Museos, memoria y trauma/Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura/2023

Decía con elocuencia Walter Benjamin:

hay un cuadro de Klee que se llama Angelus Novus. En ese cuadro se representa a un ángel que parece a punto de alejarse de algo a lo que mira fijamente. Los ojos se le ven desorbitados, tiene la boca abierta y además las alas desplegadas. Pues este aspecto deberá tener el ángel de la historia. Él ha vuelto el rostro hacia el pasado. Donde ante nosotros aparece una cadena de datos, él ve una única catástrofe que amontona incansablemente ruina tras ruina y se las va arrojando a los pies. Bien le gustaría detenerse, despertar a los muertos y recomponer lo destrozado. Pero, soplando desde el Paraíso, una tempestad se enreda en sus alas, y es tan fuerte que el ángel no puede cerrarlas. Esta tempestad lo empuja incontenible hacia el futuro, al cual vuelve la espalda mientras el cúmulo de ruinas ante él va creciendo hasta el cielo. Lo que llamamos progreso es justamente esta tempestad.2 Leia Mais

Violencia estatal memorias y espacios archivo imagen y cartografía para un campo en construcción/Folia Historica del Nordeste/2022

Desde diversas tradiciones académicas y políticas se ha demostrado que la naturaleza de los distintos tipos de violencia, así como las formas del recuerdo y el olvido, e incluso los términos en que se exige (o no) justicia, son concomitantes a coyunturas y tradiciones culturales, políticas y jurídicas específicas. Este número especial se inscribe en un campo compuesto por un número creciente de contribuciones académicas, museográficas y artísticas recientes que proponen analizar el vínculo entre violencia y memoria a partir de su dimensión espacial (Salamanca, 2015; Salamanca y Colombo, 2019; Tavares, 2018; Rossetti, 2016). En la construcción de este campo de indagación, que es también un proyecto personal de investigación, se han reunido cuestiones azarosas, intuiciones, condiciones de posibilidad y la articulación afortunada de deseos, búsquedas e intereses compartidos. Leia Mais

Comemorações 2022: memória, historiografia e novas perspectivas /Revista Maracanan/2022

Caros Leitores,

Neste ano de 2022 que ora termina, registraram-se os aniversários de vários acontecimentos históricos, abrangendo o Bicentenário da Independência do Brasil, os centenários da Semana de Arte Moderna, do movimento tenentista, da fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), entre outras datas relevantes, como a entrada do Brasil na Grande Guerra, a crise dos mísseis em Cuba, o atentado nas Olimpíadas de Munique, o impeachment do presidente Fernando Collor, o massacre do Carandiru, o atual Código Civil Brasileiro, o evento Rio+20, para mencionarmos apenas alguns. Leia Mais

Memória, patrimônio cultural e processos educativos: diálogos e reflexões históricas | SÆCULUM – Revista de História | 2022

Inteligencia artificial sera usada para descobrir sitios arqueologicos ocultos Imagem Canaltech
Inteligência artificial será usada para descobrir sítios arqueológicos ocultos | Imagem: Canaltech

O patrimônio histórico-cultural caracteriza-se por suas múltiplas dimensões pedagógicas: educar pelo patrimônio, com o patrimônio, nas práticas educativas, na gestão formativa do uso público do patrimônio, nas concepções interdisciplinares e multidisciplinares, entre outras. Nesse sentido, esse dossiê dedica-se a organizar e aglutinar estudos e pesquisas sobre as interfaces entre história, patrimônio cultural e as práticas educativas na história ensinada.

São dimensões analíticas e metodológicas que apresentam o complexo enredo de narrar, lembrar, esquecer, difundir, preservar e questionar historicamente os percursos do patrimônio. Perpassam espaços educativos, caminham pelas praças, trilham ruas, adentram museus, sensibilizando-se pelas edificações de outrora, permitindo que as memórias e histórias, imiscuídas entre o material e a cultura intangível que também habita esses lugares, possam se tornar fontes históricas para/no Ensino de História. São reflexões críticas que têm diferentes basilares epistemológicos para dialogar sobre a natureza documental, imagética, oral, estética, formativa, educativa do patrimônio histórico-cultural que conforma relações de pertencimento entre os grupos e destes com as sociedades e as nações. Essa relação, sistêmica por essência, possibilita projetar meios/motivação/concepções para a educação para e com o patrimônio. Leia Mais

História, memória e práticas das periferias brasileiras, africanas e latino-americanas: cidadania, invisibilidade social e silêncio/Fronteiras- Revista de História/2022

Lá não tem moças douradas

Expostas, andam nus

Pelas quebradas teus exus

Não tem turistas

Não sai foto nas revistas Lá tem Jesus

E está de costas

(Chico Buarque) Leia Mais

Novantadue. Storia e memoria/Diacronie. Studi di Storia Contemporanea/2022

Il 30 gennaio 1993 il settimanale «Il Sabato» allega al n. 5 la videocassetta «1992. Un anno di storia». «Un almanacco video dell’anno appena trascorso», realizzato da Angela Buttiglione. La giornalista, in qualità di anchor woman del TG Uno, racconta «I fatti, i personaggi di un anno che ha cambiato il volto del nostro paese e del mondo». Il risultato è un «nastro [che] ripercorre attraverso le notizie e le immagini migliori i fatti salienti, i personaggi chiave, le vittorie e le sconfitte del 1992»[1]. Nel gennaio del 1993 l’anno passato è già Storia. Le immagini televisive generano un cortocircuito tra aspetti cognitivi ed emozioni imprimendosi nella memoria individuale e collettiva come flashbulb memories, ovvero ricordi vividi che rendono l’evento persistente, saldandolo alla propria biografia: gli individui conservano dettagliatamente e a lungo, non solo il ricordo dell’evento in sé, ma anche la circostanza in cui hanno appreso la notizia, il luogo in cui si trovavano, il momento della giornata, l’attività in corso di svolgimento, la fonte della notizia, la reazione emotiva vissuta al momento, gli altri presenti e le loro reazione emotive, e le immediate conseguenze dell’evento[2]. Questo principio ha ispirato il testo di Aaron Pettinari, Quel terribile ’92. 25 voci per raccontare l’anno che cambiò la storia. Nella quarta di copertina l’autore scrive: «Di tutti gli anni della nostra storia recente, uno di quelli che resterà per sempre impresso nella mente degli italiani è sicuramente il 1992»[3]. Così i personaggi pubblici intervistati vengono incoraggiati non solo ricostruire il momento storico ma anche a raccontare dov’erano, cosa facevano e le reazioni avute alla notizia dell’arresto di Mario Chiesa, delle esplosioni di Capaci e via D’Amelio, della svalutazione della lira e dell’avviso di garanzia a Craxi. I ricordi vengono messi in fila come foto di un album di famiglia. In tal modo il racconto del ’92 si presenta come uno shock spazio-temporale che carica la sfera pubblica di tensione emotiva e di significati simbolici: i media fissano un immaginario plausibile che, come una fotografia istantanea, deposita ricordi individuali e memoria collettiva, grazie ai continui flashback delle successive commemorazioni. Leia Mais

Teatro latino-americano contemporâneo: memória e testemunho/Literatura, História e Memória/2022

Querer ofrecer un panorama de las prácticas escénicas latinoamericanas contemporáneas o incluso, más concretamente, del teatro latinoamericano contemporáneo, es a todas luces una empresa abocada al fracaso. La amplitud y variedad de sus territorialidades culturales impide tal cometido o, en el mejor de los casos, nos llevaría al reduccionismo. Dicho esto, podemos señalar que una línea temática y escénica que el teatro latinoamericano contemporáneo frecuenta es la reflexión sobre la memoria y la historia, con inclusión en el teatro más reciente del testimonio y la consecuente liberación del concepto de representación, convirtiendo a este género artístico en un vehículo privilegiado de debate entre la cultura y la poítica y su representación. Por lo demás, la función política del teatro es reivindicada no sólo en su aspecto temático más explícito sino también en relación con el lugar que ocupa el individuo en la sociedad, el cuerpo en el espacio público, la mirada sobre el otro o la exposición a la mirada de los demás. Junto a ello, la metateatralidad, ya presente en los clásicos, cobra en la dramaturgia contemporánea una evidente preponderancia temática y escénica. Leia Mais

Festa, memória e patrimônio | Memória em Rede | 2020

O presente dossiê congregou pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, de Portugal e da Galiza, Espanha, que trabalharam com as relações entre festas, patrimônio, história e memória a partir de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, contribuindo para um número da Revista Memória em Rede que oferece um excelente aporte para os pesquisadores que se dedicam ao estudo desse tema. Antropólogos, geógrafos, historiadores, turismólogos, entre outros profissionais apresentaram trabalhos com estudos de caso que possibilitam pensar a refletir as diferentes dimensões, elementos, atividades e práticas que permeiam e compõem o universo de diferentes festividades (festas religiosas, festas populares, comemorações cívicas).

Os autores também exploraram seus objetos a partir de diferentes olhares, que estão relacionados com suas formações como pesquisadores, o que revela a importância de congregar estudos de diferentes áreas do conhecimento, pois as festas constituem um objeto de estudos interdisciplinar, que podem, e devem, ser pesquisadas levando em consideração esses diferentes olhares. Tanto uma festa religiosa, como uma festa em torno de um prato típico regional, ou mesmo uma festa popular como um carnaval, são objetos de estudo multifacetados, que devem ser entendidos a partir de sua historicidade (de suas transformações ao longo dos anos, da experiência temporal que os sujeitos envolvidos com esse atividade experimentam), de suas práticas e performances, de suas representações, de seus impactos econômicos e tensões políticas e sociais, dos imaginários gerados e da transmissão de saberes entre os participantes. Leia Mais

As várias faces dos feminismos: memória, história, acervos/Acervo/2020

Feminismo anarquista, feminismo negro, feminismo cristão, feminismo islâmico, ecofeminismo, feminismo decolonial (ou descolonial), feminismo latino-americano, feminismo imigrante… Em tempos e espaços diversos, empunhando várias bandeiras de luta, enfrentando violentas críticas e embates, perpassados por tensões teóricas e políticas fragmentadoras, os feminismos estão presentes em todos os continentes e cumprem um papel fundamental na sociedade contemporânea. Mas, para melhor compreendê-los em sua historicidade e complexidade, torna-se cada vez mais necessário refletir sobre a importância da preservação de acervos que guardam as memórias do engajamento feminino em lutas políticas fundamentais pelos direitos das mulheres, contra as discriminações e os preconceitos de gênero, contra a escravidão de africanas(os), contra o racismo e as desigualdades sociais e econômicas, pela democracia, entre muitas outras. Leia Mais

Memória e legado das resistências negras/Acervo/2020

O dossiê Memória e legado das resistências negras surge num momento em que devemos reafirmar o que demorou tanto para ser afirmado e reconhecido por boa parte das elites política, intelectual e acadêmica do país: o legado de negros e negras do Brasil não se resume a uma visão congelada e estereotipada da religião, das danças e da culinária afro-brasileira. Leia Mais

El pasado como recurso, los recursos al pasado: historia, memoria y política en espacios sociales situados en la Argentina | Cuadernos de Historia – Serie economía y sociedad | 2020

Los cinco trabajos presentes en este dossier titulado “El pasado como recurso, los recursos al pasado: historia, memoria y política en espacios sociales situados en la Argentina” pueden constituirse tanto en una demostración de los diferentes problemas e intereses que habitan, de modo plural, las indagaciones de la historia de la historiografía en la Argentina en la actualidad, como en evidencias de enfoques posibles en el devenir cada vez más dinámico y complejo de sus conceptualizaciones y avances empíricos. En distintos estudios ya se ha enunciado cómo la historia de la historiografía ha ido desenvolviendo estaciones intelectuales que incorporan renovadas preguntas y abandonan progresivamente antiguas o clásicas consideraciones sobre el objeto de predilección: la escritura de la historia y los historiadores en términos esencialistas.1 En ese decurso, por cierto no lineal ni progresivo, el espectro de objetos de investigación posibles, si bien no renuncia a dar cuenta del derrotero disciplinar de la historia en el tiempo, define mayor interés por las prácticas sociales, culturales y políticas que remiten al pasado o lo hacen suyo en la consecución de una eficacia material o simbólica.

En lo que respecta a la Argentina, particular interés han despertado las indagaciones que intentan recobrar las posibilidades, densidades y comportamientos de las dinámicas de las historiografías locales, provinciales y regionales.2 Este cauce insinuado por los recientes estudios, obedece en buena medida a la necesidad de documentar y brindar alternativas interpretativas a la evidente centralidad historiográfica ejercida por Buenos Aires, en tanto nodo central y hegemónico de las políticas de la historia, en una larga duración que puede ubicarse desde mediados del siglo XIX hasta la actualidad. Así, distintos historiadores en, por lo menos, los últimos veinticinco años, han venido ofreciendo un conjunto de investigaciones capaces de habilitar miradas cada vez más complejas y dialógicas acerca de la manera en que se fueron delineando espacios, escrituras, agencias y conflictividades en torno a la fragua de la memoria, la historiografía y las representaciones del pasado en diferentes espacios de la Nación imaginada desde las provincias y de muy variadas maneras.3 En esos fragmentos que la historia social de la historia viene a dotar de sentido intelectual, deconstructivo y crítico, se juegan las racionalidades de comunidades, instituciones y sujetos portadores de memorias a proyectar colectivamente en el devenir de la modernidad periférica y ante el imperativo del progreso y el ordenamiento social en cada uno de los espacios estudiados. Leia Mais

Memória, ética e reparação | PerCursos | 2019

Verdadeira obsessão nas décadas finais do século XX, o tema da memória tem ocupado diferentes campos disciplinares e gerou expressões cuja circulação se deu nos mais variados estudos, tais como “cultura da memória”, “batalhas de memória”, “dever de memória” e “lugares de memória”. Grosso modo, o debate tem se concentrado, de um lado, na memória articulada a ações de mercantilização de representações sobre o passado (como em revivals e guinadas “retrô” que tomaram a indústria da moda e do entretenimento). De outro, rapidamente derivou para demandas por reparação que, ao viés estritamente político, agregaram o jurídico, resultando, inclusive, nas chamadas leis memoriais, que tentaram estabelecer se e como determinados momentos e processos históricos deveriam ser narrados. Afirmou-se, com isso, que o passado continuava vivo no presente, embora memórias difíceis sobre tempos e episódios sombrios por muito tempo ficassem ocultadas, recalcadas. Vindas à tona, em um esforço doloroso de continuada exposição e reexposição dos traumas vividos, buscaram − e ainda buscam − não somente o reconhecimento de crimes perpetrados contra determinados grupos como a punição dos responsáveis. No horizonte, a recomposição das relações sociais por meio de uma nova ordem ética, pós-traumas. Leia Mais

História oral e memória na construção das narrativas sobre as representações político-culturais do Brasil atual | Faces da História | 2019

Este número de Faces da História traz o dossiê História oral e memória na construção das narrativas sobre as representações político-culturais do Brasil atual que se propõe refletir sobre assuntos que estejam amparados nessas representações memoriais resultantes da produção direta, a partir do diálogo entre entrevistador e entrevistado e de fontes que contemplam outros suportes. Em decorrência da natureza dessas fontes, as pesquisas baseadas em tais registros são inseridas no campo da história do tempo presente e estruturam-se em dimensões transnacionais (TREBITSCH, 1994; MORAES, 2002; ALBERTI, 2005), tornando-se sustentáculos do debate especializado do ponto de vista teórico e historiográfico e de definição dos protocolos de pesquisa e reflexões desse campo (JOUTARD, 2000).

Certamente, qualquer fonte traz suas peculiaridades e dificuldades que sinalizam desafios ao processo de execução para se chegar ao conhecimento sobre o passado, mesmo que esteja subordinado às visões de mundo do pesquisador do presente. As narrativas orais, entretanto, foram e são percebidas prenhe de significados e paixões decorrentes dos envolvimentos dos protagonistas nas querelas, compromissos e inserções dos embates conjunturais que modulam suas vivências. Nesse sentido, foram e continuam sendo recorrentemente arguidas por evidenciarem subjetividades que inicialmente estiveram definidas como empecilho para chegar ao conhecimento sobre os fenômenos submetidos, unicamente, aos relatos desses narradores. Segundo os seus arguidores, por serem fontes inscritas em passado recente, não permitem aos atores envolvidos (entrevistador/entrevistado) certo distanciamento para lidar com esses registros de testemunhas oculares que trazem as marcas de suas implicações nas querelas de seu tempo. Leia Mais

As cidades entre a memória, o imaginário e o patrimônio | Revista Latino-Americana de História | 2019

Ítalo Calvino (1990), em sua obra “As cidades invisíveis”, demonstra, a partir da literatura, como as cidades relacionam-se com variadas dimensões da experiência humana – a memória, o desejo, os símbolos, as trocas, os sonhos… todas essas representações podem descrevê-las, ou desvendar as múltiplas faces de uma mesma cidade. Cada urbe descrita revela uma vivência possível dentro de um universo de possibilidades que as mais diferentes e variadas cidades oferecem aos seus moradores.

Ao propor um dossiê envolvendo cidade, memória, imaginário e patrimônio, uma vasta gama de possibilidades foi aberta aos pesquisadores. Alternando temas, fontes, problemas, metodologias e abordagens, diversos artigos foram submetidos a Revista Latino-Americana de História. No entanto, todas as pesquisas apresentam a cidade como foco de análise e objeto de reflexão por parte dos autores. Leia Mais

História oral e memória na construção das narrativas sobre as representações político-culturais do Brasil atual / Faces da História / 2019

Este número de Faces da História traz o dossiê História oral e memória na construção das narrativas sobre as representações político-culturais do Brasil atual que se propõe refletir sobre assuntos que estejam amparados nessas representações memoriais resultantes da produção direta, a partir do diálogo entre entrevistador e entrevistado e de fontes que contemplam outros suportes. Em decorrência da natureza dessas fontes, as pesquisas baseadas em tais registros são inseridas no campo da história do tempo presente e estruturam-se em dimensões transnacionais (TREBITSCH, 1994; MORAES, 2002; ALBERTI, 2005), tornando-se sustentáculos do debate especializado do ponto de vista teórico e historiográfico e de definição dos protocolos de pesquisa e reflexões desse campo (JOUTARD, 2000).

Certamente, qualquer fonte traz suas peculiaridades e dificuldades que sinalizam desafios ao processo de execução para se chegar ao conhecimento sobre o passado, mesmo que esteja subordinado às visões de mundo do pesquisador do presente. As narrativas orais, entretanto, foram e são percebidas prenhe de significados e paixões decorrentes dos envolvimentos dos protagonistas nas querelas, compromissos e inserções dos embates conjunturais que modulam suas vivências. Nesse sentido, foram e continuam sendo recorrentemente arguidas por evidenciarem subjetividades que inicialmente estiveram definidas como empecilho para chegar ao conhecimento sobre os fenômenos submetidos, unicamente, aos relatos desses narradores. Segundo os seus arguidores, por serem fontes inscritas em passado recente, não permitem aos atores envolvidos (entrevistador / entrevistado) certo distanciamento para lidar com esses registros de testemunhas oculares que trazem as marcas de suas implicações nas querelas de seu tempo.

As discussões avançam no sentido de reconhecer a diversidade de narrativas e a formulação de outras para o mesmo evento, que esgarça a perspectiva da narrativa certa, em contraposição ao discurso errado sobre o acontecido. Portelli alerta à “atitude do narrador em relação a eventos, à subjetividade, à imaginação e ao desejo, que cada indivíduo investe em sua relação com a história” (PORTELLI, 1993, p. 41) que pode não incidir na realidade, mas na possibilidade. Ou seja, a representação de um “presente alternativo, uma espécie de universo paralelo no qual se cogita sobre um desdobramento de um evento histórico que não se efetuou” (PORTELLI, 1993, p. 50) que, na análise do autor, é característico da “narrativa ucrônica” que se inscreve em paradigma maior: a grande narrativa literária do inconformismo.

Isso não significa desconsiderar os lapsos, esquecimentos, omissões e reelaborações presentes nessas narrativas. Afirma-se sua importância para esclarecer não apenas ausências de informações e envolvimentos dos próprios narradores nos acontecimentos tratados, mas também o universo de valores e visões de mundo atinentes aos protagonistas em tela. E, ainda, ficar atenta para perceber aquelas memórias que foram soterradas ou silenciadas, como observou Michel Pollak (1989). O não-dito não significa o esquecimento, mas sim estratégias de sobrevivência diante de situações embaraçosas e sem solução, como a convivência com o inimigo de ontem.

No âmbito dessa trajetória, passa-se à arguição sobre a problemática da verdade, assunto de acalorado debate, chegando-se à formulação de sua ilusão por uns (BOURDIEU, 1998), ou à “produção de verdade”, para outros teóricos, como Beatriz Sarlo. A autora analisa a “transformação do testemunho em um ícone da verdade ou no recurso mais importante para a reconstrução do passado” (SARLO, 2007, p. 19), tecendo pesadas críticas a certos reducionismos de uso do relato oral, a partir de referencial que trata de situação-limite como o holocausto, para eventos corriqueiros.

Independentemente da complexidade teórica que envolve esse campo, o convite aos autores / autoras foi bem sucedido pela presença marcante de textos alusivos ao temário desse dossiê. Resultaram do processo avaliativo textos que foram estruturados em eixos temáticos, mesmo considerando as abordagens teóricas plurais, fruto das opções feitas pelos autores para suas análises sobre os assuntos pesquisados.

O primeiro deles agrega quatro artigos, sendo três que abordam aspectos da memória dos afrodescendentes e cultura africana, e que consistem, primeiramente, na abordagem dos autores Debora Linhares da Silva e José Maia Bezerra Neto sobre os processos de alforria que ocorreram na cidade de Belém / PA entre os anos de 1850 a 1880, estabelecendo um diálogo com as obras dos literatos Aluísio de Azevedo e Henry Walter Bates; na sequência, tem-se o trabalho de Leonam Maxney Carvalho que versa sobre a reconstrução das identidades dos quilombolas na localidade de Santa Efigênia, no município de Mariana / MG; ademais, o artigo de Mônica Pessoa que apresenta as tradições orais africanas como fonte de pesquisa interdisciplinar na busca da apreensão das vozes africanas e a potência de sua cultura oral; e fechando este bloco temático, o texto de Fábio do Espírito Santo Martins aborda a questão indígena no processo de luta que reivindica a demarcação da Terra Indígena (TI) Tekoá Mirim, localizada no litoral do Estado de São Paulo, e utiliza as tradições baseadas na cosmologia juntamente com o estabelecimento de uma práxis cotidiana indígena na luta pela demarcação territorial. Estes textos situam-se em tempos distintos na história do país e da África.

A segunda linha temática, composta de seis textos, apresenta discussões a respeito do patrimônio cultural material e imaterial brasileiro. O primeiro artigo, de Lourenço Resende da Costa e Jair Antunes, trabalha a questão da utilização da oralidade para os descendentes ucranianos brasileiros que vivem no município de Prudentópolis / PR, apresentando a importância do trabalho realizado pela Igreja Ucraniana juntamente com as escolas do município neste esforço de preservação identitária. O trabalho seguinte, de Priscila Onório Figueira, analisa as consequências do desastre ambiental provocado pela explosão do navio chileno Vicuña, no ano de 2004, cotejando as diferentes memórias e conflitos que a comunidade litorânea de Amparo, localizada na baía de Paranaguá / PR desenvolvem sobre esta trágica ocorrência.

O próximo artigo, de Mariana Schlickmann, concatena os relatos de oito moradores do bairro da Barra, localizado na cidade de Balneário Camboriú / SC, destacando as memórias sobre a atividade pesqueira, sufocada pela crescente especulação imobiliária, enfatizando as crescentes tensões entre os moradores sobre os bens culturais materiais e imateriais daquela localidade. A memória dos trabalhadores que transportam mercadorias e materiais de construção utilizando-se das carroças de tração animal na cidade de Montes Claros / MG é o enfoque do próximo texto, de Pedro Jardel Fonseca Pereira, que vincula estas memórias ao desenvolvimento histórico do município bem como ao processo de crescimento urbano e à inserção dos carroceiros nesta relação dinâmica.

Ainda nessa matriz temática, dois textos abordam a memória escolar: o primeiro deles, de Anne Caroline Peixer Abreu Neves, trata das memórias das alunas da Escola Pública Itoupava Norte, localizada em Blumenau / SC, que relatam suas percepções, adquiridas entre os anos de 1943 a 1950, em relação às experiências educacionais vivenciadas no período. Essas narradoras rememoram fragmentos da campanha de nacionalização do ensino e a exigência da língua vernácula e dos símbolos nacionais brasileiros impostos aos imigrantes e seus descendentes durante o período do Governo Vargas. O segundo trabalho, de Francine Suélen Assis Leite e Jairo Luis Fleck Falcão, expõe o processo de colonização do município de Juara / MT pelo depoimento de um professor aposentado, da disciplina de matemática, que relata o cotidiano escolar na jovem cidade mato-grossense que surgiu por meio do processo colonizador de expansão das fronteiras agrícolas.

Os últimos textos desse dossiê têm suas peculiaridades: o artigo de Filipe Arnaldo Cezarinho, embora se insira no debate sobre o patrimônio imaterial, apresenta questões de cunho metodológico no trato das fontes documentais orais e digitais e, em decorrência, foi agrupado no último eixo temático que traz questões metodológicas atinentes ao campo. O autor trata, por exemplo, da memória sobre a Guerra de Espadas que acontece em Cruz das Almas / BA, fortemente arraigada na tradição popular. A pesquisa analisa o discurso popular em contraposição ao presente processo de criminalização da manifestação cultural, onde estas fontes se constituem em desafio para os historiadores contemporâneos.

Aspecto assemelhado de disputa pela memória, sob outro viés, aparece no artigo Amerino Raposo e a Polícia Federal, de Priscila Brandão, que discute a trajetória dessa Instituição criada na década de 1960 e as disputas em torno do “ato fundador” recorrentemente acionado por grupos internos em disputa. A ala dos “novos” tenta descolar-se do envolvimento com as mazelas e da violência praticada pela ditadura militar contra seus opositores. A solução encontrada foi transferir a origem dessa Instituição para outra congênere, criada nos anos 1940 por Getúlio Vargas, que não tinha, de fato, esse papel federativo da PF criada na década de 1960 com os militares no poder. As disputas envolvem, além de outras questões, a recusa do legado recente sobre o envolvimento direto de alguns integrantes da Polícia Federal em atos de tortura e morte de opositores ao regime militar.

Por fim, o artigo sobre Paulo Emílio Sales Gomes, de Rafael Morato Zanatto, traz a contribuição do intelectual brasileiro na formação dos estudos históricos do cinema brasileiro e também suas contribuições para a História Oral pátria. O texto desvenda elementos significativos da trajetória em defesa da preservação desse passado, mostrando as preocupações de Paulo Emílio na prospecção de fontes variadas. A orientação na definição de roteiros parte da busca de informações diversificadas, com o objetivo de abordar os elementos que propiciam os passos dos cineastas, atores, cinegrafistas, fotógrafos, entre outros.

Mas, para o presente dossiê, sua importância assume papel estratégico por trazer a trajetória de formulação de procedimentos metodológicos para a consecução dos depoimentos orais, antecipando-se ao percurso posterior desse campo, ao trazer a relevância de seu uso, dúvidas e questões relativas à parcialidade, lacunas e produção de verdade desses depoimentos. Delineia todos os passos da pesquisa, desde o roteiro aos cuidados na abordagem do entrevistado, sua autorização para publicação, chamando a atenção para a necessidade de ouvir diferentes protagonistas sobre o mesmo assunto para sair das armadilhas do relato, mas ainda inscrito numa perspectiva de busca de informações corretas para, no caso, recuperar os primórdios da história do cinema brasileiro.

Para concluirmos esta Apresentação, queríamos registrar o reconhecimento dos desafios enfrentados por qualquer pesquisador do tempo presente para cumprir os protocolos do campo, cuja singularidade está marcada pelo diálogo (dúvidas e possíveis tensões) com os protagonistas de seu objeto de investigação.

Caros leitores / as, esperamos que gostem dos assuntos abordados nesse dossiê. Desejamos boa leitura e parabéns aos autores.

Assis, junho de 2019.

Referências

ALBERTI, Verena. Fontes Orais. Histórias dentro da História. In: Pinsky, Carla Bassanezi. Fontes Orais. São Paulo: Contexto. 2005, p. 155-202.

BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. de M. & AMADO, J. Usos e abusos da História Oral. 2a ed. RJ: FGV, 1998.

JOUTARD, Philippe. Desafios da história oral do século XXI. In: FERREIRA, Marieta; FERNANDES, Tânia Maria e ALBERTI, Verena. (Orgs.) História Oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

MORAES, Marieta Ferreira de. História, tempo presente e história oral. Topoi, Rio de Janeiro, dezembro 2002, p. 314-332.

PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrônicos. Memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. Projeto História, n. 10, dez / 1993, p. 41-58.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, vol. 2, 1989.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução: Rosa Freire d’Aguiar. Belo Horizonte: Companhia das Letras; UFMG, 2007.

TREBITSCH, Michel. A função epistemológica e ideológica da História oral no discurso da história contemporânea. In: MORAES, Marieta Ferreira (Org.). História Oral e multiplicinaridade. Rio de Janeiro: Diadorin / Finep / FGV, 1994.

Zélia Lopes da Silva – Professora Doutora (Unesp / Assis)

José Augusto Alves Netto – Professor Mestre (Unespar / Paranavaí), doutorando em História (Unesp / Assis)


SILVA, Zélia Lopes da; ALVES NETTO, José Augusto. Apresentação. Faces da História, Assis, v.6, n.1, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Direitos Humanos, História e Memória (1968-2018) / Estudos Ibero-Americanos / 2019

Este primeiro número de 2019 traz o dossiê “Direitos Humanos, Memória e História (1968-2018)”, organizado pelos professores Bruno Groppo (Centre d’Histoire Sociale du XXe Siécle Université Paris I, França) e Tatyana de Amaral Maia (PUCRS). Os materiais nele reunidos revelam a multiplicidade de temas referentes aos direitos humanos e, sobretudo, a sua importância para o exercício da cidadania em regimes democráticos. A própria ideia de direitos humanos surge em associação à compreensão da democracia como regime que garante ao indivíduo plena participação na vida política, reconhecendo o pluralismo de ideias e os direitos de associação e de organização. O dossiê é composto por nove artigos e uma entrevista. Este número também publica na sua Seção Livre três artigos e duas resenhas. Todos os artigos foram submetidos à avaliação no sistema duplo cego.

Os artigos publicados no dossiê trazem as recentes experiências de violação aos direitos humanos, especialmente, durante as ditaduras do Cone Sul, além de discutir as formas com que os Estados democráticos têm lidado com esse passado sensível. Não obstante, também propõem uma reflexão crítica sobre os limites desses mesmos Estados em garantir plenamente o cumprimento dos direitos humanos, tal como definido em suas respectivas Constituições.

A emergência dos regimes democráticos no Cone Sul, a partir dos anos de 1980, não garantiu automaticamente a adoção de uma agenda política voltada para os direitos humanos. Ao contrário, tais países ainda são marcados por graves violações de direitos humanos. A democracia e os direitos subjacentes a ela dependem de uma contínua ação política. Afinal, como propõe Lyan Hunt,

Os direitos humanos só se tornam significativos quando ganham conteúdo político. Não são os direitos de humanos num estado de natureza: são os direitos de humanos em sociedade. Não são apenas direitos humanos em oposição aos direitos divinos, ou direitos humanos em oposição aos direitos animais: são os direitos de humanos vis-à-vis uns aos outros. São, portanto, direitos garantidos no mundo político secular (mesmo que sejam chamados “sagrados”), e são direitos que requerem uma participação ativa daqueles que os detêm (HUNT, 2009, p. 19).

O artigo que abre o dossiê, “Más allá de organizaciones históricas, las figuras emblemáticas y las prácticas reconocidas. Elementos para repensar al movimiento de derechos humanos en la Argentina”, de Emílio Crenzel, traz uma instigante e inédita questão ao debate acerca dos direitos humanos na Argentina, qual seja, a ação de múltiplos atores na construção de uma cultura política de defesa de direitos humanos no país pós-redemocratização. Crenzel demonstra como é fundamental considerarmos o papel dos pequenos grupos organizados, das associações de bairro e dos sindicatos na conformação de uma ação política em busca de justiça e memória acerca das graves violações de direitos humanos cometidas pela última ditadura argentina (1976-1983). A ampla rede que se formou em busca de informações sobre os desaparecimentos forçados também exigiu a punição dos responsáveis pelas violações cometidas, fomentando o engajamento de vários segmentos da sociedade em torno dos direitos humanos. Neste sentido, a construção de uma cultura política positiva em defesa dos direitos humanos dependeu sobremaneira do papel ativo da sociedade organizada em prol desses direitos.

Em seguida, “Uma história social da expertise em direitos humanos: trajetórias transnacionais dos profissionais do direito na Argentina”, de Virgínia Vecchioli, demonstra a importância das redes transnacionais na consolidação de uma expertise acerca dos direitos humanos, que envolveu a intensa participação de advogados e agentes do Estado na configuração de um campo jurídico dedicado ao tema, tornando-se referência nas ações de Justiça de Transição de vários outros países. A ação engajada de advogados e movimentos de direitos humanos promoveu o desenvolvimento de um conhecimento específico sobre o tema, tornando-se fundamentais para a consolidação da cultural política em defesa dos direitos humanos, tal como se observa hoje na Argentina.

