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Memória e usos políticos do passado: 130 anos da abolição e pós-abolição / Tempo e Argumento / 2018
13 de maio de 2018. Há 130 anos foi promulgada a Lei Áurea, que aboliu definitivamente a escravidão em todo o Brasil. A evocação dessa data assume para todos nós a indicação de uma efeméride. Mas o que são efemérides? Mais do que a celebração de um acontecimento ou fato importante assinalado em determinada data, são pontas de icebergs, emergem da “relação inextricável entre o acontecimento, que elas fixam com a sua simplicidade aritmética, e a polifonia do tempo social, do tempo cultural, do tempo corporal, que pulsa sob a linha de superfície dos eventos”.1 As efemérides, com todos os seus significados, usos e apropriações sociais, políticas e culturais, provocam reflexões. Desafiam-nos ao exame crítico. Assim, elas são balizas importantes para os historiadores e cientistas sociais de modo geral. Há muito do passado no presente desta nação. Não se pode dizer que tudo é uma decorrência da escravidão, mas devemos ponderar como o Brasil, o último dos países das Américas a abolir o regime de cativeiro, foi marcado pela experiência da escravidão, cujos legados (sociais, políticos, culturais e simbólicos) não podem ser esquecidos. Ao contrário, devem fazer parte da agenda nacional.
Conforme assinalam Maria Helena Machado e Lilia Schwarcz, os movimentos de emancipação nas Américas traduziram conjuntos de processos históricos de larga amplitude, os quais recolocaram, em novas perspectivas, desafios e dilemas antigos, mas atualizados a partir de novos cenários: “a questão do trabalho, do lugar social dos africanos e afrodescendentes nas sociedades sem escravidão, o problema da raça e da mestiçagem nos quadros dos emergentes Estados nacionais e de uma ciência comprometida com a construção de sistemas de classificação e exclusão, a questão da imagem e da formação de estereótipos e políticas de representação pós-coloniais”. As autoras ressaltam, igualmente, o papel das relações de gênero como marcador social da diferença, influenciando e intersecionando as experiências de homens e mulheres nos limiares das invenções da liberdade. Quando colocados em relação, “esses diferentes marcadores – como raça, etnia, região, gênero, classe – revelam panoramas diferenciados, mas ao mesmo tempo persistentes na determinação e preservação de processos de exclusão social” na nossa sociedade. 2
Este dossiê tem por finalidade apresentar pesquisas atuais sobre a história da abolição e pós-abolição no Brasil, conferindo atenção especial aos usos públicos e políticos da memória e suas implicações sociais, culturais, políticas e identitárias em suas diferentes manifestações numa sociedade marcada pelas heranças ressignificadas do cativeiro. A iniciativa de organizar este dossiê também respondeu ao crescente (e renovado) interesse pela temática.
São oito artigos selecionados. Como ponto de partida, Francisco Assis Nascimento e Túlio Henrique Pereira analisam as formas pelas quais o corpo humano foi representado em duas imagens publicadas no impresso baiano A Coisa e em uma imagem publicada na revista norte-americana Verdict. O argumento dos autores é que essas imagens, colocadas em circulação pela imprensa ilustrada entre o final do Império e a Primeira República no Brasil, conferem visualidades para esses corpos, ao mesmo tempo em que veiculam discursos raciais, culturais, sociais e políticos. No artigo seguinte, Karla Leandro Rascke examina a produção e difusão da chamada imprensa negra em Florianópolis, nas primeiras décadas após a Abolição. Mostra como os “homens de cor” letrados da capital catarinense se mobilizaram em prol de direitos, valendo-se, para tanto, de jornais, que vocalizavam seus projetos de ascensão social e de cidadania.
Já Petrônio Domingues investiga a presença do jazz no meio negro de São Paulo na década de 1920, demonstrando como o estilo de origem afro-diaspórica impactou a vida daquele segmento populacional, influenciando suas experiências culturais relacionadas especialmente aos estilos modernos e cosmopolitas. No artigo posterior, Yussef Daibert Salomão de Campos discute como a Constituição brasileira de 1988 trata os direitos quilombolas e indígenas, tanto em relação à terra quanto à cultura. Seu argumento é que a Carta Magna é incoerente, na medida em que separou o binômio lugar e território das práticas e bens culturais classificados como patrimônio. A seu ver, essa separação, que aparece no texto legal, só pode ser compreendida à luz do jogo político.
