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História, cotidiano e memória social – a vida comum sob as ditaduras no século XX / Estudos Ibero-Americanos / 2017
Por uma história do cotidiano dos regimes autoritários no século XX
Em língua portuguesa, os dicionários comportam pelo menos duas definições para a palavra cotidiano: primeiramente, significa o “conjunto das ações que ocorrem todos os dias”, mas é também aquilo que “não é extraordinário; comum ou banal”. Já no idioma inglês, as palavras everyday e daily aparecem como sinônimos podendo significar, de acordo com o Oxford English Dictionary, “happening or used every day”. O vocábulo daily, por sua vez, se tem uma definição muito próxima da de everyday (“one, produced, or occurring every day or every weekday”), comporta também outros sentidos. É o que verificamos, por exemplo, na expressão daily life, a qual possui acepção bastante similar ao segundo significado que a palavra cotidiano possui em português: “the activities and experiences that constitute a person’s normal existence”. Na língua espanhola, também é possível distinguir dois termos diferentes: cotidiano, para se referir ao que “ocurre con frecuencia, habitual” e cotidianidad, entendido como a “característica de lo que es normal porque pasa todos los días”. Assim, o cotidiano pode estar ligado, ao mesmo tempo, às ideias de repetição e rotina e à de normalidade.
O dossiê História, cotidiano e memória social: a vida comum sob as ditaduras no século XX, que ora apresentamos ao leitor, tem como proposta justamente a reflexão sobre o cotidiano. A rigor, uma dupla reflexão: pretende, em primeiro lugar, debater as possibilidades, os contornos e os limites do que podemos denominar uma história da vida cotidiana e sua inscrição no âmbito dos múltiplos significados que o termo pode admitir. Assim, trata-se de refletir sobre o cotidiano como objeto historiográfico a partir daquilo que ele representa em termos de repetição, de rotina, ou antes, de rotinização da vida; mas também como aquilo que pertence ao universo do ordinário, de uma “existência normal”. Ao mesmo tempo, a proposta se concentra principalmente nas possibilidades de se pensar o universo do cotidiano em um quadro de exceção; o ordinário no contexto do extraordinário. Dito de outra forma, trata-se de questionar: é possível pensar a reprodução da vida cotidiana no quadro dos diversos regimes autoritários que tiveram lugar no século XX? Como podemos elaborar uma reflexão sobre os fatos banais da vida daqueles que não se sentiram concernidos por tais regimes, os quais tinham como base o terror de Estado e a disseminação do medo? Como se davam as reivindicações de uma “existência normal” em conjunturas excepcionais, de violência política e de ditaduras?
Para as ciências sociais, para a história, em particular, tratar o cotidiano pode constituir desafiadora empreitada, na medida mesmo em que o interesse historiográfico pelo objeto reside justamente nas possibilidades de articular a reflexão a partir de ambas as dimensões: a análise das atividades do dia-a-dia como aspecto decisivo para a compreensão de determinada sociedade no tempo; bem como as perspectivas de elaborar historicamente este sentido que o vocábulo comporta do que não é extraordinário, do que é banal e comum. Michel de Certeau, em seu estudo pioneiro, A invenção do cotidiano, fala das pesquisas que desenvolveu sobre o tema como uma “interrogação sobre as operações dos usuários, supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU, 1998, p. 37). Dialogando, então, com o que eram as recentes pesquisas de Michel Foucault, Certeau questiona:
Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?) dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política (CERTEAU, 1998, p. 41).