O terceiro artigo, “História de violações dos direitos humanos na era Pinochet: sequestros, desaparecimentos forçados e autoritarismo”, das autoras Anna Flavia Arruda Lanna Barreto e Natália Silva Teixeira Rodrigues de Oliveira, analisa o caso de desaparecimento de mulheres e crianças durante a ditadura de Pinochet, no Chile, a partir de dois acervos: o Fundo Clamor e o Arquivos do Terror. A partir desses acervos, as autoras demonstram a participação do Brasil em casos de violação dos direitos humanos praticados pelo regime ditatorial chileno, assim como reforçam as pesquisas sobre as conexões repressivas existentes entre os países do Cone Sul.

O quarto artigo, “Defensa de DDHH en Chile en el contexto transnacional del movimiento de defensa de los derechos humanos, 1973-1990”, de Nancy Nicholls, propõe compreender a construção de uma cultura de direitos humanos alicerçada nas redes de defesa das vítimas do regime Pinochet criada logo após o golpe que destituiu o governo de Allende e que estabeleceu diversas estratégias de ação para proteger as vítimas da ditadura chilena. Tais redes atravessaram as fronteiras nacionais e se constituíram através de um aprendizado prático sobre como atuar diante das ações repressivas empreendidas pelo governo de Pinochet. Para Nicholls, essas redes forjaram um legado para as novas gerações sobre como se organizarem e a relevância das conexões internacionais, tornando-se um importante elemento na configuração de uma cultura de direitos humanos no Chile.

O quinto artigo, “No capítulo dos direitos humanos: Direito, Política e História na Coluna do Castelo (1969- 1973)”, de Lúcia Grinberg, se propõe a investigar a atuação engajada do jornalista Carlos Castello Branco na denúncia de violações de direitos humanos cometidas pelo regime ditatorial brasileiro entre os anos de 1969 e 1973. A autora demonstra as estratégias do jornalista através da análise da sua coluna no Jornal do Brasil, sugerindo que o tema dos direitos humanos atravessava diversas matrizes políticas, favorecendo a construção de laços de solidariedade entre jornalistas, intelectuais e políticos com diferentes posicionamentos ideológicos, porém, engajados na resistência à ditadura.

O sexto artigo, “A democracia em questão: com a fala, as mulheres militantes de esquerda durante a ditadura militar nos anos de 1964 a 1985”, de autoria de Mateus Gamba Torres e Eloísa Pereira Barroso, busca através da história oral compreender o papel das mulheres na resistência à ditadura civilmilitar brasileira, considerando às questões de gênero referentes ao engajamento feminino na luta armada. Os autores têm o cuidado de analisar a ressignificação da participação dessas mulheres na militância ao longo do tempo, investigando como a construção das memórias acerca dessa participação também responde às demandas do tempo presente sobre o passado vivido.

O sétimo artigo, de Caroline Bauer, “Presenças da ditadura e esperanças na Constituição: as demandas da população sobre a prática da tortura”, busca compreender através do projeto “Diga Gente”, como a população, às vésperas da votação da Constituição de 1988, se posicionou diante da tortura. O artigo estabelece, portanto, um diálogo, com a experiência trazida por Crenzel. Se Crenzel demonstra o papel fundamental de diversos grupos na construção de uma cultura política em torno dos direitos humanos através da busca por justiça e pelo direito à memória, Bauer, por sua vez, analisa como no Brasil, a construção da cidadania através da participação popular ocorreu a partir de visões múltiplas sobre o tema. Neste sentido, ao dar voz a esses anônimos, Bauer demonstra a existência de narrativas concorrentes acerca de como lidar com os legados do regime autoritário.

Os dois últimos artigos tratam de temas recentes e de violações de direitos humanos cometidos durante o regime democrático brasileiro. Em “Percepções sobre a violência no processo de estruturação do MST no Nordeste brasileiro (1985-1995)”, Rose Elke Debiasi se dedica ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no período imediato à redemocratização no Nordeste, considerando as especificidades que marcam aquela região. A presença de lideranças sulistas do MST no Nordeste, na tentativa de manter a organicidade do movimento, foi marcado pela inexperiência dos primeiros imigrantes que passaram a conviver com regras de funcionamento distintas das experimentadas no Sul. Para a autora, a violência estrutural que marca a vida campesina no Nordeste, onde a presença de pistoleiros e jagunços faz parte do cotidiano do camponês, amplia os desafios de organização de um movimento social no campo.

O nono e último artigo deste dossiê, retrata um caso recente de violência política que chocou o País e mobilizou diversos organismos de direitos humanos nacionais e internacionais: o assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018, que foi amplamente coberto pela imprensa nacional e estrangeira. Em “O corpo que se manifesta na imagem”, Dúnya Pinto Azevedo propõe analisar as imagens produzidas pela imprensa alternativa, através da análise das fotografias produzidas pela Mídia Ninja, que circularam amplamente pela internet. As imagens retratam os protestos ocorridos contra o assassinato da vereadora e que exigiam a identificação dos responsáveis pelo crime e a promoção da justiça. O caso, que até o início deste ano de 2019 continua sem solução, se tornou paradigmático da permanência da impunidade e das violações de direitos humanos que ocorrem diariamente no Brasil.

Para finalizar o dossiê, publicamos a entrevista realizada com o professor Carlos Artur Gallo sobre o seu livro recém-publicado: Um acerto de contas com o passado: crimes da ditadura, leis de impunidade e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina.

Ainda incluímos neste número, três artigos na Seção Livre e duas resenhas. O primeiro da Seção Livre, “La Calidad de la democracia em Honduras, 2014-2018: sistema político, sociedade civil e instituições em perspectiva”, de Carlos Federico Ávila e Carlos Ugo Joo, é dedicado à análise da qualidade do regime democrático, compreendendo as crises políticas recentes e as limitações da democracia hondurenha, incluindo os desgastes no campo político que levam o descrédito da população acerca das formas de exercício da democracia representativa.

O segundo artigo, “¿Pertenece a Chile?”. Civilización y desierto, rentismo y subordinación: la formación del território nacional em el extremo sur del Perú (Tarapacá, 1827-1877)” de Luis Castro Castro e Inmaculada Simón Ruiz, dedicado à construção do território nacional e as múltiplas ações e estratégias na conquista e colonização do extremo Sul do país. A integração do território nacional peruano, conforme propõe os autores, foi realização de forma assimétrica, estabelecendo uma relação de subordinação da região ao governo Central.

O último artigo publicado neste número é “Administração de diretórios partidários e ação política de elites provinciais no Brasil do Segundo Reinado: a implantação do Centro Liberal e suas implicações no funcionamento do Partido Liberal na Província do Paraná (1868-1889)”, de Sandro Gomes, que propõe analisar as relações entre o Partido Liberal na província do Paraná e o diretório nacional, revelando a manutenção da sua relativa autonomia frente ao diretório nacional.

Ao final do número, duas resenhas fecham a edição. A primeira, de Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, sobre o livro de Jorge Nállim dedicado ao antiperonismo. E a segunda, de Cláudia Castello, sobre o recente livro publicado por Alexandre Valentim acerca da crise do Império português.

Tal como já é usual na revista, reunimos pesquisadores de diferentes IES nacionais e estrangeiras no intuito de divulgar pesquisas inéditas e de elevado nível acadêmico acerca do mundo ibero-americano. Esperamos que tais artigos contribuam com os diversos campos das Ciências Humanas dedicados à IberoAmérica e instiguem novas pesquisas.

Referência

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos. Uma História. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Tatyana de Amaral Maia – Editora da Revista Estudos Ibero-Americanos. Professora da Escola de Humanidades e do PPGH / PUCRS. Pós-Doutorado em História pela Universidade do Porto. Doutorado em História / UERJ. E-mail: tatyana.maia@pucrs.br  https: / / orcid.org / 0000-0002-1558-2192

Luciana Murari – Editora executiva da Revista Estudos Ibero-Americanos. Professora da Escola de Humanidades e do PPGH / PUCRS. Pós-Doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutorado em História Social USP, 2002. E-mail: luciana.murari@pucrs.br  https: / / orcid.org / 0000-0003-1517-1016


MAIA, Tatyana de Amaral; MURARI, Luciana. Editorial. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 1, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Paisagem e memória entre Celtas e Germanos / Brathair / 2019

Paisagem e Natureza são temas que se tornaram largamente difundidos nas pesquisas em História, Arqueologia, Letras e Arte, sobretudo nos últimos vinte anos. Deixando de ser entendida apenas como um mero cenário ou “pano de fundo” para a existência humana, a paisagem passou ser entendida como construto cultural e arena central da vida social. Hoje, entendemos que paisagem é mais do que a “Natureza” ou “o mundo lá fora” em oposição à cultura e ao nosso ambiente construído. Sabemos que a paisagem é produto da interação entre seres humanos e ambientes, ou seja, é construída pela prática e experiência de comunidades e indivíduos (cf. Ingold 1993, 1996, 1998). Os atuais estudos da paisagem estão aliados ao que costumamos designar como “nova virada espacial” (cf. Bodenhamer 2010), que trazem a reflexão sobre o espaço para o centro de análise, visando compreender os processos não apenas de construção, mas igualmente de alteração da paisagem pelas formas de sociabilidade, práticas cotidianas e pela historicidade da vivência local e regional. São pesquisas que buscam, portanto, entender as articulações entre paisagens imaginadas (suas concepções, imagens e representações) e paisagens vividas (sua morfologia, ambiente construído e formas de monumentalização). É na interação dessas experiências do espaço e da paisagem que temos os usos diferenciados e processos de apropriação, que tanto nos têm interessado.

Nesse dossiê da revista Brathair, trazemos ao público brasileiro algumas dessas discussões atuais sobre os temas de paisagem e natureza aplicadas ao estudo das sociedades celtas e germânicas a partir da cultura material, dos registros históricos, assim como dos mitos e lendas dessas sociedades. Para elas, a relação entre os indivíduos e ambiente destaca-se não só como um modo de vida, uma preocupação e compreensão com a terra e o meio-ambiente em si, como largamente têm mostrado os pesquisadores de correntes ambientalistas, mas também, e sobretudo, na produção e alteração de paisagens mentais e materiais.

Aqui, esses debates estão organizados a partir de três eixos temáticos, a saber: 1) Paisagens e visões literárias; 2) Território, Etnogênese e Mitos de Origem; e 3) Construindo paisagens materiais.

No primeiro eixo, abrimos essa edição com o texto do saudoso docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ciro Flammarion Cardoso† (1942-2013), que traz uma brilhante contribuição para a percepção da relação entre paisagem e religião. Nesse artigo, o autor analisa aspectos da religião nórdica na Islândia através de livros de assentamentos (Landnamabók) em suas diferentes versões e em algumas sagas, incluindo aquela que se refere a Olaf Tryggvason (contida no Heimskringla de Snorri Sturluson), abordando a relação da paisagem com as divindades locais. Fruto de sua conferência de encerramento no V Simpósio Nacional e IV Internacional de Estudos Celtas e Germânicos, ocorrido no ano de 2012, essa foi uma de suas últimas participações em eventos e agradecemos à sua família a gentileza de nos permitir a publicação desse trabalho.

Também avançando nas reflexões sobre religião e paisagem, Elva Johston, professora do University College de Dublin (UCD), analisa as relações entre paisagem, História e Literatura na obra Navigatio Sancti Brendanni Abbatis (A Viagem de São Brandão). A narrativa é um conto de viagem, abordando um percurso imaginário de uma personagem real, São Brandão, abade de Clonfert no século VI, que, de acordo com a narrativa mítica do século X teria chegado até o Paraíso Terrestre. O santo neste relato vai e volta ao mesmo ponto de partida. A autora analisa a relação da narrativa com diversos tipos de paisagem – reais, monásticas, liminares, entre outras, além de vincular esta viagem com o conceito de peregrinatio.

Seguindo em linha semelhante, mas atentando para paisagens imaginadas, Adriana Zierer, professora da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), analisa os espaços míticos cristãos, relacionados ao Inferno e Paraíso e à paisagem numa obra composta por um monge irlandês chamado Marcus, intitulada Visio Tnugdali, bem como a sua circulação no período medieval. A obra destaca a passagem de um cavaleiro pecador, após a sua morte aparente, inicialmente por lugares infernais, onde sofre por seus pecados e depois por espaços paradisíacos, com o objetivo de levar ao arrependimento e à salvação. Destaca ainda o papel dos monges nas construções de paisagens imaginárias acerca do Além Medieval e a figura de heróis irlandeses míticos, como Fergus e Connal, diabolizados no relato, guardando a imensa mandíbula de um monstro (Boca do Inferno).

Já do ponto de vista da Geografia Humanista Cultural aplicada à literatura contemporânea, Márcia Manir Feitosa, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), analisa sob o romance Um deus passeando pela brisa da tarde (1994), de Mário Carvalho. Este, considerado uma obra-prima do autor, transporta o leitor da Contemporaneidade para paisagens da Antiguidade Clássica, na Antiga Lusitânia do século II a.C. A narrativa discute os conflitos do protagonista Lúcio com o declínio dos valores da Roma Antiga e a ascensão da cultura cristã. Aqui, a autora analisa a paisagem aliada às concepções do personagem-narrador sob a ótica dos estudos literários.

No segundo eixo, Território, Etnogênese e Mitos de Origem, Vinícius C. D. Araujo, da Universidade Federal de Montes Claros (UNIMONTES), discute o mito de origem (origo gente) dos saxônios no livro 1 da Res gestae Saxonicae escrita pelo monge Widukind de Corvey (967- 74), buscando estabelecer as origens nobres deste grupo e o seu papel na ocupação das terras com o objetivo de legitimar inicialmente os saxônios, bem como, suas conexões com a dinastia Otônida e a legitimação da da monarquia imperial germânica em períodos subsequentes.

Já Elton Medeiros, docente do Centro Universitário Sumaré (SP), analisa a origem dos saxões na obra Historia Ecclesiastica da Gentis Anglorum, de Beda. Esta obra produzida no século VIII foi retomada por Alfredo, o Grande, em fins do século IX, o qual, na sua luta por afirmação contra os escandinavos e fortalecimento do território de Wessex, buscou inspiração espiritual em mitos de origem. Inspirado nas obras de Beda e em outras, defendia que os saxões eram descendentes dos hebreus e os reis do passado germânico estavam associados a uma linhagem sagrada.

Em contraste, João Lupi, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), traz uma abordagem do ponto de vista da Ciência da Religião para o estudo da mística e do misticismo na Renânia medieval. Para o autor, o idealismo germânico não apenas se fundamenta em embates contra a hierarquia eclesiástica, mas também em uma nova concepção da Divindade.

No último eixo, abordando a construção de paisagens a partir da cultura material, Maria Isabel D’Agostino Fleming e Silvana Trombetta, ambas vinculadas ao Laboratório de Arqueologia Romano-Provincial (LARP) do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP) vêm pensar o caso da Península Ibérica. Enquanto, Fleming (fundadora do LARP) faz um balanço do debate peninsular e de suas implicações para a construção do “céltico”, Trombetta empreende uma análise dos enterramentos entre celtas e celtiberos, analisando a inscrição da memória na paisagem a partir das práticas funerárias.

Para além do dossiê, essa edição conta ainda com dois artigos livres, da autoria de Maria Izabel Oliveira (UFMA) sobre o pensamento do jesuíta Antônio Vieira sobre a escravidão no Brasil e de Carlos Silva (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), acerca do substrato celta nas línguas hispânicas. Para auxiliar os pesquisadores iniciantes e experientes a edição conta com duas traduções de documentos textuais, Tiago Quintana, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresenta a tradução de A Vingança de Amlet, registrada por escrito no século XIII, mas fruto da tradição oral dos povos nórdicos, provável ancestral de Hamlet, de Shakespeare, enquanto Cristiano Couto, doutor em História pela UFRGS, apresenta uma parte da tradução de uma importante obra da tradição mitológica irlandesa Táin Bó Cuailnge.

Por fim, essa edição é concluída com a resenha de Elisângela Morais (PPGHIS / UFMA / CAPES) sobre o livro Viagens e Espaços Imaginários na Idade Média, organizado pela docente Vânia Fróes e outros pesquisadores, que de certa forma está associado ao tema “paisagem” na medida em que os viajantes se deslocavam por novos espaços construindo novas memórias e paisagens reais e imaginárias.

Referências

BODENHAMER, D.J. The Potential of Spatial Humanities. In: BODENHAMER, D.J.; CORRIGAN, J.; HARRIS, T.M. (eds.) The Spatial Humanities: GIS and the Future of Humanities Scholarship. Bloomington / Indianápolis: Indiana University Press, 2010, pp. 14-30.

INGOLD, T. The temporality of the landscape. World Archaeology, 25, 1993, pp. 152–74.

INGOLD, T. Culture, nature, environment: steps to an ecology of life. In: CARTLEDGE, B. (Ed.). Mind, Brain and the Environment. The Linacre Lectures 1995-6. Oxford: Oxford University Press, 1998, pp. 158–80.

Adriene Baron Tacla – Docente IH / UFF / NEREIDA. E-mail: adrienebt@yahoo.com.br

Adriana Zierer – Docente PPGHIST-UEMA Docente PPGHIS-UFMA. E-mail: adrianazierer@gmail.com


TACLA, Adriene Baron; ZIERER, Adriana. Editorial. Brathair, São Luís, v.19, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História e memória da educação / Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino / 2019

Este volume da Revista Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino é dedicado ao tema “História e memória da educação”. Para tanto, tecemos algumas considerações a respeito das próprias noções de história e de memória. O alargamento e a aceleração da produção de estudos em ambos os campos, tem engendrado uma certa fusão e confusão entre as mesmas (SILVEIRA, 1996, p. 15).

Pierre Nora nos demarca que memória e história não são sinônimos, mas conceitos opostos. Na força de suas palavras:

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está sempre em evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais (NORA, 1993, p.1).

Autores que estudam a memória (BOSI, 1979; NORA, 1984; HALBWACHS, 1990; POLLAK, 1992; LE GOFF, 1996; KESSEL, 2016) assinalam que a rememoração individual se faz na tessitura das memórias dos diferentes grupos com que nos relacionamos. O indivíduo carrega em si a lembrança, mas a ação de lembrar é feita na interação com a sociedade, com grupos e instituições em que participa. É no contexto destas relações que construímos as nossas memórias.

A produção da história, por outro lado, ultrapassa o registro do depoimento, das informações contidas nas mais diversas materialidades, e se volta para a reflexão teórica e metodológica na construção do conhecimento. Para André Burguière o que confere valor ao trabalho do historiador não é a qualidade das fontes que ele conseguiu descobrir, mas a capacidade praticamente infinita de interrogá-las (1993, p. 54).

No campo da história e memória da educação podemos tratar da cultura difundida e praticada na instituição, enfocando também as práticas educacionais. Podemos igualmente pensarmos na reconstrução da memória audiovisual e documental por meio da seleção de fontes iconográficas, como fotografias, plantas arquitetônicas, filmes, entrevistas e documentação escrita. Há a possibilidade também de valorizarmos a rede de configurações socioculturais estabelecidas pelo corpo docente e discente, trabalhando-se com a memória coletiva.

Pari pasu, neste volume são apresentados 13 (treze) artigos que discorrem sobre história e memória a partir de temáticas alusivas aos acervos e fontes, a história do ensino e suas práticas pedagógicas, agentes e instituições educativas.

Aproveitamos para desejar uma boa leitura a todos e que a temática do volume inspire novos pesquisadores a realizarem investigações no campo da história da educação.

Referências

BOSI, Ecléa. Memória & sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T.A. Editor, 1979.

BURGUIÈRE, André. Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF, J. História e Memória. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

KESSEL, Zilda. Memória e memória coletiva. Disponível em: acesso em 28 / 04 / 2016

NORA, Pierre. Les Lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984, v. 1.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Proj. História, São Paulo, (10), dez. 1993.

POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 5, n.10, 1992

SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Recuperar a memória, fazer história. In: Debates Regionais III: Fazer História, (des) construção e (in)certeza. João Pessoa: Almeida Gráfica e Editora Ltda / NDIHR / ANPUH,1996.

Olivia Morais de Medeiros Neta

Maria Inês Sucupira Stamatto

Genilson Ferreira da Silva

Marcia Cristina Lacerda Ribeiro


MEDEIROS NETA, Olivia Morais de; STAMATTO, Maria Inês Sucupira; SILVA, Genilson Ferreira da; RIBEIRO, Marcia Cristina Lacerda. Apresentação. Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Caetité, v.1, n.3, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Os embates na construção do conhecimento histórico e a memória no Paraguai / Territórios & Fronteiras / 2019

O ano de 2019 marca duas efemérides de fundamental importância para a história do Paraguai e da região platina: primeiro o “ciclo de (re)memorações” iniciado no ano de 2014 em torno dos “150 anos da Guerra Guasu”, marco este que se findará no próximo ano: 2020, e segundo, os 30 anos da queda do ditador Alfredo Stroessner (1954-1989).

Nesse contexto este Dossiê que ora vem a público faz parte de um esforço coletivo de investigadores e investigadoras rio-platenses que tem se debruçado sobre o desafio de estudar o Paraguai e a região platina através de diferentes perspectivas, tanto da história, como da sociologia, da antropologia e outras áreas das ciências humanas.

Ressaltamos que até meados do século XX a produção historiográfica acerca do Paraguai centrava-se em análises de cunho positivista e alicerçada em documentos oficiais e / ou obras com cunho memorialístico. Com a queda do regime autoritário de Alfredo Stroessner os pesquisadores e pesquisadoras da área começaram a ter acesso a arquivos e documentação antes não disponibilizada; tal fato aliado à profissionalização acadêmica ocorrida no Paraguai e demais países vizinhos vem permitindo que vários temas e objetos de pesquisa sejam revisitados e reescritos, da mesma forma que o emprego de outras abordagens e metodologias fez com que aflorasse investigações que romperam com o viés positivista até então empregado na análise e construção da narrativa da história paraguaia.

Monumentos, movimentos sociais, textos escolares, as escritas de si, enfoques de gênero, imprensa e cotidiano, são alguns exemplos de abordagens que podemos apontar como parte integrante do movimento de renovação histórica e historiográfica vivida contemporaneamente.

O conjunto de Artigos que compõe este Dossiê demonstra o processo de renovação do qual falamos na medida em que apresenta uma gama diversa de temas que perpassam a análise da imprensa, de gênero, de aspectos relacionados a política externa entre Paraguai, Brasil e Argentina, as escritas de si e, por fim, duas fases da Guerra Guasú: a campanha de Mato Grosso e a da Cordilheiras; a temporalidade privilegiada também é extensa e contempla aspectos inseridos entre os séculos XIX e XX.

No Artigo intitulado “O ‘progresso’ e a ‘falta’: representações e relações Brasil- Paraguai no jornal O Globo durante a construção da Ponte da Amizade (1956-1965)”, Paulo Renato da Silva analisa as diversas representações tecidas em torno da construção da Ponte da Amizade que vinculou a Ciudad del Este, no Paraguai, com Foz do Iguaçu, no Brasil. O autor demonstra como essas representações divergem muitíssimo das atuais percepções que se tem em torno desse passo fronteiriço. Naquele momento, a construção da ponte sobre o rio Paraná foi enxergada como veículo de modernidade ao mesmo tempo que instrumento de luta contra o comunismo.

“De General a Visconde: José Antônio Correa da Câmara na Campanha da Cordilheira e na caçada final a Solano López” é o título da reflexão de André Atilas Fertig que versa sobre o percurso do General Câmara, que partiu de terras gaúchas para integrar as forças aliadas contra o Paraguai. Considerando elementos da história social e da microhistória, o autor tenta resgatar o sujeito do devir histórico considerando como fonte privilegiada seu epistolário para, desse modo, recuperar o olhar de Câmara sobre a política externa e os enfrentamentos bélicos na região do Prata, principalmente na fase final da Guerra Guasu.

Já em “Conflictividades impositivas y territoriales entre Paraguay y Corrientes (1852-1859)”, o autor Dardo Ramírez Braschi se debruça sobre as relações bilaterais entre o Paraguai e a província rio-platense de Corrientes, num período anterior à Guerra Guasu, quando ambos os Estados dirimiam suas diferenças econômicas, políticas e territoriais de forma direta, sem a intervenção de um Estado nacional argentino ainda difuso e quase inexistente. A complexidade dessas relações, expostas através de uma exaustiva pesquisa documental, permitem compreender os laços políticos e culturais que perduram entre ambas as regiões até a atualidade.

No Artigo denominado “A ocupação paraguaia em Mato Grosso durante a guerra do Paraguai” os autores Ana Paula Squinelo e Jérri Roberto Marin abordam a ocupação paraguaia na Província de Mato Grosso, analisando o contexto mato-grossense que antecedeu a guerra, a ocupação de Mato Grosso e suas fases até a retomada de Corumbá. Trazem no bojo de suas análises aspectos cotidianos, numéricos e demográficos do período de ocupação paraguaia que até então não haviam sido analisados; problematizaram ainda os efeitos da referida ocupação e como ocorreu a construção de uma narrativa memorialista no pós-guerra em Mato Grosso e, posteriormente, em Mato Grosso do Sul.

No texto “O Coronel Arturo Bray e a escrita de si”, o pesquisador Luiz Felipe Viel Moreira trabalha sobre a correspondência e as memórias deste militar e escritor paraguaio. A análise das cartas trocadas entre Bray e o liberal Justo Prieto recupera a percepção dos dois intelectuais do momento que antecedeu a chegada de Stroessner ao poder, fato que será rememorado por Bray em suas memórias escritas uma década mais tarde, no ocaso de sua vida e publicadas postumamente. Nestas, o militar traz seu olhar sobre a história nacional paraguaia da primeira metade do século XX, posicionando-se sobre os aspectos mais polêmicos e resgatando a importância de preservar a memória dos tempos democráticos em época de ditadura.

As autoras Lorena Zomer e Tamy Amorim, em “Perspectivas e reflexões sobre a história recente paraguaia: trajetórias de pesquisa e o debate de Gênero”, apresentam uma perspectiva do estudo da história das mulheres desde a história do tempo presente em uma mirada transnacional. Esta lupa-guia para focar os processos históricos apresenta uma novidade no campo de estudos do Paraguai, tendo em vista que se existem trabalhos sobre as mulheres, a perspectiva de gênero na historiografia configura-se como uma grande dívida das ciências sociais e humanas. Esta primeira caracterização do campo que propõem as autoras é, sem dúvida, um marco inicial para a inauguração de uma nova perspectiva investigativa.

Maria Alice Gabriel em “Lembranças da Guerra do Paraguai na obra do brasileiro Pedro Nava” também reflete sobre uma escrita de si que traz lembranças dispersas sobre a Guerra Guasu em diversos textos memorialísticos do autor. Destaca-se que essas lembranças de guerra não são diretamente pessoais, mas elas permanecem através da memória de personagens próximos do escritor, permitindo resgatar as diferentes reelaborações da Guerra Grande no imaginário coletivo de fins do século XIX primeiras décadas do XX.

Por fim, Luiz Eduardo Pinto Barros no Artigo “O Paraguai e sua Política Externa: os interesses do país em meio às divergências entre Brasil e Argentina sobre o aproveitamento hidro energético do Rio Paraná nos anos de 1960 e 1970” vem renovar as formas fechadas e / ou estagnadas de pensar as relações internacionais a partir de uma perspectiva que procura incorporar o diálogo interdisciplinar, favorecendo um olhar inovador. O resgate dos atores e dos conflitos a favor de modelos de desenvolvimento, permite visualizar uma trama que vai muito além das realidades dos Estados nacionais.

Neste Dossiê reunimos, portanto, um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras rio-platenses que se dedicam há tempos a investigações sérias e comprometidas com a História do Paraguai; a estes autores e autoras nossos sinceros agradecimentos por partilharem dessa empreitada conosco. Em tempos bicudos como os que vivemos na América Latina o trabalho coletivo, combativo e engajado é essencial para a sobrevivência das ciências humanas e da educação pública, laica, humana e gratuita.

Ana Paula Squinelo – Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e professora no ProfHistória (UFMT) e PPGCULT (UFMS). Pós-doutora em Ciências da Educação na especialidade de Educação em História e Ciências Sociais (UMinho / PT). Doutora em História Social (USP). Grupo de Pesquisa “Historiografia e Ensino de História” (HEH). Ñande – Rede de pesquisadoras e pesquisadores sobre o Paraguay. E-mail: apsquinelo@yahoo.com.br

Lorena Soler – Doutora em Ciências Sociais (2012) pela Universidade de Buenos Aires. Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CONICET), sediada no Instituto de Estudos da América Latina e Caribe (IEALC). Professora da Faculdade de Ciências Sociais (UBA). Ministra cursos de pós-graduação de América Latina em várias universidades nacionais e estrangeiras. Autora de La Larga Invención del golpe. El stronismo y el orden político paraguayo (Imago Mundi, Buenos Aires, 2012) e coeditora de Franquismo em Paraguay. El golpe. (El 8vo. Loco Ediciones, Buenos Aires, 2012). E-mail: lorenamarinasoler@gmail.com

Marcela Cristina Quinteros – Doutora (2016) em Ciências, na área de História Social, na Universidade de São Paulo (USP). Concluiu o Pós- Doutorado em História na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), dando continuidade à pesquisa em História Intelectual, Identidades Latino-americanas e Guerra Fria Cultural iniciada no doutorado. Pós-doutorado na Universidade Federal da Grande Dourados (2019). É integrante e fundadora da Rede de Pesquisadoras e Pesquisadores sobre o Paraguay Ñande, criada em 2017 para a discussão e difusão das pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre a História, Sociedade e Cultura do Paraguai. E-mail: marcelacristinaquinteros@gmail.com


SQUINELO, Ana Paula; SOLER, Lorena; QUINTEROS, Marcela Cristina. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.12, n.2, ago / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Memória, patrimônio e democracia / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2018

O Número 32 da Fronteiras: Revista Catarinense de História apresenta o Dossiê Memória, Patrimônio e Democracia, traz textos que se articulam ao conjunto de debates promovidos durante o XVII Encontro Estadual de História, realizado entre os dias 21 e 24 de agosto de 2018, na Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), em Joinville, Santa Catarina.

Ao propor a combinação dos termos memória, patrimônio e democracia, o Dossiê visa oportunizar o compartilhamento de resultados de pesquisas interessadas em compreender as maneiras pelas quais bens culturais são (re)convertidos em patrimônios por meio do trabalho de agentes sociais de natureza diversa (individuais, coletivos, públicos, privados, entre outros).

À sua maneira, os textos que integram este Número evidenciam que os entrecruzamentos entre patrimônio, memória e democracia precisam ser pensados para além da mera contemplação de ícones considerados valiosos e relevantes para um determinado grupo ou para uma sociedade como um todo. Antes disso, é preciso ter em mente que o patrimônio se inscreve em um campo de lutas e reivindicações sociais mais ou menos democráticas, muitas das quais se utilizam do patrimônio para reforçar ou contestar significados atribuídos a bens que, presumidamente, constituem-se enquanto referências na complexa trama de políticas de memória na contemporaneidade. Em outras palavras, os autores desta edição, a partir de diferentes enfoques e abordagens teórico-metodológicas, problematizam complexidades políticas e culturais que atravessam processos contemporâneos de fabricação, ativação, uso e difusão de patrimônios culturais.

O Dossiê constitui-se de oito artigos, uma tradução e uma resenha. O artigo intitulado A memória fardada: a criação do Museu Histórico Nacional e as relíquias do Contestado, de autoria de Rogério Rosa Rodrigues, investiga o processo de coleta de vestígios materiais por parte de oficiais militares que atuaram na repressão ao movimento do Contestado, vestígios que foram incorporados ao acervo da reserva técnica do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. No desenvolvimento de suas análises, o autor procura debater a valorização da história militar do Brasil em um período em que tensas disputas foram travadas em torno da reconstrução de uma suposta memória nacional (primeiras décadas do século XX).

No escrito Fortalezas abandonadas, saqueadas, redescobertas, restauradas, patrimonializadas: da democratização à pluralização do patrimônio, Pedro Mülbersted Pereira e Elison Antonio Paim analisam como agentes envolvidos com a gestão das Fortalezas de Anhatomirim, Ratones e Ponta Grossa, situadas em Florianópolis / SC, historicamente envidaram esforços no sentido de elaborar e disseminar uma narrativa palatável acerca do passado dessas edificações. Apoiados em um conjunto diversificado de fontes (bibliografias, entrevistas, reportagens digitais e documentos oficiais), os autores problematizam retóricas patrimoniais que seguem dando força para um “discurso sobre a ruína”, negligenciando, em suas formas de expressão, narrativas de memória que não se afinam à versão glamourizada que certos órgãos encarregados da gestão das Fortalezas procuram manter e propalar.

No escrito Patrimônios difíceis, demanda social e reparação nos Asilos Colônias em São Paulo, Gabriela Lopes Batista aciona a noção de “patrimônios difíceis” para refletir sobre as representações relacionadas ao tombamento de espaços que, no transcurso do século XX, funcionaram como instâncias de isolamento compulsório de pessoas acometidas pela hanseníase.