Ao reconstituir a trajetória dos Cazumbás na Bahia, José Bento Rosa da Silva examina em seu artigo como uma família de descendentes de africanos, desde o século XIX, mantém o sobrenome familiar e como isto tem implicações nas questões relacionadas à identidade, história e memória dos Cazumbás. Na sequência, Fernanda Barros dos Santos lança seu olhar para a relação entre Estado e movimentos sociais negros no Brasil contemporâneo. Além de comparar como os governos de José Sarney (1985-1990), Fernando Henrique Cardoso (1995- 2003) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) lidaram com a questão racial, a autora esquadrinha o surgimento da Fundação Cultural Palmares (1988) e da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2010.
Luís Fernando Cerri e Rubia Caroline Janz, por sua vez, abordam a implantação da lei n. 10.639 / 2003, a qual tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica, por meio de elementos da aprendizagem e das opiniões de estudantes. No artigo, são analisados como os estudantes do Ensino Médio da cidade de Ponta Grossa, no Paraná, concebem questões relativas à escravidão, práticas de resistência e o processo de abolição do cativeiro. Já Gustavo de Andrade Durão, no artigo derradeiro desse dossiê, perscruta alguns aspectos do conceito de pan-africanismo como meio de se conectar ao debate pós-colonial. Enfocando análises transnacionais de pensadores importantes como Edward Blyden, Marcus Garvey e W. E. B. Du Bois, o autor procura mapear as perspectivas pelas quais tais pensadores se debruçaram para constituir as definições de pan-africanismo e do pós-colonial, um debate atual e desafiador para os estudos afro-diaspóricos.
Os artigos aprofundam análises e discussões cujo eixo gira em torno de escolhas temáticas, objetos, abordagens, cronologias e universos empíricos que interseccionam o pósabolição e as questões contemporâneas emergentes. O objetivo foi reunir pesquisas centradas em processos históricos multifacetados – experiências, ideias, narrativas, agências, contextos, movimentos, instituições e seus protagonistas. O dossiê oferece ao leitor um rico e instigante painel do que vem sendo produzido sobre a história, a memória e as políticas raciais a respeito do Brasil na era das emancipações e do pós-abolição, o que certamente contribuirá para a ampliação do conhecimento sobre o campo.
Marc Bloch define a história – “ciência dos homens no tempo” – a partir de dois atributos: o seu caráter humano e as relações dialógicas entre passado e presente. Com relação a este último aspecto, chamou a atenção para a importância de compreender o “presente pelo passado” e o “passado pelo presente”, nunca pelas vias de um trajeto linear, mas levando em conta as influências mútuas (rupturas e continuidades). Bloch ressalta que a visão de um mesmo passado se altera conforme as transformações de longa, media e curta duração. O historiador é um sujeito de seu tempo.3 As questões próprias de sua época demandam revisões constantes sobre o passado que, por seu turno, sugerem novas questões e novas formas de investigação que culminam na reescrita da história.
A história da abolição e pós-abolição no Brasil está sendo (re)escrita, em permanente diálogo com as questões do tempo presente. Se é verdade que, apesar de passados 130 anos da Lei Áurea, os egressos do cativeiro e / ou seus descendentes ainda enfrentam uma série de desafios na esfera do reconhecimento, dos direitos e do exercício da cidadania no seio da nação, não é menos verdade que vem sendo crescente a sensibilização do Estado e da sociedade civil às políticas de reparações, ações afirmativas etc. A história e a memória são arenas de disputas e embates de projetos de nação. Nesse contexto, “lembrar”, argumentam Lilia Schwarcz e Flávio Gomes, é um “exercício de rebeldia; de não deixar passar e de ficar para contar”.4 A história da escravidão à liberdade já foi tecida, ao passo que a da liberdade à igualdade ainda faz parte dos horizontes de expectativas. Que um dia as marcas do passado escravista, atualizadas sob o selo das desigualdades raciais, deixem de atormentar o país.
Notas
1 BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 19.
2 MACHADO, Maria H. P. Toledo e SCHWARCZ, Lilia Moritz. Apresentação. In: MACHADO, Maria H. P. Toledo e SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs). Emancipação, inclusão e exclusão: desafios do passado e do presente. São Paulo: Edusp, 2018, p. 11-12.
3 BLOCH, Marc. Introdução à História. Mira-Sintra; Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997 [Edição revista, aumentada e criticada por Etienne Bloch].
4 SCHWARCZ, Lilia e GOMES, Flávio. Apresentação. In: SCHWARCZ, Lilia e GOMES, Flávio (orgs). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 19.
Petrônio Domingues
(Organizador)
DOMINGUES, Petrônio. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, 2018. Acessar publicação original [DR]