Assim, Certeau descreve seu trabalho como uma tentativa de constituir certo aparato metodológico para que se possa delimitar um campo, refletindo sobre o estudo do cotidiano a partir da ideia de práticas comuns, introduzindo-as “com as experiências particulares, as frequentações, as solidariedades e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações vão abrindo caminho” (CERTEAU, 1998, p. 35). A delimitação do campo, no entanto e apesar da vigorosa proposta metodológica de Certeau, não é algo simples. Como bem lembrou Peter Burke, citando Norbert Elias, do ponto de vista das ciências sociais, “a noção de cotidiano é menos precisa e mais complicada do que parece. Elias distingue oito significados atuais do termo, desde a vida privada até o mundo das pessoas comuns”. O historiador continua, sinalizando para o fato de que
Igualmente difícil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança. Visto de seu interior, o cotidiano parece eterno. O desafio para o historiador social é mostrar como ele de fato faz parte da história, relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos, como a Reforma ou a Revolução Francesa, ou a tendências de longo prazo, como a ocidentalização ou a ascensão do capitalismo. O famoso sociólogo Max Weber criou um termo famoso que pode ser útil aqui: “rotinização” (Veralltäglichung, literalmente “cotidianização”). Um foco de atenção para os historiadores sociais poderia ser o processo de interação entre acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por outro (BURKE, 1992, p. 23).
Burke considera, portanto, o cotidiano como um objeto dentro do amplo espectro da História Social. Nesse sentido, o desafio seria justamente refletir sobre a articulação entre os grandes acontecimentos e a rotinização da vida; a estrutura e a mudança; o eterno e o repetitivo de um lado e o instante e a ruptura de outro. Assim, caberia a pergunta: existe, como campo ou como área de estudos uma História do Cotidiano? Se existe, como e de quê ela se constitui? Luis Castells nos lembra que “no existe una corriente que se englobe tras esta denominación, con la excepción de Alemania, donde el movimiento Al [1] tagsgeschichte se ha constituido como un referente de aquella historiografia” (CASTELLS, 1995, p. 11).
Na Alemanha, desde pelo menos a década de 1970, historiadores como Richard van Dülmen, Hans Medick, Alf Lüdtke ou Dorothee Wierling vêm encarando, “o desafio de fundar uma antropologia histórica”, a qual por sua vez, se distancia do estruturalismo, dando lugar à subjetividade dos atores e às suas experiências pessoais. Daí a apropriação do conceito de habitus caro a Pierre Bourdieu, que concilia determinações sociais e oportunidades de desenvolvimento individual. Isso explica também a preferência, por exemplo, por estudos que se concentram em processos locais e regionais, bairros ou até mesmo algumas famílias. É sob este aspecto que a Alltagsgeschichte alemã se aproxima e dialoga com a micro-história praticada na Itália por Giovanni Levi e Carlo Ginzburg (LE MOIGNE, 2005, p. 30).
Analisando os processos a partir dos quais a Alltagsgeschichte tomou corpo na academia da República Federal da Alemanha ao longo da década de 1970, Nicolas Le Moigne explica que, no contexto alemão daquele período, tais premissas não estavam isentas de “implicações universitárias e mesmo políticas”. Também Alf Lüdtke, um dos grandes expoentes da Alltagsgeschichte alemã, reconhece que em fins dos anos 1970, formaram-se na RFA, grupos locais, preocupados com a Geschichte von unten (História dos de baixo) e com a Geschichte vor Ort (História local). Para o historiador, tais iniciativas partiam, frequentemente, dos fortes conflitos surgidos a partir de 1968 em centros de ensino, em meios burocráticos de conformação de políticas culturais e outros espaços públicos em torno do tema de um novo ensino de História (LÜDTKE, 1995, p. 54). Assim, se na França análises de micro-história encontraram espaço propício para se desenvolver no âmbito de uma História Social que se renovava, o mesmo não se passou na Alemanha com a Alltagsgeschichte: determinados historiadores passaram a “acusar os defensores da Alltag de fazerem pouco da tradição iluminista, colocando emoções e subjetividades no coração da análise histórica” (LE MOIGNE, 2005, p. 31). Sobre a Alltagsgeschichte alemã, Lüdtke explica:
La Alltagsgeschichte no es una disciplina especial. Se trata más bien de un enfoque específico del pasado. Este punto de vista no se limita a las ‘acciones de los dirigentes y de hombres de Estado’ tal y como se hacía predominantemente en la historia política y militar de antes. Por otro lado, esta visión de las experiencias y actuaciones del pasado no se reduce tampoco a coacciones anónimas de mecanismos estructurales. En el centro se encuentra más bien la conducta diaria de los hombres: tanto los prominentes como los supuestamente anónimos son considerados como actores históricos. Se reconstruyen las formas de la práctica en las que los hombres se ‘apropiaban’ de las situaciones en las que se encontraban. Este enfoque insiste en que cada hombre y cada mujer ha ‘hecho historia’ diariamente (LÜDTKE, 1995, p. 50).