O artigo Tombamentos, processos, disputas e tensões nas histórias do patrimônio cultural de Joinville – outras questões para o debate público, de Cristiano Viana Abrantes, Dietlinde Clara Rothert e Giane Maria de Souza, constitui-se como um estudo sobre estratégias político-institucionais ligadas à gestão do patrimônio cultural em uma cidade de médio porte (Joinville). No desenvolvimento do texto, os autores procuram refletir sobre tensões que se fazem presente no campo patrimonial do município de Joinville, atentando para o papel exercido por agentes e agências da administração pública encarregados de assessorar, monitorar e acompanhar o cumprimento de requisitos legais que são diretamente relacionados com a patrimonialização ou não de determinado bem cultural.

No artigo intitulado Diálogos arriscados: do direito de participação cidadã na patrimonialização ao direito cidadão de aparecer no patrimônio cultural, o historiador Diego Finder Machado reflete sobre relações tensas e conflituosas que se desdobram de perspectivas divergentes acerca do lugar, da função e dos modos de interação com o patrimônio nas sociedades do presente. A partir da análise de processos de patrimonialização que perpassaram a história de Joinville, o autor discute como cidadãos comuns, de maneira mais ou menos declarada, apropriaram-se do patrimônio cultural para reivindicar espaços de aparecimento na vida pública das cidades contemporâneas.

Em A UNESCO, o patrimônio e o turismo cultural: uma abordagem inicial (1960- 1980), Valéria Fernanda Serpa Steinke, Fernando Cesar Sossai e Ilanil Coelho apresentam um histórico da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), bem como examinam algumas das discussões sobre patrimônio que atravessaram o processo de elaboração da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (UNESCO, 1972). Em seguida, os autores refletem a respeito de como essa Organização, durante a década de 1970, atuou de maneira a aproximar entre si os termos patrimônio e turismo cultural.

No artigo Desenvolvimentismo, industrialização e ensino superior em Chapecó: bases para a criação de um movimento estudantil, Vinicius de Almeida Peres e Monica Hass problematizam os interesses envolvidos com a oferta do Ensino Superior em Chapecó, bem como discutem como se deu a constituição de um movimento estudantil junto ao Centro de Ensino Superior da Fundação Universitária do Desenvolvimento do Oeste de Santa Catarina. Vale a pena destacar que os autores fazem uso de fontes que integram o acervo do Fundo Documental do Diretório Central dos Estudantes, um acervo custodiado pela equipe técnica do Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina (CEOM / UnoChapecó).

Em Campos entre taipas e aramados: novos olhares sobre a paisagem serrana catarinense, a autora, Cristiane Fortkamp Schuch, busca elaborar uma escrita histórica a respeito de experiências culturais e modos de vida que impactaram a paisagem dos campos de altitude do planalto catarinense. Em seu texto, a autora dispensa atenção à análise da paisagem histórica da região, procurando diferenciar e ampliar o conceito de paisagem para além de sua vertente imagética.

Na seção Resenha, Adriano Denovac explicita algumas das discussões presentes no livro O que pode a biografia, obra organizada pelos historiadores Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schimidt. Trata-se de uma obra interessante para o campo da História, uma vez que aprofunda o debate sobre os possíveis lugares da biografia no campo da História, em especial nos domínios da História Pública.

Esta edição da Fronteiras conta ainda com a tradução do texto intitulado A fabricação do patrimônio, de autoria de Nathalie Heinich, socióloga e diretora de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, Paris). Elaborada pelos historiadores Diego Finder Machado e Fernando Cesar Sossai, a tradução é uma contribuição importante para os estudiosos que atuam no campo do patrimônio cultural no Brasil, uma vez que Heinich desenvolve em seu escrito questões bastante espinhosas: como um determinado objeto adentra o conjunto do patrimônio cultural nacional? Sob quais critérios? Sob quais dinâmicas de atribuição de valores? A tradução também é uma oportunidade de conhecer as proposições de Nathalie Heinich para o desenvolvimento de pesquisas mais pragmáticas a respeito do patrimônio cultural.

Esperamos que este Número da Revista Fronteiras seja uma contribuição relevante para os que, assim como nós, procuram investigar as complexidades contemporâneas que emergem dos entrecruzamentos entre Memória, Patrimônio e Democracia.

Boa leitura a todas e a todos!

Fernando Cesar Sossai

Ilanil Coelho

Samira Peruchi Moretto

Organizadores do Dossiê Memória, Patrimônio e Democracia


SOSSAI, Fernando Cesar; COELHO, Ilanil; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.32, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Governança dos Arquivos: desafios para a Gestão e para a Memória / Revista do Arquivo / 2018

Governança Arquivística: um território a ser explorado

A teoria e a prática arquivísticas ganharam novas dinâmicas nas últimas três décadas. Esse processo, diverso na sua intensidade e complexidade, é mais evidente em algumas realidades sociais do que em outras. Porém, perpassa várias “tradições arquivísticas” com impactos na gestão de instituições e serviços arquivísticos, na produção científica em Arquivologia e na formação e perfil do arquivista.

Esses redesenhos na Arquivologia ocorrem sob forte influência das tecnologias da informação, da emergência de novos modelos organizacionais, dos princípios do governo aberto e das crescentes demandas sociais pelo direito à informação, à memória e à privacidade.

Diversas interpretações apontam para uma ideia de Arquivologia como ciência ou disciplina científica calcada em princípios e técnicas voltados à produção, avaliação, aquisição, classificação, descrição, preservação e difusão dos arquivos. Cada uma dessas funções abordadas por Couture e Rousseau (1998) requer várias ações por parte do arquivista. Subjacente a todas elas, podemos reconhecer um ato incontornável à sua viabilidade: a gestão.

A gestão é um processo inerente ao fazer arquivístico. A gestão arquivística pode ser visualizada como o conjunto de aspectos teórico-operacionais mobilizados pelo arquivista e outros profissionais que atuam em um serviço ou uma instituição arquivística com vistas à eficiência e eficácia dessas organizações. Pressupõe um diálogo frequente com uma Ciência que é fundamental para a Arquivologia: a Administração.

O planejamento, execução e avaliação das diversas funções arquivísticas requer, em variados graus, métodos e técnicas da Ciência da Administração. Apesar de a Administração perpassar aspectos macro e microarquivísticos, a Arquivologia parece atualmente dialogar menos com essa área do que com outras que também lhe são próximas. Talvez a dimensão gerencial tão visceralmente presente na prática arquivística tenha, por isso mesmo, se tornado um pouco “naturalizada” na cultura profissional de grande parte dos arquivistas.

A literatura de Arquivologia, dentro e fora do Brasil, apresenta várias lacunas quando o tema é a gestão arquivística. A área carece, de modo geral, de um conjunto de noções consistentes e sistematizadas que sustentem – amparadas em métodos e técnicas da Administração – as práticas da gestão arquivística.

Reside aí uma certa contradição já que o arquivista é inevitavelmente um gestor de um determinado tipo de recurso vital às organizações: as informações registradas nos documentos que derivam das suas ações. A gestão desses recursos arquivísticos transcende a uma concepção redutora de organização dos arquivos, seja qual for o seu momento no ciclo documental. Gerenciar serviços e instituições arquivísticos é também administrar pessoas, tecnologias da informação, infraestrutura física, legislação, orçamento, ademais de requerer um grande conhecimento do contexto contemporâneo das organizações e suas alterações ao longo do tempo.

Gerenciar implica gestos de poder. A gestão arquivística, o “governo dos arquivos”, insere-se no exercício da autoridade do serviço ou da instituição arquivística para o cumprimento da sua missão. A autoridade arquivística legal, se não legitimada por uma adequada gestão arquivística, tende a ser fragilizada.

Em termos de administração pública, serviço e instituição arquivísticos podem ser visualizadas mediante o que apresentam de comum assim como as suas singularidades.

“consideram-se instituições arquivísticas públicas aquelas organizações cuja atividade-fim é a gestão, recolhimento, preservação e acesso de documentos produzidos por uma dada esfera governamental … diferenciam-se dos serviços arquivísticos governamentais… que se referem às unidades administrativas incumbidas de funções arquivísticas nos diversos órgãos da administração pública, no âmbito dos quais se configuram como atividades-meio …” Jardim (2012, p.403),

A noção de Governança é historicamente recente. Data do início dos anos de 1990, impulsionada pelo Banco Mundial, sob a perspectiva de novas formas de exercício da capacidade dos governos para produzir, implementar e avaliar políticas públicas. Nas três últimas décadas ganhou mais contornos teóricos, sendo aplicada em diversos cenários organizacionais, tanto da administração pública quanto no setor privado. Como tal, é frequente encontramos termos como Governança Corporativa, Governança de Tecnologia da Informação, Governança informacional, Governança ambiental, Governança Fiscal e Tributária etc.

Conforme Gonçalves (2006, p.14), Governança “diz respeito aos meios e processos que são utilizados para produzir resultados eficazes” e tem um amplo espectro:

Pode englobar dimensões presentes na governabilidade, mas vai além. Veja-se, por exemplo, a definição de Melo (apud Santos, 1997, p. 341): “refere-se ao modus operandi das políticas governamentais – que inclui, dentre outras, questões ligadas ao formato político-institucional do processo decisório, à definição do mix apropriado de financiamento de políticas e ao alcance geral dos programas”. Como bem salienta Santos (1997, p. 341) “o conceito (de governança) não se restringe, contudo, aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado, tampouco ao funcionamento eficaz do aparelho de Estado” (Gonçalves, 2006, p.3).

Além dos avanços no setor privado, a Governança ganha cada vez mais espaço em várias instâncias do setor público. Uma das instituições públicas com grande comprometimento com o tema é o Tribunal de Contas da União (TCU). Ao fundamentar o seu “Referencial Básico de Governança”, o TCU distingue e correlaciona duas categorias intrinsecamente relacionadas: Gestão e Governança.

Enquanto a gestão é inerente e integrada aos processos organizacionais, sendo responsável pelo planejamento, execução, controle, ação, enfim, pelo manejo dos recursos e poderes colocados à disposição de órgãos e entidades para a consecução de seus objetivos, a governança provê direcionamento, monitora, supervisiona e avalia a atuação da gestão, com vistas ao atendimento das necessidades e expectativas dos cidadãos e demais partes interessadas. (2014, p.32)

Apesar de ganhar mais densidade teórica e muitos relatos de “boas práticas” que sustentam sua pertinência teórica, Governança é uma categoria analítica e um conjunto de métodos a ser mais aprofundado em diversas áreas de conhecimento. Porém, essas limitações não impedem a busca por modelos de governança aplicáveis a instituições e serviços arquivísticos.

Da mesma forma que Gestão Arquivística, Governança Arquivística não é um tema contemplado frequentemente na literatura da área. No entanto, vem sendo objeto de interesse recente. Predominam as abordagens sobre a gestão de documentos como instrumento de apoio à governança. Não são, porém, muito evidentes os estudos sobre a governança como referência teórica e operacional para a gestão arquivística.

As possibilidades de construção de modelos de Governança Arquivística requerem pesquisas e maior conhecimento de “boas práticas” nos diversos lócus do fazer arquivístico.

No cenário macroarquivístico, especialmente das políticas públicas, a noção de Governança pode favorecer novos modos de concepção e implementação por parte das instituições arquivísticas e outros atores.

Os atuais cenários arquivísticos e organizacionais são muitos distintos, por exemplo, daqueles formulados nos anos de 1970. Naquele período, a UNESCO patrocinou o modelo de Sistemas Nacionais de Arquivos que foi experimentado em diversas realidades sem alcançar, de maneira geral, o sucesso pretendido. Não por acaso, após os anos de 1980, a ênfase se deslocou, inclusive nos textos da UNESCO, da ideia de sistemas nacionais de informação para a noção de políticas públicas de informação. Políticas arquivísticas e seus recursos de instrumentalização como os sistemas e redes merecem ser (re)discutidos à luz dos desafios arquivísticos atuais. A perspectivas sugeridas pela noção de Governança podem favorecer essas discussões e promover inovações nos balizamentos teóricos e desdobramentos operacionais de políticas e sistemas / redes arquivísticos.

A noção de Governança Arquivística, no contexto das instituições arquivísticas, envolve um conjunto de diálogos, processos e produtos relacionados a vários atores e agências no Estado e da sociedade. Inclui não apenas aqueles segmentos diretamente relacionados a dimensões especificamente arquivísticas, mas também os atores, cujas ações perpassam, direta ou indiretamente, as políticas e práticas dos serviços e instituições arquivísticos. É o caso, entre outros, de políticas e ações relacionadas a Governo Aberto, Dados Abertos, Proteção de Dados Pessoais, Programas de Digitalização das Administrações Públicas, Patrimônio Cultural, Ciência e Tecnologia, Acesso à Informação Governamental, Controle Social, Educação, Bibliotecas, Museus etc. A interação entre esses atores e suas interfaces com políticas arquivísticas não se plasmam exclusivamente no marco da burocracia hierárquica tradicional ou nos limites da autoridade arquivística legalmente conferida às instituições arquivísticas. Tampouco poderiam ter lugar sob a lógica dos lineares desenhos sistêmicos tão frequentes nas concepções de sistemas nacional e estaduais de arquivos.

A Governança Arquivística sugere a formulação de estratégias e o desenvolvimento de um um conjunto de acões em rede e de forma colaborativa. Ultrapassa, portanto, o tradicional “governo do arquivos”. Não substitui a Gestão Arquivística. Ao contrário, reforça o seu papel e sugere inovações que podem torná-la mais consistente. Um modelo de Governança Arquivística não se sustenta sem as “boas práticas” inerentes à Gestão Arquivística.

A construção de modelos de Governança Arquivística requer um maior conhecimento e debate sobre o tema por parte dos arquivistas em geral, além de análises aprofundadas de experiências nacionais e internacionais de gestão de serviços e instituições arquivísticas.

Gestão e Governança Arquivística merecem ser contempladas nas agendas de pesquisa e inovação em Arquivologia, devidamente enfatizadas na formação de graduação e pós-graduação de arquivistas e outros profissionais que atuam na área.

Referências

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades da administração pública. Brasília: TCU, Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão, 2014.

GONÇALVES, Arlindo. O conceito de governança. Disponível em; . Acesso em: 12.08.2017

JARDIM, José Maria. Em torno de uma política nacional de arquivos: os arquivos estaduais brasileiros na ordem democrática (1988-2011). In: MARIZ, Anna Carla Almeida; JARDIM, José Maria; SILVA, Sérgio Conde de Albite (org.). Novas dimensões da pesquisa e do ensino da arquivologia no Brasil. Rio de Janeiro: Móbile; Associação dos Arquivistas do Estado do Rio de Janeiro, 2012.

ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998

José Maria Jardim – Doutor em Ciência da Informação. Professor Titular do Departamento de Arquivologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).


JARDIM, José Maria. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano IV, n.7, outubro, 2018. Acessar publicação original [DR]

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As ditaduras militares no Brasil e no Cone Sul: história, historiografia e memória  | SÆCULUM – Revista de História | 2018

“Um povo sem História não é gente, não pode ser gente, não tem como ser gente.” A frase, pronunciada por uma lavradora analfabeta e transcrita em nota da ANPUH-DF ao tratar da destruição recente do Museu Nacional3 , sintetiza a função social e o compromisso ético da História com as gerações atuais e futuras. A História, fruto da construção epistemológica do conhecimento na modernidade, encontra-se hoje envolvida numa trincheira em favor da democracia, da ciência, dos direitos humanos, do qual é caudatária. Dos diversos temas e objetos que são de interesse dos historiadores, aqueles dedicados à História recente, sobretudo, aos regimes ditatoriais do século XX vêm sendo alvo de negação considerados frutos do anti-intelectualismo emergente e de uma política do ódio que desconsidera o “Outro”, suas diferenças, direitos e pluralidades. Neste sentido, este número temático assumiu o compromisso de trazer a público, a partir dos cânones epistemológicos da pesquisa histórica, artigos dedicados às ditaduras no Cone Sul, considerando seus aspectos transnacionais e as especificidades das experiências nacionais. A pluralidade de temas, recortes, fundamentação teórica, fontes e metodologias reforçam os princípios da multicausalidade na construção da narrativa histórica, cujo rigor não está na exclusão de abordagens, mas na valorização de diferentes referenciais teórico-metodológicos, no domínio da historiografia e no uso de fontes. Leia Mais

Patrimônio Cultural, História e Memória / Projeto História / 2018

É com grande satisfação que lhes oferecemos o volume 61 da revista Projeto História, que em 2018 completa 37 anos de atividades, em um percurso não isento de percalços, mas constantemente exemplar do empenho e dedicação de seus participantes. Para esta edição, ‘Patrimônio cultural, história e memória’ constitui o eixo do dossiê que compõe o corpo central do volume.

Não é a primeira vez que as reflexões sobre o patrimônio são colocadas nesta revista, mas acreditamos que no presente existem demasiadas questões e reflexões que envolvem esse conceito, tanto em relação ao seu uso, quanto aos abusos em relação aos elementos que nele estão contidos e relacionados.

Necessitamos de fato de uma abertura ao debate sobre as formas de pensar e de se agir a partir desse conceito. Pensar o patrimônio cultural em suas relações com a História e a Memória põe em primeiro plano questões ligadas aos conflitos e tensões sobre identidade, esquecimento, apropriação cultural, tradição, rememoração e resistência cultural, entre outras diversas noções que se entretecem nesse debate. Ao se debater patrimônio no momento atual superamos as leituras e os discursos que tinham como motor a celebração de valores e referências de memória de frações ou conjuntos sociais que privilegiam uma perspectiva parcial ou dominante que condiciona a seleção, a percepção e a manutenção do patrimônio. Pensar patrimônio enquanto manifestação de visões oficiais sobre a história ou a memória das sociedades não é mais aceitável, pelo menos para aqueles que pretendem uma compreensão e uma abordagem coerente e abrangente dos eventos e processos históricos relacionados a grupos humanos.

Muito já se escreveu sobre o tema e na atualidade muito mais se coloca em questão, principalmente por conta de polêmicas que envolvem a própria definição de patrimônio e sua aplicação ao universo de manifestações dos vários segmentos e grupos que compõem a sociedade; isso sem considerar as releituras críticas, as reelaborações e as transformações dos bens culturais consagrados dentro de uma perspectiva mais aberta ao debate dos significados e valores desses bens em uma sociedade cada vez mais marcada pela diversidade de posturas, identidades e discursos.

As discussões sobre o tema percorrem um longo caminho, desde a constituição do patrimônio histórico na Revolução Francesa, quando se estabelece um marco que passa a orientar pelas décadas seguintes as ações e percepções sobre a seleção, a celebração e a preservação dos monumentos históricos. Mas o conceito de patrimônio se alargou gradativamente, ainda que de forma irregular, em direção aos bens e manifestações culturais de caráter imaterial, retirando da concepção de patrimônio o seu caráter tradicionalmente material e monumental. Neste número procuramos construir uma trama que entrelaça alguns desses conceitos, pois o conjunto de artigos que formam o cerne deste dossiê lidam com aspectos bastante distintos do patrimônio cultural que, ao longo dos últimos trinta anos, assumiu novos sentidos e significados, enquanto que se recoloca diante de diversas perspectivas históricas.

Introduzimos nossa apresentação do dossiê tomando como ponto de partida um museu, que por si mesmo constitui um dos espaços que tem sua gênese institucional na época em que o patrimônio histórico toma forma e identidade primeira, no século XVIII.

O estudo sobre a trajetória e as perspectivas do Museu da Cultura da PUC-SP, feito pelo Prof. Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, se compõe como uma referência necessária para se pensar o museu e seu papel na recuperação, reconstituição e reinserção de memórias e experiências dos diversos grupos que constituem as sociedades. Aqui se propõe uma recolocação e uma releitura do Museu da Cultura dentro da instituição e da comunidade, pautadas nas práticas e propostas contemporâneas da museologia.

Em um segundo trabalho, desta vez por Wanessa Pires Lott, lidaremos com a questão do reconhecimento e preservação de espaços de práticas e crenças das comunidades negras de Belo Horizonte, tomando como objeto de tudo isso, dois locais de experiências distintas.

No terceiro artigo, Alessander Kerber parte do conceito de ativação patrimonial de Lorenç Prats para analisar a incorporação do compositor e cantor Carlos Gardel, ícone mundial do tango na Argentina, mas também ligado ao universo patrimonial uruguaio. Nesse sentido, o autor expõe as estratégias e ações que permitiram esse movimento, debatendo, para tanto, a questão das identidades culturais nacionais.

Aldo Jose Morais Silva nos leva em seu artigo à Feira de Santana na Bahia, onde investiga a ressignificação do hino da Feira, que foi concebido na década de 1920 e que não encontra um reconhecimento de seus elementos constituintes dentro da comunidade à qual se refere, apesar de ser um traço importante da cultura imaterial dessa mesma comunidade. O processo de ressignificação do hino assim é percebido como uma forma de recomposição de valores e sentidos para a comunidade em sua relação com seu patrimônio.

No bairro de Abadia, em Uberaba, originalmente a autora Sandra Dias discute a construção de sentidos e valores pela comunidade em um local marcado em sua história pela presença de instituições assistenciais e religiosas. Isso resultou na formação de uma identidade cultural local própria, contrastante com a de Uberaba, fundada em seus componentes intangíveis.

Já em outro artigo, Diogo de Souza Brito apresenta a narrativa oficial do principal órgão de preservação do Brasil hoje, o IPHAN, a partir de diferentes documentos, o que o possibilitou a delinear a trajetória da instituição entre dois momentos, a fase heroica e a fase moderna, representada por dois de seus dirigentes, respectivamente, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Aloísio Magalhães.

O sétimo escrito deste dossiê nos traz o debate de Francisco Carvalho de Andrade sobre a arquitetura vernacular brasileira, que até o momento encontra reconhecimento limitado na esfera oficial ligada à preservação do patrimônio cultural. O autor destaca como a participação comunitária na elaboração dessas construções expressa o compartilhamento de valores e sentidos pelos seus agentes, materializados nas celebrações e manifestações dos grupos envolvidos, ressaltando, assim, a dimensão imaterial dessa prática como fio condutor de sua relevância no espaço patrimonial.

No último artigo deste dossiê lidamos com uma realidade presente, a destruição do patrimônio em situações de confronto bélico e choque de ideologias. Nesse ensaio, os arqueólogos Vagner Porto e Juliana Hora problematizam a ação e o discurso do Estado Islâmico, tomando como referência o valor do patrimônio como memória e o sentido da destruição dos sítios arqueológicos dentro de um conflito de fundo ideológico marcante. Num contraponto ressaltam a contribuição do mercado ilícito de antiguidades, consequência desse mesmo interesse por essa herança cultural no Ocidente, reforçadas por uma postura paradoxal das nações, que se declaram oposicionistas dessas práticas e que propõem ações preservacionistas, pautadas por uma visão ainda impregnada pelo colonialismo europeu.

Entre os artigos livres temos contribuições que conduzem a linhas bem distintas de reflexão. O primeiro estudo, elaborado por Sochdolak e Pochapsky, lida com a questão da violência contra animais no município de Mallet, no Paraná, entre as décadas de 1930-1950, partindo do reconhecimento filosófico de que “a violência é um fenômeno historicamente constituído e que, de alguma forma organiza as relações humanas”. Para tanto se utilizam de documentação de processos criminais do período, a fim de estudar a natureza e as motivações de tais crimes no contexto em questão.

O trabalho de Cesar Henrique Porto se coloca no campo dos estudos de alteridade, ao lidar com as representações dos muçulmanos e árabes na teledramaturgia brasileira, tomando como ponto de partida a telenovela ‘O Clone’, na qual são construídos modelos culturais da população árabe muçulmana que, na visão do autor, acabam por reforçar concepções imprecisas no imaginário popular sobre esse grupo, denominado indiscriminadamente como árabes ou turcos.

No terceiro trabalho da seção livre Otávio Barduzzi nos coloca diante da possessão demoníaca e sua caracterização como fenômeno antropológico na medicina do século XIX. O autor problematiza a possessão enquanto fenômeno cultural, que assume status diferenciado no cristianismo. Com a prevalência do pensamento científico / médico no século XIX, se analisa a inclusão da possessão no rol de patologias, sendo extraída de sua matriz cultural religiosa, na qual seria posteriormente reinserida.

O último trabalho dessa seção lida com a história da infância, onde Rosa Batista e Leonete Schmidt analisam a iniciativa do Círculo Operário Católico de Joinville para estabelecer uma creche. No recorte dado, que vai de 1936 a 1949, são discutidos os esforços e as concepções que deflagraram essa ação e sua importância para o estudo da infância no Brasil.

Finalizando o presente volume temos duas notícias de pesquisa, uma das quais trata do lazer dos trabalhadores na metrópole, avaliando a institucionalização do lazer na cidade de São Paulo. Em outra direção, a pesquisa de William Ferreira da Silva trata da problemática do suicídio na obra de Dostoiévski, tomando o livro “Os Demônios” como base para tal reflexão.

Assim, fechamos nossa modesta exposição deste volume, que esperamos fornecer a seus leitores a oportunidade de apreciar visões e reflexões enriquecedoras e instigantes, dentro do espírito de construção e difusão de ideias no campo histórico que orienta esta revista.

Álvaro Hashizume Allegrette https: / / orcid.org / 0000-0002-2222-7033

Luiz Antonio Dias https: / / orcid.org / 0000-0001-8834-442X


ALLEGRETTE, Álvaro Hashizume; DIAS, Luiz Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.61, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Memória: questões teórico-metodológicas nas pesquisas historiográficas / Caminhos da História / 2018

Prezadas (os) leitoras(es),

É com enorme satisfação que publicamos o segundo número do volume 23 da Caminhos da História, Periódico do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes-MG). Nesta edição, contamos com a presença de um dossiê. Apesar disso, não abrimos mão de uma seção livre, onde artigos que exploram diferentes temas caros à História possam ser contemplados. Nossa finalidade, com esse formato, é proporcionar números temáticos que apresentem maior evidência aos artigos que os compõem, bem como às suas autoras e aos seus autores.

No atual número, assim, apresentamos o dossiê “Memória: questões teórico-metodológicas nas pesquisas historiográficas”, organizado pelos pesquisadores Rejane Meireles Amaral Rodrigues (Unimontes) e Gilberto Cezar de Noronha (UFU). Com a intenção de congregar trabalhos produtos de estudos que exploram fontes, temáticas e enfoques teórico-metodológicos diferentes, o dossiê trava diálogo com discussões da história e da historiografia interessada na problemática da memória, dos saberes e das relações de poder / submissão / subversão nos usos políticos do passado; a gestão dos sentimentos e das paixões sociais; a construção de racionalidades, os afetos e sensibilidades, a alteridade e as subjetividades envolvidas no ato de lembrar e esquecer; questões epistemológicas relacionadas às tênues fronteiras entre memória e história e ao próprio estatuto do conhecimento histórico, em suas diversas orientações teóricas. A proposta deste dossiê, enfim, é abrir o diálogo e a possibilidade de repensar as formas, as escalas, a duração e a espacialização dos jogos de poder que instituem as relações sociais e os processos de subjetivação que envolvem a gestão da lembrança e do esquecimento.

Para ilustrar a edição deste relevante dossiê, a Caminhos da História conta com a ilustração de Salvador Dalí. Nativo de Figueres, o pintor espanhol apresenta, em sua trajetória, admiráveis contribuições por meio de sua arte surrealista. A espantosa e admirável pintura que ilustra nossa capa recebe o título de La persistencia de la memoria (1931). “Toda a minha ambição no campo pictórico é materializar as imagens da irracionalidade concreta com a mais imperialista fúria da precisão”. Esta citação de Dalí sintetiza a pintura em questão; os elementos ilusórios – relógios derretidos – embaralham-se com figuras familiares aos olhos humanos, cunhando uma impressão de que eles realmente estão ali. Ao fundo, podemos observar um penhasco e o mar no horizonte. Esse cenário é a imagem do lugar onde Dalí vivia.

A edição conta ainda com artigos livres, que perpassam o debate sobre a introdução do futebol no estado do Rio de Janeiro, a trajetória profissional de mulheres na medicina em Montes Claros-MG e sobre o processo de transformação econômica no governo de Salvador Allende, no Chile.

Atenciosamente,

Ester Liberato Pereira,

Rafael Dias de Castro,

e Comissão Editorial


PEREIRA, Ester Liberato; CASTRO, Rafael Dias de. Editorial. Caminhos da História, Montes Claros, v.23, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Memória e usos políticos do passado: 130 anos da abolição e pós-abolição / Tempo e Argumento / 2018

13 de maio de 2018. Há 130 anos foi promulgada a Lei Áurea, que aboliu definitivamente a escravidão em todo o Brasil. A evocação dessa data assume para todos nós a indicação de uma efeméride. Mas o que são efemérides? Mais do que a celebração de um acontecimento ou fato importante assinalado em determinada data, são pontas de icebergs, emergem da “relação inextricável entre o acontecimento, que elas fixam com a sua simplicidade aritmética, e a polifonia do tempo social, do tempo cultural, do tempo corporal, que pulsa sob a linha de superfície dos eventos”.1 As efemérides, com todos os seus significados, usos e apropriações sociais, políticas e culturais, provocam reflexões. Desafiam-nos ao exame crítico. Assim, elas são balizas importantes para os historiadores e cientistas sociais de modo geral. Há muito do passado no presente desta nação. Não se pode dizer que tudo é uma decorrência da escravidão, mas devemos ponderar como o Brasil, o último dos países das Américas a abolir o regime de cativeiro, foi marcado pela experiência da escravidão, cujos legados (sociais, políticos, culturais e simbólicos) não podem ser esquecidos. Ao contrário, devem fazer parte da agenda nacional.

Conforme assinalam Maria Helena Machado e Lilia Schwarcz, os movimentos de emancipação nas Américas traduziram conjuntos de processos históricos de larga amplitude, os quais recolocaram, em novas perspectivas, desafios e dilemas antigos, mas atualizados a partir de novos cenários: “a questão do trabalho, do lugar social dos africanos e afrodescendentes nas sociedades sem escravidão, o problema da raça e da mestiçagem nos quadros dos emergentes Estados nacionais e de uma ciência comprometida com a construção de sistemas de classificação e exclusão, a questão da imagem e da formação de estereótipos e políticas de representação pós-coloniais”. As autoras ressaltam, igualmente, o papel das relações de gênero como marcador social da diferença, influenciando e intersecionando as experiências de homens e mulheres nos limiares das invenções da liberdade. Quando colocados em relação, “esses diferentes marcadores – como raça, etnia, região, gênero, classe – revelam panoramas diferenciados, mas ao mesmo tempo persistentes na determinação e preservação de processos de exclusão social” na nossa sociedade. 2

Este dossiê tem por finalidade apresentar pesquisas atuais sobre a história da abolição e pós-abolição no Brasil, conferindo atenção especial aos usos públicos e políticos da memória e suas implicações sociais, culturais, políticas e identitárias em suas diferentes manifestações numa sociedade marcada pelas heranças ressignificadas do cativeiro. A iniciativa de organizar este dossiê também respondeu ao crescente (e renovado) interesse pela temática.

São oito artigos selecionados. Como ponto de partida, Francisco Assis Nascimento e Túlio Henrique Pereira analisam as formas pelas quais o corpo humano foi representado em duas imagens publicadas no impresso baiano A Coisa e em uma imagem publicada na revista norte-americana Verdict. O argumento dos autores é que essas imagens, colocadas em circulação pela imprensa ilustrada entre o final do Império e a Primeira República no Brasil, conferem visualidades para esses corpos, ao mesmo tempo em que veiculam discursos raciais, culturais, sociais e políticos. No artigo seguinte, Karla Leandro Rascke examina a produção e difusão da chamada imprensa negra em Florianópolis, nas primeiras décadas após a Abolição. Mostra como os “homens de cor” letrados da capital catarinense se mobilizaram em prol de direitos, valendo-se, para tanto, de jornais, que vocalizavam seus projetos de ascensão social e de cidadania.

Já Petrônio Domingues investiga a presença do jazz no meio negro de São Paulo na década de 1920, demonstrando como o estilo de origem afro-diaspórica impactou a vida daquele segmento populacional, influenciando suas experiências culturais relacionadas especialmente aos estilos modernos e cosmopolitas. No artigo posterior, Yussef Daibert Salomão de Campos discute como a Constituição brasileira de 1988 trata os direitos quilombolas e indígenas, tanto em relação à terra quanto à cultura. Seu argumento é que a Carta Magna é incoerente, na medida em que separou o binômio lugar e território das práticas e bens culturais classificados como patrimônio. A seu ver, essa separação, que aparece no texto legal, só pode ser compreendida à luz do jogo político.

Ao reconstituir a trajetória dos Cazumbás na Bahia, José Bento Rosa da Silva examina em seu artigo como uma família de descendentes de africanos, desde o século XIX, mantém o sobrenome familiar e como isto tem implicações nas questões relacionadas à identidade, história e memória dos Cazumbás. Na sequência, Fernanda Barros dos Santos lança seu olhar para a relação entre Estado e movimentos sociais negros no Brasil contemporâneo. Além de comparar como os governos de José Sarney (1985-1990), Fernando Henrique Cardoso (1995- 2003) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) lidaram com a questão racial, a autora esquadrinha o surgimento da Fundação Cultural Palmares (1988) e da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2010.

Luís Fernando Cerri e Rubia Caroline Janz, por sua vez, abordam a implantação da lei n. 10.639 / 2003, a qual tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica, por meio de elementos da aprendizagem e das opiniões de estudantes. No artigo, são analisados como os estudantes do Ensino Médio da cidade de Ponta Grossa, no Paraná, concebem questões relativas à escravidão, práticas de resistência e o processo de abolição do cativeiro. Já Gustavo de Andrade Durão, no artigo derradeiro desse dossiê, perscruta alguns aspectos do conceito de pan-africanismo como meio de se conectar ao debate pós-colonial. Enfocando análises transnacionais de pensadores importantes como Edward Blyden, Marcus Garvey e W. E. B. Du Bois, o autor procura mapear as perspectivas pelas quais tais pensadores se debruçaram para constituir as definições de pan-africanismo e do pós-colonial, um debate atual e desafiador para os estudos afro-diaspóricos.

