta, por exemplo, que Gregório VII não usou da lei canônica para apoiar suas decisões por ocasião da excomunhão de Henrique IV, mas sim da tradição bíblica. De maneira envolvente, o autor entrelaça os argumentos à análise historiográfica e aos documentos cuidadosamente traduzidos do latim, formando uma grande teia, inclusive quando se refere à oralidade textual. Seguindo a sua argumentação, é possível perceber que o direito canônico não debilita o poder que a oralidade e a voz têm no âmbito da política; ao contrário, dá-lhes nova vitalidade.

Na penúltima parte, o autor mostra como a geografia papal é ampla, por meio de um exemplo que permite ver como os interesses vinculados à construção da identidade coletiva e do nacionalismo lusitano, marcados pela religiosidade católica, impediram que a história de Portugal desse destaque à atuação do antipapa Gregório VIII. O clérigo bracarense Maurício Burdino teria sido alijado da história lusitana a partir do momento em que se uniu ao rei Henrique V contra o papa Pascoal II, deixando, portanto, de “defender os interesses de Portugal”. Para compreender o que esse silêncio historiográfico representa, Rust recupera a obra de Pierre David, que considera Burdino como um elemento fundamental na reconciliação entre o regnum e o sacerdotium, em 1122, na célebre “Concordata de Worms”. Além de David, o autor analisa também o peso que a filosofia política hegeliana teve sobre a tradição historiográfica portuguesa, e que explicaria o apagamento de Burdino da História. Esse capítulo proporciona uma sugestiva reflexão sobre o próprio ofício do historiador e os preconceitos a que ele está sujeito.

Por fim, Leandro Rust analisa o sentido religioso da palavra “desejo”, transformada em conceito político, com base no pensamento de dois grandes personagens: Pedro Damião e Bernardo de Claraval. O “desejo” é visto inicialmente como sentimento menor, depreciativo, ilegítimo, que enaltece as vontades do indivíduo em detrimento da coletividade, do bem comum. Os conflitos que tiveram lugar nas últimas décadas do século XI e em meados do século XII, entre o Papado e o Império, teriam sido marcados por atos mesquinhos, causados pelo “desejo”. Desse modo, caberia à Sé Romana punir ou afastar aqueles que quisessem apenas realizar sua própria vontade, portanto, foi essa uma das justificativas da excomunhão de Henrique IV. O termo “desejo” era associado, pelos papistas, à desordem, à “negação da autoridade”. Entretanto, a palavra-conceito é apresentada por Rust de maneira a destacar a sua historicidade ao sabor da própria política. Nesse sentido, observa-se ainda que os integrantes da Cúria pontifícia eram envolvidos por um pensamento político marcado pela teologia, pelo que, em vez de se falar em teoria política para o período, seria melhor recorrer à noção de teologia política.

Além de propor novas reflexões sobre velhos acervos e sobre a historiografia, a obra de Rust oferece ao leitor a possibilidade de entrar em contato com o texto das fontes utilizadas – diga-se de passagem, com notável rigor – provenientes de respeitadas edições em latim. Dessa forma, a obra também pode ser tomada como norte para novas pesquisas, já que coloca à disposição um vultoso inventário de importantes acervos sobre o assunto. Além desses, há mais um ponto significativo: a redação do autor e sua maneira de mostrar a que veio não descuida da erudição necessária, mas sem recorrer a uma retórica carregada de modismos vocabulares que dificultariam a compreensão de um leitor pouco afinado ao tema. Por fim, o estudo crítico de Leandro Rust em A Reforma Papal (1050-1150) apresenta-se como um novo convite à renovação (ou, talvez, à reinvenção?) da História Política da Idade Média, sem desrespeitar a antiga e dominante interpretação da historiografia, mas propondo novos olhares sobre o papado medieval, mesmo que eles pareçam ao leitor uma transgressão ao que já se apresenta, há muito, com ares definitivos.

Magda Rita Ribeiro de Almeida Duarte – Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS), Universidade de Brasília (UnB). Bolsista CNPq. magdarita@hotmail.com.

Viagem ao cinema silencioso do Brasil.

PAIVA, Samuel; SCHVARZMAN, Sheila (Org.) Viagem ao cinema silencioso do Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Azougue, 2011. 310p. Resenha de: SCHIAVINATTO, Iara Lis Franco. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.64, DEZ. 2012.

É bem-vinda esta obra escrita por pesquisadores do cinema que, desde 2002, se reúnem amiúde para ver filmes silenciosos na Cinemateca Brasileira. De partida, há uma lição de método: a escrita nasce da experiência de vê-los e da necessidade de melhor compreendê-los, considerando os sentidos da imagem e suas relações com o real. Desta maneira, reordena-se sua memória, atualizando-a. O livro inicia-se com um estudo sobre o estado atual da prospecção, restauração e preservação desses filmes no Brasil, dos catálogos à crítica, passando pela materialidade e pelo acesso. O acervo é concebido como uma coleção catalogada e mutável, pois pode se expandir e redimensionar. No âmbito da memória, a documentarista Guiomar Ramos retomou com d. Guiomar Rocha Álvares suas impressões ao assistir Voyage de nos souverains au Brésil (1920), isso porque d. Guiomar testemunhou, quando jovem, essa real visita. O filme dispara a memória, vindo à baila a cultura política da época. Já Mauro Alice descreveu seu interesse em usar o mesmo filme e Lembranças de velhos1 na elaboração de um roteiro cinematográfico. O livro apresenta um mapeamento comentado das Atualidades Gaúchas, o importante catálogo dos filmes disponíveis nesta Cinemateca, e o notável Relatório, escrito pelo major Reis sobre sua viagem a Nova York, extraído do acervo da Embrafilme – hoje, na Cinemateca. Major Reis explicitou as negociações e estratégias para exibir nos Estados Unidos Os sertões, produzido nas expedições do coronel Rondon. Dizia haver lá “quase uma prevenção” contra filmes estrangeiros. “Reduzidos aos assuntos não teatrais”, entravam como educational films. Exibiu seu filme, pioneiramente etnográfico, num circuito culto e científico, intermediado pelo coronel Theodore Roosevelt. No texto, transparecem tensões do mundo vincado pelo colonialismo. Pesa na memória o repúdio da Cinearte aos naturaes e cavadoresCinearte condenou a presença de negros, índios, caboclos, traços de Congo nos filmes, numa “postura racista”, e buscou a imagem do Brasil moderno, depois vislumbrada na Cinédia. Ato contínuo, desmereceu uma gama de profissionais e procedimentos. A rememoração e a visibilidade desses filmes são temas correlatos e fortes no livro; seja ao recuperar sua constituição histórica entre 1896 e 1934, no momento da consolidação do cinema como meio de comunicação de massa e entretenimento, seja ao nuançar as perspectivas dos sujeitos sociais aí enredados.

