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Regimes de historicidade – HARTOG (RH-USP)
HARTOG, François. Regimes de historicidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Beffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva e Maria Helena Martins. Resenha de: PIMENTA, João Paulo. Revista de História (São Paulo) n.172 São Paulo Jan./June 2015.
A importância do livro de François Hartog, editado originalmente em 2003 (Paris: Éditions du Seuil), pode ser apontada por muitos motivos. Destaco dois. Primeiro, por tratar de temas altamente relevantes, todos gravitando em torno de elaborações intelectuais coletivas acerca do tempo histórico em relação a condições sociais concretas, específicas e variáveis a depender dos vários contextos visitados pelo autor, inclusive atuais. Segundo, pelo fato de o livro ter-se mostrado capaz de influenciar grande número de historiadores voltados a múltiplos temas e problemas, fornecendo-lhes inspiração, vocábulos e, por vezes, até mesmo modelos de explicação da realidade. Hartog é um erudito, ademais criativo, que escreve bem e que possui capacidade de elencar referências bastante diversificadas, organizadas em torno de sua notória especialidade na história do mundo antigo, amplamente reconhecida, sobretudo por aquela que provavelmente é sua obra magna, Le miroir d’Hérodote (Paris: Gallimard, 1980). Por isso, a disponibilidade no mercado editorial brasileiro de Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo ora resenhado é fato digno de louvor.
A fortuna do conjunto da obra de Hartog, seja no Brasil, seja em outros meios historiográficos e intelectuais, certamente merecerá a atenção devida em um futuro próximo. Aos que a ela se dedicarem, não poderá escapar o tributo explícito rendido pelo autor, neste Regimes de historicidade, a pelo menos três outros, dentre os muitos de que se utiliza. É de Fernand Braudel (Histoire et Sciences Sociales: La longue durée, de 1959) e Reinhart Koselleck (Vergangene Zukunft, de 1979) que emanam duas ideias fundamentais que subsidiam Hartog, respectivamente: a da simultaneidade de tempos históricos a pautarem a vida de toda e qualquer sociedade observável em perspectiva histórica; e a modernidade processualmente inaugurada no mundo ocidental entre os séculos XVIII e XIX, pautada por uma profunda temporalização da história e pela atribuição de conteúdos inovadores a noções como passado, presente e futuro, ademais rearticuladas com o progressivo distanciamento entre a primeira e terceira, fazendo a segunda sobressair como elemento central do mundo em que vivemos. Uma terceira referência central é a obra de Krzysztof Pomian (L’ordre du temps, de 1984) e sua concepção de uma ordem do tempo, espécie de cadeia organizadora de múltiplas experiências sociais relativas ao tempo.
Em determinada passagem (p. 37), Hartog mostra-se circunspecto e humilde em seus propósitos, afirmando pretensões “infinitamente mais modestas” do que seus autores centrais: quer esboçar a análise de jogos histórico-temporais, cujas combinações entre noções de passado, presente e futuro levariam ao que chama de “regimes de historicidade”. Eis uma das duas ideias centrais apresentadas em seu livro, e que lhe permite conceber a segunda: o “presentismo”, isto é, a suposta ampla dominância, a partir das últimas décadas da história da humanidade, do presente sobre qualquer noção de passado ou futuro (ao longo do livro, Hartog parece gostar da ideia de prevalência do presente, mas ao seu final – p. 260 – já a trata em termos de exclusividade). E, aparentemente, também evita qualquer pretensão à construção de um modelo, acreditando que “o historiador agora aprendeu a não reivindicar nenhum ponto de vista predominante” (p. 37).
Assumindo, então, um ponto de vista relativista, Hartog passeia por épocas e espaços. Nos três primeiros capítulos – voltados às “ilhas de história” observadas com os habitantes das ilhas Fidji, a uma imaginária ponte estabelecida entre Ulisses e santo Agostinho e à interpretação dos escritos de Chateaubriand e sua visão do mundo em que vivia – abre um leque de possibilidades de análises pontuais descontínuas e explicitamente sem buscar a construção de uma síntese ampla ou homogênea. A segunda parte do livro segue a mesma toada, com um capítulo, talvez o crucial da obra, dedicado a relações entre memória, história e o “presentismo”, e outro ao peso deste em discussões atuais sobre história e patrimônio. Se um relativismo é valorizado, Hartog preocupa-se em afirmar sua especial renúncia a quaisquer perspectivas eurocêntricas, embora, na maioria de exemplos bem como na imensa maioria das obras utilizadas (menos nos dois primeiros capítulos), tal intenção pareça muito escassamente atingida (há passagens mesmo em que Hartog refere-se a “mundo” para, três ou quatro palavras depois, torná-lo sinônimo de “França” ou “Europa”; em muitas outras, tais cuidados nem existem, com a dispensa de referência a um contexto… que é francês ou europeu).