Os artigos aprofundam análises e discussões cujo eixo gira em torno de escolhas temáticas, objetos, abordagens, cronologias e universos empíricos que interseccionam o pósabolição e as questões contemporâneas emergentes. O objetivo foi reunir pesquisas centradas em processos históricos multifacetados – experiências, ideias, narrativas, agências, contextos, movimentos, instituições e seus protagonistas. O dossiê oferece ao leitor um rico e instigante painel do que vem sendo produzido sobre a história, a memória e as políticas raciais a respeito do Brasil na era das emancipações e do pós-abolição, o que certamente contribuirá para a ampliação do conhecimento sobre o campo.

Marc Bloch define a história – “ciência dos homens no tempo” – a partir de dois atributos: o seu caráter humano e as relações dialógicas entre passado e presente. Com relação a este último aspecto, chamou a atenção para a importância de compreender o “presente pelo passado” e o “passado pelo presente”, nunca pelas vias de um trajeto linear, mas levando em conta as influências mútuas (rupturas e continuidades). Bloch ressalta que a visão de um mesmo passado se altera conforme as transformações de longa, media e curta duração. O historiador é um sujeito de seu tempo.3 As questões próprias de sua época demandam revisões constantes sobre o passado que, por seu turno, sugerem novas questões e novas formas de investigação que culminam na reescrita da história.

A história da abolição e pós-abolição no Brasil está sendo (re)escrita, em permanente diálogo com as questões do tempo presente. Se é verdade que, apesar de passados 130 anos da Lei Áurea, os egressos do cativeiro e / ou seus descendentes ainda enfrentam uma série de desafios na esfera do reconhecimento, dos direitos e do exercício da cidadania no seio da nação, não é menos verdade que vem sendo crescente a sensibilização do Estado e da sociedade civil às políticas de reparações, ações afirmativas etc. A história e a memória são arenas de disputas e embates de projetos de nação. Nesse contexto, “lembrar”, argumentam Lilia Schwarcz e Flávio Gomes, é um “exercício de rebeldia; de não deixar passar e de ficar para contar”.4 A história da escravidão à liberdade já foi tecida, ao passo que a da liberdade à igualdade ainda faz parte dos horizontes de expectativas. Que um dia as marcas do passado escravista, atualizadas sob o selo das desigualdades raciais, deixem de atormentar o país.

Notas

1 BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 19.

2 MACHADO, Maria H. P. Toledo e SCHWARCZ, Lilia Moritz. Apresentação. In: MACHADO, Maria H. P. Toledo e SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs). Emancipação, inclusão e exclusão: desafios do passado e do presente. São Paulo: Edusp, 2018, p. 11-12.

3 BLOCH, Marc. Introdução à História. Mira-Sintra; Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997 [Edição revista, aumentada e criticada por Etienne Bloch].

4 SCHWARCZ, Lilia e GOMES, Flávio. Apresentação. In: SCHWARCZ, Lilia e GOMES, Flávio (orgs). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 19.

Petrônio Domingues

(Organizador)


DOMINGUES, Petrônio. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História, memória e cidades / Mnemosine Revista / 2017

Reconhecer a cidade como um texto, nos convida a mergulhar na polissemia das experiências urbanas. A trajetória de ensino, pesquisa e extensão direcionada à história e à geografia local mediada pelos narradores dos bairros, das praças e dos demais espaços públicos conduz ao encontro com as memórias individuais e coletivas locais. Investir em uma cultura política de resistência ao processo de globalização implica em reconhecer as vozes locais que foram silenciadas pela memória oficial celebrativa herdeira da História Positivista.

Conforme sugeriu Walter Benjamin, a história à contrapelo tem uma dimensão política muito profunda, as pesquisas que ousam adentrar o cotidiano dos corpos invisíveis da e na cidade do passado e do presente coloca os leitores em contato com o avesso da história oficial. Essa dobra no fazer historiográfico pode ser experienciada por diversos caminhos metodológicos como a Educação Patrimonial, a Pedagogia da Cidade, a história oral e outros percursos de caminhada pela cidade que apresentem a sua diversidade social e cultural no que diz respeito às dimensões étnicas, de classe, gênero e gerações e que demonstrem o quanto o fazer e o viver urbano é plural, contraditório e complexo.

Dando visibilidade a essa complexidade do viver urbano no Brasil e na Argentina, ou seja, em experiências urbanas latino americanas, caminhemos pelas diversas cidades brasileiras de estados da região Nordeste como Pernambuco com o olhar voltado para a cidade de Recife e mais intensamente no estado da Paraíba onde são narradas experiências urbanas da capital João Pessoa, de uma cidade média, a chamada Rainha do Agreste da Borborema, Campina Grande , adentremos cidades interioranas menores como Umbuzeiro e Pedro Velho. Ainda seguindo nossa caminhada pelo Nordeste, vamos ao encontro das experiências urbanas da cidade de Currais Novos no estado do Rio Grande do Norte. Do Nordeste em direção à região norte do país, Amazonas, mergulharemos nas experiências citadinas de Currais Novos. De modo a ampliar nossa cartografia enquanto caminhantes nos dirigimos ao Sudeste do Brasil por meio de uma experiência de pesquisa 8 histórica fundamentada na cultura política da cidade do Rio de Janeiro e dando passos mais ousados e internacionais, caminharemos pelas trilhas da cidade de Buenos Aires movidos pela pedagogia citadina museológica.

Esse dossiê expressa e enfatiza a pluralidade das sociabilidades e sensibilidades citadinas nordestinas, nortistas, norte rio-grandenses e da região sudeste, mais especificamente, cariocas e no âmbito internacional, as experiências urbanas de Buenos Aires, com o olhar voltado para os museus. Esse mergulho historiográfico amplia as possibilidades investigativas sobre as cidades e o ensino de história local, bem como nos convida a aprofundar o diálogo entre ensino e pesquisa no processo de educação histórica de modo a provocar nos educandos o desejo de ler suas cidades e escrever outras histórias citadinas para além da cidade vertical. Outros leitores, narradores, escritores e ouvintes das cidades entram em cena deshierarquizando quem faz e quem conta a história, entrelaçando saberes acadêmicos com saberes experienciais, dando passagem às vozes dos pescadores, barbeiros, antigos moradores, às crianças, aos militantes de movimentos sociais urbanos de modo a afirmar a polissemia do texto cidade em suas variadas temporalidades e espacialidades.

A autora Alana Cavalcanti nos convida a mergulhar no Rio Sanhauá e nas águas do mar da Praia de Tambaú nos possibilitando encontros com os pescadores, veranistas, e moradores do centro e do litoral pessoense movida pela inquietação com relação ao processo de mutação da vitrine urbana do centro para o litoral.

Em seu artigo “MEMÓRIAS FLUVIAIS DO IMAGINÁRIO PESSOENSE: O RIO SANHAUÁ COMO NASCEDOURO DA CIDADE DE JOÃO PESSOA- PB E CONSTRUTOR DE IDENTIDADES, ela enfatiza como o Centro da cidade, no final do século XIX a meados do século XX, foi palco das várias transformações da cidade de João Pessoa na Paraíba, como também precursor dos equipamentos modernos de acordo com o contexto. Partindo da escuta das histórias de vida de antigos moradores por meio da narrativa de suas memórias citadinas, a pesquisadora se fundamentou teórico e metodologicamente na História Cultural e suas múltiplas representações (CHARTIER,1990), entendendo a cidade como um texto (CERTEAU, 2014). A metodologia da história oral (BOSI, 2003) e (MONTENEGRO, 1992), também foi fundamental para o desenvolvimento dessa pesquisa. Dessa forma, o presente artigo, busca contribuir com os estudos e debates acerca da cidade, memória e história oral e as mudanças de representações dos espaços citadinos em sua historicidade local.

O segundo artigo escrito pela historiadora da UFRGS, Carmen Zeli de Vargas Gil intititulado” CONVIDA, INTERPELA E DESAFIA: mediações em instituições de memórias de Buenos Aires convida o leitor a reconhecer a importância do@ educador@ histórico como um mediador no conhecimento e reconhecimento das instituições de memórias no meio urbano. Propõe-se a discutir três experiências identificadas na cidade de Buenos Aires, durante o ano de 2015, em um intenso trabalho de acompanhar escolas em espaços de memórias nesta cidade que congrega tantos museus. Que pressupostos assumem em relação ao público escolar? Outorga-se aos alunos um lugar de escuta somente? Como a pergunta pode ser o fundamento da participação ou da transmissão de ideias e valores? Trata-se de interrogantes que estruturam as reflexões tecidas neste texto com ênfase no trabalho pedagógico do Parque de la Memoria, Casa Nacional del Bicentenario e o Museo Etnográfico Juan B. Ambrosetti. A autora enfatiza em seu texto como nessa trajetória dialógica de aproximação, foi possível perceber a importância da pergunta no processo de mediação; a pergunta que convida a olhar mais de perto, interpela, desafia e instiga o diálogo. Portanto, Freire é a inspiração para esta reflexão, assumindo que todo conhecimento começa com a pergunta ou a necessária curiosidade que produz a busca.

Saindo da experiência da Pedagogia da cidade na Argentina, mais especificamente na cidade de Buenos Aires e voltando às tramas citadinas brasileiras, nos deparamos com a narrativa histórica do autor carioca Charleston José de Sousa Assis, historiador vinculado à Universidade Federal Fluminense, que nos convida a pisar o chão carioca caminhando pelas ruas da cidade, pondo-nos em contato com os revoltosos e suas reivindicações no que concerne aos transportes locais, exercendo sua cidadania e buscando a materialidade de seus direitos enquanto moradores, à cidade. Os tumultos de 1987 pelo aumento nas tarifas de ônibus: apontamentos sobre classes populares e cultura política no Rio de Janeiro. Ele nos relata que em 30 de junho de 1987, milhares de pessoas participaram de uma revolta popular no Centro da cidade do Rio de Janeiro, cujo estopim foi um aumento das tarifas de ônibus. Durante cerca de oito horas foram depredados mais de 100 ônibus, entre vários outros alvos. Fundamentado no historiador E. P. Thompson, o autor ressalta que o anormal pode nos auxiliar a desvendar as normas do cotidiano, por esta razão este artigo parte daquele protesto para investigar a cultura política do carioca no período da transição da ditadura para a democracia, que teve como marcos fundamentais a Campanha Diretas Já, os eventos envolvendo a eleição e morte de Tancredo Neves e o sucesso efêmero do Plano Cruzado. Aos registros produzidos na cobertura daquele protesto serão cotejadas às falas de outros populares presentes em cartas encaminhadas à Assembleia Nacional Constituinte e em produtos culturais. No referido período, assistiu-se ao surgimento de uma unidade comum entre os setores populares e os médios empobrecidos em torno de valores como democracia, soberania popular e justiça social, derivados de experiências comuns tanto no campo material quanto no simbólico e vivenciadas, pelo menos, desde meados dos anos 1970, quando da reorganização popular contra a ditadura. A julgar pelas evidências, os manifestantes de 30 de junho de 1987 foram resultado da cultura política surgida tanto do efeito pedagógico daqueles eventos quanto das inúmeras frustrações reiteradamente experimentadas pela sociedade em função dos arbítrios da ditadura.

Do Rio de Janeiro diretamente para a Rainha da Borborema, o historiador Cid Douglas Souza Pereira nos leva a olhar para A CIDADE DE CAMPINA GRANDE CONTEMPLADA POR SEGMENTOS LABORAIS: MEMÓRIA, TRABALHO E VIDA. Conforme afirmou, este artigo apresenta uma discussão em torno das categorias conceituais de trabalho e outras demarcações que fundamentaram a sua pesquisa de Mestrado. Para tentar compreender o mundo do trabalho e dos trabalhadores, em especial os antigos barbeiros de Campina Grande – PB, entre os anos de 1960 a 1980, o autor diz que almejou, a partir da memória, recompor o cenário urbano desses labutadores, os quais fazem do seu ofício uma arte que caminha na contramão das implementações da modernidade, e praticam isso no momento em que, em nome de costumes e hábitos, conservam antigas tradições. Dessa forma, assim como os de “cima”, as pessoas comuns são capazes de narrarem sua trajetória de vida e a história da cidade onde vivem, entrelaçando memória individual e coletiva. Aprenderemos muito com os barbeiros narradores campinenses, uma vez que as barbearias eram e são potenciais espaços pedagógicos masculinos, onde os homens aprendem e ensinam ser homens e a ser citadinos.

Ainda caminhando pelo estado da Paraíba, vamos ao encontro de outros personagens históricos militantes que foram invisibilizados pela história e memória oficial paraibana. A historiadora Eliete de Queiroz Gurjão Silva em seu artigo “PARAÎBA 1817: HISTÓRIA, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO”, ao mesmo tempo que denuncia o silenciamento de uma memória local de extrema relevância, mostra o protagonismo da Paraíba na Revolucão de 1817; a importãncia desta no contexto do início do século XIX; recuperando e ressignificando sua memória; conforme a autora descreveu em seu texto, ela procurou descrever e divulgar seu patrimônio sobrevivente na cidade de João Pessoa-PB. Neste sentido faz uma crítica à historiografia que praticamente ignora a participação das demais províncias na rebelião, narrando-a como apenas A Revolução Pernambucana, tecendo, assim, um véu de esquecimento que apagou-a da memória dos paraibanos. Esse processo de construção de uma nova narrativa com relação á Revolução de 1817 e de denúncia do silenciamento dessa experiência social foi constatado através da execução do projeto que é relatado no final do texto. A historiadora caminhou pela pesquisa-ação ao ir ao encontro das narrativas que reconhecem os protagonistas da revolução de 1817 na Paraíba ao realizar uma pedagogia da cidade por meio de um projeto de extensão cujos objetivos foram: salvar o que restava do patrimônio e da memória da Revolução de 1817 na Paraíba, restaurar placas referentes à Revolução e realizar um trabalho de Educação Patrimonial, tentando sensibilizar parte da população local sobre a importância e significado desse patrimônio, procurando reforçar seu sentimento de pertença e autoestima.

E por falar em lutas, movimentos sociais e invisibilidade dos protagonistas militantes, façamos uma viagem espaço-temporal da cidade de João Pessoa para a comunidade Pedro Velho numa temporalidade bem mais próxima de nós leitores. A autora Ellen Layanna de Lima em seu artigo “UMA COISA É VOCÊ SE MUDAR DE ONDE VOCÊ MORA OUTRA COISA É VOCÊ SER EXPULSO”: ORIGEM E TRAJETÓRIA DO MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGEM NA PARAÍBA” narra as tramas políticas e sociais da comunidade de Pedro Velho no ano de 2004 que foi vítima de uma experiência significativa de perda material e simbólica com o rompimento da barragem de Argemiro Figueiredo (Acauã) na Paraíba. Segundo a historiadora, este fato acarretou o aprofundamento das desigualdades sociais, ao passo que produziu centenas de famílias que além de pobres, ficaram sem terra para manter a atividade agrícola, atividade que garantia o sustento da maioria dos Pedro velhences. Para além de um prejuízo econômico, a população ainda enfrentou a suplantação de bens culturais e a perda de suas referências tradicionais. Acreditando no rompimento das “barreiras do silencio” a autora nesse artigo contou um pouco da história de Pedro Velho, comunidade inundada no mês de Janeiro de 2004, e seus desdobramentos (sendo um de seus principais a formação do Movimento dos Atingidos por Barragens) a partir do olhar de moradores e militantes. Sua pesquisa teve como principal ferramenta metodológica a história oral. Ao adentrar o cotidiano dessa comunidade em ‘ruìnas’ através das narrativas dos moradores militantes, não militantes e de diversas gerações , a pesquisadora chega a conclusão que a perda de referência no âmbito material e cultural foi algo presente na fala dos entrevistados, tal perda engrenou a produção de estratégias de adaptação e resistência. Neste sentido, para ela, a memória, a organização social e a inspiração pela luta, foram pontos notáveis na fala dos narradores que procuramos destacar.

As crianças também são protagonistas urbanos, o historiador Humberto da Silva Miranda, professor da UFRPE trata de uma pedagogia da cidade por meio da ênfase do seu trabalho na importância da participação das crianças na escrita desse texto cidade de modo horizontal, combatendo o olhar vertical com relação à urbs. Em seu artigo”-QUANDO A RUA SERÁ MINHA? HISTÓRIA, INFÂNCIAS E O DIREITO DE VIVER A CIDADE” o autor, conforme ele mesmo afirma, objetiva debater a relação entre a cidade e o “viver a infância” a partir da preocupação de como foi construída, historicamente, a noção de criança cidadã. Tendo como foco o âmbito da rua, ele procurou discutir como esses espaços se tornaram, ao longo do século XX, cenários das mais diferentes formas de sociabilidades nas cidades. As ruas como espaço de brincadeiras e de conversas tornaram-se locais de moradia, de trabalho e até de exploração sexual. A grande pergunta que moveu o seu caminho investigativo é como o Sistema de Justiça brasileiro produziu dispositivos legais a fim de garantir o direito das crianças viverem o espaço urbano? A partir desta pergunta, o historiador analisou textos legais como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária investigando como estas leis produziram o discurso sobre o direito da criança viver a cidade.

Dando continuidade a essa reivindicação do direito á cidade pelos moradores comuns e da relevância de sua participação social na cena urbana, voltamos á cidade de Campina Grande e chegamos ao maior bairro da cidade dessa cartografia citadina, uma vez que possui mais de 30.00 habitantes, o bairro das Malvinas que conforme enfatizado pela historiadora Keila Queiroz e Silva, esse bairro diz muito de Campina Grande e seus moradores ao gritarem por justiça e pertencimento local. O artigo “OS BAIRROS DIZEM A CIDADE: O MAPEAMENTO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DOS “OUTROS” MORADORES URBANOS” coloca em evidência os outros cartógrafos de uma cidade plural e dos de baixo, denunciando e estranhando as narrativas históricas e midiáticas que dão visibilidade aos grupos políticos dominantes e invisibilizam as tramas históricas locais dos sujeitos ordinários e suas artes de fazer, fazendo uam viagem certeauniana e também benjaminina pela cidade de Campina Grande. A nossa escolha teórico-metodológica historiográfica certeauniana e benjaminiana deu passagem a outras vozes, a outros rostos, a outras paisagens, a outras formas de luta, resistência e sociabilidade que nos permitiram reescrever o texto cidade, colocando em cena novos personagens e novas sensibilidades urbanas, reconhecendo o protagonismo histórico dos sujeitos ordinários (CERTEAU:1994) que não aparecem nos livros didáticos, nem nos documentos oficiais. Amparada na metodologia da história oral, a autora trabalhou com histórias de vida dos moradores de bairros populares da cidade de Campina Grande e identificou a partir de suas narrativas, o patrimônio cultural tecido por eles em seu cotidiano do trabalho, do lazer e da sociabilidade dentro do bairro. Através de sua atuação no Programa Pet-Educação, a pesquisadora juntamente com seus alunos orientandos fez um mapeamento do patrimônio cultural imaterial dos moradores e registrou esse legado através da produção de um documentário com relatos biográficos dos artistas mapeados.

Retomando nessa caminhada por diversas trilhas urbanas geográficas, adentremos o universo das “MEMÓRIAS DO TRABALHO NA MINERAÇÃO BREJUÍ: PROPOSTA PARA USO DA HISTÓRIA LOCAL NO ENSINO MÉDIO INTEGRADO EM MINERAÇÃO, EM CURRAIS NOVOS / RN”, artigo esse que tem como autores os historiadores Cléia Maria Alves, Francisco das Chagas Silva Souza, Olivia Morais de Medeiros Neta.

Neste artigo eles narram que entre os anos de 1945 a 1981, a Mina Brejuí, em Currais Novos-RN, se destacou nacionalmente pela produção de sheelita. Ela hoje é um parque temático e guarda uma memória do trabalho. Logo, é um lócus constitutivo de uma memória histórica de um determinado grupo social, os mineradores. Portanto, possui um potencial educativo à medida que expressa algo memorável, contribuindo de forma que os educandos possam situar-se como sujeitos históricos em um processo de construção e compreensão de tempos e espaços dos “lugares de memória”. A pesquisa do referido autor tem o objetivo de discutir sobre proposta de uma unidade didática sobre a História Local da Mineração Brejuí como contributo para as aulas de História e as reflexões sobre o mundo do trabalho, no Ensino Médio Integrado em Mineração, na Escola Estadual Manoel Salustino, em Currais Novos-RN. Podemos considerar que o autor educador contribui para a escrita de uma pedagogia da cidade de Currais Novos, história escrita com os seus educandos, entrelaçando ensino e pesquisa.

Cruzando as fronteiras entre o Nordeste e o Norte brasileiro, seremos convidados a ler o artigo do autor Paulo de Oliveira Nascimento. Tendo esses narradores como nossos guias citadinos, chegaremos na cidade de Eurunepé no estado do Amazonas. O artigo “NARRADORES DE EIRUNEPÉ: Oralidade, Narrativa e Ensino de História na (re) construção de uma Memória Coletiva urbana”.

Nascimento afirma que a memória coletiva possui uma significativa gama de vestígios do passado de uma cidade. Segundo esse autor, Na Amazônia, esta memória coletiva desempenha um papel muito importante enquanto fonte histórica, dada a quase inexistência de quaisquer outros vestígios. Memória reatualizada, Memória disputada, Memória viva, esta chega à sala de aula através da fala dos alunos e alunas, que ouvem as histórias de seus pais e avós. Neste texto, eles tratam das relações entre a Memória Coletiva e o Ensino de História, a partir de sua experiência didático-pedagógica com alunos e alunas da 1ª e 2ª série do Ensino Médio, do IFAM / Campus Eirunepé. Esse relato de experiência de ensino e pesquisa se destaca como mais uma colaboração nesse dossiê no sentido de repensar e ampliar os caminhos metodológicos no processo de educação histórica.

De volta à Paraíba, mais especificamente à cidade de Umbuzeiro na Paraíba e encerrando nossa caminhada por diversas cidades e suas complexidades, encontramos o artigo de Tatiane Vieira da Silva “AZUL OU ENCARNADO, NÃO IMPORTA A COR DO ORNATO, A MATIZ É UMA SÓ. É FESTA EM UMBUZEIRO, É DIA DE VAQUEJADA!”. Nesse artigo a autora enfatiza que a cultura local exerce um papel singular no cotidiano dos pequenos centros urbanos, na medida em que provoca sociabilidades, integra as referências identitárias e os sentimentos de pertença. Ela diz a cidade de Umbuzeiro ressaltando A cidade paraibana de Umbuzeiro, sediou por várias décadas uma das vaquejadas mais antigas da região. Essa prática rural adentrou o espaço urbano, conquistou adeptos, atraiu multidões e se tornou a melhor e mais afamada festa daquelas paragens. Sua pesquisa foi norteada pela metodologia da história oral (ALBERTI, 2011) e das fontes jornalísticas (LUCA, 2011). O que possibilitou que a referida pesquisadora investigasse a historicidade da vaquejada de Umbuzeiro e mergulhasse nas experiências vividas, relembrando hábitos, valores, e práticas da vida cotidiana daqueles que vivenciaram aquelas festas, conforme ela mesma salienta em seu trabalho. Começamos nossa caminha entre o rio e o mar pessoense e concluiremos imersos na experiência das vaquejadas da cidade de Umbuzeiro. Desejo uma prazerosa caminhada pelas cidades aqui apresentadas e representadas a todo@s os@s leitore@s.

Keila Queiroz e Silva – Doutora (UAED / UFCG)


SILVA, Keila Queiroz e. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.8, n.4, out / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Violência no Século XX: entre trauma, memória e história (II) / Boletim Historiar / 2017

É com grande satisfação que nesta edição damos continuidade a publicação do “Dossiê Violência no Século XX: entre trauma, memória e história” com seu segundo volume. Organizado pelas professoras Monica Grin e Silvia Correia, o dossiê foi composto por trabalhos de alunos do curso “Violência no Século XX: entre trauma, memória e história”, oferecido pelo Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ em 2016.

No primeiro artigo Lucas Vinicius Erichsen, analisa o livro “Matadouro 5, ou A Cruzada das Crianças: Uma dança de etiqueta com a morte” de Kurt Vonnegut, (1969). É uma narrativa-testemunho do autor que serviu ao exército americano e foi prisioneiro dos nazistas durante a II Guerra. Assim, Erichsen procura estudar sobre a historicidade das práticas do matadouro, entendendo as possíveis maneiras de abordar sobre o tempo, o testemunho e a memória de guerra. Ainda sobre Historia e Memória no campo da História do Tempo Presente, Willian Santos Pereira estuda as cartas publicadas pela revista Veja em 1989 sobre Fernando Collor de Mello. O autor analisa a representação da imagem política de Collor pelos leitores durante a eleição presidencial. Desta forma, trabalha com a memória em depoimentos escritos para entender como essas pessoas expressavam seus sentimentos utilizando suas experiências para discutir o presente.

Em seguida, Lucas de Mattos Moura Fernandes estuda ideias de ensaístas e historiadores sobre a relação entre História e Memória e as experiências traumáticas do século XX causadas por atos de violência. Para assim compreender como tais acontecimentos foram reelaborados através de testemunhos, favorecendo a construção de uma narrativa e de uma identidade. Seguindo o campo da História e Memória, João Paulo Henrique Pinto procura compreender a construção de uma memória histórica oficial angolana. Foram analisados livros didáticos de história do país após a independência e utilizados pelo seu sistema educacional. O autor apresenta como ocorreu o processo pela busca de uma identidade nacional ao questionarem a colonização portuguesa em meio a uma diversidade étnica, racial e cultural. Contextualizando esse processo com o desenvolvimento de seu sistema educacional.

No último artigo do dossiê e sobre História e Cinema, Andrey Augusto Ribeiro dos Santos analisa como as narrativas israelense e palestina sobre o confronto entre ambos aparecem no cinema. Seu objeto são os filmes, Munich, uma produção norte-americana de Steven Spielberg, e Paradise Now, uma produção palestina do árabe-israelense Hany Abu-Assad, ambas de 2005. Sendo Marc Ferro e Robert Rosesntone os seus principais referenciais teóricos para buscar no cinema reflexos da sociedade que o produziu em torno a um debate político e uma construção da memória coletiva.

Além do dossiê temos Caroline de Alencar Barbosa em trabalho sobre a importância da propaganda nazista na educação dos alemães durante a II Guerra. Suas fontes são os cartazes publicados no periódico Der Stürmer, pertencente ao publicitário Julius Streicher. Tais cartazes disseminavam o ódio antissemita, trazendo o judeu como o “outro” conveniente. Também sobre Educação, Matheus Oliveira da Silva debate sobre a Base Nacional Curricular Comum, referente às mudanças no ensino de história. Devido à quantidade de críticas que a proposta sofreu de diferentes seguimentos, o autor buscou notas, cartas e pareceres de entidades de classe sobre a Base a fim de compreender qual é o ensino de história idealizado.

Agradecemos a todos pela colaboração e apoio com submissões de textos e com a frequente divulgação do periódico. Desejamos uma boa leitura.

Os editores.


Editores. [Violência no Século XX: entre trauma, memória e história-2º Volume]. Boletim Historiar. São Cristóvão, n.18, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Cidade e Memória / Urbana / 2017

Andar pela cidade, perceber o traçado de suas ruas, estudar os estilos arquitetônicos de seus prédios ou o seu centro histórico nos abre a possibilidade de ver e viver a cidade em perspectivas plurais, mas que deixam ainda obscuras tantas outras possibilidades de leitura do espaço citadino. Neste número a Urbana abre espaço para discussões que nascem da preocupação em entender a cidade como um espaço que ganha contornos e formas ao sabor das memórias que a constituem. A cidade torna-se plástica, moldável, maleável às falas de seus tantos habitantes, visitantes, urbanistas, cronistas, enfim, de todos aqueles que com ela vivem ou viveram algum tipo de relação – seja de identificação ou de estranhamento.

Pensar essas narrativas ditas e escritas em diversos momentos da vida dos habitantes da cidade consiste em um desafio instigante ao pesquisador do urbano. A todo instante nos deparamos com a defesa de alguns historiadores de que a nossa narrativa deve ser marcada pela objetividade e pelo caráter de cientificidade que lhe é inerente. Parece-me bastante propositivo pensar na construção da história a partir dessa mescla entre os “desejos” do historiador e seu compromisso com aquilo que suas fontes o permitem dizer. Reconhecer a impossibilidade de atingir uma verdade “absoluta” é reconhecer a pluralidade inerente à própria história, mesmo sem perder de vista que essa pluralidade dependerá dos vestígios, dos indícios que elegemos como significativos para tal pesquisa.

A saber, como nos ensina Bloch, a história carece de uma dose imensa de escolha pessoal, e essas escolhas são fruto do lugar em que se encontra o historiador. Lidar com a impossibilidade da construção de uma narrativa objetiva e total já era uma preocupação apontada por Lucien Febvre ao afirmar que “não adianta, você nunca poderá ver tudo, haverá sempre fontes que lhe escapam” (apud DUBY, 1989, p. 37). Por isso, usando a metáfora criada por Duby, o passado se apresenta como um “tecido amarrotado, coçado, rasgado”; ao historiador jamais será possível reconstitui-lo em sua totalidade, ou sequer conhecer a extensão daquilo que está perdido. As lacunas, assim como a subjetividade, são partes inerentes ao nosso ofício. Ao historiador fica o desafio de lidar com os limites, com aquilo que o lugar de produção da história lhe permite ou lhe proíbe dizer, uma vez que

a história se define inteira por uma relação da linguagem com o corpo (social) e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo impõe, seja à maneira do lugar particular de onde se fala, seja à maneira do objeto outro (passado, morto) do qual se fala (CERTEAU, 2008, p. 77).

Somente quando consideramos a importância do lugar social [1] no processo de construção da história é que perceberemos sua própria historicidade. O nãolugar impede a história de ser história e o historiador de construir o seu corpus documental. O historiador – que tem o tempo como material de análise ou como objeto específico – trabalha

de acordo com os seus métodos, os objetos físicos (papéis, pedras, imagens, sons, etc.) que distinguem, no continuum do percebido, a organização de uma sociedade e o sistema de pertinências próprias de uma ‘ciência’. Trabalha sobre um material para transforma-lo em história. (CERTEAU, 2008, p. 79)

A produção da narrativa histórica acaba voltando-se a uma postura de respeito aos interlocutores com os quais lidamos na pesquisa. Devemos ter com eles uma postura de respeito, postura expressa na necessidade de inserir cada um deles no seu lugar de autor, levando em consideração o seu arcabouço conceitual – que informa e institui as suas interpretações acerca do mundo. Estaríamos, assim, diante de “um quadro vivo resultante da recusa em bani-los de antemão ou de cristalizá-los como paradigmas; uma atitude respeitosa em relação às posições assumidas, ainda quando delas discordamos.” (BRESCIANI, 2009, p. 183) Assim, essa postura respeitosa deve ser estendida tanto aos autores com que dialogamos quanto, e talvez sobretudo, aos nossos colaboradores – que se dispuseram a narrar suas experiências, ou às narrativas memorialísticas e tudo o que constitui a(s) memória(s) citadina(s).

Compartilhando da ideia apresentada por Jeanne Marie Gagnebin no prefácio ao volume I das “Obras Escolhidas de Walter Benjamin – Magia e Técnica, Arte e Política”, em que afirma que, para Benjamin, “a reconstrução da experiência deveria ser acompanhada de uma nova forma de narratividade” (GAGNEBIN, 1994, p. 09) este número da Revista Urbana apresenta-se como espaço para discussões sobre a relação existente entre experiência, narratividade e memória como possibilidade de entendimento das trajetórias trilhadas pelos diferentes indivíduos que compõem uma coletividade e a forma como se apropriam das imagens que parecem caracterizar essa mesma coletividade a partir de duas questões principais: a relação entre a memória e a história; e o entendimento do espaço citadino a partir das memórias que o constituem.

Pensar a relação entre memória e história é deparar-se com uma complexidade de entendimentos e de procedimentos que norteiam o trabalho do historiador para quem, assim como Proust, pensa que

a vida é vagabunda, nossa memória é sedentária, ou seja, à descontinuidade das experiências ao longo do tempo, a memória, igualmente descontínua, revela a possibilidade de algo único. A memória, portanto, constrói o real, muito mais do que o resgata (SEIXAS, 2001, p. 39).

É, portanto, entender a memória como presentificação do passado, (re)elaboração, (re)construção de uma experiência vivida. A memória não traz de volta a experiência vivida, mas constrói uma elaboração, uma digressão sobre essa mesma experiência. O falar, o narrar – embora impossibilitado pela vida moderna, como afirma Benjamin – constrói uma unicidade e uma lógica cadencial para os acontecimentos que não existia no momento em que a experiência se deu. Esse “algo único” de que nos fala Jacy Seixas (2001), é essa possibilidade que a memória tem de permitir uma organização de fatos descontínuos, uma ordenação mesma da vida em torno de expectativas e de questões presentes – é o dar forma à memória pessoal, mencionado por Monique Augras.