Nesse sentido, a Alltagsgeschichte, embora tributária em alguma medida desta se afasta da History from below inglesa(LÜDTKE, 1995, p. 54). O conceito remete às questões da reprodução da vida dos indivíduos anônimos ou não, de origem popular ou das elites, buscando na dinâmica entre as esferas pública e privada elementos que possam contribuir para a compreensão dos modos de pensar e agir das pessoas em seu cotidiano. Nesse sentido, a amplitude do conceito pode resultar em problemas de delimitação do objeto ou da natureza mesma da História do Cotidiano. Luis Castells chama atenção para o fato de que:
Buena parte de sus problemas a la hora de precisar lo que se entiende por historia de la vida cotidiana deriva de su imprecisión, de sus vagos contornos, así como de su escasa teorización, cuando menos desde la perspectiva de los historiadores (CASTELLS, 1995, p. 11).
Não obstante, Castells relembra também que tais problemas são inerentes ao próprio campo da História Social. O que não se pode perder de vista quando se trata deste objeto ou campo de estudos, supostamente de contornos imprecisos, é justamente suas relações com o público. Dedicando-se ao estudo dos aspectos talvez mais triviais do dia-a-dia dos atores sociais, a História do Cotidiano não pode, no entanto, ser pensada separadamente da esfera política. Ao contrário, ao centrar as atenções no quadro microssocial, os historiadores do cotidiano concebem a história como um processo multidirecional, em constante transformação, em uma tentativa de apreender em sua complexidade os comportamentos coletivos (KOSLOV, 2010).
Ainda sobre a corrente alemã, Le Moigne explica que a Alltagsgeschichte deu prioridade a três campos de pesquisa: em primeiro lugar, os “parâmetros gerais da vida humana” que tendiam a ser considerados “a-históricos” na Alemanha: a sexualidade, o nascimento, as doenças, o amor, a morte; depois, ela se ocupou dos meios desenvolvidos pelos homens para gerir seu cotidiano: o vestuário, a habitação, nutrição e o trabalho. Por fim, a História do Cotidiano voltou-se para os comportamentos e as formas de adaptação em situações excepcionais, notadamente a Guerra, a crise econômica, as privações de liberdade, as ditaduras (LE MOIGNE, 2005, p. 32).
Aplicado ao caso do nazismo, a História do Cotidiano ajudava a melhor perceber a atração que o regime exerceu sobre a sociedade e as maneiras a partir das quais as “emoções se combinaram com interesses materiais e necessidades individuais durante o processo que possiblitou que a política de destruição e perseguição nazista fosse colocada em marcha” (KOSLOV, 2010). Em 1989, Alf Lüdtke publicava na Alemanha um trabalho com uma série de estudos sobre História do Cotidiano1. Especificamente no que concernia ao período do nazismo, o autor evocava algumas vezes o sofrimento dos atores e a necessidade por parte do historiador de elaborar – social e historicamente – tal sofrimento. Não obstante, no caso do nazismo, compreender as penúrias impostas pelo regime significava igualmente refletir sobre os comportamentos que as produziram ou que, de maneira mais recorrente, ao menos coexistiram com elas. Tratava-se de compreender aquilo que o autor chamou de fascismo comum (REVEL, 1995, p. 805-808).