O livro enfrenta algumas questões fundamentais do assunto, com discrepâncias e discordâncias. Dialoga com os críticos Paulo Emilio Salles Gomes, Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, e com a noção de primeiro cinema no viés de Tom Gunning e Charles Musser. Seria um cinema fascinado pela sua própria atração e capacidade expositiva, embebido na representação do cotidiano e encantado por ela. Releva-se, nele, o processo de cosmopolitização das imagens e práticas expositivas. Contudo, não são réguas da sua inteligibilidade: a ausência de uma linguagem cinematográfica sistematizada e acabada, o progresso técnico ou o recorte nacional. Daí, o valor, para esses pesquisadores, em indicar a materialidade do filme e em situar os lugares, os circuitos, os momentos de exibição. Há diferença entre exibir No Paiz das Amazonas (1922) no Odeon ou no Palais e exibi-lo no espaço da Exposição Internacional de 1922, sempre no Rio de Janeiro. Porém, a maior parte dos filmes vistos no Brasil, principalmente a partir de 1912, era estrangeira. Da produção aqui realizada, preponderava o natural ao posado, para ficar no vocabulário dos profissionais de então. Em várias passagens, os autores distinguem naturalatualidadecavaçãotravelogue e posado nos termos e implicações da época, explorando especificidades e ambiguidades.

Alguns autores debatem o gênero fílmico. Em parte, exploram a recepção e elaboração de gêneros, incorporando modelos cinematográficos, sem cair na cópia. Alfredo Supia aborda a ficção científica e flagra a recepção da sua iconografia e do seu imaginário em filmes posados e naturais – estes últimos reforçariam a verossimilhança científica. Luciana Araújo questiona a virada da figura dramatúrgica do herói, do mocinho em galã, ao comparar o norte-americano Tol’able David (1921) e Tesouro perdido (1927) de Humberto Mauro, observando essa mudança em filmes feitos em São Paulo e Pernambuco. Em suas tramas, importaria menos a construção do herói e mais a reafirmação da figura do senhor – entendido, pela autora, na esteira de Joaquim Nabuco. As relações sociais ditadas pela dialética do senhor-escravo explicariam essa dissociação entre herói e galã. Sheila Schvarzman mapeia a produção de travelogue em Cornélio Pires na condição de imagens também negociadas, onde se evidenciam a continuidade de certos tipos sociais e a grandeza do paulista. No plano das representações sociais, Luciene Pizoqueiro trabalha a figura feminina em três filmes paulistas centrados na sociabilidade burguesa e familiar. Eles mostram o papel da elite na cidade de São Paulo ao designar hábitos e emoldurar gestos e formas, bem como suas estratégias para cristalizar sua identidade.

Os filmes, além disso, funcionam como um elemento constitutivo da geografia imaginária da nação. Eduardo Morettin trata da geração de riqueza e do lugar da natureza em No País das AmazonasTerra Encantada e No Rastro do Eldorado, de Silvino Santos, esmiuçando os significados da sua produção e exibição durante o ciclo comemorativo do centenário da Independência do Brasil, em 1922. Essa geografia imaginária ressurge em Ana Lobato e Paulo Menezes, ao exporem a montagem de uma cartografia que designa interior/litoral, campo/cidade, as fronteiras do país e, simultaneamente, insere o Brasil, como nação e simbolicamente, no contexto mundial. As irmãs Fabri desmontam os liames entre A Real Nave Itália no Rio Grande do Sul de Benjamin Camozato e a exposição itinerante levada pelo navio Regia Nave Italia por vários portos brasileiros, propagando uma iconografia fascista, o imaginário político do fascismo, o discurso eugenista e o entusiasmo da imprensa brasileira. O filme, hoje aos pedaços, dirigia-se preferencialmente ao público italiano. Alguns artigos, pontualmente, nomeiam os sentimentos de pertencimento e seus mecanismos, a exemplo do sentimento patriótico em Fabris ou o respeito cerimonioso de Cornélio Pires pela grande propriedade.