O rememorar é, então, entendido como um ato político e intencional de formulação de uma imagem sobre o passado e sobre a experiência vivida, seja ela entendida na individualidade ou mesmo na coletividade. Um ato que não prescinde da marca do seu narrador, do seu enunciador. A narrativa traz em si “impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso da argila.” (BENJAMIN, 1989, p. 107) Essa impressão remete, inclusive, a uma noção de tempo que varia de acordo com a situação vivenciada. Para Bergson, a mesma durée pode ser vivenciada de formas distintas – pode parecer interminável se vazia de significado, ou ainda, parecer um momento fugaz se plena de intensidade psicológica. (BENJAMIN, 1989)

Aqueles que são incitados a lembrar dão à sua memória contornos próprios dessa vivência, uma vez que “lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição”. (BOSI, 1994, p. 20) Pensar na estreita relação entre passado e presente quando se fala de memória é pensar também em como se constitui a sua dimensão temporal. Passado e presente estabelecem uma relação de reciprocidade na medida em que constituem partes integrantes do processo do rememorar. Aquilo que Bergson chama de presentificação da durée seria o processo de apropriação mesmo das lembranças e transformação dessa experiência em memória voluntária. Benjamin chega a afirmar que esse processo de presentificação seria uma forma, também, de amortização do choque das experiências vividas pela uniformização dessas experiências em uma narrativa coerente, mas que “não pode contudo evitar que nela persistam a existência de fragmentos desiguais e privilegiados.” (BENJAMIN, 1989, p. 136) Por mais coesão que se tente dar a rememoração de um fato esse processo implicará sempre em imperfeições, em lacunas que são inerentes a qualquer tipo de narratividade.

Este caráter lacunar e imperfeito da memória é, para Todorov, inerente a ela. Não há oposição entre memória e esquecimento – eles são partes de um mesmo processo.

O uso da memória como instrumento de elaboração do conhecimento histórico pressupõe mais do que conceder ao outro (ao colaborador) o direito à lembrança; é mais do que isso, Todorov lança o desafio de conceder ao nosso interlocutor o direito ao esquecimento. O processo de elaboração de uma imagem de si no presente, implica que “para comenzar a hablar, hay que poner o pasado entre parêntesis” (TODOROV, 2000, p. 27), ou seja, repensar ações, vivências, decisões e dar a elas os contornos que o momento presente lhe exige, ou lhe permite fazer. Até mesmo considerar a impossibilidade de fazê-lo, o direito de manter no esquecimento fatos imagens que não queremos mais relacionar à nossa vida, à nossa imagem. Essa complexa dinâmica, própria da memória, se amplia quando, ao ser instigado a lembrar o indivíduo se vê diante de um processo que vai conceder ao outro (geralmente um desconhecido) as interpretações sobre sua própria experiência. Abrir mão do lugar de construtor de si não é processo fácil, portanto, implica ao depoente a construção de uma imagem bem consolidada de si e que não deixe muita margem à interpretações “errôneas” sobre ele ou sua atuação num determinado momento do passado.

Bastante profícua é a ideia dessa complexidade [2] de que fala Todorov e que nos instiga a pensar os meandros da relação que se constrói entre a memória e a história. A história se coloca fora dos grupos que viveram aqueles acontecimentos e cria ligações artificiais entre eles. Há uma multiplicidade de tempos tantos quantos são os grupos que compõem a sociedade. Mas nenhuma dessas consciências coletivas de tempo se impõe a todos os outros grupos. Ou seja, não há como falar em uma memória universal, como pretende a história, pois, como afirma Benjamin ao discutir Proust

um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.” (BENJAMIN, 1994, p. 37)

O trabalho com a memória e com a história oral implica considerar, além das subjetividades, as inúmeras temporalidades que as compõem: da experiência vivida, da experiência rememorada, do presente em que rememora, e do presente do historiador quando se dedica a estudar essa rememoração.

Ao colaborador cabe a construção e a tessitura da narrativa da forma que achar mais adequada para os contornos que quer dar à sua memória. Diferentemente dos historiadores, o colaborador não tem uma preocupação em entender ou mesmo explicar os fatos que narra ou as conexões que estabelece entre eles – essa é uma característica marcante da narrativa para Benjamin. (1989, p. 203) A riqueza da oralidade, para o historiador, está em identificar esses contornos e a importância deles para a elaboração da narrativa do colaborador. Assim, os meus interlocutores ao falarem de Brasília e da relação que estabelecem com essa cidade me concedem não apenas o conteúdo mesmo de sua narrativa memorialística, mas os silêncios e as inquietudes que vivenciam no exercício de lembrar.

Assim, pensar a cidade a partir da fala de seus moradores, das memórias de seus edificadores, gestores, enfim, daqueles que a constituem, implica refletir sobre essas várias temporalidades e subjetividades que estão envolvidas no processo de historiar. A experiência de hoje lembrar sobre um fato passado, ocorrerá mediante o estímulo de questões colocadas pelo historiador / entrevistador, de fotografias apresentadas ou mesmo de um passeio pelas ruas da cidade, no entanto, essa será uma memória perpassada pelos limites que o historiador acaba colocando para o seu colaborador [3] no momento da entrevista / pesquisa.

Entendida como um espaço plural e complexo a cidade ganha contornos a partir dos diferentes discursos que incidem sobre ela – de urbanistas, de jornalistas, de cronistas, de memorialistas e de habitantes que acabam atribuindo significados à cidade e aos usos que são feitos dela a partir de seu lugar de atuação. Neste número a Revista Urbana apresenta as discussões e perspectivas traçadas por diferentes estudiosos sobre o espaço citadino e as relações com seus habitantes.

Notas

1. Lugar social entendido a partir da proposta de Michel de Certeau quando afirma que este é caracterizado pelo lugar social, político, econômico, institucional, ideológico, etc. ocupado pelo historiador no momento de elaboração de seu texto. (CERTEAU, 2008).

2. Ver também: RICOEUR (2007); SEIXAS (2001); NORA (1993); LE GOFF (2003); BERGSON (1999); HALBWACHS (1990); BOSI (1994).

3. Pesquisadores do NEHO / USP utilizam a nomenclatura de colaborador para referirem-se aos entrevistados, por entenderem que estes não apenas narram as suas experiências individuais, mas contribuem para a elaboração e consolidação de um saber que depende da forma como eles trabalham essa memória.

Referências

BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras escolhidas III – Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, pp. 103-150.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 3 ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

BRESCIANI, Maria Stella Martins. Um possível diálogo entre (e com) os intérpretes do Brasil. In: SOIHET, Rachel (org.). Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, pp. 161-184.

CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: A Escrita da História. 2 ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2008, pp. 65-122.

DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a nova história. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Prefácio: Walter Benjamin ou a história aberta”. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 7-20.

SEIXAS, Jacy Alves de. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas autais”. In: BRESCIANI, M. S. M. & NAXARA, M. (orgs.) Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

TODOROV, Tzvetán. Los abusos de la memoria. Buenos Aires: Paidós, 2000.

Viviane Gomes de Ceballos – Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: vgceballos@gmail.com


CEBALLOS, Viviane Gomes de. Editorial. Urbana. Campinas, v.9, n.3, set / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Lugares e Memória do Século XX / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2017

O presente número da Revista Clio se inicia com os textos reunidos no Dossiê “Lugares e Memória da Cultura” organizado pelos Professores Antônio Paulo Rezende (UFPE) e Augusto Neves (UNINABUCO). Seu objetivo é reunir artigos que analisem historicamente as relações culturais, destacando a sua temporalidade e como elas influenciam na construção do poder na sociedade ao longo do século XX.

No primeiro texto, Janaína Cardoso de Mello toma como objeto de estudo as representações do poder régio ilustrado a partir das relações entre arquitetura, mobiliário e história no âmbito da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Na sequência, Luciana Penna-Franca aborda a cena cultural do teatro amador carioca no final do século XIX e início do XX a partir das publicações de “assuntos teatrais” nos periódicos do Rio de Janeiro, observando sua influência na vivências artísticas e no cotidiano da cidade.

O terceiro texto do dossiê foi elaborado por Aldo José Morais Silva a partir dos debates sobre a escolha de um hino para a cidade de Feira de Santana (BA) entre o final do século XIX e o início do XX. O artigo enfoca as razões das escolhas e como elas representavam as expectativas da sociedade local em relação à sua autoimagem. A partir dos escritos de Manuel Quirino e à luz das concepções propostas por Nora, Morse e Spivak, Bruno Pinheiro analisa os lugares de memória na fase do pósabolição em Salvador (BA).

O quinto texto da coletânea especial enfoca a organização sindical dos trabalhadores em São Paulo. Alzira Lobo de Arruda Campos, Marília Gomes Ghizzi Godoy e Rafael Lopes Souza discutem as conexões e antagonismos entre as influências teóricas europeias e as características históricas do Brasil no processo de construção das organizações de luta em defesa dos trabalhadores.

O sexto texto é foi escrito por Márcio Rogério Olivato Pozzer e analisa o papel histórico das políticas públicas de patrimônio cultural para os museus no México ao longo do século XX, mas precisamente a partir da Revolução Mexicana de 1910. O dossiê, neste número, se encerra com o texto de Carolina C. de Souza Martins e Elio de Jesus Pantoja Alves sobre a experiência de pais e mães de santo no Terreiro do Egito, no Maranhão, na busca pela ancestralidade numa região do município de São Luís que desde os anos 1980 vem sendo ameaçada pela expansão do complexo portuário da capital maranhense.

Para além dos artigos que compõem o dossiê, o presente número da Revista Clio veicula também mais cinco artigos livres e duas resenhas. O primeiro artigo livre foi escrito por Anne Karolline Campos Mendonça e se intitula “As mulheres sem nome: o desenvolvimento de argumentos jurídicos baseados no estatuto feminino. Comarca das Alagoas – Capitania de Pernambuco (1716-1765)”. Nele a autora analisa como as elites coloniais faziam valer seus interesses se apropriando do discurso jurídico sobre aqueles que eram considerados inferiores, no caso específico, sobre as mulheres. Avançamos então para o século XIX, com um estudo sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul intitulado “As Companhias Colonizadoras no processo da imigração italiana em territorialidades do Vale do Taquari / Rio Grande do Sul”, apresentado por Janaine Trombini, Luís Fernando da Silva Laroque e Ana Paula Castoldi, com especial atenção para a atuação das firmas Bastos & Companhia, Cia Colonizadora Rio-Grandense e Tchener & Cia, que existiram do final do século XIX até meados da década de 1920.

Gabriela Fernandes de Siqueira é a autora do terceiro artigo livre veiculado neste número e intitulado “A questão da salubridade em Natal nas primeiras décadas do século XX na ótica dos periódicos A República e Diário do Natal”. Para elaborar seu texto, a autora utilizou, além dos periódicos citados, outras fontes tais como mensagens de governadores, leis e decretos municipais e estaduais. O artigo enfoca as contradições do processo de modernização e aplicação de medidas de higiene na capital do Rio Grande do Norte nas primeiras décadas do século XX. No quarto artigo da série, nos deparamos com a história de um trabalhador tentando fazer valer seus direitos mediante uma ação na Justiça do Trabalho em 1965. Trata-se dos resultados da pesquisa realizada por Márcio Ananias Ferreira Vilela e Marcelo Goés Tavares no acervo de processos trabalhistas conservados na Universidade Federal de Pernambuco. O artigo se intitula “A peleja de João Amaro: um trabalhador rural na luta por direitos (Pernambuco, anos 1960)”. O quinto artigo livre foi escrito por Lourival dos Santos, se intitula “Por uma história do negro no sul do Mato Grosso: história oral de quilombolas de Mato Grosso do Sul e a (re)invenção da tradição africana no cerrado brasileiro”. O texto aborda uma das mais candentes questões da atualidade no Brasil. O autor analisa a oposição surgida entre o Instituto Histórico do Mato Grosso do Sul e a Fundação Palmares sobre a identificação de comunidade quilombolas naquele estado, na primeira década do atual século.

Fechando o presente número, Clio veicula uma resenha, escrita por Wallas Jefferson de Lima e enfoca o livro As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual, escrito por Faramerz Dabhoiwala e publicado no Brasil pela Editora Globo, em 2013, com a tradução de Rafael Mantovani.

A Equipe Editorial da Revista Clio agradece a todos os autores, pareceristas, revisores e colaboradores que contribuíram para a preparação deste número e deseja uma boa leitura.

George Cabral – Editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: georgecabral@yahoo.com

Antônio Paulo Rezende – Organizador do Dossiê. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: cielo77@uol.com.br

Augusto Neves – Organizador do Dossiê. Professor da Faculdade Uninabuco. E-mail: augustonev@gmail.com

Rômulo Nascimento – Vice- editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: romuloxavier7@hotmail.com


CABRAL, George; REZENDE, Antônio Paulo; NEVES, Augusto; NASCIMENTO, Rômulo. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.35, n.2, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Memória e Mídia / Tempo e Argumento / 2017

A explosão dos acontecimentos de maio de 1968, na França, colocou em questão a relação entre a narrativa midiática dos “fatos históricos” e o trabalho acadêmico dos historiadores que consideravam esse tipo de concepção superficial e ultrapassada. Em O Renascimento do acontecimento, François Dosse reinterpreta o clássico artigo de Pierre Nora, que encara “O retorno do fato” com surpresa e desconforto, já que para os herdeiros de Braudel o que importava eram as permanências. Com a irrupção de acontecimentos espetaculares, que já poderiam ser considerados “históricos” no próprio momento em que repercutiam, Pierre Nora compreende que a imaginação histórica das massas difere muito do modo como os historiadores haviam aprendido a lidar com o passado. Preocupado com isso, ele define os limites do historiador no âmbito dos arquivos e debates acadêmicos, deixando o trabalho memorialístico para artistas e jornalistas, sendo que esta produção memorialística poderia servir, ela mesma para ser analisada por historiadores como documentos de época. Mas o que ocorre quando elas são documentos de nossa época? Não há um passado que reverbera no presente? Ou só o presente reverbera no passado, e este não passa de uma imagem caricata que nós produzimos segundo os nossos próprios desejos?

Na trama dos três tempos – o acontecimento, a sua formulação narrativa e a reação que ela desencadeia –, se estabelece uma relação fundamental para compreender a História do Tempo Presente, com novas camadas narrativas produzidas segundo os interesses do momento. Mas como observa Paul Ricoeur, mesmo a primeira narrativa produzida sobre um acontecimento, ainda que realizada imediatamente depois dele, já se constitui como memória. Tanto as notícias de jornais quanto os livros de memórias elaboram narrativas de presumida identidade com seus leitores. Visam convencer e, assim, corresponder a uma certa cumplicidade de expectativas sociais. O material impresso possui um poder de artefato de memória em registro físico, que pode ser guardado e catalogado, o que lhe dá uma perenidade. Aquilo que foi impresso possui significado social marcante, por ter sido publicado, o que envolve relativo reconhecimento e que, portanto, merece ser lembrado posteriormente, como “algo que vai ficar para a História”.

Certamente outras mídias, como a televisão, talvez tenham mais influência na reação do público diante dos acontecimentos narrados imediatamente. Por outro lado, ao longo do tempo, elas tendem a provocar mais esquecimento do que memória, segundo ponderou Frederic Jameson, já que o televisor, como aparelho de fluxo contínuo de imagens, está sempre nos desviando a atenção de uma coisa para a outra, nos distraindo de forma irreversível. Esse aspecto aleatório, em que o telespectador não sabe qual é a imagem, o programa ou o comercial que virá a seguir, bem como aquele que passa em outro canal, também é um complicador para a pesquisa histórica. Isso porque as emissoras são muitas vezes produtoras dos programas veiculados e proprietárias exclusivas do conteúdo que é difundido por elas, ainda que esta seja uma concessão pública. Por essa razão, sempre houve pouca disponibilidade de consulta à programação televisiva para fins de pesquisa histórica. A existência de alguns acervos físicos particulares, como observou Áureo Busetto, permitiu sua transferência para plataformas digitais, o que hoje amplia em muito os limites da pesquisa histórica nesse âmbito, fundamental para compreender a dinâmica do imaginário social a partir dos anos 1970.

Por outro lado, há produtos culturais que preservam sua autonomia no sentido de serem veiculados e vendidos como obras, como foi o caso dos livros, da música gravada em disco e posteriormente do cinema quando os filmes passaram a ser comercializados em fitas para serem vistos em casa. No cinema de ficção clássico, vemos nos chamados “filmes de época” personagens do presente que vestem roupas do passado, e dos seus conflitos pode ser tirada uma lição – tal como analisa Fábio Nigra quando trata da história dos Estados Unidos produzida em Hollywood. Considerado como arte, o cinema se torna também parte da monumentalização do passado, promovida pela memória, pelo desejo de colocar na tela os personagens que já não se encontram ao nosso redor. Ou, então, relembrar as ações daqueles que ainda se encontram ativos, mas que foram marginalizados e esquecidos ao longo do tempo, ou que ainda continuam publicamente em evidência. No cinema documentário, o tratamento dado ao passado é outro. Ao propor que trata diretamente de lugares, acontecimentos e personagens reais, observamos que não é raro que esses elementos dos quais ele trata estejam hoje soterrados, apagados ou desaparecidos, e precisem ser resgatados. Em ambos os casos, o cinema visa lançar uma luz sobre o passado, mas seu objetivo é fazer com que o espectador se identifique de alguma maneira com alguém que aparece na tela ou fala sobre aquilo que se vê.

Como obra, o cinema cria imagens que se cristalizam na memória, que se tornam referências do imaginário coletivo, sobre o qual desejam deliberadamente intervir. E intervir na memória através da mídia é uma preocupação recorrente dos movimentos sociais. Criar táticas de repercussão na mídia é um de seus métodos, embora também contem com suas próprias estratégias de divulgação militante, disputando um espaço no imaginário social. Ao mesmo tempo, lutam por manter o espaço já conquistado, reivindicando‐se como herdeiros das lutas do passado. Mas também esse legado é alvo de disputa na memória coletiva, sendo constantemente ressignificado por diversos grupos em função de seus próprios interesses. Em geral, reivindicam causas que aqueles personagens não poderiam ter concebido, atribuindo a suas ações um sentido muito distante daquele que era formulado. Por essa razão, sempre que propomos analisar as relações entre a memória e a mídia, emerge o problema da história militante, que busca denunciar manipulações da mídia, combater esquecimentos para assim reparar a memória social dos seus erros e omissões.

Essas são as reflexões a que está dedicado este número da Revista Tempo & Argumento, que reúne contribuições de pesquisadores do Brasil e da Argentina. Agradeço à colaboração de Javier Campo, professor da Faculdade de Artes da Universidad del Centro de la Província de Buenos Aires (UNCPBA), que dividiu comigo a organização do presente dossiê. Esperamos com isso ter dado nossa contribuição para pensar as relações entre Memória e Mídia, algo de inegável valor para qualquer pesquisa feita no âmbito da História do Tempo Presente.

Rafael Rosa Hagemeyer – Professor do Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).


HAGEMEYER, Rafael Rosa. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.21, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Lugares e Memória do Século XX / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2017

O presente número da Revista Clio se inicia com os textos reunidos no Dossiê “Lugares e Memória da Cultura” organizado pelos Professores Antônio Paulo Rezende (UFPE) e Augusto Neves (UNINABUCO). Seu objetivo é reunir artigos que analisem historicamente as relações culturais, destacando a sua temporalidade e como elas influenciam na construção do poder na sociedade ao longo do século XX.

No primeiro texto, Janaína Cardoso de Mello toma como objeto de estudo as representações do poder régio ilustrado a partir das relações entre arquitetura, mobiliário e história no âmbito da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Na sequência, Luciana Penna-Franca aborda a cena cultural do teatro amador carioca no final do século XIX e início do XX a partir das publicações de “assuntos teatrais” nos periódicos do Rio de Janeiro, observando sua influência na vivências artísticas e no cotidiano da cidade.

O terceiro texto do dossiê foi elaborado por Aldo José Morais Silva a partir dos debates sobre a escolha de um hino para a cidade de Feira de Santana (BA) entre o final do século XIX e o início do XX. O artigo enfoca as razões das escolhas e como elas representavam as expectativas da sociedade local em relação à sua autoimagem. A partir dos escritos de Manuel Quirino e à luz das concepções propostas por Nora, Morse e Spivak, Bruno Pinheiro analisa os lugares de memória na fase do pósabolição em Salvador (BA).

O quinto texto da coletânea especial enfoca a organização sindical dos trabalhadores em São Paulo. Alzira Lobo de Arruda Campos, Marília Gomes Ghizzi Godoy e Rafael Lopes Souza discutem as conexões e antagonismos entre as influências teóricas europeias e as características históricas do Brasil no processo de construção das organizações de luta em defesa dos trabalhadores.

O sexto texto é foi escrito por Márcio Rogério Olivato Pozzer e analisa o papel histórico das políticas públicas de patrimônio cultural para os museus no México ao longo do século XX, mas precisamente a partir da Revolução Mexicana de 1910. O dossiê, neste número, se encerra com o texto de Carolina C. de Souza Martins e Elio de Jesus Pantoja Alves sobre a experiência de pais e mães de santo no Terreiro do Egito, no Maranhão, na busca pela ancestralidade numa região do município de São Luís que desde os anos 1980 vem sendo ameaçada pela expansão do complexo portuário da capital maranhense.

Para além dos artigos que compõem o dossiê, o presente número da Revista Clio veicula também mais cinco artigos livres e duas resenhas. O primeiro artigo livre foi escrito por Anne Karolline Campos Mendonça e se intitula “As mulheres sem nome: o desenvolvimento de argumentos jurídicos baseados no estatuto feminino. Comarca das Alagoas – Capitania de Pernambuco (1716-1765)”. Nele a autora analisa como as elites coloniais faziam valer seus interesses se apropriando do discurso jurídico sobre aqueles que eram considerados inferiores, no caso específico, sobre as mulheres. Avançamos então para o século XIX, com um estudo sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul intitulado “As Companhias Colonizadoras no processo da imigração italiana em territorialidades do Vale do Taquari / Rio Grande do Sul”, apresentado por Janaine Trombini, Luís Fernando da Silva Laroque e Ana Paula Castoldi, com especial atenção para a atuação das firmas Bastos & Companhia, Cia Colonizadora Rio-Grandense e Tchener & Cia, que existiram do final do século XIX até meados da década de 1920.

Gabriela Fernandes de Siqueira é a autora do terceiro artigo livre veiculado neste número e intitulado “A questão da salubridade em Natal nas primeiras décadas do século XX na ótica dos periódicos A República e Diário do Natal”. Para elaborar seu texto, a autora utilizou, além dos periódicos citados, outras fontes tais como mensagens de governadores, leis e decretos municipais e estaduais. O artigo enfoca as contradições do processo de modernização e aplicação de medidas de higiene na capital do Rio Grande do Norte nas primeiras décadas do século XX. No quarto artigo da série, nos deparamos com a história de um trabalhador tentando fazer valer seus direitos mediante uma ação na Justiça do Trabalho em 1965. Trata-se dos resultados da pesquisa realizada por Márcio Ananias Ferreira Vilela e Marcelo Goés Tavares no acervo de processos trabalhistas conservados na Universidade Federal de Pernambuco. O artigo se intitula “A peleja de João Amaro: um trabalhador rural na luta por direitos (Pernambuco, anos 1960)”. O quinto artigo livre foi escrito por Lourival dos Santos, se intitula “Por uma história do negro no sul do Mato Grosso: história oral de quilombolas de Mato Grosso do Sul e a (re)invenção da tradição africana no cerrado brasileiro”. O texto aborda uma das mais candentes questões da atualidade no Brasil. O autor analisa a oposição surgida entre o Instituto Histórico do Mato Grosso do Sul e a Fundação Palmares sobre a identificação de comunidade quilombolas naquele estado, na primeira década do atual século.

Fechando o presente número, Clio veicula uma resenha, escrita por Wallas Jefferson de Lima e enfoca o livro As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual, escrito por Faramerz Dabhoiwala e publicado no Brasil pela Editora Globo, em 2013, com a tradução de Rafael Mantovani.

A Equipe Editorial da Revista Clio agradece a todos os autores, pareceristas, revisores e colaboradores que contribuíram para a preparação deste número e deseja uma boa leitura.

George F. Cabral de Souza

Antônio Paulo Rezende

Augusto Neves

Rômulo Nascimento

George Cabral – Editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: georgecabral@yahoo.com

Antônio Paulo Rezende – Organizador do Dossiê. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: cielo77@uol.com.br

Augusto Neves – Organizador do Dossiê. Professor da Faculdade Uninabuco. E-mail: augustonev@gmail.com

Rômulo Nascimento – Vice- editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: romuloxavier7@hotmail.com


CABRAL, George; REZENDE, Antônio Paulo; NEVES, Augusto; NASCIMENTO, Rômulo. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.35, n.2, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Violência no Século XX: entre trauma, memória e história (I) / Boletim Historiar / 2016

Foi com grande satisfação que acolhemos o convite da Revista Boletim Historiar para realizar um Dossiê com os trabalhos realizados pelos alunos do curso Violência no Século XX: entre trauma, memória e história, oferecido no Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, no primeiro semestre de 2016.

Franz Rosenzweig, filósofo judeu-alemão que lutou na I Guerra Mundial, em seu Estrela da Redenção, obra escrita em cartões postais desde as trincheiras dos Balcãs, lembra-nos do significado daquela guerra como a preeminência da humanidade em marcha em relação aos homens de carne e osso: “Que o homem se enterre como um verme nas entranhas da terra nua, diante dos tentáculos sibilantes da morte cega e impiedosa, que ele possa sentir lá, em sua violência inexorável, o que normalmente ele nao sente jamais: que seu eu passaria a ser apenas um isso se viesse a morrer, e que cada um dos gritos ainda contidos em sua garganta possa clamar seu eu contra o implacável que o ameaça desse aniquilamento inimaginável… diante de toda essa miséria, a filosofia sorri com seu sorriso oco”[1]

O longo século XX testemunhou diferentes formas de violência – genocídios, colonialismos, guerras nacionais e civis, lutas por autodeterminação, movimentos civis armados, revoluções, golpes de estado, atos de terrorismo que desafiaram tradições de sociabilidade e pacificação, construídas com alguma esperança e com fundamentos éticos, desde o iluminismo. Um importante repto vem se impondo à reflexão historiográfica, uma vez que esses fenômenos, de pertubadora violação de vidas e de direitos, movidos por formas cada vez mais sofisticadas de violência, promoveram traumas, medos, ressentimentos, melancolia, vingança, ódio e desesperança. Uma atmosfera recorrente de sentimentos morais difusos, confusos e de difícil apreensão ontológica e epistemológica, impõe-se, além das estruturas, dos fatos e da temporalidade moderna, como desafio crucial para os que enfrentam de algum modo o tema da violência em suas variadas manifestaçoes. Há, nesse cenário, descontinuidades narrativas, geralmente negligenciadas pelos historiadores, mas obviamente presentes no recalcamento dos que viveram e sobreviveram à violência desse longo século. Inevitavelmente, essa miríade de fenómenos históricos violentos precipitaria uma viragem epistemológica pós-estruturalista, que só a partir no desfecho da II Guerra Mundial ganha maior ênfase. O curso “Século XX: entre trauma, memória e história”, teve como objetivo explorar um certo tipo de produção historiográfica que vem assumindo desde o final da II Guerra Mundial o papel nada confortável de tratar o tema da memória e da história em tempos sombrios.

O conjunto de trabalhos elaborados no curso e que perfazem esse dossiê, qualifica-se pela diversidade de focos, abordagens e temas que resultaram da reflexão sobretudo das formas em que a história e a memória esgrimam pela legitimidade narrativa de circunstâncias que envolvem violência, violações, genocídios, como também pelo desafio de refletir e elaborar narrativas sobre a atmosfera dos sentimentos morais que nasce dessas circunstâncias.

Algo de surpreendente resulta desses trabalhos. Cada um ao seu modo dialoga com teorias, métodos, narrativas, interpretações, literatura que direta ou indiretamente correspondem à questões tratadas ao longo do curso. Há desde temas sobre história, memória e a I Guerra Mundial, sobre monumentos, patrimônios históricos, sobre holocausto e sentimentos morais, sobre justiça de transição e o conceito de história, sobre testemunho, trauma e homossexualidade, sobre cinema e conflitos, sobre cultura de guerra e Guerra Fria, sobre memória, opinião pública e imprensa, sobre violênciae literatura de ficção, sobre dilemas da identidade nacional, enfim, um leque extenso de variações sobre o mesmo tema da violência-história-memória. O resultado vocês terão a oportunidade de conferir no Dossiê que ora se apresenta no Boletim Historiar e que, esperamos, possa colaborar com debates e pesquisas no campo da história da contemporaneidade, séculos XX e XXI.

Nota

[1] Franz Rosenzweig, L’Etoile de la rédemption, Paris, Seuil, 1982, p. 11.

Monica Grin

Silvia Correia


GRIN, Monica; CORREIA, Silvia. [Violência no Século XX: entre trauma, memória e história-1º Volume]. Boletim Historiar. São Cristóvão, n.17, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Terra, Memória e Poder / Revista Trilhas da História / 2016

A Revista Trilhas da História chega ao seu sexto volume contribuindo com a socialização do conhecimento cientifico e como periódico democrático, capaz de proporcionar o diálogo da História com outras disciplinas humanas.

A organização do Dossiê Terra, Memória e Poder é fruto de trabalhos livres e confeccionados, também, para o IX Ciclo de Palestras “Terra, Memória e Poder”, realizado em 2016, no campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. O Ciclo de Palestras teve como intuito proporcionar trocas de saberes entre comunidade interna e externa à universidade, explicitando o diálogo no fazer de práticas de ensino, pesquisa e extensão que contribuam para a compreensão das Ciências Humanas como fruto da ação humana no tempo e instrumento de transformação do meio em que vivemos. O tema “Terra, Memória e Poder” aponta para aos desafios de uma discussão em que, na tessitura de outras histórias, seja possível contemplar reflexões que ultrapassem os muros da academia chegando ao chão da terra e às memórias como constructo da história, assim como às tramas do poder em suas várias facetas, apontando para outros caminhos.

Assim, Gilmar Arruda, conferencista de abertura do IX Ciclo de Palestras, em seu artigo “Memórias e paisagens soterradas na transformação da natureza em terra” retrata a transformação da natureza em terra, englobando a participação de sujeitos sociais neste processo em que denotam a formação de uma memória coletiva. O autor também aborda as paisagens e memórias presentes que necessitam do aval público para aparecerem.

Cássia Queiroz da Silva, também participante do IX Ciclo de Palestras, nos apresenta a resistência de mulheres e homens pobres e livres em Sant’Anna do Paranahyba no século XIX. As fontes utilizadas pela autora são narrativas literárias, correspondências oficiais, livros de Coletoria e inventários referentes ao sul da província de Mato Grosso, no século XIX.

“Os Processos Crimes Como Fonte Histórica: Possibilidades e Usos Na Construção da História do Sul da Província de Mato Grosso” é o artigo de Rejane Trindade Rodrigues, também palestrante no IX Ciclo de Palestras. A autora defende os processos crime como fonte histórica capaz de analisar o Sul de Mato Grosso oitocentista. Para tanto, ela discorre sobre um vasto campo historiográfico que lhe proporciona fundamentação para firmar suas perspectivas, sobretudo quando afirma que os processos crime são fundamentais para compreender o cotidiano e o poder que envolve escravizados, libertos e pobre livres em Sant’Anna do Paranahyba.

Em “Colonização pela ‘pata da vaca’: apontamentos sobre ocupação, migração e precarização da mão de obra rural na Zona da Mata Rondoniense”, Carlos Alexandre Barros Trubiliano e Kamonni de São Paulo examinam o processo de latifundiarização da terra e a precarização da mão de obra rural, sobretudo na Zona da Mata Rondoniense, no Estado de Rondônia. No texto, os autores analisam alguns programas do Estado, como a imigração estimulada por programas de assentamento; o Poloamazônia e o Plano de Desenvolvimento Nacional, que visavam o estimulo econômico para a diversificação da balança comercial regional.

Luiz Carlos Bento, palestrante do IX Ciclo de Palestras, em “História, memória e poder na história da historiografia brasileira” busca evidenciar como a questão nacional e os debates sobre a educação no país fundem-se no pensamento de Manoel Bomfim. O autor defende que os textos, substancialmente os ensaios históricos de Bomfim da década de 1920, dialogam criticamente com o projeto de escrita da história do Brasil produzido pelos institutos, colocando-se como uma antítese dessa cultura historiográfica.

Em “Energia elétrica, memória e poder: substratos para um debate necessário”, Andrey Minin Martin, palestrante no IX Ciclo, aborda o Complexo Hidroelétrico do Urubupungá e salienta que o setor hidroelétrico é rico em memórias, sobretudo quando se considerada o emaranhado de sujeitos, agentes e interventores, no público e privado, que formulam essas memórias, que também podem ser apropriadas e reelaboradas para a manutenção do poder.

Em “Perspectivas históricas: Adam Schaff e a pós-modernidade”, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva tem como intuito discutir dois conceitos basilares na construção do conhecimento histórico: verdade e subjetividade. Para tanto, o autor se utiliza das ideias defendidas por Adam Schaff para abarcar as discussões da cientificidade da história e o subjetivismo relativista dos presentistas, e o pósmodernismo como é compreendido por Perry Anderson.