Não obstante, Lüdtke reconhecia as dificuldades e controvérsias que as propostas da Alltagsgeschichte poderiam suscitar especificamente quando dedicadas a refletir sobre o nazismo (LÜDTKE, 1994, p. 2). Sob este aspecto, é fundamental nos colocarmos diante das questões levantadas por Detlev J.K. Peukert também para o caso alemão:
podemos, ou mesmo devemos, falar de “vida cotidiana” em uma era que, para as vítimas de perseguição e guerra, significou um perpétuo estado de emergência? Em face da monstruosidade dos crimes do nacional-socialismo, não deveríamos ficar em silêncio sobre as rotinas diárias banais da maioria que não sente que foi afetada ou envolvida? (PEUKERT, 1987, p. 21)
Assim, se a ênfase nos estudos dos fatos da vida cotidiana sob um regime criminoso pode colocar o historiador diante de importante questão ética, o mesmo Peukert nos lista uma série de razões pelas quais o estudo de um regime autoritário – o nazismo, no caso – sob a perspectiva da História do Cotidiano pode também fornecer bases interessantes para uma historiografia crítica, na medida em que retira o seu objeto de interesse justamente das contraditórias e complexas experiências da “gente comum”.
Também Alf Lüdtke defende que
apenas um estudo detalhado dos comportamentos e das tomadas de consciência individuais pode identificar as contradições com as quais lideram indivíduos e grupos sociais sob o nazismo. Assim, pode-se entender o funcionamento do movimento de massas que esteve na origem do triunfo e da manutenção do regime nacional-socialista (KOTT; LÜDTKE, 1991, p. 153).
Mas, as reflexões em torno da vida cotidiana sob regimes autoritários no século XX não ficaram, evidentemente, restritas ao caso alemão. A historiografia sobre tais experiências vem passando por um processo de renovação desde pelo menos as décadas de 1970 e 1980 na Europa e, mais recentemente, processo similar se verifica para o caso da América Latina. Nesse sentido, o trabalho com categorias como memória, opinião, consenso, consentimento e resistência têm sido fundamentais para compreender os regimes autoritários do século XX, em suas mais diversas essências e temporalidades em ambos os continentes. No mesmo movimento, o cotidiano foi tomado como objeto, interrogando sobre a pluralidade das atitudes coletivas e sobre as formas a partir das quais se teceram as relações sociais em seus ambientes cotidianos, moldadas pelos pressupostos dos Estados autoritários que as governavam.
Assim, é importante destacar, dentre tantos outros, o estudo realizado por Sheila Fitzpatrick sobre a vida cotidiana sob o stalinismo. Nele, a autora avalia que existem inúmeras teorias sobre a forma de se escrever a história da vida cotidiana. Algumas delas consideram que o cotidiano abrange essencialmente a esfera da vida privada: a família, o lar, a educação das crianças, os lazeres, as relações de amizade e a sociabilidade. Outros voltam suas atenções para o mundo do trabalho, os comportamentos e atitudes nos locais de trabalho. Já os especialistas da vida cotidiana sob regimes autoritários se interessaram principalmente pelas diferentes formas de resistência – ativa ou passiva – elaboradas pelos cidadãos ou pela questão da resistência cotidiana, no campo ou nas cidades (FITZPATRICK, 2002, p. 13).
É o que ocorre, por exemplo, no caso do Brasil, onde apenas muito recentemente verifica-se um processo de renovação historiográfica que busca refletir sobre a ditadura como um processo de construção social [2]. No que se refere aos debates a respeito das reflexões sobre o cotidiano e, especificamente, sobre as problemáticas em torno da articulação entre uma reflexão sobre as possibilidades de uma História do cotidiano sob ditaduras, os trabalhos existentes retomam, em primeiro plano, as questões que envolvem o dia-a-dia dos grupos de resistência e oposição ao regime.