Em escalas distintas, alguns artigos problematizam as relações entre filmes vistos, de imagens precárias, e o real. Apontam a força da performance nessa filmografia, como no caso do major Reis a tomar posse, através da imagem, da fronteira, capturando-a com suas gentes para o Estado nacional. O assunto é menos a “autenticidade da imagem”, argumenta Flavia Cesarino Costa, mas o “relato acontecendo visualmente” na frente da câmera. Nessa condição, situações involuntárias, até mesmo indesejadas, vazavam. As imagens expunham o tal “atraso brasileiro” combatido pela Cinearte, que propunha a criação da filmografia de fato moderna. Por sua vez, as mediações com o real implicavam o diálogo com imagens oitocentistas, fotografias brasileiras ou não, denotando a frequência ao mundo das imagens que precede a emergência do cinema. Esse repertório imagético oitocentista, no geral, imbricou-se à viagem, na medida em que dela resulta e representa sítios visitados, inscrevendo-se muitas vezes na lógica colonial de reconhecimento do mundo e sua posse, ajudando a estabelecer o tráfego contínuo, rápido, simultâneo, em massa das imagens em ordem planetária. O fotográfico concorreu para o estabelecimento de uma percepção do lá e do aqui, do local e do global, da imagem que documenta e do objeto. Foi em si mesmo um mediador. Aí, a noção de viagem adquire, ao longo da leitura, sentidos entrecruzados: a captura da imagem na viagem, o gênero travelogue, o tema da viagem nos filmes, o alto trânsito das imagens a tecer entre si relações variadas em sua exibição. Alude às condições da e à própria experiência de ver os filmes naquelas circunstâncias e hoje. A viagem, ademais, revela a atitude por parte dos pesquisadores ao embarcar nessa experiência estética, acadêmica e cinematográfica.

Com base nesse livro, é possível refletir sobre o lugar que o corpo ocupa nessas relações entre imagem e real a considerar as conclusões de Luciana Araújo, sobre a centralidade do corpo nos filmes de major Reis e naqueles comentados por Pizoqueiro. Ou sobre a potência do ritual do poder, dizia Paulo Emílio, para gerar imagens capazes de representá-lo em celebrações de grandeza variada, do funeral de Rio Branco ao Centenário da Independência. No todo, o leitor é surpreendido pelo matiz político conservador desses filmes no temário, no tratamento das imagens, na narrativização, na recepção, nas negociações entabuladas, porque, no limite e no pinga-pinga, representavam do cotidiano a desigualdade social e espraiavam, no senso comum, uma percepção modulada pela noção de raça – expediente a justificar tal desigualdade. Ficam em mim perguntas: filmes como São Paulo: sinfonia da metrópole (1929) soaram mais arrojados do que pareciam até agora? Não caberia precisar mais os liames entre a geração de cavadores e da Cinearte? Há mais pistas no inteligente Baile perfumado (1997) para compreender essa produção tanto na fatura da imagem, no instante em que é feita, quanto sua transformação em moeda de poder e na sua rememoração?

Nota

1 Trata-se de BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Iara Lis Franco Schiavinatto – Instituto de Artes, Departamento de Multimeios, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Rua Elis Regina, 50. Cidade Universitária Zeferino Vaz. 13083-970 Campinas – SP – Brasil. iara.schio@gmail.com.

 

Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil (1916-1944) – De LUCA (RBH)

De LUCA, Tania R. Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil (1916-1944). São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 357p. Resenha de: NEVES, Livia Lopes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.63, 2012.

A autora Tania Regina de Luca, que é pesquisadora reconhecida no campo intelectual nacional e internacional, graduou-se em História na Universidade de São Paulo, instituição na qual obteve o título de mestre e doutora em História Social. Sua trajetória afina-se com as discussões relativas à História do Brasil República, e sua atuação profissional envolve principalmente os seguintes temas: Historiografia, História da Imprensa, História Social da Cultura e História dos Intelectuais. A imprensa na Era Vargas tem sido seu foco de pesquisa atualmente, tema esse contemplado em parte por seu livro recém-lançado e objeto da presente resenha. Se seus estudos muitas vezes fizeram referência à Revista do Brasil, como em Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil, a autora não deixou de dar continuidade a seus trabalhos anteriores de forte teor metodológico acerca do trato com o periodismo cultural brasileiro, e o que de fato se agregou ao debate foi o estudo de outras publicações de cunho cultural, o que proporcionou uma visão ampla acerca da produção intelectual do período veiculada por esse suporte. Tal acréscimo permite também a discussão sobre as leituras e os projetos do e para o Brasil, tanto políticos como culturais, que agregaram parte dessa intelectualidade envolvida com tais empreendimentos editoriais.

Ao longo do texto a autora frisa a importância de atentarmos para o percurso metodológico que orientou sua análise, o qual, segundo ela, representa uma colaboração para a construção de uma forma específica de abordagem dos impressos. As contribuições, dessa maneira, seriam dadas por conta de alguns aportes metodológicos, como por exemplo, atentar para a dinâmica dos grupos intelectuais, para os aspectos relativos ao suporte, e também para as apresentações de ordem material e tipográfica (capa, papel, ilustração, propaganda, paginação). Todos esses elementos, de maneira geral, já haviam sido objeto de reflexão da autora, figurando entre as importantes contribuições para estudos dessa natureza no campo da história. Além dos citados, ganharam destaque em sua análise fontes que colaboraram para a apreensão das relações e atuações dos editores e mentores das publicações: as correspondências, as memórias e as produções autobiográficas.

A soma dessas frentes de pesquisa, anunciada na introdução do livro, demonstra de antemão a amplitude da proposta da autora, que estabeleceu diálogo profícuo com autores que se propuseram a discutir as sociabilidades intelectuais, o campo intelectual (brasileiro ou não) e as relações que aproximaram ou distanciaram os intelectuais e o Estado, como Sirinelli (1990), Pluet-Despatin (1992), Bomeny (2001), Miceli (2001) e Candido (2001), ou com autores que, assim como ela, ofereceram aportes para a análise de jornais e revistas, como Doyle (1976), Prado e Capelato (1980), e mesmo com os que se debruçaram sobre publicações específicas, como Boaventura (1975), Caccese (1971), Guelfi (1987), Lara (1972), Leonel (1976), Napoli (1970) e Romanelli (1981), entre outros.