Mas a tarefa de Hartog continua merecedora de crédito, já que, ademais de sua relevância e amplitude temática bem como a dos espaços geográficos e temporais correspondentes, demanda um fôlego intelectual incomum. O que talvez mais preocupe o leitor deste livro não é sua renúncia à oferta de explicações minimamente unificadas em torno de um modelo ou mesmo de um sistema de pensamento geral; tampouco o fato de que sua valorização relativista não o impede de ser eurocêntrico. A meu ver, a principal crítica da qual o livro é merecedor reside na possibilidade de fundamentação de suas duas ideias centrais, regimes de historicidade e presentismo, assim como a capacidade de ambas explicarem as realidades sobre as quais incidem.
Quanto ao primeiro ponto, logo no “Prefácio” o leitor se depara com uma proposta de definição do “que é e o que não é o regime de historicidade” (p. 12); Hartog, porém, será mais generoso na segunda oferta: esse “regime” não é uma realidade dada, não é observável diretamente pelos contemporâneos, não coincide com épocas ou “civilizações”, nem está confinado “apenas ao mundo europeu ou ocidental”. Em suma, é um “instrumento”. Mas que instrumento é esse, afinal? Nesse ponto, a expectativa criada no leitor desemboca em frustração:
O uso que proponho do regime de historicidade pode ser tanto amplo, como restrito: macro ou micro-histórico. Ele pode ser um artefato para esclarecer a biografia de um personagem histórico (tal como Napoleão, que se encontrou entre o regime moderno, trazido pela Revolução, e o regime antigo, simbolizado pela escolha do Império e pelo casamento com Maria-Luisa de Áustria), ou a de um homem comum; com ele pode-se atravessar uma grande obra (literária ou outra), tal como as Mémoires d’outre-tombe de Chateaubriand (onde ele se apresenta como o “nadador que mergulhou entre as duas margens do rio do tempo”); pode-se questionar a arquitetura de uma cidade, ontem e hoje, ou então comparar as grandes escansões da relação com o tempo de diferentes sociedades, próximas ou distantes. E, a cada vez, por meio da atenção muito particular dada aos momentos de crise do tempo e às suas expressões, visa-se a produzir mais inteligibilidade (p. 13).
Aqui, a circunspecção mais adiante anunciada, em termos de concepção de uma “simples ferramenta”, passa longe e o que se vê é a pretensão de sua utilização (e suposta serventia) em ampla perspectiva temporal, espacial, social, a iluminar fenômenos os mais variados, embora não se fale em modelos ou em “pontos de vista predominantes”. A ousadia é bem-vinda, e agora o livro mostra-se menos humilde do que parecerá em seguida – o que, aliás, pode ser visto como uma postura não apenas justificável, dados os talentos intelectuais de Hartog, mas também mais sincera do que este fará acreditar a seus leitores (na “Conclusão”, a cautela é enterrada: lemos mesmo que o livro supostamente tratou de um “movimento global”). No entanto, nesse ponto crucial da obra, a afirmação de que aquilo que o leitor quer saber como se define – promessa do próprio autor – é algo que explicaria a coisa em si (Napoleão entre dois “regimes”, supostamente “de historicidade”, e que não nos é dado saber o que são) resulta em uma tautologia que, de muitos modos, segue por todo o livro. A princípio, a preferência por definir as categorias de análise de uma obra pode perfeitamente recair nos momentos de sua efetiva utilização heurística, preterindo-se definições a priori; mas, no caso em questão, o “instrumento” será doravante enunciado não como possibilidade a ser fundamentada diante de situações históricas específicas, mas como descrição-significação de realidades já mencionadas por meio da referência a ele.
Concebamos que cabe ao próprio autor manipular seu instrumento de perquirição da realidade, acreditando em sua serventia e, desse modo, procurando dela convencer o leitor; também valorizemos a quase-definição desse instrumento como algo que dê “atenção muito particular” a “momentos de crise do tempo, e às suas expressões” (p. 37). Mesmo assim, o leitor se perguntará por que, mal definindo o que seja um “regime de historicidade”, Hartog usa tão livremente outras expressões (também instrumentos?) como “regime de memória” (p. 242), “regimes de tempo”, “regimes de temporalidade” (p. 245, 257), “regime do acontecimento contemporâneo” (p. 259), “ordem do tempo”, “crise do tempo”, “tempo(s)”, “temporalidade(s)”, “historicidade(s)”. Aqui, o relativismo do historiador converte-se em imprecisão conceitual, quiçá mais grave a partir do momento em que o próprio Hartog nos esclarece que um “regime de historicidade” pode ser visto como “apenas a expressão de uma ordem dominante do tempo” (p. 139); afirmação que nos levaria a crer que, agora, ele estaria disposto a rever seu relativismo, o que seria de esperar pela concepção de que as muitas formas histórico-sociais de relação entre passado, presente e futuro analisadas no livro devem ser hierarquizadas (com o que, aliás, estou inteiramente de acordo).