Neste caso, trabalho pioneiro foi a reflexão desenvolvida por Maria Hermínia Tavares e Luiz Weiz a respeito do cotidiano de oposição da classe média brasileira durante a ditadura e que compõe o volume 4 da coletânea História da vida privada no Brasil. Os autores estudaram especificamente setores a que chamaram “classe média intelectualizada”: “estudantes politicamente ativos, professores universitários, profissionais liberais, artistas, jornalistas, publicitários, etc” e a vasta gama de comportamentos que definiam a oposição durante a ditadura (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 327-328).
Tavares e Weiz chamam atenção, nesse sentido, para os diferentes modos de se relacionar com o espaço urbano que a clandestinidade impunha: o isolamento social em alguns casos, as dificuldades por parte das famílias de jovens militantes em “retomar uma existência cotidiana regular” e, por fim, a transformação do medo e da insegurança em “sensações básicas cotidianas e comuns a quem quer que tenha feito oposição à ditadura, marcando a fundo a vida privada dos oposicionistas” (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 328).
É importante, no entanto, considerar que não foi apenas a vida cotidiana da oposição à ditadura que sofreu profunda alteração. Tampouco as sensações de medo e insegurança ficaram restritas a tais meios. Ao contrário, a temática da violência política e a sensação de que se poderia estar sob vigilância teria caracterizado o dia-a-dia de parcelas muito mais expressivas da sociedade e não apenas daqueles que se opuseram ao regime. A própria Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que ao fim forneceu a justificativa para o golpe e para a manutenção da ditadura, ao operar a partir de noções como as de guerra permanente e guerra total, contribuía de forma expressiva para moldar a vida cotidiana sob a ditadura. O dia-a-dia do “cidadão comum” foi, dessa maneira, invadido por tais noções e estes incorporaram, sob muitos aspectos, a essência da DSN, a qual residia mesmo “no enquadramento da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica anti-subversiva contra o inimigo comum” (BORGES, 2007, p. 29).
Não obstante e de maneira geral, se em um primeiro momento a ideia de tomar o cotidiano sob regimes autoritários como objeto esteve vinculada às possibilidades de ampliar os estudos sobre as diversas formas de resistência, trabalhos mais recentes vêm propondo transcender este âmbito. Ainda de acordo com Fitzpatrick, tais análises buscam “dar ênfase às práticas, ou seja, às formas de comportamento e estratégias pessoais elaboradas para fazer face à condições sociais e políticas particulares” (FITZPATRICK, 2002, p. 14).
Sobre tais práticas e estratégias, talvez seja interessante ter em vista, de um ponto de vista teóricometodológico, aquilo que o historiador Andrew Stuart Bergerson observa para o caso alemão. Em seu estudo sobre alemães comuns em tempos incomuns, que toma como base as relações de vizinhança e em outros espaços cotidianos na cidade de Hildesheim, Bergerson busca compreender justamente “como pessoas comuns buscaram manter uma cultura de normalidade enquanto, não obstante, transformavam amigos e vizinhos em judeus e arianos” (BERGERSON, 2004, p. 6) [3]. Por “cultura de normalidade”, o historiador explica que não se refere a um estado natural, mas a um subproduto da cultura humana: “uma experiência gerada por uma forma específica de ser, acreditar e se comportar”. Nesse sentido, a cultura de normalidade fornece os elementos a partir dos quais as pessoas comuns se autodefinem como tais, tendo em vista ideias de impotência e insignificância, reforçando a construção de uma percepção sobre si mesmo que os aparta da História com H maiúsculo, mas que, de fato, apenas os habilita a “moldar a história” enquanto os envolve em uma autoilusão de inocência (BERGERSON, 2004, p. 6).