Estruturado em quatro capítulos que seguem cronologicamente as fases mais expressivas de sua publicação o livro confronta a Revista do Brasil às demais revistas coetâneas. Pareceu ser essa uma boa forma de se aproximar de um panorama editorial – ainda que sobremaneira calcado na retomada das mais destacadas revistas da época, certamente as mais estudadas atualmente – que consistiu em uma grande revisão bibliográfica sobre cada uma dessas publicações e na consulta a diversas fontes periódicas orientada por um olhar mergulhado em novas preocupações. Ao somar os estudos das fontes aqui citadas, De Luca nos apresenta uma obra enriquecida e madura, que evidencia a importância de se atentar para as redes de sociabilidade intelectuais e para a fluidez do campo intelectual, bem como para o impacto de um elemento sobre o outro.

No primeiro capítulo, “A Revista do Brasil (primeira e segunda fases) e os periódicos modernistas”, a autora procurou articular as fases iniciais da revista com as publicações modernistas fundadas a partir de Klaxon, realizando a análise com dupla perspectiva: da sincronia e da diacronia, sendo a primeira responsável por dar conta do momento da publicação de cada fase da Revista do Brasil e do diálogo com as congêneres contemporâneas. A segunda perspectiva ocupou-se das diferentes fases e de suas possíveis articulações. Para tanto, a autora elaborou um gráfico (reproduzido no livro entre as páginas 69 e 70), no qual apresenta uma seleção das revistas literárias e culturais em circulação entre o lançamento da Revista do Brasil, em janeiro de 1916, e meados da década de 1940, quando do encerramento de sua quarta fase. Nesse capítulo ganham destaque: NovíssimaEstéticaA Revista Terra Roxa e outras terras.

Já no segundo capítulo, nomeado “Revistas literárias e culturais (1927-1938)”, a autora nos traz uma visão panorâmica percebendo que em termos de longevidade, até o início da década de 1930 continuaram a ser fundadas revistas de breve duração – à exceção da Revista Nova, que circulou durante mais de um ano –, VerdeFestaRevista da AntropofagiaMovimento BrasileiroBoletim de ArielRevista AcadêmicaLanterna Verde, Dom CasmurroDiretrizes, Cultura Política e Movimento Brasileiro recebem uma análise não muito minuciosa, conforme previamente anunciado pela autora ainda no título. Nesse capítulo foram discutidos, do mesmo modo, aspectos como o alinhamento de projetos editoriais a tendências políticas e a elementos do mundo editorial na conjuntura do pós-1930, encerrando discussões sobre as condições do exercício da atividade intelectual e a proliferação de editoras no Brasil. A autora promove, de forma bastante pertinente, o debate sobre a censura à imprensa e o alinhamento de periódicos à plataforma governista durante o Estado Novo e defende uma análise historiográfica que priorize a dinâmica de posicionamentos em detrimento de rótulos unidimensionais, o que, via de regra, anula uma série de complexidades que envolvem os empreendimentos editoriais.

Revista do Brasil (3ª fase): inserção no mundo letrado, objetivos, características e conteúdo” é o título do terceiro capítulo, que trata da retomada da publicação da Revista do Brasil em julho de 1938, com sua diversidade de assuntos e a preocupação com problemas nacionais, ainda que se explicitasse como um projeto cultural de corte elitista.

No quarto e último capítulo, intitulado “A Revista do Brasil e a defesa do espírito”, é retratado o momento em que a publicação voltou a circular, período marcado pela ascensão das forças autoritárias na Europa e do Estado Novo no Brasil, o que gerou limitações impostas à liberdade de expressão por parte do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Ao atentar para o fato de que as práticas liberais, o individualismo e a democracia eram aspectos defendidos por vários articulistas da revista, De Luca destaca a especificidade da publicação em questão frente a algumas coetâneas, quadro que se alterou após 1942 com a adesão brasileira à política pan-americana.

O que se apresenta em Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil é um método de análise novo e frutífero, capaz de esclarecer o lugar ocupado pela publicação na história da imprensa, especialmente com base em alguns diálogos com as congêneres contemporâneas, o que demandou, segundo De Luca, que se aliassem sistemáticas consultas às coleções citadas à leitura e ao estudo de outras fontes, sobretudo as advindas do que se convencionou chamar de ‘escritas de si’.

Sentiu-se certamente a ausência de imagens relacionadas ao tema e aos periódicos recorrentemente citados, o que enriqueceria a obra e poderia angariar, talvez, um público leitor mais amplo que o acadêmico. A iniciativa de dinamizar a leitura disponibilizando no site da Editora uma série de tabelas produzidas ao longo da pesquisa, conforme consta na nota dos editores presente no livro, mostrou-se pouco eficiente tendo em vista a dificuldade em encontrá-las de fato. Mais interessante seria que essas tabelas constassem na obra e acompanhassem a linha de pensamento desenvolvida, clarificando muitos dos nós relacionados ao objeto de estudo do livro.

Destarte, a contribuição que pode ser apreendida a partir desse trabalho reside, a meu ver, na aplicação metodológica plural que propôs a agregação de aportes que tratam do estudo de periódicos como objeto e fonte, desde os primeiros estudos gerais sobre periódicos – empreendidos sob a coordenação do professor José Aderaldo Castello, que estribou sua pesquisa preferencialmente nos acervos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) – aos obtidos a partir da renovação das práticas historiográficas, que vislumbram a importância do estudo do periodismo cultural cotejado com outras fontes, como as iconográficas, epistolares, os relatos memorialísticos e autobiográficos.

NEVES, Livia Lopes.-  Mestranda do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CNPq. [endereço] livialneves@hotmail.com.

Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RIHGB)

LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (Orgs). Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto.Nísia Belo Horizonte, UFMG e Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2008. Resenha de RIOS: José Arthur. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun. 2010.R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun 2010.

O título do livro deriva da expressão cunhada por Edgard Roquette-Pinto, tema principal dessa coletânea de ensaios. As organizadoras, téc­nicas e professoras da Casa de Oswaldo Cruz, uma, socióloga (Nísia), outra, historiadora (Dominichi), ambas se completam na interpretação e na análise documental dos dados e informações colhidos em obras, cor­respondências e arquivos, sobre essa curiosa figura de sábio e pioneiro.