A construção do Mal no medievo é abordada por Caio Alexandre Toledo de Faria na seção “ensaio de graduação”, no qual faz uma retomada das origens do Mal na Antiguidade Clássica e Oriental. Além disso, a forma como a Igreja impunha o medo para controlar as pessoas, sobretudo pelo imaginário coletivo, também é abordado no ensaio.

A resenha de Luan Gabriel Silveira Venturini convida o leitor a perceber a história de alguns movimentos de esquerda na luta armada contra a ditadura civil-militar brasileira. A entrevista com o historiador Paulo Roberto Cimó Queiroz, realizada pela equipe do PET-História, encerra este número.

Esperamos que este novo número da Revista agrade aos leitores e leitoras e que possam aproveitar os debates oferecidos pelos autores e autoras, evidenciando este periódico como espaço de discussões historiográficas.

Lembramos, por fim, que a revista está aberta ao recebimento de trabalhos em fluxo contínuo.

Boa leitura!

Eduardo Matheus de Souza Dianna

José Walter Cracco Junior

Vitor Wagner Neto de Oliveira

Três Lagoas-MS, outono de 2017


DIANNA, Eduardo Matheus de Souza; CRACCO JUNIOR, José Walter; OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.6, n.11, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Direitas, história e memória / Faces de Clio / 2016

A Revolução Francesa ocorrida no século XVIII é amplamente difundida pela representatividade do evento na história do Ocidente. Entre outras coisas, ela legou ao mundo a dicotomia política que opõe os chamados grupos de direita e de esquerda. Desde então, esses conceitos foram apropriados, relidos e reinterpretados, porém tornando-se termos comuns no vocabulário político.

O século XX contribuiu para fortalecer essa oposição através, especialmente, da Guerra Fria, que opôs o bloco capitalista e o bloco socialista por cerca de 50 anos em estado de tensão permanente, mantendo vivo o forte enfrentamento entre as partes. As vivências verificadas em tal século marcaram intensamente a disputa política entre atores alinhados às ideias de cada parte, de tal forma que essas oposições ainda se fazem presentes e são recorrentemente evocadas em discursos.

Dentre as conceituações atribuídas aos termos direita e esquerda, ganharam notoriedade as reflexões do italiano Norberto Bobbio [1]. Em que pesem as muitas contestações sobre o uso de tais categorias políticas e as diferentes interpretações dos termos, suas ideias têm aparecido de modo destacado nos trabalhos acadêmicos, seja através de sua adoção ou mesmo de sua crítica. Assim, não há consenso que delimite de forma definitiva a conceituação de ambos os termos. Há, na verdade, embates bibliográficos que também são tensos, refletindo o perfil histórico da abordagem dos termos.

De toda forma, é crucial ressaltar que, durante muito tempo, houve substancial interesse de pesquisadores pelo campo da esquerda política, através do qual investigou-se, por exemplo, movimentos sociais, as resistências em contextos autoritários ou os partidos de esquerda, que mais frequentemente estiveram na oposição. Para isso, é natural se observar que o marxismo exerceu profunda influência na produção historiográfica no decorrer do século XX, pautando pesquisas pelos aspectos da luta de classes ou do materialismo histórico-dialético. Recentemente, contudo, cada vez mais pesquisadores têm se atentado para o estudo dos partidos e dos movimentos de direita, abordando suas mais diversas perspectivas teórico-analíticas possíveis. No que concerne às pesquisas brasileiras, cumpre-se destacar que tal movimento enfatizando a abordagem das manifestações da direita política é muito decorrente das pesquisas que se iniciaram acerca do integralismo. Esta manifestação de aspectos fascistas surgida na década de 1930 tornou-se alvo de importantes pesquisas na segunda metade do século XX, chamando a atenção de outros pesquisadores para a investigação de um campo ignorado e que já fora mesmo rejeitado. Hoje, as pesquisas acerca do integralismo brasileiro são múltiplas e estão espalhadas pelo território adotando diversas abordagens. Mais do que isso, no entanto, existe muito mais fundamentação investigativa disponível sobre outras manifestações alinhadas com posicionamentos da direita política, como bem demonstra esta edição da revista Faces de Clio.

Ainda discorrendo sobre as pesquisas e seus pesquisadores, o dossiê da presente edição se vincula diretamente com uma rede de pesquisa internacional homônima, “Direitas, História e Memória” ( https: / / direitashistoria.net / ). Fruto de um significativo crescimento das investigações acerca das direitas, a rede congrega pesquisadoras e pesquisadores de diversos países que se dedicam a analisar as direitas, no plural, uma vez que não se compreende tal posicionamento político como algo monolítico. A rede de investigação também existe formalmente no Brasil reconhecida como Grupo de Trabalho da Associação Nacional de História (ANPUH) desde 2015, sendo composto por suas células estaduais em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e em São Paulo. Desde 2014, no entanto, a rede de pesquisa se manifesta através de eventos acadêmicos e de publicações direcionadas para a temática abordada. Nesta edição da revista Faces de Clio, inclusive, estão presentes textos de vários membros da rede, com destaque para os artigos escritos pelos seus coordenadores gerais, Janaína Cordeiro e Odilon Caldeira Neto, e para um importante membro internacional, Werner Bonefeld, da Universidade de York.

A publicação desta edição acontece em momento muito oportuno para semear as reflexões sobre as direitas. Percebe-se, atualmente, a emergência de atores e grupos políticos que se vinculam com discursos e pensamentos ditos de direita não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Em nosso país, estamos testemunhando um processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff que, para além do mérito do crime sobre a qual é acusada, é significativamente impulsionado por grupos de direita. Em manifestações recentes nas ruas do país, tornou-se evidente, mais uma vez, a dicotomia direita e esquerda. Em caminho preocupante, agravam-se as manifestações de extremismo e de intolerância política. Mas tal condição não é uma particularidade nossa, ela se revela como uma nova onda mundial de conservadorismo. Na América do Sul, países vizinhos como Argentina e Peru já elegeram governantes provenientes das direitas que expressam tal condição de maneira mais contundente. Mais ao norte do continente, Donald Trump ganha espaço na disputa eleitoral pela presidência dos Estados Unidos com discursos agressivos que ameaçam estrangeiros e muçulmanos, por exemplo. Na Europa, a extrema direita tem se tornado mais presente no cenário político, conquistando adeptos e mesmo interesses arrojados, como é o caso da saída do Reino Unido da União Europeia.

Em suma, as ideias das direitas estão presentes nos discursos políticos de vários locais do mundo atual. Ainda que identificadas, é preciso que mais análises se desenvolvam sobre seus conteúdos, principalmente no que se refere a revelar os excessos que extrapolam alternativas sobre modos de condução da economia ou atuação do Estado, mas as perspectivas que colocam em risco os direitos e as liberdades.

A edição que ora se apresenta da revista Faces de Clio traz em seu dossiê uma ampla abordagem sobre tais direitas na história. Nele é possível encontrar análises sobre regimes, movimentos e partidos políticos, religiosidade, gênero, trajetórias, abordagens econômicas e sistêmicas. Oferecendo, assim, uma frutífera contribuição para a compreensão do mundo atual.

Abrem a edição Lívia Magalhães e Janaína Cordeiro, Professoras substituta e efetiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF) respectivamente. As historiadoras analisam a relação existente entre o futebol e as ditaduras militar na Argentina e no Brasil por meio dos discursos de Presidentes que se apropriaram dos êxitos de seus países nas Copas do Mundo de futebol de 1970 e 1978 para fortalecer seus projetos nacionais e seus regimes de governo.

Odilon Caldeira Neto, Professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), explora as “novas direitas” no Brasil, analisando as especificidades da Frente Nacionalista, um grupo de orientação neofascista na atual conjuntura de crise política e de polarização ideológica.

Há também uma especial participação do Professor Werner Bonefeld, da Universidade de York – Reino Unido, que, em seu artigo, apresenta algumas de suas reflexões sobre o ordoliberalismo alemão, cuja ideologia é apontada como a orientadora da zona do Euro. Em sua abordagem, o autor recupera as ideias de Carl Schmitt que estão presentes em tal ideologia para ampliar a sua compreensão sobre democracia e estrutura de decisão.

Dialogando com a literatura, Natália Guerellus, pós-doutoranda em História na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), analisa a trajetória política da escritora cearense Rachel de Queiroz, que fez parte em sua juventude do Partido Comunista e, mais tarde, apoiou o golpe de 1964. A autora explicita o pensamento político de uma das mais destacadas escritoras brasileiras do século XX, que, ao longo de sua vida, realizou um notório deslocamento em seu posicionamento no espectro político.

No campo religioso, Alexandre de Oliveira, doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC / RS), apresenta seus apontamentos sobre a atuação do cardeal Sebastião Leme e os mecanismos adotados pela Igreja Católica frente aos desafios do Estado laico. Atuando nos anos 1930, Dom Leme almejava organizar o clericato brasileiro, assim como as próprias bases da instituição religiosa.

O português George Gomes, doutorando na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, contribui com a atual edição abordando a relação intelectual existente entre o português António Sardinha e o brasileiro Gilberto Freyre. O autor tenta elucidar a influência do maior doutrinador da direita portuguesa, ideólogo do integralismo daquele país, em um proeminente intelectual do Brasil no século XX.

Por sua vez, Lidiane Friderichs, doutoranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), traz para a análise o neoliberalismo divulgado por meio de uma rede de think tanks, institutos utilizados para divulgação de determinadas ideias políticas e econômicas. A autora aborda suas existências e atuações nos contextos internacional e brasileiro.

Outra contribuição proveniente de uma instituição francesa é a de Marina Duarte, doutoranda em História pela Université Paris Diderot – Paris 7. Em seu artigo, a historiadora mapeia os discursos e os mecanismos de desigualdade que recaem sobre as pessoas trans na França. Marina revela a atuação das instituições médicas, jurídicas e legais e mesmo de certo movimento feminista mais radical que nega o direito de tais indivíduos de se engajarem em seu movimento.

Completando o dossiê, Gustavo Oliveira, mestrando em História na Universidade Federal de Ouro Preto, explora o pensamento do renomado filósofo francês Michel Foucault. Correlacionando suas ideias com a de vários outros autores anarquistas clássicos, a linha condutora da análise do autor baseia-se na questão da autonomia da educação anarquista.

Por fim, encerra a edição a resenha feita por Cecilia Ewbank, pós-graduanda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sobre o livro De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau, de autoria de Mariana Françozo. A obra, que foi publicada em 2014 pela Editora da UNICAMP, recebe uma crítica bem elaborada que se conduz pelo enfoque da trajetória social do gabinete desse importante personagem holandês na história brasileira.

Com isso, acreditamos que a atual edição contribui não apenas com um campo de pesquisa em recente crescimento, mas também com questões e temáticas de importantes reflexões para o mundo atual. Pela via das análises históricas, explora-se a atuação das direitas em diversos segmentos no decorrer dos séculos XX e XXI e suas reinvenções desde a Revolução Francesa, oferecendo maior embasamento para compreensão de suas manifestações contemporâneas.

Nota

1. Obra referencial para o debate acerca das categorias direita e esquerda que é amplamente abordada na historiografia é BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 1995.

Julho de 2016

Antonio Gasparetto Júnior

Nittina Anna Araújo Bianchi Botaro


BOTARO, Nittina Anna Araújo Bianchi; GASPARETTO JÚNIOR, Antonio. Editorial. Faces de Clio, Juiz de Fora, v.2, n.4, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História e Fotografia: interdisciplinaridade, arquivo e memória / História Revista / 2016

O tema inicial deste dossiê apontava para uma reflexão sobre a articulação entre História e Fotografia, arquivo e memória, tomando esse entrelaçamento nas suas vertentes diversas e do ponto de vista de uma interdisciplinaridade profícua. A intenção era dar ênfase aos interesses da historiografia e da Cultura Visual, dos estudos sobre a Imagem e, até, uma iconografia, ligada à representação da história e da(s) temporalidade(s) que a atravessa(m). Finalizado o trabalho de leitura e organização dos textos recebidos, concluímos que nossa expectativa foi superada pelas reflexões que seguem, pois nelas se enxerga o vigor da interdisciplinaridade e o rigor das análises teórico‐metodológicas.

Podemos, assim, considerar três eixos fundamentais neste dossiê. Um primeiro prende‐se às questões da teoria da história e da historiografia e tem o seu início numa inédita colaboração do prestigiado filósofo Gérard Bensussan. Com o texto Rosenzweig, Schelling et l’histoire: quelques aperçus, veio mostrar‐nos o enraizamento da teoria da história contemporânea, que conhece em Rosenzweig, Ernst Bloch e Walter Benjamin os mais ferozes críticos da concepção hegeliana da história e de todos os positivismos subsequentes. Ainda nessa linha de reflexão, incluimos o texto de Maria João Cantinho, Aby Warburg e Walter Benjamin: a legibilidade da memória, que, ao partir da relação entre o conceito de memória e imagem (incluindo esta noção a representação fotográfica), examina, nos dois mencionados autores, a forma como a história e o passado podem ser interpelados mais figurativamente e menos como narrativa clássica e tradicional. Tais perspectivas abrem o caminho a uma nova visão, tanto da história como da própria história da arte, pondo a tônica numa imprescindível interdisciplinaridade que contamina toda a historiografia contemporânea.

Um outro eixo, ligado às possibilidades que a técnica e a reprodução imprimiram à fixação do passado, começou a impor‐se cada vez mais na fotografia contemporânea, lançando as bases teóricas para uma reflexão imprescindível: a ideia do arquivo fotográfico tornado indispensável à história. Nessa linha, sobretudo ao nível da fundamentação teórica, que antecede as reflexões de Barthes sobre a importância da fotografia como registro e potencialidade da construção do arquivo, temos o texto do filósofo Márcio Seligmann‐Silva, A fotografia na obra de Walter Benjamin: dialéctica congelada e a “segunda técnica”. Duas abordagens interessam a este texto: 1) o papel da fotografia como possibilidade técnica de reprodução, que permite a fixação do testemunho histórico; 2) o modo como a fotografia – expressão máxima de uma época em que a técnica desmonta todo o valor cultual e ritualístico da arte – alavancou, ela própria, a possibilidade (rizomática) de um novo olhar para a história, contribuindo para a construção da historiografia assentada no conceito de “imagem dialéctica”. Acompanha esse exame teórico‐metodológico o texto de Cristina Susigan, Desastres da Guerra, que aponta para as interrogações em torno da representação pela imagem (da pintura, da gravura e da fotografia), pela história e pelo passado. Parte a autora da análise de Aby Warburg e de Susan Sontag e da forma como a catástrofe e os desastres da história são registrados cada vez com maior precisão e rigor, permitindo a criação do arquivo e do testemunho histórico. Se as relações entre a história e a fotografia sempre foram visíveis e inegáveis a partir da década de 1930, graças à importância crescente da fotografia documental, o registro, entretanto, começou muito antes, com a fotografia trazendo uma capacidade de fixação do passado que se acentuou, eficazmente, nos nossos dias. Esse convívio entre ambas, história e fotografia, nem sempre foi fácil, pois os teóricos da fotografia recusavam a ideia de que a fotografia pudesse ser um mero instrumento de utilização para a história, o que poria em causa a sua autonomia. Certo é que essa relação era imperiosa, e tanto uma como a outra beneficiavam‐se dela, no sentido em que a contextualização histórica dava à fotografia uma nova consistência, convocando‐a à construção da história.

Um último vetor engloba os textos de Miguel Vieira e de João Oliveira Duarte, apontando para uma interdisciplinaridade que se encontra aqui contemplada, pois remete‐ nos para as questões da literatura e da Teoria da Literatura, da hermenêutica e da interpretação da obra de reconhecidos escritores portugueses como Sophia de Mello Breyner Andresen e Rui Nunes, repectivamente. Se Miguel Vieira, no seu texto sobre a poeta Sophia, procura resgatar a importância da obra e da biografia da autora, esse não é o mais importante aspecto do texto, todavia. O modo como a literatura e a poesia incorporam uma tradição da epopeia e da narrativa tradicionais, rememorando a mitologia clássica e assinalando o passado, é convocado na sua máxima expressão na poética de Sophia, que estabelece um diálogo vivo com a poesia, a tragédia e a epopeia gregas. Já o texto de João Oliveira Duarte cuida de outra questão mais contemporânea, que é a do luto e da melancolia na experiência moderna e o modo como essa experiência se inscreve na literatura. Por fim, alcançamos o último texto do dossiê, Imagens e estereótipos na construção de uma visão do Brasil nos anos de 1950, de Marlise Regina Meyrer. Nele, encontramos a associação entre a memória afetiva e a identidade, explicitando como a fixação do passado se inscreve, também, em um processo de procura identitária.

Organizamos o dossiê e apresentamos seus temas por meio do que compreendemos como “vetores” ou “eixos”. Isso porque essa foi a opção teórico‐ metodológica que nos capacitou a dar conta do modo pelo qual os autores circulam entre a história, a fotografia e a imagem, contribuindo para uma reflexão pertinente entre as várias disciplinas que aqui dialogam. A escrita que ruma ao passado é comparável a um trabalho arqueológico. Escava, busca o detalhe e, então, ilumina o passado para dele obter um encontro com a explicação e o sentido.

Fabiana de Souza Fredrigo – Professora Doutora (UFG)

Maria João Cantinho – Professora Doutora (Iade, Portugal)

Organizadoras


FREDRIGO, Fabiana de Souza; CANTINHO, Maria João. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 21, n. 2, maio / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Memória, arquivos e direitos / História & Perspectivas / 2016

Atualmente, vivemos, hoje, no Brasil, momentos que nos impelem a insistir na pergunta sobre que projeto social queremos para nossa sociedade. Parece-nos inadiável retomarmos as reflexões sobre o que é viver em uma democracia, sobre qual seu inverso, sobre como cultivar valores democráticos e valores para a construção e a conquista de direitos sociais.

No Brasil, e em diferentes países, vimos emergir grupos e lutas que reivindicam o direito à memória, enfatizando que, enquanto prática social, deve ser perguntada e investigada para compreendermos campos e percursos de disputa pela história. Essas experiências vêm conquistando vocalização importante nos espaços de debate e de pesquisa, ao passo que ganham formas como conquista social. Muitos historiadores, arquivistas e outros cientistas sociais, em grande medida provocados por estas demandas, têm se dedicado a pensar o direito à memória e seus desdobramentos temáticos.

As articulações entre memória, arquivos e direitos foram a base para a proposição deste dossiê que a Revista História & Perspectivas ora apresenta. O interesse em discutir e aprofundar diferentes dimensões da memória como direito e em explorar as políticas de arquivo e documentação na perspectiva dos direitos humanos motivou esse processo.

Nessa perspectiva, importava trazer para reflexão as análises que tratassem sobre memória, documentação e direitos humanos, sobre as políticas de memória e sua força na afirmação de direitos, sobre os arquivos e centros de documentação compreendidos como lugares de memória e espaços de afirmação de direitos. No âmbito das relações entre ações e políticas de patrimônio, importava considerar o patrimônio documental como dimensão explorada pelos historiadores no processo de luta cultural, de luta pela afirmação e conquista de direitos, incluindo a preservação documental e o direito à memória. O presente dossiê é composto por cinco artigos que destacam a articulação entre memória, arquivo e direitos.

O primeiro artigo, de Ricard Vinyes, “Memoria, democracia y gestión”, nos provoca a pensar nos significados dessas dimensões que formam o título do artigo. Problematiza que políticas públicas de memória devem ser tratadas como condicionantes da qualidade do sistema democrático e argumenta sobre a importância de o Estado garantir, como direito civil, o exercício da memória de passados políticos traumáticos por constituir um patrimônio ético cuja proteção e conservação enriquecem a cidadania.

O segundo artigo, “Direito à memória e patrimônio documental”, de Heloisa de Faria Cruz, aborda as relações entre a historicidade das lutas pelo direito à memória no Brasil, a identificação, a preservação e a patrimonialização de conjuntos documentais relativos à história do Brasil contemporâneo e sua vinculação a acervos de direitos humanos. A autora destaca a força de extensão de uma discussão sobre o direito à memória e sobre a preservação do patrimônio histórico para além dos espaços acadêmicos, indicando a cidadania e as políticas públicas de memória como campo fundamental de disputa, construção de novos espaços de direitos e conquistas sociais.

O artigo “Caminhos para autodeclaração: a luta por reconhecimento de mulheres quilombolas de Santa Tereza do Matupiri, na fronteira Amazonas-Pará” de Renan Albuquerque Rodrigues, João Marinho da Rocha e José Vicente de Souza Aguiar, toma por base diferentes estudos acerca da produção do conhecimento na Amazônia e sobre a Amazônia, junto a memórias de lutas de mulheres quilombolas, para analisar comunidades negras do leste do Amazonas, com destaque para as mulheres como lideranças na luta por direitos e memória na perspectiva da autodeclaração identitária.

“Conflitos pela memória no semiárido cearense: relações entre as comunidades rurais do Tabuleiro de Russas e o DNOCS”, artigo de Mário Martins Viana Júnior e Diego Gadelha de Almeida, analisa os processos de construção de memória investidos por ação do Estado, aqui representado pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. Essa análise se conjuga ao estudo do processo de construção, em seus conflitos e contradições, de memórias de comunidades rurais da localidade Tabuleiro de Russas, no Ceará, atingidas por políticas de modernização no campo, em fins do século XX e no início do XXI.

O último texto que compõe o dossiê, “Imagens para lembrar: o caso das fotografias do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo – MJDH (1984-1986)”, de Francisca Ferreira Michelone e Roberta Pinto Medeiros, empreende discussão em torno da relação entre memória, fotografia e direitos humanos, explorando fotografias que integram o acervo do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, proposto, organizado e mantido pela Organização Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).

Compõem ainda esse número da revista cinco artigos e uma resenha que estão em outras duas seções, versando sobre temas diversos. Merece destaque, na última seção, a entrevista realizada com a Professora Cláudia Sapag Ricci, que aborda questões relativas ao texto preliminar da Base Nacional Comum Curricular da disciplina de História.

No que concerne aos procedimentos de escrita dos artigos do dossiê, destacamos o desafio enfrentado por todos os autores em abordar a memória, situando-a no tempo, no espaço e na conjuntura social, para indagar seus significados enquanto prática social e para construir sentidos históricos na relação com cultura, história e cidadania. Outro desafio foi o da atenção permanente para a relação entre pesquisa, acervos documentais e a sociedade onde os registros da vida social e política se constituem, ganham importância ou são silenciados, num processo que, longe de ser natural e linear, é composto pelas marcas de conflitos e pelas contradições que também pontuam a vida em sociedade. A relação que se assinala entre história e memória indica a possibilidade de reconstrução de práticas por meio da abordagem e da problematização dos filtros que traduzam, revelem ou mesmo pretendam ocultar essas contradições e esses conflitos.

Lembramos a reflexão de Déa Fenelon sobre historiografia, pesquisa e a necessária atenção para as pulsações que brotam da própria realidade. No horizonte de conceitos e de áreas por onde nos movemos constam acervos documentais e linguagens que contribuem para definir vigorosas teias em torno dos conceitos de memória e cultura. Atentamos para a noção de que o vivido e o narrado precisam ser pensados, trabalhados enquanto criação de registros e produção de sentidos das relações sociais – de dominação, de subordinação, de conciliação ou de resistência. O que nos faz valorizar a reflexão sobre símbolos, valores, meios que enunciam, forjam, preservam a memória de grupos sociais diversos, para entender as maneiras pelas quais se produzem e também os usos que deles se faz no jogo de perpetuação de efeitos de verdade. Um trabalho acadêmico, mas, sobretudo, um trabalho político.

Heloisa de Faria Cruz

Marta Emisia Jacinto Barbosa


CRUZ, Heloisa de Faria; BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Memória, arquivos e direitos. História & Perspectivas, Uberlândia, v.29, n.54, 2016. Acessar publicação original [DR].

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História Oral e Memória | Outras Fronteiras | 2016

A memória é um elemento essencial do que

se costuma chamar de identidade,

individual ou coletiva, cuja busca é uma

das atividades fundamentais dos

indivíduos e das sociedades de hoje, na

febre e na angústia. (Le Goff, 1996, 476)

A história oral comemora sua maturidade. Olhando em perspectiva pode-se dizer que as primeiras dificuldades para a compreensão de suas diferenças foram superadas. Ela se consolidou e é respeitada, seja para quem a pratica como uma nova área da produção do conhecimento, seja para quem a entende como um método auxiliar de pesquisa histórica contemporânea. Para um ou outro grupo o resultado produzido pelo trabalho de história oral pode ser visto como narrativa que tem força para subverter a lógica estabelecida e que torna diferentes sujeitos protagonistas de suas histórias, no momento em que a vida ganha centralidade e destaca o papel dos sujeitos. Leia Mais

Memória e teoria da História: debate e prática historiográfica | Escrita da História | 2015

Em sua quarta edição, a Revista Escrita da História – REH vem buscando se consolidar como um espaço de debate e reflexão acerca dos diferentes tipos de abordagem da ciência de Clio. Assim, em consonância com o movimento dos Annales, que promoveu e insistiu na necessidade de alargar a noção de fonte histórica, trazemos o dossiê Memória e teoria da História: debate e prática historiográfica no intuito de congregar pesquisas que, ao explorar documentos nem sempre valorizados pela historiografia tradicional, apresentaram possibilidades de entrevermos “histórias dentro da História”, alusão comumente empregada por pesquisadores no campo da história oral.

Ainda que nem todos os textos inseridos no dossiê se apropriem desta metodologia – ou mesmo disciplina, como consideram alguns estudiosos –, seus autores, de modo geral, articularam memórias como objetos da História. Individual ou coletiva, a memória foi abordada como um processo de “construção social” e os pesquisadores investigaram este objeto evidenciando múltiplas histórias, memórias e identidades em diferentes contextos. Em certa medida, os estudos também atuaram como “a pequena ponta de um iceberg” – como observou Jacques Le Goff –, ou seja, revelaram uma ínfima parcela de toda uma conjuntura sociocultural, econômica e política. Leia Mais

História, Memória e Comemoração / Revista Brasileira do Caribe / 2015

Em março de 2015 a Revista Brasileira do Caribe divulgou uma convocatória de artigos para compor um dossiê dedicado ao tema História, Memória e Comemoração. Nossa intenção era problematizar uma ideia do historiador Pierre Nora – segundo a qual estaríamos imersos na Era da Comemoração – testando sua aplicabilidade ao espaço/tempo caribenho, uma vez que o espaço, o momento, o contexto e as razões dessa ideia são visivelmente eurocêntricos, uma reavaliação dos 200 anos da Grande Revolução de 1789 quando o socialismo dos países do Leste começava a se desconstruir e se acelerava o processo de unifi cação europeia.

Não há mais lugar para o espelhismo que hegemonizou o século XIX e uma boa parte do século XX, assumindo A Era da Comemoração como uma categoria universal imediata. No entanto, não há como ignorar, por um lado, a presença histórica de um considerável contingente criollo da população, distribuído desigualmente entre as várias partes do continente, um dado empírico relevante que não pode ser ignorado – com uma notável exceção, o Haiti, onde os brancos foram substituídos pelos indigènes. E, principalmente, não há como negar a existência empírica do Estado (concebido segundo padrões internacionais ou, se quisermos, eurocêntricos) e a importância de estruturas e projetos estatais conformando a realidade que pretendemos encarar.

Nossa convocatória assumia que, tanto na América Latina como possivelmente no Caribe, aquele futuro desencantado que Pierre Nora vislumbrava na época do Bicentenário da Revolução Francesa não tem lugar no Bicentenário das Independências latinoamericanas (e também, talvez, nas principais comemorações caribenhas?). Aqui, poderosas utopias (bem como seus fortes adversários) ainda operam, embora o que mais comova milhares dentre nós seja a procura da verdade no passado.

Antecipávamos que seria quase inútil procurar em todo o Caribe insular por reverberações do Bicentenário da Independência da América Latina, com duas notáveis exceções: o Bicentenário da Independência do Haiti – tragicamente engolfado pelo terremoto de 2010 – e o Cinquentenário da Revolução Cubana, apoiado no bolivarianismo do Bicentenário venezuelano.

Ocupando-se do tema “O bicentenário bolivariano no eixo VeneCuba”, o artigo do historiador brasileiro Jaime de Almeida identifi cou um projeto audacioso de articulação política entre nações que, alicerçado por uma conjuntura mundial favorável aos países exportadores de commodities, especialmente o petróleo, entrelaçou duas comemorações de ordem e origem diferentes: dois séculos da independência da Venezuela e meio século de socialismo em Cuba. A projetada federação ou confederação entre os dois países era o eixo, o coração pulsante de um imenso e heterogêneo conjunto em que se articulariam o Caribe insular e a América do Sul (denominação que explicita a ausência do México). Os nomes adotados pela ideia de futuro anunciado nessa dupla comemoração permanecem vigentes: ALBA e Socialismo do Século XXI. No entanto, o artigo sugere que a morte do presidente Hugo Chávez, a queda abrupta dos preços internacionais do petróleo e a conquista da maioria parlamentar pela oposição na Venezuela marcam uma quebra de ritmo no processo de união entre os dois países. O sinal mais evidente é a recente normalização das relações entre Cuba e os Estados Unidos.

O Bicentenário da Independência da América Latina, aberto em 2009 na Bolívia, continua em desenvolvimento e só começará a encerrar-se com uma nova rodada de comemorações que começarão na Argentina em 2016 e culminarão na Bolívia em 2025. No primeiro desses países, a conjuntura política se alterou há poucos meses e tudo indica que o ciclo comemorativo se encerrará com um discurso praticamente oposto ao discurso peronista de abertura em 2010. No segundo, ainda não se sabe se Evo Morales, reeleito para presidir o país até 2020, ainda estará – como pretende – no comando do país que comemorará o desfecho da batalha de Ayacucho em 2025.

O dossiê prossegue com dois artigos focalizando dinâmicas festivas na região caribenha da Colômbia que, ao introduzir como que um contraponto, contribuem para nossa tentativa de desenhar uma percepção geral da dinâmica do processo comemorativo no Caribe contemporâneo. O historiador brasileiro Milton Moura apresenta “O drama étnico e político do 11 de novembro em Cartagena de Indias”. Começando com um balanço dos estudos que problematizam festa, etnicidade e política, focaliza a história da principal comemoração cívica da principal cidade caribenha da Colômbia.

Tomamos a liberdade de sugerir aqui ao leitor que atente para uma transição. Vimos que o artigo de Jaime de Almeida, focado no dinamismo do projeto de união entre Cuba e Venezuela para a construção do Socialismo do Século XXI, concentra a atenção no protagonismo de homens de Estado como Hugo Chávez e Fidel Castro – dois indivíduos excepcionalmente poderosos que nenhuma historiografi a poderia ignorar: um deles permanentemente em cena perante as massas venezuelanas, o outro chefi ando por mais de meio século a burocracia do Estado e do Partido.

Já o artigo de Milton Moura se concentra no protagonismo da sociedade local e regional nas festas de Cartagena de Índias, procurando pelas mudanças recentes observadas na sua confi guração. Destaca em especial a relação entre a participação dos jovens e adolescentes nos festejos da Independência e sua história, fortemente marcada pelos confl itos armados no interior da Colômbia. Assim, temos a oportunidade de aproximar-nos a algo que, embora sugerido no texto de nossa convocatória, não pôde ser sufi cientemente contemplado no artigo de Jaime de Almeida: se o Socialismo do Século XXI fi gura no discurso do Bicentenário como a mais poderosa utopia, o arti go de Milton Moura e, como veremos, mais ainda o de Daleth Restrepo Pérez, trazem para de perto de nossos olhares os mais fortes adversários dessa utopia.

Milton Moura procura aproximar-se com sensibilidade ao ponto de vista dos desplazados (migrantes forçados) produzidos por “uma guerra civil que se estende por pouco mais de 50 anos entre setores populares compostos na sua maioria de camponeses e habitantes de pequenas cidades, de um lado, e guerrilheiros, narcotrafi cantes e milicianos paramilitares, de outro” que se acumulam nas grandes cidades colombianas como Cartagena de Indias. Com esses novos moradores urbanos, a polarização social vem adquirindo novas confi gurações, com novos atores coletivos que buscam se expressar no universo da Festa, colidindo “com as formas tradicionais legitimadas diante das elites ou outras formas que, se não propriamente legitimadas, eram toleradas”.

Retomaremos a resenha do artigo de Milton Moura depois de abordar o artigo da historiadora colombiana Daleth Restrepo Pérez que põe o dedo na ferida de seu país: “La cultura festiva del Caribe colombiano en la encrucijada de la guerra: fi esta y paramilitarismo en Necoclí-Antioquia”. Antes que pensemos numa paisagem tipicamente montanhosa do interior da Colômbia, a autora nos situa justamente no primeiro assentamento colonial do litoral caribenho da América do Sul, ocupado pelo povo Kuna Tule que ensinaria a Francisco de Balboa o caminho para o Mar do Sul. [1] Daleth Restrepo Pérez analisa a transformação da cultura festiva em Necoclí, província antioquenha de Urabá, num contexto de extrema violência e controle social estabelecido por forças paramilitares. Sua inquietação é a relação entre o poder e o simbólico: a violência simbólica, o lugar e a territorialidade.

O artigo problematiza a cultura festiva necocliseña a partir das identidades étnicas, da memória e da história local. O retrato é trágico: entrelaçados, o confl ito armado e o paramilitarismo transformam e degradam as dinâmicas sociais tradicionais da comunidade, particularmente no campo das práticas festivas, dancísticas e musicais. Felizmente, o artigo indica que as respostas sociais frente a esta nova ordem social em construção se expressam sutilmente de dentro da própria festa, apoiadas na tradição e na reconstrução de comunhão e comunidade.