Sob este aspecto e como a ideia de homem comum ou de uma vida ordinária estão presentes e ligadas de certa maneira às possibilidades e questionamentos em torno da História do Cotidiano, é importante destacar que tais termos são entendidos aqui de maneira similar à proposta de Bergerson e relaciona-se, antes de tudo, à uma autoimagem ou autodefinição de si mesmos. Assim, para o autor, o termo comum [4] serve
não tanto para descrever um conjunto de pessoas que permaneceram fora dos círculos do poder público e da responsabilidade histórica. Ser comum era engajar-se em uma estratégia cultural específica de sobrevivência. Uma resposta criativa às rápidas e perturbadoras transformações históricas, essa forma de comportamento foi caracteristicamente moderna, mais que especificamente alemã, um hábito de vida diário (BERGERSON, 2004, p. 6).
Por fim, o que pretendemos ao propor este dossiê temático, considerando os pressupostos e as discussões em torno da chamada História do Cotidiano, foi chamar atenção para as possibilidades – e os limites – de se tomar como objeto de estudos a vida cotidiana sob regimes autoritários e / ou situações de guerra no século XX.
Nesse sentido, indagamos sobre como as vidas de pessoas não implicadas diretamente nos embates políticos em questão foram modificadas – ou não – por eles. Mais que isso, como estas pessoas perceberam, reagiram e se adaptaram a tais regimes em seus espaços de vivência cotidiana. Como segmentos sociais diversos lideram com os regimes políticos em questão, naturalizando, em níveis distintos, suas práticas e linguagem próprias? Quais comportamentos e “estratégias pessoais” utilizados diante das novas situações? Por outro, consideramos importante também pensar atores não tão “comuns” e seus espaços cotidianos: meios de comunicação, participantes de organizações armadas, ídolos musicais. Como veremos nas páginas que seguem, o conceito de cotidiano é ampliado, enriquecendo os questionamentos aqui apresentados.
Esta edição conta com quinze artigo, três resenhas e duas entrevistas. Abrindo o dossiê, o artigo de Fernando Perlatto “Svetlana Aleksiévitch, a Grande Utopia e o cotidiano: testemunhos e memórias do Homo Sovieticus”, analisa a obra da escritora bielorrussa a partir da reflexão da vida cotidiana dos homens e mulheres “comuns” ao longo dos anos de autoritarismo soviético. A autora contribui para pensarmos a relação entre grandes acontecimentos e a vida cotidiana do “Homo Sovieticus”. Por sua vez, Daniel Lvovich em seu texto “Vida cotidiana y dictadura militar en la Argentina: Un balance historiográfico” faz um levantamento e uma análise dos estudos que tomam como objeto a questão do cotidiano durante a última ditadura militar argentina (1976-1983).
Em “Mortes no mar, dor na terra. Brasileiros atingidos pelo ataque do submarino alemão U-507 (agosto de 1942)”, o terceiro artigo de nosso dossiê, Jorge Ferreira parte do ataque de retaliação do governo nazista a navios brasileiros para trabalhar as reações das vítimas e seus familiares sobre o referido episódio a partir de cartas publicadas em jornais. Também no contexto da década 1940, mas em Portugal, Carla Ribeiro em “A educação estética da Nação e a “Campanha do Bom Gosto” de António Ferro (1940- 1949)” analisa a iniciativa cultural durante o Estado Novo e sua proposta de criar uma consciência estética entre os portugueses, assim como as marcas que essa campanha deixou na identidade do país no século XX.
Os artigos de Lorena Soler e Diogo Cunha trabalham o cotidiano e questões de sociabilidade no contexto sul-americano: em “Sociabilidad y vida cotidiana. Los rituales del festejo de amistad durante el stronismo en Paraguay”, a autora também utiliza a imprensa como caminho de análise das formas de recreação cotidianas que geravam adesões ao autoritarismo stronista, com foco na organização civil Cruzada Mundial de la Amistad, apoiada pelo regime. Já Diogo Cunha em “Sociabilidade, memórias e valores compartilhados: o cotidiano na Academia Brasileira de Letras durante a ditadura militar através da Revista da Academia Brasileira de Letras” propõe, através da análise da revista citada no título, pensar como esta instituição pode ter servido como espaço de legitimação da última ditadura em nosso país. O autor destaca a intensa sociabilidade entre os membros da ABL e representantes do regime como parte desta legitimação.