Robert Wegner assina erudito Prefácio completado por uma Apre­sentação das organizadoras que associam a trajetória intelectual de Ro­quette-Pinto à própria história da República na primeira metade do século XX e, mais que isso, à historia das ideias e do pensamento científico naquelas décadas.

Valiosa a transcrição de uma palestra de Roquette sobre “Ciência e Cientistas do Brasil”, proferida em 1939, onde nos dá, com a autoridade de protagonista, o estado da questão, uma visão panorâmica dos avan­ços e atrasos das ciências físico-naturais no Brasil da época. Duas ideias transparecem (Dominichi) nesse texto: – a influência do Positivismo e a preocupação dominante na legitimação da ciência, sobretudo de uma “ciência pura” face a uma “ciência aplicada”.

Na mesma perspectiva interpretativa, Alberto Venâncio Filho analisa a obra de Roquette-Pinto como expressão de humanismo, assinalando a importância da formação positivista, bebida desde tempos escolares, na gênese do pensamento do autor de Rondônia; bem como sua tentativa de conciliar ciência e técnica com as melhores fontes do humanismo do século XIX, sobretudo com a obra de Goethe, de declarada influência na obra de Roquette.

Central, no livro, o ensaio de Nísia Trindade Lima situando o cien­tista na sua geração, no papel renovador e contestatário que esta desem­penhou face à sociedade patriarcal e à cultura que produziu, baseada na inteligentsia bacharelesca, na aversão das elites ao trabalho manual e na retórica romântica.  Nessa perspectiva – do amplo processo de desagregação do regime escravista e da sociedade patriarcal, e a demorada extinção de suas mar­cas – as autoras situam a obra de Roquette. Seria esta mais um capítulo na busca de identidade do povo brasileiro. Escreve em momento de tran­sição social e cultural em que antigas categorias explicativas como “raça” e “mestiçagem” vão cedendo lugar a traços culturais persistentes como analfabetismo, doença e atraso. Tudo isso se prende à ascendência das camadas médias urbanas na sociedade brasileira, ansiosas por abraçar, na nova República, uma ideologia justificadora. Nesse cenário avulta o papel inspirador – e formatizador – do que João Cruz Costa chamou “po­sitivismo difuso”, de remota, mas certa raiz na doutrina de Comte.  Esse Positivismo sui generis é tema do ensaio de Luiz Otávio Fer­reira (“Ethos positivista e a institucionalização das ciências no Brazil”) onde salienta a função do arcabouço institucional então criado, institutos, centros de pesquisas e laboratórios, sem o que as ideias renovadoras dessa nova geração careceriam de uma caixa de ressonância. Como demonstra o autor, mediatizaram essas instituições as inovações intelectuais trazidas pelos cientistas, articulando sua atividade com um sistema de ensino su­perior, criando campo de prova para as primeiras reformas universitárias. Sob esse aspecto, a obra de Fernando de Azevedo, companheiro de gera­ção de Roquette-Pinto, é bastante característica dessas vocações. Nesses avanços científicos, – caruncho no tronco – brota o cientificismo, no qual capitulam os melhores espíritos – Alberto Torres, Oliveira Vianna, Eucli­des, que pagaram preço alto à pseudociência dos tempos.

Essa institucionalização se prende a amplo projeto nacional. É o grande tema de Rondônia, como evidenciam, em outro ensaio, a mãos juntas, Nísia Trindade Lima, Ricardo Ventura Santos e Carlos E. A Coim­bra Junior. A obra de Roquette resultou de um projeto caro à nova Re­pública – a expedição Rondon e a implantação das linhas telegráficas no extremo Oeste. Graças a Rondon, a ciência não se legitimava apenas pe­las elocubrações e descobertas de gabinete, mas por propiciar a extensão do Estado às regiões inóspitas, aos “sertões” do Brasil; e a incorporação das populações indígenas à proteção paternalista do Governo. O “sertão” é assim anexado à cultura urbana e o sertanejo – o homem forte, mas abandonado, de Euclides, – é agora associado à obra coletiva da criação nacional. Em Rondônia, como os autores vêm a obra mestra de Roquette, ocorre a transição da antropologia física de Broca, Bertillon e outros – a antropologia das medidas antropométricas – para uma redefinição do “primitivo” que só poderá se processar em termos culturais.

Ricardo Ventura Santos aborda o mesmo tema sob o ângulo da mes­tiçagem, objeto de acalorados, às vezes transviados, debates na sociologia e na medicina da época e que levaram Roquette, admirador de Euclides, a separar-se, nesse ponto, do cientificismo do autor dos Sertões. Na discus­são o autor exalta, com acerto, a importância da componente nacionalista que vai dominar a polêmica nos anos 20 e 30.

É justamente o momento em que o debate passa do domínio cientifico – ou cientificista – para o campo político e avulta, no cenário internacional do após Primeira Guerra, – cortado de redefinições de fronteiras e movi­mentação de povos, – o problema das migrações. É este objeto do denso, pesquisado e fundamentado ensaio de Giralda Seyferth (“Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”). Demonstra os obstáculos ideológicos que atravancavam o caminho para uma solução racional e despreconceituosa do problema. Ditadas por uma teorização equivocada e lacunosa, surgem, no cenário brasileiro, propostas que, hoje, nos fazem rir, assinadas por figuras respeitáveis, alguns médicos, de renome.