É muito impactante a coincidência entre a temporalidade dos processos sociais e culturais do Caribe colombiano, estudados por Milton Moura e Daleth Restrepo Pérez, e a temporalidade estudada por Jaime de Almeida. Na Colômbia que celebra o Bicentenário da Independência, fi nalmente se torna possível a superação de um confl ito de meio século – confl ito que não deixou de sincronizar-se com a perspectiva bolivariana, como sabemos.

Como resultados parciais das negociações entre o governo da Colômbia e as FARC, iniciadas com a ajuda dos presidentes Hugo Chávez e Raúl Castro, já se esboçam processos que não podem mais ser vistos como utopias distantes. A Comissão Histórica da História do Confl ito e suas Vítimas, fruto do esforço de diversos setores do governo e da sociedade civil colombianos para superar o drama da guerra civil, ajuda na implementação de políticas governamentais de reparação e no enfrentamento do preconceito e discriminação contra os desplazados estigmatizados pela vulnerabilidade.

Encerrando o dossiê, o historiador haitiano Vertus Saint- Louis procede a uma minuciosa radiografi a do culto cívico à memória de Jean-Jacques Dessalines, começando pelo exame das possíveis razões de seu assassinato por seus próprios companheiros em 1806. Este esforço investigativo nos parece notável por não deixar-se envolver em esquemas de explicação que reduzem os problemas do Haiti às pressões externas. No processo da revolução haitiana e construção da nação, Vertus Saint-Louis mostra que além dos confl itos entre senhores e escravos, e também entre negros e mulatos livres – tema este que ele abordou em profundidade num artigo publicado no Brasil [2] – não se pode ignorar os frequentes confl itos entre chefes negros e mulatos – nascidos no Haiti, que se percebiam como indigènes – e os negros ditos boçais, designados como congos, africanos, marrons, ou principalmente cultivateurs.

A memória de Dessalines foi reabilitada no Haiti em 1845, pouco depois que a França festejava com com todas as honras os restos mortais de Napoleão Bonaparte (1840) e a Venezuela fazia o mesmo com os de Simón Bolívar (1842). Vertus Saint- Louis mostra com clareza que foi sob a pressão crescente da grande massa negra da população que os mulatos iniciaram o processo de reabilitação da memória de Dessalines, fi nalmente consolidado pelo imperador negro Soulouque que instituiu a festa nacional dos Antepassados (2 de janeiro de 1854). Aliás, é nessa conjuntura que começa a fl orecer a historiografi a haitiana, bifurcada em duas vertentes – negra e mulata – que persistem até a atualidade.

Esse artigo poderá ser muito útil àqueles que se interessam pela longa duração da história do Haiti, principalmente por fornecer abundante informação coletada em arquivos haitianos e estrangeiros e na historiografi a local. Entendemos como uma de suas principais contribuições a aproximação em profundidade aos problemas e conjunturas do século XIX num Haiti visto por dentro, um tempo pouco conhecido no Brasil, já que a bibliografi a disponível geralmente se concentra nas razões e sentido da revolução e em seguida mergulha nos problemas atuais.

Por um feliz acaso, dois dos artigos avulsos que estamos publicando neste número da Revista Brasileira do Caribe também se referem ao Haiti, de modo que o nosso dossiê sobre História, Memória e Comemoração se prolonga para além do seu próprio recorte.

A socióloga Pâmela Marconatto Marques e o antropólogo José Carlos Gomes dos Anjos, brasileiros, publicam “Quem quer ser Toussaint Louverture? Banalização e silenciamento na produção de narrativas ofi ciais sobre a história haitiana”. O título chama nossa atenção para o personagem mais identifi cado no Brasil (e possivelmente no mundo) com a revolução haitiana.

Diferentemente do caminho adotado por Vertus Saint-Louis, que como vimos concentrou-se nas políticas de memória (e de esquecimento) relativas a Jean-Jacques Dessalines – em torno de quem giram hoje quatro das cinco festas nacionais haitianas – ao longo de 200 anos, os autores fazem um vasto e detalhado painel que abarca as distintas narrativas – principalmente as hegemônicas – que vêm sendo formuladas acerca do Haiti no mesmo período, tanto no Haiti como no exterior.

Por sua vez, o sociólogo porto-riquenho Gabriel Alemán Rodríguez traz uma excelente contribuição com um criterioso estudo das ideias de Jean-Price Mars, importante intelectual haitiano (nascido em 1876), expostas num livro pouco conhecido na América Latina, publicado em 1919: La vocation de l´élite. [3] Médico, tal como são tantos outros intelectuais de seu país, Price-Mars interpelava diretamente as elites haitianas do início do século XX, convocando-as a assumir sua vocação e papel na organização e condução do coletivo social. Seu objetivo explícito era reconstruir um novo nacionalismo haitiano capaz de restabelecer moralmente o povo e restaurar a independência nacional. Gabriel Alemán Rodríguez indica uma ironia, os ideólogos do intervencionismo norte-americano chegaram a recorrer aos textos que Price-Mars vinha publicando como justifi cativa para a intervencção militar de 1915. Em meio à crise moral produzida pela intervenção, Price-Mars reuniu os seus textos e publicou-os em 1919.

Para se ter uma ideia do radicalismo da leitura crítica do país feita por Jean Price-Mars no coração do tempo comemorativo do Centenário das Independências, há 100 anos atrás: a própria abolição da escravidão que tanto sangue havia exigido, teria produzido apenas uma mudança superfi cial, dando lugar a uma forma híbrida de escravidão com uma simples troca de pessoas e de responsabilidades. Expulsos os senhores brancos, a nova sociedade teria conservado de forma insidiosa e tácita o sistema de classes da antiga colônia. E Price-Mars não estava sozinho, se nos lembrarmos das duras palavras do também médico Rosalvo Bobo rechaçando qualquer comemoração do Centenário.

Como se vê, nesse entrecruzamento de leituras sobre o Haiti temos uma boa oportunidade de pensar o Haiti por dentro e não somente a partir daqui de fora onde estamos.

Os demais artigos nos convidam a circular por outros temas, espaços e problemas caribenhos. O artigo das historiadoras mexicanas María del Rosario Rodríguez e Olimpia Reyes “La doctrina Monroe ¿una política caribeña? Las percepciones de Estados Unidos y Brasil” provocará talvez alguma supresa entre os leitores brasileiros, mostrando com profusão de dados o alinhamento explícito da política externa republicana brasileira com o intervencionismo norte-americano no Caribe – voltado naquela altura, principalmente para o Panamá, Cuba e Porto Rico – durante a Terceira Conferência Panamericana. Celebrada no Rio de Janeiro, o evento foi, muito signifi cativamente, a inauguração do Palácio Monroe, que havia sido criado e exibido dois anos antes na Exposição Mundial de Saint Louis nos Estados Unidos. Os dois principais personagens observados quase passo a passo pelas autoras, que pesquisaram em arquivos mexicanos e norte-americanos, são Joaquim Nabuco (embaixador brasileiro em Washington) e Elihu Root (secretário de Estado dos Estados Unidos).

Com “A eleição de Barack Obama vista da Martinica: expectativas e intuições”, Luana Antunes Costa – pós-doutoranda em Letras Vernáculas, especialista em literaturas africanas e afro-brasileira – apresenta a leitura densa e poética de uma carta aberta enviada pelos literatos martiniquenhos Edouard Glissant e Patrick Chamoiseau ao recém-eleito presidente Barack Obama em 2009. A carta se chama A intratável beleza do mundo.

Que nos seja permitida mais uma licença. Tanto a carta de Glissant e Chamoiseau, como a delicada análise feita por Luana Antunes Costa neste artigo avulso trazem muito oportunamente uma ideia-chave que de vez em quando poderia ter afl orado nas entrelinhas dos textos sobre o tempo do nosso Bicentenário – e que afl ora aqui, graças ao seu artigo.

Tal ideia, resumida por Patrick Chamoiseau e recolhida pela autora, diz para quem sabe ouvir: E esta realidade, esta ideia de relação, esta poética da relação é alguma coisa que nos permite inventar não uma alternativa ao capitalismo, não simplesmente um regulamento dos confl itos, mas nos permite imaginar um outro mundo. E a emergência simbólica de Obana é que ela torna possível. Todo o possível… Ela torna possível todo o possível. Tal emergência política me parece, aqui, absolutamente considerável.

Pensando em outros mundos possíveis, o pintor mexicano Humberto Ortega Villaseñor – especializado nos campos combinados de fi losofi a, comunicação, arte, cultura, criatividade plástica e literária – e o filósofo eslovaco Tibor Máhrik publicam aqui o artigo “The Search for Genuine Self in the Caribbean Cultural Horizon and Mesoamerican Civilization”. Podemos dizer que este artigo vem trazer, produto das milenares sabedorias nahua e maia, temperado com os saberes/sabores migrantes do Caribe ancestral, um bálsamo para as dores atrozes que o artigo de Daleth Restrepo Pérez nos mostra em Necoclí, coração da Abya Ayala dos Kunas Tule e encruzilhada do mundo entre o Caribe, o continente e o Pacífico.

Fechando este número da RBC, a educadora e museóloga Joseania Miranda de Freitas e o historiador Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha, brasileiros, comparam (em espanhol) a obra de dois intelectuais afro-latino-americanos em “Memorias afrodiaspóricas en diferentes territorios caribeños y latinoamericanos en las perspectivas de Manuel Raimundo Querino y Manuel Zapata Olivella”. Os autores do artigo identifi cam no brasileiro Manuel Raimundo Querino (que viveu na Bahia, 1851-1923) e no colombiano Manuel Zapata Olivella (nascido no Caribe colombiano, morreu em Bogotá; 1920-2004), que viveram em épocas bastante distanciadas, a mesma inquietação: em quais suportes os africanos deportados para a América puderam transportar e transmitir seus registros do passado necessários para viver os novos tempos a que estavam condenados, a não ser os seus próprios corpos humanos sofridos e desterritorializados? Agradecemos o apoio constante de Olga Cabrera nas tarefas necessárias para a preparação de mais um número da Revista Brasileira do Caribe.

Notas

1. A propósito, sobre os Kuna Tule da Colômbia e Panamá atualmente, v. Jaime de Almeida. A arte encantadora das mulheres kunas. Postais ano 3 n. 4, 2015, p. 139-147. Disponível na web: http://issuu.com/culturacorreios/docs/ revistapostais_4_2015.

2. Vertus Saint-Louis. A Guerra do Sul e as apostas do comércio internacional. Textos de História n. 13, n. 1-2, 2005, p. 37-52. Disponível na web: http://periodicos.unb.br/ index.php/textos/article/view/6038.

3. Price-Mars tornar-se-ia muito conhecido (e reconhecido) internacionalmente pela obra Ainsi parla l´oncle, publicado em 1928.

Jaime de Almeida


ALMEIDA, Jaime de. História, Memória e Comemoração. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.16, n.31, jul./dez. 2015. Acessar publicação original. [IF].

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História Ambiental: Memória e Migrações / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2015

A revista História em Reflexão chega ao seu volume 9, número 17 e é com grande alegria que escrevo a apresentação desta edição. Iniciativa dos discentes do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados, a revista surgiu com uma proposta arrojada, tendo sido uma das primeiras a circular exclusivamente on-line, apostando, desde seu nascimento, nas novas tecnologias de mídia e na internet. Atualmente esta dinamicidade permanece nas propostas de cada número, sendo o deste dossiê “História Ambiental: memória e migrações”, temas que se entrelaçam e que estão no âmago dos debates públicos contemporâneos. Grandes desastres “naturais”, intensos deslocamentos humanos e a necessidade de se usar a prática de recordar como instrumento de luta política e cultural marcam a passagem do século XX ao XXI. Cabe ao historiador, situar esses processos em sua historicidade, contextualizando-os em sua duração mais longa.

Preocupados com a convergência destes temas, os pós-graduandos em História da UFGD produziram esta edição, organizaram o dossiê e realizaram entrevistas sobre história ambiental. As discentes Marciana Santiago de Oliveira e Ilsyane do Rocio Kmitta entrevistaram Gilmar Arruda, expoente da área, o qual discorre sobre a emergência deste campo de estudos marcado pela interdisciplinaridade. Como bem situa o pesquisador, a área surge nos Estados Unidos da América, na década de 1970, porém, no Brasil, o tema natureza integra os interesses dos estudiosos da história desde o século XIX, preocupados em edificar uma determinada identidade nacional ou mesmo em problematiza-la. O grande problema explorado pela história ambiental, como bem frisa Arruda, é a dissociação que se processou entre seres humanos e natureza, como se a humanidade não fosse parte do próprio mundo natural.

Na segunda entrevista, realizada com Roberto Marinucci, intelectual preocupado com as migrações, temos um importante estado da arte (interdisciplinar) sobre os estudos migratórios. Fenômeno marcante no processo histórico contemporâneo, o pesquisador frisa a grande complexidade envolvendo a mobilidade humana, sobre como os movimentos atuais tem colocado por terra categorias fixas como imigração / emigração / migração. Além disso, destaca como os estudos migratórios estão cada vez mais reconhecendo o migrante como sujeito do ato de migrar, abandonando uma visão economicista que o tratava como uma peça dentro de um sistema de exclusão. Por outro lado, Marinucci também aborda a importância da memória nos estudos migratórios e em como o ato de recordar pode integrar movimentos de resistência dos migrantes, dentro do difícil processo de abandono do lugar de origem e de adaptação ao novo.

O dossiê, por sua vez, traz contribuições de diversos pesquisadores sobre as temáticas em destaque. O primeiro artigo, “Memória e Identidade em um Espaço de Migração: Fronteiras em Santa Rita, Alto Paraná, Paraguai”, de Andressa Szekut e Jorge Eremites de Oliveira, versa sobre a emigração brasileira ao Paraguai. Os autores problematizam as memórias e identidades construídas pelos emigrantes, naquele país, partícipes de um processo de colonização recente. Seu foco reside nas relações identitárias desses sujeitos, especialmente as estabelecidas entre o eu e outro.

Fabiano Silva Santana e Sérgio Paulo Morais, em “Norma regulamentadora 36: pausa, desafio posto pela intensidade do trabalho nos frigoríficos”, analisam as relações de trabalho nos frigoríficos brasileiros. Sua preocupação se centra na “Norma Regulamentadora, nº 36” e nas condições de salubridade do trabalho na indústria alimentícia, enriquecendo com isso os conhecimentos da área de história do trabalho.

José Otávio Aguiar e Hilmaria Xavier, em “Ambiente, vivências e memórias da Favela da Cachoeira (Campina Grande 1959 – 2006)”, analisam a construção da Favela da Cachoeira, na cidade de Campina Grande, iniciada em 1959, edificação que não ocorreu apenas no aspecto físico, mas também no campo dos significados que os moradores imprimiram ao lugar. Os autores analisam também os movimentos em prol de melhorias para o local, culminando na remoção de parcela dos moradores para um novo local na cidade, o Bairro da Glória.

Em “Da imposição à Vocação: A economia da capitania dos Ilhéus nos circuitos mercantis”, Rafael dos Santos Barros desmistifica o suposto atraso econômico daquela capitania, atribuído à falta de participação na produção açucareira. O autor desenvolve a tese de que à região de Ilhéus atribuiu-se a função de produzir alimentos para as regiões monocultoras – prática comum nas regiões periféricas da colônia e do império – existindo severas proibições à introdução da cana-de-açúcar e tabaco.

Giovani José da Silva, em “‘Todo se cambia, incluso el paisaje’: Memórias indígenas e migração camba-chiquitano” une preocupações com as migrações, memórias e história ambiental e indígena em um estudo sobre a etnia Kamba (também conhecida como Camba-chiquitano). Originários da Bolívia, essa população indígena se fixou na periferia da cidade sul-mato-grossense de Corumbá, localizada na fronteira do Brasil com aquele país. Silva problematiza as relações dos indígenas com o mundo natural e as condições inóspitas que enfrentaram no processo de fixação naquela cidade.

Em “Rio Açu, Capitania do Rio Grande: sertão, natureza e espacialidades no Assu seiscentista (1624 – 1680)”, Tyego Franklim da Silva realiza um estudo sobre o período colonial da região de Assu / Açu, Rio Grande do Norte. Utilizando-se de documentos oficiais, crônicas e relatos de viajantes, o autor explora a conquista da região, bem como as relações que ali se estabeleceram entre europeus e povos indígenas e como eles se relacionaram com a natureza.

Dilson Vargas-Peixoto, em “Indícios da alteração ambiental nas crônicas de três viajantes (Rio Grande do Sul, 1808-1827)”, analisa as mudanças ambientais ocasionadas pela introdução de elementos da fauna e da flora europeia do Brasil, no século XIX. Toma como fonte os relatos de viajantes, notadamente Auguste de Saint- Hilaire, John Luccok e Nicolau Dreys, nos brindando com um belo trabalho de história ambiental.

Já na sessão de artigos livres, “O projeto político oposicionista de Assis Brasil nas campanhas eleitorais de 1922 no Rio Grande do Sul”, escrito por Pedro Paulo Lima Barbosa, problematiza os discursos e práticas políticas de Assis Brasil, com foco especial nas eleições de 1922. Como aponta, aquele político se insurgira contra o Partido Republicano Rio-grandense (PRR) e a candidatura de Borges de Medeiros à presidência do estado, o que lhe daria um quinto mandato consecutivo. Problematiza as intencionalidades da candidatura, pois, embora fosse oposicionista, as posições políticas de Assis Brasil eram muito semelhantes a de seus adversários.

“A fotografia-quadro em imagens de conflitos bélicos: a permissividade à arte contemporânea e à expressão do produtor, nas coberturas fotográficas noticiosas de guerras” é o artigo escrito por Fernanda Rechenberg e Bruno Cavalcante Pereira, em que os autores tomam com objeto de estudo as fotografias realizadas em zonas de conflito armado. Como analisam, formou-se um mercado de imagens violentas, que acabam por contribuir com os discursos ideológicos de grandes potências e que pouco auxiliam na reflexão crítica sobre as guerras. Assim, os autores questionam a veracidade de tais registros fotográficos bem como refletem sobre a permissividade dessa arte no mundo contemporâneo.

Maurício Marques Brum, no artigo “‘Expulsar a esquerda do poder’: Considerações sobre a formação de cadeias de equivalência contra o governo de Salvador Allende (1970-1973) à luz da teoria de Ernesto Laclau”, analisa o contexto político-ideológico do Chile durante o governo Allende. O autor se detém no processo de corrosão dos ideais democráticos, que primevamente sustentaram a posse daquele presidente, e, posteriormente, foram substituídos pela concepção de que um golpe de estado se justificaria como recurso para alijar a esquerda do poder.

Em “Disputas eleitorais em Dourados, no sul do antigo Mato Grosso: influência do contexto estadual e crescimento do PTB nas eleições de 1954, 1958 e 1962”, Fernando de Castro Além nos traz capítulos da história política do município de Dourados, inserindo-a devidamente no contexto do antigo estado de Mato Grosso. Entre suas preocupações está a análise da prática dos mandatários estaduais em impulsionar candidaturas municipais e a rivalidade entre as principais siglas do período (PTB, PSD e UDN), concluindo o autor que houve uma ascensão eleitoral do PTB no município em tela.

Tomaz Espósito Neto, em “Uma análise histórico-jurídica do Código de Águas (1934) e o início da presença do Estado no setor elétrico brasileiro no primeiro Governo Vargas” analisa o decreto no 24.643 de 10 de julho de 1934 (Código de Águas) e consequente processo de ampliação da presença estatal no setor de energia elétrica, no Brasil, tendência dominante no setor até a década de 1990. Entre suas preocupações, está o estudo das motivações que levaram o Governo Vargas a adotar tal medida, bem como os conflitos com os setores do capital estrangeiro, que exploravam o setor no Brasil.

De maneira geral, os temas estudados abordam o Brasil e países vizinhos em diferentes temporalidades, mas buscam responder a questionamentos contemporâneos quanto à formação, uso e apropriação do espaço, às transformações operadas na natureza, à mobilidade humana, às identidades e práticas sociais e políticas construídas por diferentes grupos. Privilegiando os estudos de caso e a dimensão micro espacial, o conjunto de textos nos faz refletir sobre diversos caminhos trilhados por diferentes pesquisadores, que possuem, em comum, o desejo de responder a inquietudes que nos acompanham (e, vez por outra, nos assombram) neste começo de milênio.

Jiani Fernando Langaro – Professor Doutor UFGD.

Dourados / MS / Brasil – Inverno de 2015.


LANGARO, Jiani Fernando. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 9, n. 17, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]

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1964-2014: Memórias, testemunho e Estado / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2014

O número 24 da revista Fronteiras, a Revista Catarinense de História, traz o Dossiê – 1964-2014: memórias, testemunho e Estado, com discussões produzidas a partir do XV Encontro Estadual de História da ANPUH-SC – “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, ocorrido em agosto de 2014, em Florianópolis. Neste volume, o dossiê apresenta artigos de autores e autoras que se debruçaram, em diferentes perspectivas e enfoques, na temática que envolveu o período militar no Brasil, especialmente no Estado de Santa Catarina; e um relato da Comissão da Verdade em Santa Catarina. Também apresenta artigos de fluxo contínuo e resenhas.

Caroline Jacques Cubas apresenta o artigo Igreja Católica em tempo de ditadura militar: do diálogo à subversão em páginas impressas, onde problematiza os posicionamentos desta instituição religiosa em relação ao regime militar; as representações sociais e políticas observadas em periódicos nacionais entre 1968 e 1979. Reinaldo Lindolfo Lohn, no artigo intitulado Santa Catarina e a ditadura empresarial: o caso da política agrária, nos mostra como a política agrária dos setores vinculados à agropecuária empresarial em Santa Catarina, encontrou meios para impor diretrizes e interesses com a instauração do golpe militar; e analisa o aparelho estatal ao longo das décadas de 1950 e 1960.

O documentário “Que bom te ver viva” é tema de estudos de Arielle Rosa Rodrigues e Mariana Cristina Silva. As autoras analisam questões relacionadas com as memórias de mulheres ex-militantes da esquerda revolucionária brasileira, sobreviventes da tortura física e psicológica sofridas nas prisões da ditadura, entre as décadas de 1960 e 1970; refletem sobre a relação entre história e memória e as experiências traumáticas vividas por mulheres. Segue o tema das mulheres com o artigo Novembrada: as mulheres, o cárcere e as solidariedades, de Marlene de Fáveri. A autora recupera memórias de mulheres que participaram do evento contestatório ao regime militar ocorrido em Florianópolis, em novembro de 1979; mostra parte do cotidiano da prisão, os atos de solidariedade e as resistências, observando as relações de poder e gênero.

Em seguida, o artigo de Luiz Felipe Falcão que traz o título Alegorias da verdade: esboços nas conexões entre História Oral e História do Tempo Presente sobre a resistência à ditadura e o processo de democratização no Brasil nas últimas décadas do século XX. O autor analisa depoimentos de ex-militantes e ativistas das esquerdas brasileiras acerca de suas atividades de resistência ao regime militar, e o processo de democratização; aborda versões dos acontecimentos e reflexões historiográficas para formulações de uma história do Tempo Presente.

Derlei Catarina de Luca apresenta um relato dos trabalhos da Comissão Estadual da Verdade de Santa Catarina, criada para auxiliar a Comissão Nacional da Verdade; o intuito era de examinar e esclarecer as violações de direitos humanos praticadas por motivação exclusivamente política, ocorridas entre 1946 e 1988, no Estado de Santa Catarina. Esta Comissão foi criada por decreto governamental em março de 2013, com o objetivo de efetivar o direito à memória e à verdade histórica. Neste relato, que se intitula A Busca da Verdade, a autora historiciza os trabalhos da Comissão; seus resultados; publiciza nomes de pessoas que estiveram sob a mira do aparato repressivo; as resistências; assassinatos; torturas; e conclui que é “Para que nunca se esqueça. Para que nunca mais aconteça.” Derlei Catarina de Luca é membro da Comissão Estadual da Verdade e militante do Coletivo Catarinense Memória, Verdade, Justiça.

Na seção Artigos, André Souza Martinello e Marcos Fábio Freire Montysuma apresentam o texto intitulado Experiências e percepções ambientais de migrantes japoneses no sul do Brasil nos anos de 1950 a 197; observam, através das memórias destes migrantes, o contato com diferentes configurações geográficas, climáticas e culturais; as adaptações e as diferenciações em relação aos espaços de terra trabalhados. Noutro artigo, com o título “Não deixe o Canto do Morcego acabar”: embates entre preservacionistas e investidores na Praia Brava – Itajaí (SC), Gloria Alejandra Guarnizo Luna mostra as denúncias sobre a ocupação de forma desordenada e a consequente destruição da orla marítima no município de Itajaí, analisando discursos das mídias contemporâneas e os movimentos de resistência da população.

Na seção Resenhas, Waldir José Rampinelli faz uma análise sobre a trilogia de Elio Gaspari, que trata da ditadura militar brasileira: A ditadura envergonhada: as ilusões armadas; A ditadura escancarada: as ilusões armadas, e A ditadura derrotada: o sacerdote e o feiticeiro. Heloísia Nunes dos Santos resenha o livro de Derlei Catarina de Luca, No corpo e na alma; e Daniele Beatriz Manfrini apresenta a obra de Margareth Rago, A aventura de contar-se.

Marlene de Fáveri

Janine Gomes da Silva

Samira Moretto Peruchi

Organizadoras do Dossiê


FÁVERI, Marlene de; SILVA, Janine Gomes da; PERUCHI, Samira Moretto. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.24, 2014. Acessar publicação original [DR]

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O Golpe de 1964 e seus desdobramentos: lutas, artes, repressão e memória / Revista Maracanan / 2014

Não nos peças a fórmula que te possa abrir mundos, e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo. Hoje apenas podemos dizer-te o que não somos, o que não queremos.

(Eugênio Montale, sem título, em Ossos de Sépia)

Com satisfação trazemos a público este número especial da Revista Maracanan, que inaugura sua periodicidade semestral com a temática candente do golpe de Estado ocorrido no Brasil em 1964, provocando repercussões duradouras na vida nacional e mesmo em outros países da América Latina.

Os artigos que aqui se encontram provêm, em sua maioria, dos debates ocorridos na UERJ entre os dias 31 de março e 04 de abril de 2014 como parte do Seminário Internacional: 50 anos do Golpe de 1964, promovido por um conjunto de Universidades sediadas no Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV, Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) com o intuito de, em alguma medida, reunir e analisar a imensa quantidade de informações e reflexões que proliferaram no país, dos meios de comunicação às academias, passando pelas Comissões Estaduais da Verdade, pela Comissão Nacional da Verdade, Ordem dos Advogados do Brasil, Grupo Tortura Nunca Mais, entre outros. Mais especificamente, o “Programa Integrado de atividades acadêmicas” buscou agregar professores, alunos e convidados dos cursos de História fluminenses, mas também de outras regiões do país e do mundo, para “descomemorar” o aniversário do golpe, segundo a expressão que entrou em voga neste cinquentenário, com a apresentação de novas produções universitárias, juntamente com novas, velhas e boas discussões. Dentro desse projeto, em que a UERJ se inseriu de variadas maneiras, o Departamento de História – na pessoa dos professores Ricardo Antônio Souza Mendes, Beatriz de Moraes Vieira, Carina Martins Costa e Marcus Dezemone, propôs o Ciclo de Debates sobre O Golpe de 1964 e seus desdobramentos: lutas, artes, repressão e memória, congregando especialistas de diferentes universidades e instituições de pesquisa brasileiras e latino-americanas para debater a temática, a fim de compor um panorama diversificado dos estudos mais recentes e proporcionar o intercâmbio entre os pesquisadores de distintos espaços acadêmicos.

Desse evento resultou o Dossiê que aqui se apresenta, em consonância com os objetivos de qualidade e pluralidade da Maracanan, visando ao incentivo e divulgação de produções científicas inovadoras e interdisciplinares na área da História. Assim, os artigos que compõem o dossiê de mesmo título do mencionado Ciclo de Debates seguem aproximadamente a ordem das palestras e depoimentos do evento, que se organizavam em três blocos: “Cinema, literatura e ditadura”, contando com os professores Viviana Bosi, Wagner Pinheiro Pereira e Sylvia Nemer; “Memória de lutas”, reunindo a psicóloga Vera Vital Brasil e os professores Marcus Dezemone, Beatriz Vieira e Orlando de Barros; e “A participação brasileira nos golpes civil-militares no Cone Sul”, em que as contribuições da jornalista argentina Stella Calloni se somaram às dos professores Francisco Carlos Teixeira da Silva e Enrique Serra Padrós. Na mesa de abertura, os professores convidados Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira debateram o tema “1964: o golpe que acabou com a democracia e instituiu a ditadura no Brasil”.

Em geral, os textos aqui presentes foram compostos, conforme a escolha dos autores, por meio de um processo de gravação, transcrição e posterior revisão, o que resulta em um tipo peculiar de escrita, com forte marca do discurso oral que optamos por manter, ainda que os autores hajam revisto e refeito seus trabalhos. Nem todos os palestrantes puderam enviar seus textos, mas, de todo modo, registramos mais uma vez nosso agradecimento pela participação dos professores Ângela de Castro Gomes, Stella Calloni Jorge Ferreira. Igualmente, agradecemos aos alunos bolsistas do curso de História que generosamente se dispuseram ao duro trabalho de transcrever as gravações, nomeadamente Fabrício Gabriel, Juliana Martins, Cairo Barbosa, Edson Lima e Antônio Máximo. Este último, ilustrador profissional além de nosso aluno, brindou-nos graciosamente com uma colaboração inédita, que temos a honra de publicar. A ele e a Fabrício Gabriel, o dedicado secretário da Revista, nossa especial gratidão.

Não há como unificar as reflexões aqui expostas e os debates por elas suscitados, e nem é esta nossa intenção, alicerçada, como já mencionado, na busca de visões plurais. Tampouco há conclusões definitivas, uma vez que toda história muito contemporânea, ou história do tempo presente, não possui marcos precisos de início e fim, é necessariamente inconclusa e oferece aos agentes históricos, historiadores e leitores, um campo aberto de possibilidades, conforme as palavras do professor Enrique Padrós. Neste tipo de historiografia, se não há a clássica distância temporal, há porém a capacidade de distância crítica, que nos permite não neutralidade, mas isenção.[1]

Aqui, também algumas reflexões sobre a função social da História pedem passagem, pois que cabem a esta disciplina, a considerarmos as obras de autores como Michel de Certeau e Jörn Rüsen, os procedimentos epistemológicos e metodológicos necessários para pôr o passado, seus sofrimentos e seus mortos no devido lugar. Para Certeau, a escrita da história é ou deveria ser um discurso de separação, de distinção entre o presente e o passado, o eu e o outro, pois sem isso nem o tempo nem a identidade se tornam inteligíveis. Lidar com o que foi mas não é mais, a finitude e a morte, é um procedimento inelutável e paradoxal da historiografia, cujo discurso “re-presenta mortos no decorrer de um itinerário narrativo” e ao fazê-lo, cumpre a função simbólica de um rito de sepultamento, à maneira de um canto fúnebre que ao mesmo tempo elogia e elimina, honra e enterra. “Assim, pode-se dizer que ela [a historiografia] faz mortos para que os vivos existam”, fornecendo ao passado morto uma representação que exorciza a angústia e libera o presente vivo de seus pesos dolorosos.[2] Já a concepção de Rüsen sublinha a função orientadora do trabalho historiográfico, que apresenta sentidos para a experiência social. Mas, em momentos de grave crise, a ordem narrativa de uma sociedade pode ser alterada ou rompida, vindo a atingir sua cultura histórica e historiográfica, seja em sua dimensão política, estética, psicológica ou cognitiva. Para não subsumir a essas dificuldades, especialmente quando o próprio cerne da capacidade de criar conhecimento é atingido, a historiografia precisa se autorrefletir, superar empecilhos temporais e sociológicos e estabelecer a “historicização” como “estratégia cultural de superação das consequências perturbadoras das experiências traumáticas”. Isto porque, quando as histórias são contadas, o acontecimento catastrófico começa a ser assimilado dentro de uma visão de mundo plausível, de maneira que “ao cabo desse caminho, a narrativa histórica dá à perturbação traumática um lugar na cadeia temporal de eventos. Aí ela faz sentido e perde, assim, seu poder de destruir o sentido e o significado. Ao dar ao evento um significado e sentido ‘históricos’, seu caráter traumático desaparece”.[3] O autor propõe, assim, que ao historiar o que seria uma catástrofe inenarrável, a historiografia supera o trauma e cumpre uma função destraumatizante, vindo a realizar na escrita da história uma dinâmica equivalente ao luto social.

Tais considerações sugerem alguns pontos de convergência que podem ser tomados como norteadores do conjunto de reflexões que ora se apresenta. Os artigos que tratam da relação entre cinema, literatura e a ditadura, por exemplo, abordam os problemas enfrentados pela vida cultural brasileira num momento de grande mudança, na virada da efervescência política do início dos anos 1960 para os tempos da censura e repressão. A isto se somam as ricas problematizações que a arte e os meios de comunicação colocam à crítica, seja literária ou historiográfica. Viviana Bosi estuda a forma como dois poetas brasileiros importantes no período, Ferreira Gullar e Francisco Alvim, exprimiram os problemas políticos da sociedade brasileira entre os anos 1960 e 1970, e questiona, ainda que brevemente, as relações entre poesia e história, especialmente no que tange à poesia dita engajada. Wagner Pinheiro Pereira busca analisar as representações da natureza repressiva e autoritária do regime militar brasileiro em sua fase de maior recrudescimento político, conforme se vê no filme Pra Frente, Brasil (1982), e Sylvia Nemer destaca, na filmografia e na reflexão teórica de Glauber Rocha, a presença aguda das utopias, ideologias e, sobretudo, das tensões que envolveram a cultura brasileira de esquerda nos anos sombrios da ditadura.