Nina Schneider também trabalha o regime brasileiro em “Propaganda ditatorial e invasão do cotidiano: a ditadura militar em perspectiva comparada”. A historiadora propõe uma reflexão sobre os impactos da propaganda governamental no cotidiano sob ditadura, assim como os limites no respeito à vida privada por parte do regime. Para a autora, diferente dos casos do varguismo e do nazismo, a última ditadura brasileira não procurou politizar e mobilizar a sociedade através da propaganda.
Os trabalhos que seguem de Marcos Napolitano e Rodrigo Patto Sá Motta têm como foco a análise da grande imprensa como ator durante a ditadura civilmilitar no Brasil. Em “A imprensa e a construção da memória do regime militar brasileiro (1965-1985)”, Napolitano parte da análise desse ator para pensar o cotidiano ditatorial. Analisando os editoriais de quatro jornais da grande mídia (O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e O Globo) no aniversário do Golpe de 1964, o autor trabalha com a hipótese de que foi a linhagem ideológica, das guinadas e revisões da memória liberal sobre o regime presente nestes editoriais, que definiu as bases da memória hegemônica de “resistência democrática” sobre o período. Já Rodrigo Motta propõe em seu trabalho “Entre a liberdade e a ordem: o jornal O Estado de São Paulo e a ditadura (1969-1973)” pensar as representações políticas divulgadas pelo citado jornal para tentar compreender suas estratégias frente à ditadura que, segundo o autor, variaram entre a adesão e a acomodação.
Retornando à Argentina em “Vida cotidiana, violencia política y represión. La Argentina de los años setenta y de la post-dictadura a partir del Archivo Marshall T. Meyer”, Sebastián Carassai parte de um arquivo pessoal para analisar as diversas experiências da sociedade do país no contexto de violência política dos anos 1970 e 1980, incluindo o pós-ditadura. Com uma interessante variedade de fontes o autor reflete sobre a partir da experiência concreta de uma comunidade judia de classe média em Buenos Aires.
No artigo que segue, Ana Maria Mauad trabalha as últimas ditaduras na América do Sul em um contexto regional, a partir da análise de imagens particulares. “Imagens que faltam, imagens que sobram: práticas visuais e cotidiano em regimes de exceção 1960-1980” vai do contexto privado das fotografias familiares e sua migração para o espaço público e propõe a discussão do papel da fotografia na elaboração da imaginação civil na contemporaneidade. Também no campo das manifestações culturais, “Entre a política e o prazer: ditadura, arte e boêmia através do filme “Garota de Ipanema” (Leon Hirszman, 1967)”, de Carlos Eduardo Pinto de Pinto, o autor usa a obra cinematográfica citada para analisar as tensões entre política e prazer no cotidiano do Rio de Janeiro no último período ditatorial, trazendo ao debate imaginários como a boemia, a arte e a despolitização na época.
Já o artigo de Cláudia Cristina da Silva Fontineles: “O cenário esportivo como arena de disputas políticas: entre a memória recitada e o apagamento de rastros” utiliza uma vasta seleção de fontes históricas para discutir que papel nas disputas entre dois grupos políticos majoritários tiveram o estádio de futebol “Albertão” e o time de futebol Tiradentes no Piauí, entre as décadas de 1970 e 1980. O artigo aponta as disputas de memórias entre as múltiplas leituras do espaço esportivo feitas por aliados como parte da euforia desenvolvimentista e por opositores pelo uso como reafirmação da presença do governo de Alberto Silva (1971-1975).
Em mais um trabalho que tem a imprensa como objeto de análise, Nataniél dal Moro utiliza o periódico Correio do Estado para abordar conflitos de classe no artigo intitulado “Conflitos entre elite e povo comum na cidade de Campo Grande (décadas de 1960-70)”. O autor destaca que as matérias produzidas pelo periódico representam um discurso próprio do mesmo, e por isso um interessante meio de análise dos conflitos cotidianos da cidade.