Típica é a reação de muitos à imigração japonesa, tida como ameaça à nossa pureza racial, a ponto de merecer a denúncia de “perigo amarelo”. Assim também a repulsa à mera possibilidade de uma imigração chinesa acalentada por alguns líderes desde o tempo do Império, como substitu­ta no latifúndio cafeeiro, à escravidão africana – e até considerada nos anos 30 “repugnante”. Obedece aos mesmos preconceitos a sugestão de adoção do sistema de quotas, cópia do modelo americano. Essas ideias, como verifica a autora, resultaram em políticas, ditaram critérios restriti­vos quando não proibitivos, contra correntes imigratórias que nos teriam trazido, como algumas de fato trouxeram, progresso social, tecnologia e prosperidade. Eram todas sustentadas em nome da pureza da raça, concei­to de problemática definição.

A confusão, muitas vezes ciente e consciente, entre raça, etnia, povo e nacionalidade, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e durante o Estado Novo, resultou de fato em políticas anti-imigrantistas. É o tema de Jair de Souza Ramos (“Como classificar os indesejáveis?”). O autor, no entanto, usa o termo “racialização”, “medidas racialistas”, quando na verdade está falando de racismo, tout court, agravado no período da Se­gunda Guerra, pela entrada do Brasil na luta contra o Eixo e que atingiu, por motivações diversas, os descendentes de italianos, alemães e japone­ses no Sul do Brasil, e também judeus que tentavam fugir à perseguição nazista – como fartamente documentado. Roquette-Pinto prestou-se, no caso, a interpretações nacionalistas, quando afirmou que o brasileiro não precisava de substituto – nivelando-se a outro contemporâneo que ficou célebre pela afirmação “o brasileiro é o melhor imigrante”.

A preocupação da Eugenia, generalizada na época e importada dos círculos científicos europeus e norte-americanos, constituiu tropeço no pensamento de Roquette, como demonstra Vanderlei Sebastião de Souza (“As leis da eugenia na antropologia de Roquette-Pinto”). A Eugenia an­dou muito associada às teorias racistas, tornou-se, na Alemanha nazista, instrumento e desculpa para a eliminação de “indesejáveis” – leiam-se minorias, os chamados “quistos” – termo usado no Brasil para designar as colônias alemãs no Sul – por serem, segundo os autores dessas teorias, inassimiláveis, irredutíveis ao melting pot brasileiro. Assim também fo­ram considerados os “amarelos”, os orientais de várias procedências, cuja assimilação e docilidade à miscigenação tornaram-se hoje evidentes, a olho nu, para quem transita nas ruas de São Paulo, onde se misturam gos­tosamente com os descendentes dos bandeirantes, arianos e não – arianos, caros a Oliveira Vianna.

Os últimos ensaios do livro dedicam-se à descrição do enorme papel desempenhado pelo autor de Rondônia na criação da nossa radiofonia educativa. E, paradoxalmente, na elaboração das normas de censura a esse novo meio de comunicação. Ildeu de Castro Moreira, Luisa Mas­sarani e Jaime Aranha descrevem a importância de Roquette na nossa primeira divulgação científica, enquanto Regina Horta Duarte compõe um retrato do Roquette viajante e Sheila Schwartzman realça sua contri­buição ao uso educativo do cinema.

Enriquece o livro farto material fotográfico e cartográfico e a trans­crição de textos de Roquette-Pinto, alguns inéditos. É de lamentar a falta de um índice onomástico, indispensável face à riqueza das fontes consul­tadas e citadas.  Nenhum praticante das ciências humanas está isento da contamina­ção com teorias espúrias, ranço de seu pensamento cientificismo, seja o darwinismo de seu pensamento social, o positivismo, o marxismo de pacotilha ou a psicanálise de bolso. O livro, de titulo elusivo, mas de lei­tura essencial, é indispensável para uma visão dos caminhos e descami­nhos da antropologia brasileira – ainda que não brasiliana – nas primeiras décadas do século passado; e mais, para uma compreensão dos problemas epistemológicos e metodológicos que enfrentou na transição, ou acomo­dação, entre uma ciência biológica e uma ciência da cultura. Nesse sentido, a obra de Roquette-Pinto, como nos demonstram os ensaios coligidos no livro, é paradigmática. Não se abalançaram as orga­nizadoras a uma síntese conclusiva sobre o ideário de Roquette-Pinto, seu legado às novas gerações, talvez porque a riqueza do material reunido em ensaios tão variados e a vivência do cotidiano institucional na Fiocruz – à qual Roquette esteve tão associado – lhes dificultassem a distância e a perspectiva necessárias.

Que era, afinal, a “antropologia brasiliana”, alem de um modismo?Que resta desse empreendimento, uma vez despido das aderências ideo­lógicas de seu tempo?  O livro mereceria um capitulo sobre o administrador de instituições que foi Roquette – como diretor do Museu Nacional; quando, em mo­mento crítico – a gripe espanhola, – assumiu a direção de uma enfermaria do Hospital Deodoro; ou quando esteve à frente da primeira emissora de radiodifusão do Brasil, depois mutado na Rádio MEC que, em 1937, ele doou generosamente ao Ministério da Educação e Saúde. E quando, ain­da, em 1936, dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).

Essa intensa, importante atividade institucional é mencionada, mas não devidamente descrita e analisada para a compreensão necessária do que seria, naqueles anos, um administrador institucional do porte criativo de Roquette.

Como convivia o cientista, o humanista, com o clima autoritário, depois totalitário do Estado Novo? Como teria disciplinado a censura cinematográfica?Que censura era essa?Qual teria sido o convívio de Roquette com a Ditadura, de origem positivista e constituição salazarista, que iria formalizar-se na carta de 1937 e esterilizou, com o peso de suas burocracias, tanta iniciativa fecunda na educação e na saúde? De um a outro capítulo, delineia-se o perfil de Roquette-Pinto educa­dor. Merecia capítulo à parte. Difícil, também neste passo, compreender como o signatário do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” – com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Francisco Venâncio Filho e  tantos outros – documento de tempera liberal, veio a filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro, no qual chegou a candidatar-se em 1954 a deputado à Câmara Federal. Que socialismo era esse?O de Proudhon ou o de Saint-Simon? Não seria certamente o de Marx.