Contudo, o único momento em que isso parece ocorrer é quando da tentativa de caracterização da segunda ideia central do livro: o “presentismo”. Hartog sustenta que o “regime moderno de historicidade” (por exemplo: p. 132, 136, 142) teria sido quebrado em torno de 1989 (p. 136), o que representaria se não o “fim da história” assinalado por Francis Fukuyama, “seguramente uma cesura do tempo (incialmente na Europa e depois, pouco a pouco, em uma grande parte do mundo)” (p. 188). Experiência e expectativa, tendencialmente afastados na modernidade (é a ideia de Koselleck), agora sequer existiriam: “esses são os principais traços desse presente multiforme e multívoco: um presente monstro. É ao mesmo tempo tudo (só há presente) e quase nada (a tirania do imediato)” (p. 259). Daí, um novo regime de historicidade, não mais moderno, mas que Hartog evita cautelosamente chamar de pós-moderno. Em trabalho ausente da bibliografia de Hartog, Elias Palti (Time, modernity and time irreversibility, 1997) viu como a reivindicação de uma superação da modernidade pela concepção do advento de um novo tipo de tempo se constituiu em uma das bases do pensamento pós-moderno das últimas três décadas do século XX; reflexão que aqui se vê renovada diante do já mencionado relativismo histórico de Hartog.
Pode-se perguntar, ademais, a partir dessa conversão da “modernidade” koselleckiana em um “regime moderno de historicidade” hartogiano, em que medida uma coisa se diferenciaria da outra. De momento, a resposta não é possível, já que Hartog não parece sustentar nenhuma crítica direta e contundente à proposta de Koselleck. Mais produtiva deverá ser a tentativa de compreensão desse “presentismo” atual e na medida em que ele supostamente resulta de uma quebra de formas de viver os tempos anteriores. Como advento de uma novidade histórica relacionada ao mundo pós-1989, esse presentismo já fora assinalado por Eric Hobsbawm (Age of extremes, 1994; Hartog usa outra obra desse autor apenas para ressaltar a queda do muro como marco histórico geral – p. 136). “Presentismo” e “modernidade” necessariamente seriam, então, etapas sucedâneas, como pretende Hartog?
Em poucas ocasiões, Hartog dá atenção a um componente da modernidade koselleckiana diretamente relacionado com o “presentismo”: a progressiva aceleração do tempo histórico, não apenas a apartar experiência e expectativa – eventualmente, passado e futuro – mas a criar uma forma de vivência no mundo e uma concepção dele, de sua “aparência”. Numa dessas ocasiões, afirma Hartog, perspicazmente, que “mais amplamente, essa mudança de aparência é constitutiva da ordem moderna do tempo. Reconhecê-la não implica, por outro lado, aceitar como reais todas as declarações do mundo moderno sobre a aceleração” (p. 162). Perfeito: nem todas as manifestações sociais aparentes dessa aceleração devem ser levadas a sério. No entanto, se a aceleração está no âmago da modernidade, é de se esperar que ela crie, desde sempre, uma compressão de tempos em um presente dominante. Conceber que, com a progressão da aceleração a ela inerente, a modernidade teria se dissolvido com a superação de supostos limites ao distanciamento entre experiência e expectativa implica uma concepção excessivamente determinista do fenômeno.
Nos anos 1950, Hans Meyerhoff (Time in literature, 1955) já concebia um “presentismo” do mundo contemporâneo em termos de fenômenos bastante convergentes aos observados por Hartog; quase quarenta anos antes da queda do muro, poder-se-ia falar de “presentismo moderno”, a conflitar com a pretensão de um “regime de historicidade” presentista? Retomando Elias Palti, o triunfo do presente como tempo histórico dominante pôde ser visto, por muitos autores, como característica essencial de uma modernidade que, agora, se vê colocada em xeque por Hartog com base nesse mesmo presentismo. Outra pergunta que surge, então, é: até que ponto Hartog conseguiu escapar a essa tendência dos nossos tempos (independentemente de quando estes tenham começado), aliás dele bem conhecida, de supervalorizar o presente diretamente observável, a ponto de supervalorizar o presentismo de um presente que talvez não seja tão distinto assim daquele criado pela modernidade há algum tempo, e ainda por ela recriado? Ademais de recolocar a questão das diferenças entre as propostas de Koselleck e Hartog, não suficientemente esclarecidas, continua-se aqui o debate – deveras ativado, mas não devidamente esgotado – em torno das condições de elaboração de diagnósticos acerca da contemporaneidade (= modernidade?) na própria contemporaneidade. Um debate pelo qual Regimes de historicidade é diretamente responsável, e ao qual vem oferecendo, desde sua primeira publicação em 2003, subsídios e marcos referenciais incontornáveis.
João Paulo Pimenta – Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. E-mail: jgarrido@usp.br.