Finalmente, o trabalho de Gustavo Alves Alonso Ferreira: ”Os Vandrés do sertão: Música sertaneja, ufanismo e reconstruções da memória na redemocratização”, fecha a seção de artigos desse dossiê. Alonso discute a imagem de apoiadores da ditadura que carregam os artistas sertanejos. Se por um lado muitos deles de fato apoiaram a ditadura em determinado momento, como tantos outros artistas de gêneros musicais distintos, no período da redemocratização os sertanejos se engajaram no processo de transição, o que parece “esquecido” nas disputas de memória.
Essa edição conta com três resenhas. A primeira delas, feita por Maurício Santoro, intitulada “Memória familiar, identidade e ditadura”, sobre a obra A Resistência, de Julian Fuks (Companhia das Letras, 2015). Em “A casa dos horrores e seus agentes: o DOI-Codi de São Paulo e o trabalho sujo na ditadura”, Laurindo Mekie Pereira resenha o livro Na casa da vovó – Tempos da ditadura (o que vi e vivi) (Revan, 2015), de Francisco Antônio Doria. Finalmente, a obra Sinais de Fumaça na Cidade: uma sociologia da clandestinidade na luta contra a ditadura no Brasil (Lamparina, 2015), de Henri Acselrad, deu origem à resenha “O Cotidiano sob a Ditadura Civil-militar: o espaço de interação entre a militância clandestina e os habitantes do subúrbio”, de Keila Auxiliadora Carvalho.
Fechando o dossiê, duas entrevistas que trazem como tema diferentes experiências autoritárias no século XX. A primeira delas realizada por Lívia Gonçalves Magalhães com a cientista política Pilar Calveiro, argentina sobrevivente de centros clandestinos de detenção durante a última ditadura civil-militar argentina. Vivendo no México desde seu exílio em 1979, Calveiro possui diversos trabalhos que procuram entender o cotidiano autoritário tanto em ditadura como em democracia. A entrevista de Janaina Martins Cordeiro foi feita com Antonio Cazorla Sánchez, espanhol e hoje professor de História Contemporânea no Canadá. Autor de uma biografia do general espanhol Francisco Franco, Cazorla é hoje um dos maiores especialistas no período do primeiro franquismo.
Esperamos que este dossiê gere novos debates e reflexões sobre o tema, que de forma alguma se esgota nas páginas que seguem.
Boa leitura!
Notas
1. Cf. a edição francesa do livro: LÜDTKE, 1994.
2. Cf., dentre outros, AARÃO REIS, 2000; GRINBERG, 2009; ROLLEMBERG e QUADRAT, 2010; MAGALHÃES, 2014; MOTTA, 2014; ALONSO, 2015; CORDEIRO, 2015.
3. Grifos no original.
4. O termo utilizado no original em inglês é ordinary.
Referências
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ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
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BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Vol. 4.
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ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Vol. 1: Europa.
TAVARES, Maria Hermínia de Almeida; WEIZ, Luiz. Carro zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Vol. 4.
Janaina Martins Cordeiro – Professora Adjunta de História Contemporânea do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição, é Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ, 2015-2018) e autora de A ditadura em tempos de Milagre: comemorações, orgulho e consentimento (FGV, 2015) e Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil (FGV, 2009). E-mail: janainamcordeiro@gmail.com
Lívia Gonçalves Magalhães – Professora Adjunta de História do Brasil Republicano do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição e Mestra em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional de San Martín (UNSAM, Argentina). Possui Pós-Doutorado em História pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES, CAPES, 2014-2016). É autora de Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina (Lamparina, 2014) e Histórias do Futebol (APESP, 2010). E-mail: livinhagm@gmail.com
CORDEIRO, Janaina Martins; MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n. 2, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]