Outro ponto que mereceria análise, nessa personalidade – de tão ri­cas e instigantes contradições – era sua religiosidade. Chegou a articular, nos idos de 1935, um curioso Credo (sic), onde parece transitar do Positi­vismo, doutrina conservadora, para um Socialismo reformista.

Não há dúvida que essas tensões eram as de sua geração, alimentada pelas ideias de Darwin, de Spencer, de Comte, e animada por um Roman­tismo fundamental. Nascidos poucos anos depois da Abolição da escra­vatura, esses pensadores cresceram nos padrões e comportamentos per­sistentes de uma sociedade patrimonialista e de uma cultura bacharelesca. Sem a prática do método científico e sem as disciplinas da Universidade esses cientistas formam-se ao acaso do encontro, da viagem, do livro ou da experiência estrangeira, ainda apegados, malgie soi, ao discurso, ao culto da palavra, ao individualismo decorativo – menos ao laboratório, ao trabalho técnico e manual à pesquisa de equipe. Admirável, tenham conseguido produzir uma ciência e uma estrutura institucional, pagan­do alto preço ao ufanismo que os levaria às aberrações nacionalistas dos anos 30, à Ditadura de 37, às restrições criminosas à imigração – enfim, até ao Racismo.

Livrou-se Roquette dessa maleita e do racismo arianista pelo concei­to problemático de uma raça brasileira – ou brasiliana – encontrada por Euclides no sertanejo, por Roquette nos nhambicuaras. Bastante cientista, no entanto, Roquette percebeu que esse brasiliano não podia ser “antes de tudo um forte” e continuasse analfabeto, verminótico, tuberculoso, en­quanto exercesse práticas agrícolas destrutivas – e que era preciso tratá-lo, dar-lhe hospital, vacina, arado. Essa a grande missão que destinava ao Estado e às elites do seu tempo. Nessas esperanças, de alguma forma, comungamos, indivíduos ou instituições. Desse idealismo, não no sentido de Oliveira Vianna, mas no comum, Roquette, como o livro assaz demonstra, foi exemplo egrégio e continua mestre e inspirador.

José Arthur Rios – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

acetas do Império na História: conceitos e métodos – DORÉ et. al (H-Unesp)

DORÉ, A.; LIMA, L. F. S.; SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: HUCITEC, 2008, 314 p. Resenha de: LUZ, Guilherme Amaral. Lugares do Império e o Império Portugues. História [Unesp] v.28 no.1 Franca  2009.

Quase não parecem fortuitas algumas das coincidências impressas nesta resenha: um professor de universidade do interior de Minas Gerais, com formação na UNICAMP, apresentando, em revista da UNESP, um livro de professores da Federal do Paraná sobre o tema do Império, que tem como foco inegável o caso português entre fins do século XV e início do XIX. A coincidência básica aqui expressa está na aparente ausência de lugares institucionais brasileiros que, ao longo das últimas décadas, assumiram centralidade na proposição do problema: USP, UFF e UFRJ. O acaso, aqui, parece sintoma de um fenômeno duplo: primeiro, da dimensão ampliada que a problemática do Império vem ganhando no interior das preocupações de historiadores da “colônia” ou da “América portuguesa” em todo Brasil; segundo, para não deixarmos de fora um pouco de pimenta (especiaria tão apreciada pelos “nossos” antigos navegadores), do próprio “imperialismo” que alguns programas de pós-graduação na área exercem sobre todo o país, espalhando seus “rebentos” para todo canto… O primeiro fenômeno é o que me importa comentar, o segundo é fabulação irônica, com vistas a atrair a atenção do leitor, ainda que a custo de não conquistar a sua benevolência.

Mas não é só brasileira a preocupação com os Impérios e, nem tampouco, é exclusivamente do Império português que trata o livro Facetas do Império na História. Seu próprio título indica a hipótese de que a história, nas mais diversas áreas espaciais e recortes temporais, apresentou várias formas de um fenômeno capaz de ser abarcado pela noção de Império. O subtítulo do livro – conceitos e métodos – sugere, por sua vez, o objetivo mais específico visado: pensar a própria conceituação deste fenômeno, propondo formas de lê-lo historicamente sem riscos de uniformizações sociologizantes ou, por outro lado, de atomizações nominalistas. É nesta perspectiva que se entende a escolha do texto de Maurice Douverger (“O Conceito de Império”) como abertura para o livro. Escrito na década de 1970, esse texto visava apresentar um outro livro que publicava conferências apresentadas em um colóquio na França sobre a temática e no qual o conceito de Império era buscado por meio do cruzamento de realidades históricas variadas e distantes entre si no espaço e no tempo, sem, contudo, reduzi-las a uma essência idêntica. Com esta proposta, o livro organizado por Doré, Lima e Silva identifica-se, buscando abranger espaços-tempos que começam na paradigmática experiência imperial romana, passando pela sua translatio medieval e moderna, chegam aos Estados Ibéricos do século XVI (com sua renovatio), detêm-se em Portugal entre os séculos XV e XIX e terminam nas definições mais contemporâneas de Imperialismo. O livro não se furta, ainda, de reservar espaços para a consideração de dimensões historiográficas do conceito, mapeando suas tradições nas historiografias alemã (com os casos de Ranke e de Burkhardt) e francesa (nas Ciências Humanas).

O evidente foco no Império português é praticamente confessado, entretanto, no livro. Um dos seus índices mais claros está na escolha do segundo texto “clássico” a abrir a obra: “A idéia imperial manuelina”, de Luís Filipe Thomaz. Neste texto, o historiador português praticamente oferece ocasião ou insights para análises da sociogênese (para usarmos um termo dos preferidos de Norbert Elias) do Império português. No seu texto, Thomaz realiza um belo ensaio de explicação histórica, articulando as estratégias da expansão ultramarina portuguesa no reinado de D. Manuel com noções explícitas ou implícitas relativas ao poder imperial que circulavam em fins da Idade Média. Para o autor, a articulação dessas noções, na política manuelina, gerou uma concepção própria de Império que, sendo medieval em sua base cultural e teológico-política, tornou-se moderna em sua estratégia, desdobrada “em escala quase planetária”. Na sua base, segundo Thomaz, articulam-se três componentes básicos: a aparência de guerra santa, o ecletismo cultural na tradição da Reconquista e o messianismo. No seu interior, os objetivos espirituais e materiais da expansão não se separariam. Pensando-se como providencialmente eleito por Deus para a recuperação de Jerusalém, o estabelecimento da paz perpétua e para a reforma da Igreja, o “imperador” português buscava realizar seus intuitos por meio da conquista dos mares e das rotas de comércio. Ou seja, pela via “de uma cruzada pela pimenta e não mais pelo Santo Sepulcro” (THOMAZ, 2008: 101-102).

Com o ensaio de Thomaz, dialoga de maneira interessante o capítulo de Ana Paula Vosne Martins, sobre o tema imperial em Carlos V. Vejamos como conclui a autora sobre o herdeiro espanhol dos Habsburgos:

Como um cavaleiro de Cristo ele procurou por meio da ação política renovar o império e fundar a República Cristã, ideário cavalheiresco, medieval e também humanista. Por outro lado, não podemos esquecer que para atingir estes objetivos nobres e cristãos Carlos foi um príncipe moderno, sustentando suas ações no racionalismo político (MARTINS, 2008: 223).

Percebe-se, tanto no D. Manuel, de Thomaz, quanto no Carlos V, de Martins, que a questão central relativa aos impérios ibéricos está colocada na combinação de objetivos fundados na tradição teológico-política cristã “medieval” com meios “modernos” de buscar sua consecução. Colocado desta maneira, o problema revela-se bem mais opaco do que se poderia supor. Isso porque, ao se tratar de império, o que se combina aqui são conteúdos por vezes bastante opostos tais como o universalismo cristão de uma imperatoria potestas e a soberania absoluta de uma monarquia moderna. Nisso não deixa de tocar o texto de Luís Filipe Silvério Lima que lembra que, no século XVII português, as formulações de Vieira sobre o Quinto Império se davam no interior de

monarquias definidas (e não de uma idéia geral de império), de um espaço de conquistas e expansão (e não de uma noção hipotética de orbe como espaço da comunidade cristã ou de reconquista de uma Jerusalém perdida), e mais importante, se afirmavam como execução (consumação) completa da soberania, ou seja, o ideal imperial (e o ‘horizonte de perspectiva’ que tinham a partir de suas esperanças) estava ligado ao exercício absoluto e soberano do poder” (LIMA, 2008: 254-255).

Ora, se é verdade, como já fora postulado, que a chave do império permitiria uma abordagem menos insuficiente do que a bipolaridade metrópole/colônia na consideração da história da América portuguesa, a partir da complexidade que o conceito de império assume na “modernidade ibérica”, torna-se necessário refinar conceitualmente o que se entendia naquela época pelo termo império e o que podemos disso tomar, por extensão. A ele, não se pode simplesmente associar concepções romanas, tardo-antigas e carolíngias como necessariamente válidas em longa duração, bem como não se pode projetar pré-concepções derivadas do imperialismo de épocas mais recentes do capitalismo industrial. Há que se reconhecer, nele, as particularidades e as transformações que passa a assumir em cada espaço datado. Assim, mesmo ao longo da história da América portuguesa, o conceito de império pode não significar a mesma coisa do início ao fim, como de certo não significou.

É bem esse tipo de alerta que Facetas do Império na História traz ao público. Conceitos e métodos, mobilizados no plural, supõem exatamente a necessidade de reflexão sobre a diversidade de fenômenos que se recobrem pela noção aparente e enganosamente auto-explicativa de “império”. O livro não busca cercar todo o campo que a noção abrange e confessa sua própria limitação neste sentido. O que faz é ensaiar maneiras de olhar para impérios, sejam aqueles que assim se autodenominaram ou que foram denominados por outros. No caso português, entre os séculos XV e XVIII, a autodenominação e a conceituação a posteriori de “império” nem sempre coincidem em sentidos. Talvez aqui, muito sutilmente, resida o sabor especial do livro, instigando novas abordagens menos viciadas sobre a questão.

Referências

THOMAZ, L. F. A idéia imperial manuelina. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 39-104.         [ Links ]

MARTINS, A. P. V. Milles Christianus: Carlos V e o tema imperial. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 212-223.         [ Links ]

LIMA, L. F. S. Os nomes do império no século XVII: reflexão historiográfica e aproximações para uma história do conceito. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 244-256.         [ Links ]

Guilherme Amaral Luz – Professor Doutor – Instituto de História – Universidade Federal de Uberlândia – UFU – 38.400-902 – Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: galuz@uol.com.br.

Método Histórico – FREITAS (BC)

BIBLIOGRAFIA Comentada explora problemas de método da pesquisa histórica e divergentes concepções de crítica historiográfica, sobretudo, entre os historiadores por formação. Foram 20 os livros de Teoria da História e de Metodologia da História publicados nos últimos 10 anos. Livros autorais, como os de Jörn RÜSEN e Keith JENKINS, avaliação de teses autorais, por exemplo, de Walter BENJAMIN e Alun MUNSLOV e coletâneas individuais ou coletivas, produzidas por Jurandir MALERBA e Julio BENTIVOGLIO. O inventário reúne resenhas publicadas em periódicos de História ou veiculadas pelos domínios da Antropologia, Política, Relações Internacionais e os domínios interdisciplinares da Arquitetura e dos Estudos Feministas.