Nos textos concernentes à temática das memórias de lutas, os pontos de condensação versam sobre os problemas da memória social, traumática ou não, sobre a consequente necessidade de testemunhos a serem acolhidos pela sociedade, como forma de superação de silêncios e reparação de danos, e sobre as questões que a dor e / ou as disputas de memória colocam à historiografia brasileira. Neste quadro inserem-se as considerações de Vera Vital Brazil ao destacar efeitos da violência institucionalizada pelo golpe civil militar sobre a produção de subjetividade e apontar sua permanência nos dias atuais. Apontando a tortura como um dos principais estratégias repressivas do Estado Brasileiro, dá destaque ao dano psicológico e social das violações cometidas em conexão com os efeitos de silenciamento e destaca a importância do testemunho e da reparação por meio das políticas públicas estatais. Em um balanço explicativo, Marcus Dezemone aborda as atuais batalhas de memória em torno do significado da deposição do presidente João Goulart e do regime autoritário instaurado em seguida, avaliando a construção de representações que enfatizam ora a repressão e a violência política, ora o crescimento econômico e uma suposta manutenção da ordem. Ao relacionar as disputas do presente às diferentes apropriações do passado, o autor reflete sobre o caráter seletivo da memória e ilumina as paixões, versões e controvérsias que 1964 provoca na sociedade brasileira. Em direção de certa forma semelhante, as reflexões históricas e historiográficas apresentadas em meu próprio textose fazem sobre as atuais e intensas discussões acerca do golpe, da ditadura e seus efeitos no país, e propõem uma espécie de debate sobre os debates em que se considere a necessidade de nuances no que se refere a conceitos importantes como, por exemplo, os de liberdade, vitimização, memória traumática e estado de exceção, aos quais se associa a noção de “perplexidade” que surge reiterada e significativamente nas fontes de pesquisa da época.

No terceiro bloco de textos, cumpre-se de algum modo a proposta orientadora e reparadora da História, uma vez que os trabalhos retiram do silenciamento pequenas e grandes questões incômodas ou obscuras, como a precariedade da defesa dos direitos humanos no Brasil, tratada por Francisco Carlos Teixeira da Silva ao retomar as rupturas e continuidades de nossa história recente – mediante a comparação das ditaduras de 1937-1945 e 1964-1985 e os regimes democráticos de 1946-1964 e pós 1985 -, para criticar a violência policial, a violência política e a cotidiana, em especial no que concerne à resiliência da tortura na vida pública brasileira. Por sua vez, o trabalho de Enrique Serra Padrós expõe a atuação extrafronteiriça da ditadura brasileira, pressionando os países vizinhos do Cone Sul para obter colaboração no controle dos “focos subversivos” ao redor das suas fronteiras, e analisa o caso uruguaio (1964-1973) por ser emblemático dessas relações que sintetizam as responsabilidades do Brasil na eclosão de golpes de Estado e na consolidação de ditaduras de segurança nacional na região. Em ressonância a essas considerações, Orlando de Barros ofereceu seu testemunho de professor da UERJ nos anos ditatoriais, explicando a difícil situação dos mestres que viam seus alunos serem perseguidos, presos ou mesmo mortos, bem como as condições de trabalho vigiado e os modos de atuação do regime dentro da instituição universitária.

Na seção dos Artigos Avulsos, os temas abordados dialogam exemplarmente com o Dossiê, como se vê no trabalho do professor Ricardo Antonio Souza Mendes, que resgata a Doutrina de Segurança Nacional para compreender os diferentes projetos de sociedade que estavam em gestação entre as direitas, ainda antes da efetivação do golpe, mas cuja fragmentação foi superada por um conjunto de elementos de identificação que permitiu a unidade observada nos primeiros meses de 1964. Outrossim, as autoras Joana D`Arc Fernandes Ferraz e Cíntia Christiele Braga Dantas tratam do problema da memória, do esquecimento e dos silêncios em chave diferente, pois adotam uma perspectiva benjaminiana para questionar os usos políticos da memória pelos governos pós-ditatoriais e sopesar os dispositivos de reparação e os seus limites ou sequelas no Brasil.

A Resenha do professor Nilo André Piana de Castro traz a boa nova do livro de Alessandra Gasparotto, agraciada em 2010com o “Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas”. Intitulada O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura civil-militar no Brasil, 1970-1975, a obra concentra informações relevantes sobre os fatos da história política recente no país a partir de meticulosa pesquisa sobre os “arrependimentos” durante a ditadura civil-militar, nos casos em que jovens militantes de esquerda foram apresentados nos veículos de comunicação, entre 1970 e 1975, com depoimentos que renegavam suas atividades na luta-armada e na oposição ao regime imposto.

Por fim, nas Notas de Pesquisa, Jacqueline Ventapane apresenta seus estudos sobre o papel dos meios de comunicação, como a revista VEJA, na representação dos interesses de setores das elites, inserindo-se nas disputas para fazer prevalecer seu próprio projeto de país, conforme se vê no caso da disputa em torno das decisões da política externa daquele período, que geraram impactos importantes na política doméstica.

Se estão certas as reflexões de Michel de Certeau e JornRüsen acima comentadas, todo este número da RevistaMaracanan, ao buscar de variadas formas historiar essa parte recente e difícil da história do Brasil, de certa maneira entoa seu canto de luto ao passado doloroso, a ser decantado, compreendido e enterrado, para, quem sabe, oferecer aos vivos do presente melhor matéria de reflexão sobre sua vida e seu mundo.

Notas

1. PADRÓS, Enrique Serra. “Os desafios na produção do conhecimento histórico sob a perspectiva do Tempo Presente”. Anos 90, Porto Alegre, v.11, n.19 / 20, jan-dez. 2004, pp. 199-223.

2. CERTEAU, Michel. A escrita da história. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 106-108.

3. RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da Historiografia [Revista eletrônica], n.02, [Ouro Preto: UFOP], março 2009, p. 195

Beatriz de Moraes Vieira


VIEIRA, Beatriz de Moraes. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.11, dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História, memória e representações / Revista Trilhas da História / 2014

No Dossiê “História, Memória e Representações”, a Revista Trilhas traz um debate que contempla questões norteadoras da produção do conhecimento histórico, como a discussão das representações missionárias no continente africano; as representações da igreja dos pobres no Brasil; o significado das práticas religiosas populares; a memória da Umbanda; a memória de migrantes paranaenses e paulistas e o sonho da terra prometida; a cultura escolar e suas relações com o meio social; a memória dolorosa das enchentes, entre outros temas que se entrelaçam. Contribui, dessa maneira, para dar continuidade às ações da Revista, qual seja, propiciar espaços para que pesquisas de fôlego sejam publicadas e, assim, as trilhas possam ser percorridas na escrita da História e em sua reflexão.

No texto “O conceito de representações da Nova História Política: uma análise dos estudos de missionários na África Meridional de fins do século XIX e início do XX”, Yuri Wicher Damasceno trabalha o conceito de representações a partir da perspectiva da história política. O autor aborda o papel das missões e dos missionários em Uganda, destacando que o objetivo era levar “os ideais imperialistas” na “busca de uma regeneração da África”, ou seja, o desejo de “civilizá-la” nos moldes dos projetos colonialistas. Para essa reflexão, Damasceno destaca a ação da Church Missionary Society e suas práticas imperialistas, inspiradas na visão da Europa como o “centro civilizador” e o continente africano como o lugar da “barbárie”. O autor contribui para mostrar os limites desta interpretação e a necessidade de apreendermos as suas arbitrariedades.

O texto “Festa de Nossa Senhora Imaculada Conceição, padroeira de Dourados (1920-1960): conservadorismo e mudança de práticas culturais”, de Tiago Alinor Hoissa Benfica, analisa certas práticas religiosas populares, a exemplo da festa religiosa, por meio de fontes bibliográficas, periódicos e entrevistas. Observa o autor que sendo as festas espaços de convivência, solidariedade, trocas de saberes, elas se tornam instrumentos de poder e de controle da Igreja Católica, utilizados como forma de conter o avanço do protestantismo na localidade. Discorre ainda sobre a figura do festeiro e o seu papel na organização da festa, observando o status que isto lhe delegava. Mas chama a atenção a afirmativa de Hoissa de que a memória da festa, apreendida por meio de entrevistas, esconde os momentos de tensão vividos em seu interior, a exemplo das brigas e dos crimes que também eram comuns em Dourados, Mato Grosso do Sul, nas primeiras décadas do século XX.

Bruno Dias Santos, ao abordar o tema “Da Igreja Romana à Igreja dos pobres: crítica e utopia nas missivas de frei Betto (1969-1973)” propícia uma leitura das práticas e representações vividas por esse agente pastoral em meio ao cenário da Ditatura Militar e do nascimento da Teologia da Libertação nos anos 1970. Agente central no processo de denúncia das arbitrariedades do regime de exceção e, ao mesmo tempo, sujeito histórico das mudanças no interior da Igreja Católica, em especial, na opção pelos pobres, frei Betto tornara-se um dos ícones de luta de parte desta instituição. Porém, ao mesmo tempo, sentiria na pele, no corpo e no sangue, o peso desta postura.

O artigo “Salvos por Cacique Tartaruga: Memória, História e Mito na umbanda de Campo Grande- MS”, de Saulo Conde Fernandes, contempla o debate da religiosidade, por meio da memória dos pais e mães de santo em Mato Grosso do Sul. Associando a História Oral e a Antropologia, Fernandes destaca o diálogo entre ambas e apresenta histórias de vida que dão vida à memória e às representações da umbanda. Na discussão da incorporação do Cacique Tartaruga, um “caboclo de umbanda”, guia espiritual na cidade de Campo Grande, MS, o autor tece ainda uma etnografia dos terreiros chamando a atenção para a diversidade da religiosidade afro-brasileira nesses lugares. Estabelece uma crítica ao mito fundador da Umbanda, observando a amplitude de interpretações em torno de sua origem. Propõe, então, a teoria do rizoma como mais eficiente para a compreensão das religiões afro-brasileiras, já que, no seu entender, as várias linhas se entrelaçam e não há um continuum na história.

No artigo “A problemática dos sujeitos: o movimento migratório proveniente do estado do Paraná e São Paulo para Ivinhema-MT (1960-1970)”, de Nelson de Lima Júnior, também encontramos a reflexão da memória e das representações. Isso é possível a partir das lembranças tecidas e narradas pelos migrantes paranaenses e paulistas de sua terra natal e daquilo que se sonhara conquistar por uma vida inteira: a terra de trabalho como morada da vida. Mesmo em vista de todas as dificuldades em meio aos projetos de assentamento e às frustrações derivadas das ações governamentais para sufocar os movimentos sociais de sem terras em seus estados de origem, é possível encontrar na fala dos entrevistados, como narra Nelson, o sonho da conquista da terra, ou seja, aquilo que lhes conduzira à caminhada e lhes dera força para se deparar com as intempéries da vida.

Marilsa de Paula Casagrande, ao abordar “A Cultura e a Cultura Escolar”, discute, a partir de alguns referenciais teóricos que define como básicos, a apreensão do significado da cultura e da cultura escolar para a escola. Este debate é fundamental, pois, como é perceptível nas preocupações da autora, não são elucubrações teóricas sem uma preocupação com o “chão da escola”, ao contrário, já que Casagrande entende “a escola como representação da nossa visão de mundo”. Desse modo, as mudanças ou permanências vividas no ambiente escolar evidenciam o modo como o novo ou o velho se manifestam. Daí ser preciso apreender continuidades e rupturas desse lugar de produção do saber e de reprodução, muitas vezes, das práticas autoritárias da sociedade, se não nos dermos conta dessa dimensão.

No Ensaio de Graduação “Espectros da Catástrofe Entre o Trauma e a Solidariedade: Representações Iconográficas da Enchente de 1974 em Tubarão (SC)”, de Elias Theodoro Mateus, encontramos um diálogo profícuo entre as fotografias, como fontes históricas, e os referenciais teóricos, a fim de apresentar, em paralelo com os estudos da psicanálise que enfatizam as dimensões de “solidariedade e trauma”, a construção da memória da enchente em meio à tragédia vivida pela população de Tubarão nos anos 1970. O autor enuncia, por meio das imagens, o quanto fora impactante esse acontecimento para a memória dos moradores, (re)definindo modos de vida e de compreensão do lugar.

A Resenha de Laura Sanches da obra de Mercedes de la Garza, “El legado escrito de los mayas”, faz uma importante referência acerca do legado pré-colombiano, trazendo análises de escritos na língua maia, produzidos no período colonial. Nas palavras de Sanches, “Este libro es de consulta básica para quien desee conocer la trayectoria histórica maya desde el Clásico hasta fines de la Colonia, y para quienes investigan y enseñan temáticas relacionadas a las religiones y literaturas precolombinas, la historia de la Conquista de América, la evangelización y la resistencia”.

Por fim, na seção Fontes apresentamos a entrevista do Professor Dr. Eudes Fernando Leite (UFGD), historiador mato-grossense, realizada pelo Grupo PET – História Conexões de Saberes e estruturada por Vitor Oliveira (UFMS / CPTL). Na entrevista Leite explicita a sua concepção de história narrando a sua trajetória de ensino e pesquisa na área. A proposta do grupo PET consiste em desenvolver uma série de entrevistas com historiadores que trabalham ou trabalharam a história regional, (MT / MS). Objetiva-se, com este material, sondar em que pé está a historiografia regional, quais os trilhos e as trilhas percorridos, bem como as novas possibilidades de investigação da história, o que propicia um prato cheio de experiências para contribuir nos rumos da pesquisa regional e para além de Mato Grosso do Sul.

Maria Celma Borges

Caio Vinicius dos Santos

Verão de 2014


BORGES, Maria Celma; SANTOS, Caio Vinicius dos. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.4, n.7, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Imigração, memória e identidade / Ágora / 2014

Neste dossiê, intitulado Imigração, memória e identidade, pretende-se discutir a imigração, a memória e a identidade a partir de perspectivas múltiplas. Neste sentido, Beatriz Vitar traz para o debate a importância das recordações e das vivências familiares e coletivas como elementos forjadores da identidade de um grupo. Para tal, utiliza o testemunho de um descendente de granadino assentado na Argentina. Leslie Nancy Hernández Nova analisa os sentimentos de pertencimento de diferentes gerações peruanas na Europa, com recorte nos mais jovens. Menara Lube Guizardi e Alejandro Garces propõem um estudo que vise compreender a migração nas nações andinas – Peru, Bolívia e Chile – numa dimensão macrossocial, económica e política. Maria Catarina C. Zanini reflete sobre alguns aspectos de cidadãos brasileiros, descendentes de imigrantes italianos, cuja cidadania italiana é legitimada pelo Estado italiano e a complexidade e os distanciamentos existentes entre o reconhecimento de direito e a cidadania de fato na Itália. Luis Fernando Beneduzi, partindo da trajetória de um brasileiro descendente de trentinos, residente na cidade de Trento (Itália), analisa este percurso ponderando sobre a interligação entre a realidade presente e a memória do passado vivido. Filipo Carpi Girão e Maria Cristina Dadalto partem de testemunhos de jovens integrantes de um grupo de dança folclórica italiana no estado do Espírito Santo, para buscar entender como se dá o aprendizado e a reconstrução das tradições a partir da dança. Edenize Ponzo Peres apresenta os resultados de um estudo de sociolinguística com descendentes de imigrantes vênetos residentes na comunidade de Araguaia, zona rural do município de Marechal Floriano, Estado do Espírito Santo. Assim, avalia que, se a identidade do falante para com os seus antepassados é importante para a manutenção de uma língua minoritária, o fator identidade não conseguiu superar a pressão da cultura majoritária, culminando no desaparecimento do vêneto.

Maria Cristina Dadalto –  Organizadora.

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Memória e história: diálogos, narrativas e ensino / Aedos / 2014

Embora relativamente recente (em termos de história da historiografia), a questão da memória e sua relação com a narrativa histórica carrega consigo certa urgência. No século XX, frequentemente a questão da memória foi associada ao Holocausto, e o que se seguiu disso foi uma espécie de sensação de estranheza, incompreensão ou perplexidade por conta dos historiadores. Isso se deveu em parte à natureza dos eventos sucedidos – em virtude de suas particularidades –, em parte à mentalidade de uma historiografia tradicional que percebia a memória como avessa ao caráter “científico” da narrativa historiográfica. No Brasil, o ano de 2014 foi marcado pelo cinquentenário do golpe militar que instaurou um período de ditadura civil-militar no país, onde a memória – ou a ausência dela – também faz deste evento um desafio em termos não só teóricos, mas também metodológicos para a possibilidade de representação desse período. Desse modo, convidamos os pesquisadores a debaterem neste número a – essencial – relação entre memória e história, as implicações dessa relação para a narrativa historiográfica, pensadas como fator de possibilidade e / ou de limite para a representação histórica.

O título de nosso dossiê é composto por duas partes que devem direcionar os trabalhos que prtendemos incentivar nesta edição. O termo central é “memória”. Formulada e debatida a partir dos limites da representação histórica, sobretudo quando envolvendo eventos traumáticos, esta questão já teve muitas formas de interpretação. Por vezes, foi vista como indigna ou incompatível – espécie de subjetivismo indesejado. Em outras interpretações, como condição de possibilidade ou mesmo base fundamental para a formulação de qualquer narrativa histórica.

Dentre os tópicos que sugerimos estão: a relação teórica entre a história e a memória; os imperativos da memória para a narrativa historiográfica e sua relação com a imaginação e a retórica; as implicações da memória para o diálogo entre historiadores e / ou público; os desafios para incluir e tratar a questão da memória no ensino de história.


Conselho Editorial. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v.6, n.14, julho, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e Memória  / Escritas / 2014

Nesta Edição apresentamos aos leitores o Dossiê “História e Memória” que reúne seis artigos que tratam das representações, das experiências subjetivas, do discurso imagético, das narrativas memorialísticas e das trajetórias individuais, utilizando diferentes teóricos e fontes de pesquisa. A partir da leitura desses artigos podemos verificar a importância da gestão da memória e a relação dessa memória com a produção histórica. Na sequência do Dossiê, apresentamos também uma seção com temas livres e variados composta por sete artigos. Abrindo o Dossiê, temos o artigo de Bruno Sanches Mariante da Silva, intitulado Quando eu me chamar saudade: representações do / no cemitério Jardim da Saudade em Londrina (PR), que analisa os espaços cemiteriais como um lugar de disputa de memórias e de representações sobre a vida e da morte. Com o tema Fé e transformações: memórias sobre a vida religiosa feminina no Brasil a partir dos anos 1960, Caroline Jaques Cubas aborda as memórias e experiências de vida religiosa na sociedade brasileira a partir da década de 1960, com o objetivo de compreender as transformações institucionais ocorridas na Igreja Católica. No artigo Representações do Feminino na Cartilha Caminho Suave, Miriã Noeliza Vieira analisa as imagens tradicionais das mulheres presentes nas Cartilhas Caminho Suave e contribui para a inclusão dos estudos de gênero na história. Nelson de Lima Junior, com o texto Trajetórias que (re) contam História: os brasiguaios na ocupação da gleba Santa Idalina em Ivinhema-MS (1984-1993), investiga a luta pela posse da terra na fronteira entre Brasil e Paraguai entre os anos de 1960 e 1980. No artigo Os estádios da memória: Jorge Montealegre e o relato da prisão política no Chile pósPinochet, Maurício Marques Brum analisa o livro Frazadas del Estadio Nacional (2003), de Jorge Montealegre, o qual contém as memórias e as experiências da prisão desse escritor chileno durante a ditadura de Pinochet no Chile. Finalizando o Dossiê, Felipe Paiva, no texto Imagem e resistência na África: Nelson Mandela e o contexto de libertação sul-africano, respalda-se no discurso imagético para discutir o conceito de resistência e problematizar as tendências historiográficas que abordam as ações e iniciativas anticoloniais no continente africano.

Na Seção Livre deste número da Revista Escritas, o texto de Ana Eugênia Nunes de Andrade, intitulado Na seção Imprensa de Pouso Alegre / MG na batuta da política republicana, trata as dinâmicas sociais do comércio na cidade mineira de Pouso Alegre nas primeiras décadas do século XX, a partir da interpretação dos anúncios publicados no jornal Correio Sul-Mineiro. Guilherme Machado Nunes, com o artigo O operariado fabril e a lei de férias: a greve de janeiro de 1929 em Porto Alegre, estuda a greve operária ocorrida em janeiro de 1929 em Porto Alegre, com a finalidade de discutir a luta trabalhista neste contexto histórico. Ana Paula Oliveira de Jesus, com o tema O aldeamento dos índios Guerens do Almada face aos desígnios da política indigenista de 1755 a 1815 (Vila de Ilhéus), investiga a situação do aldeamento dos índios Guerens na Vila de ilhéus, entre o final do século XVII e início do XVIII. Igualmente tratando da questão indígena, no artigo Da letra da lei às práticas coloniais: índios administrados e colonos na Capitania de Ilhéus, Rafael dos Santos Barros analisa a relação entre os Guerens e os capitães-mores no Brasil, durante a primeira metade do século XVIII, bem como as estratégias usadas por essa etnia indígena para negociar com a Coroa portuguesa. No artigo Presidente Médici: a invenção de um autor, Felipe Menezes Soares analisa textos assinados por Emílio Garrastazu Médici no período em que esse militar atuou na presidência do Brasil (1969-1974), buscando ver as subjetividades e os interesses políticos-institucionais que orientaram a produção discursiva desse presidente. Os autores Julio César dos Santos e Luciene Aparecida Castravechi realizam Uma análise historiográfica de Quentin Skinner em sua obra “Hobbes e a liberdade republicana” e buscam compreender a narrativa e a abordagem teórico-metodológica desse teórico. Jaime Fernando dos Santos Junior, no artigo A medicalização do corpo político: a análise médica como método do debate político em diapoliteia de John Rogers, aborda uma das mais importantes analogias da cultura política européia da Idade Moderna, a qual relacionava a imagem do corpo natural ao corpo político.

Contamos ainda, nesta Edição, com a resenha A presença da guerra na literatura e na memória da Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial de Rodrigo Conçole Lage sobre a obra intitulada Guerra aérea e literatura, elaborada pelo escritor judeu alemão Winfried Georg Maximilian Sebald.

Boa leitura.

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Memória, Ditaduras e Direitos / Projeto História / 2014

Os estudos e a reflexão sobre a memória social e as relações entre História e Memória constituem área relativamente recente dos estudos históricos. Como propõe Josephina Cuesta, em um balanço sobre a questão, diferentemente de outros cientistas sociais, que, desde o início do século XX, incorporaram os temas da memória ao seu repertório de discussões, seria somente a partir da década de 1960 que os historiadores passam a abordar de forma mais sistemática as questões políticas, teóricas e metodológicas postas nesse campo.

Não obstante, nas últimas três décadas, e em grande parte acompanhando as demandas sociais, a memória emerge como um campo profícuo da reflexão histórica, e a área registra uma notável expansão de estudos internacionais e também nacionais sobre as relações entre Memória e História. Indagações sobre a matéria própria da memória social, seus modos de produção e transmissão, as questões da lembrança e do esquecimento, a natureza dos testemunhos, a memória como campo de disputas e o papel da memória nas disputas sociais informam o estudos de diferentes temáticas. Pesquisas sobre a construção e a institucionalização de identidades nacionais e comunitárias, o papel das comemorações e da invenção de tradições, o papel dos símbolos e lugares de memória em diferentes situações e contextos, bem como sobre os processos de institucionalização de memórias e lutas sociais articulam-se à reflexão de campos diversos, tais como os da História Social e Cultural, da nova História Política, da História Pública e da chamada História do Presente. A expansão das fontes estudadas, festas, símbolos diversos, monumentos, calendários, artes gráficas e visuais, fotografia, pintura, publicidade e, principalmente as fontes orais, faz emergir uma pluralidade de sujeitos, questões e temas.

Para o que aqui nos interessa, vale também notar que a emergência de preocupações culturais e políticas voltadas para a discussão de memórias relativas ao passado recente é um fenômeno que ganha força na contemporaneidade em alguns países da Europa, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, bem como em vários países da América Latina, após a experiência de ditaduras recentes.

De acordo com essas informações da Anistia Internacional, desde os anos de 1970, mais de 40 comissões da verdade ou similares foram estabelecidas ao redor do mundo, a maioria delas nos últimos 20 anos. A grande parte dessas comissões, propostas sob a visão da justiça de transição e visando à luta contra a impunidade e ao estabelecimento de procedimentos de reparação a vítimas de processos de violência institucional, propugnou pelo estabelecimento de mecanismos nacionais efetivos para a documentação da verdade sobre o arbítrio e os crimes perpetrados, propondo também a socialização do conhecimento sobre razões e circunstâncias que levaram às violações de direitos humanos nas situações sob investigação.

É significativo assinalar que, com essas comissões, muitos desses países assumiram como tarefa e dever de Estado a recuperação, a preservação e a publicização da documentação sobre os períodos de violência institucionalizada. Nesses anos, particularmente na América Latina, identificaram-se movimentos de grande vitalidade na área, os quais se articularam a importantes lutas políticas contra o arbítrio e a impunidade, bem como àquelas pelo direito à verdade e à memória. Em vários desses países, as lutas tiveram / têm como dimensão importante a organização de suportes de memória da repressão e da resistência produzidos nos períodos ditatoriais, dando origem ao desenvolvimento de inúmeros projetos e à organização de instituições diversas voltadas para a ação, a pesquisa e a reflexão sobre a história desses períodos.

No Brasil, passados mais de 50 anos do Golpe de 1964, a discussão pública sobre os anos da ditadura brasileira e da transição ainda é profundamente marcada pela herança autoritária imposta pelo pacto conservador da abertura, que propõe o perdão institucional aos responsáveis pelo terror de Estado e que se manifesta na prática cotidiana e contínua da violação de direitos humanos de nossa sociedade. Apesar disso, há de se reconhecer que, no decorrer da última década, principalmente a parir da aprovação do PNDH-III, em 2009, e da Lei Geral de Acesso à Informação e da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, as questões propostas pelas articulações entre memórias da ditadura, história e cidadania ganharam força crescente no debate público em diferentes espaços da sociedade brasileira.

Desde então, assim como os demais espaços sociais, as universidades e a produção acadêmica têm sido insistentemente confrontadas e interpeladas por diferentes agentes sociais, e têm respondido a essas demandas. Nos últimos anos, nas diversas áreas das Ciências Humanas, a produção acadêmica sobre o período da ditadura cresceu vigorosamente em quantidade e qualidade. Particularmente no campo das relações entre Historia e Memória, há de se indicar que a historiografia sobre o período tem avançado significativamente, assumindo a pesquisa e a reflexão sobre uma grande diversidade de temas, questões, espaços, práticas e vozes antes inaudíveis ou invisibilizadas, e que nos aproximam muito mais de uma História Social e Política sobre o período e de suas repercussões na vida contemporânea. Há ainda que destacar a criação em várias universidades do país de Comissões da Verdade universitárias assim como o envolvimento de muitos professores nos trabalhos de pesquisa das várias comissões estaduais e na comissão nacional. Também a PUC-SP criou sua Comissão da Verdade que durante os últimos dois anos atuou articulada à outras comissões e buscou contribuir para a pesquisa e a reflexão histórica sobre aqueles anos de exceção. Este número da Projeto História articula-se tanto à discussões recentes propostas pelo Departamento de História como aos trabalhos da Comissão da Verdade da universidade.

Buscando contribuir para esse debate, este número da revista Projeto História aborda as relações entre Memória, Ditaduras e Direitos. A proposta é a que a divulgação de pesquisas e reflexões em circuitos mais amplos nos ajude a aproximar o trabalho de historiadores da importante agenda pública trazida pelas lutas em favor do direito à memória, à verdade e à justiça em nosso país. Busca também salientar a importância da reflexão histórica em um terreno no qual sentidos e significados encontram-se ativamente em disputa na sociedade brasileira na atualidade.

A revista traz a contribuição de historiadores e outros cientistas sociais que exploram diferentes ângulos da questão em relação à ditadura no Brasil e também em outros países da América do Sul e da Europa.

Os artigos de Ana Maria Sosa González e Enrique Padrós remetem às discussões sobre as ditaduras nos países do Cone Sul. O estudo de González nos propõe uma avaliação comparativa das políticas de memória implementadas recentemente no Uruguai e no Brasil, apontando seus caminhos e estratégias, bem como suas relações com políticas de afirmação dos direitos humanos nesses países. Ao discutir a atuação de historiadores e outros cientistas sociais nesse processo, aponta desafios atuais enfrentados nessa aproximação entre a academia e esses processos políticos. O artigo de Padrós, por sua vez, com base em pesquisa detalhada na documentação e em entrevistas de militantes do CLAMOR – Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, grupo que atuou com sede em São Paulo entre os anos de 1978 e 1991, aborda as situações de violação de direitos e violências perpetradas pelas ditaduras recentes em diversos países da América do Sul no contexto da atuação no Comitê e suas ações de denúncia do arbítrio e de auxílio e solidariedade aos perseguidos políticos nesses regimes no Cone Sul. O texto examina as lutas de resistência empreendidas pelo CLAMOR e pela rede de solidariedade constituída por entidades de defesa dos direitos humanos à qual o Comitê se articulava, como também aponta a dramática situação dos exilados e perseguidos políticos na região naquele período. Aqui, vale lembrar, que este precioso acervo do CLAMOR, nominado Memória do Mundo pela UNESCO , encontra-se aberto à consulta pública no CEDIC – Centro de Documentação da PUC-SP – e por sua importância para o período sugere inúmeras outras abordagens sobre as ditaduras no Cone Sul.

Como indicado anteriormente, a atuação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, entre 2012 e 2014, constitui marco importante no desenvolvimento das lutas pelo direito à memória, à verdade e à justiça no país, e seu encerramento recente coloca inúmeras questões sobre os desdobramentos desse processo na conjuntura em que vivemos. Procurador atuante na área e estudioso dos direitos humanos, Marlon Weichert apresenta, em seu artigo, um minucioso resumo do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade tornado público em dezembro de 2014. Além de descrever de forma densa e sintética os principais conteúdos, conclusões e recomendações do relatório, realiza um balanço sobre as dificuldades enfrentadas pela Comissão. O artigo também propõe uma avaliação fundamental e instigante sobre as expectativas e os desafios que a CNV não conseguiu atender, e examina as contribuições que seu relatório trouxe para o processo de justiça de transição brasileiro.

Dada a sua importância na configuração das relações de poder em nosso país, a presença e a atuação dos meios de comunicação nos processos de disputa em torno das memórias sobre a ditadura, bem como nos processos da transição, têm mobilizado fortemente a reflexão sobre os processos de constituição e a instituição de memórias sobre o período. Nesse campo, destacam-se, particularmente, as análises da imprensa como força social que atua na produção de hegemonia, articula uma compreensão da temporalidade, propõe marcos e diagnósticos do presente e que, a todo o tempo, propõe a afirmação de sentidos selecionados e a ocultação de outros. Dentro dessa perspectiva, a atuação da imprensa e os seus impactos nos processos de afirmação e transmissão de memórias da ditadura civil-militar no Brasil, a sua atuação como espaço de legitimação ou oposição aos regimes, são aqui tratadas sob diferentes ângulos e veículos.

O texto de Carla Luciana da Silva, com base na análise da revista VEJA em 1969 / 70 e 2014, problematizando a relação entre a imprensa, a memória histórica, as práticas discursivas e a produção da hegemonia, analisa como a revista atua na conformação e atualização de consensos sobre a repressão, a violência e a presença de opositores do regime, dos trabalhadores e dos movimentos sociais na cena política do país.

Percorrendo uma trajetória similar, a discussão proposta pelo artigo de Luiz Antonio Dias e Rafael Lopes Sousa, que destaca a pesquisa realizada nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, tem como eixo central o Golpe de 1964. Analisando a recepção pelos dois jornais ao golpe civil militar de 1964, em momentos de sua efetivação, e depois em tempos de sua “comemoração” ou “rememoração”, nas efemérides de 2014, desenvolve argumentos sobre a reescrita do passado por aqueles jornais e desvenda seus argumentos e caminhos de justificação e legitimação daqueles eventos no presente.

Por outro lado, o artigo de Maria Izilda Santos Matos, tematizando a questão do exílio político e as ações de oposição ao regime salazarista no Brasil, problematiza como a imprensa pode se constituir em espaço de articulação e manifestação de propostas críticas e dissidentes. Em meio ao estudo da presença portuguesa em São Paulo (1920 / 70), destaca as experiências de um grupo de portugueses que, no exílio, levou à frente ações de oposição ao regime salazarista tendo como canal de expressão política o jornal Portugal Democrático.

Encerrando a seção de artigos, o texto de Marijane Lisboa, ao discutir pesquisas recentes sobre aspectos até hoje negligenciados da memória coletiva do genocídio nazista e os percursos da memória coletiva a seu respeito em situações específicas, nos situa na memória como campo de disputa móvel, que implica recordação, esquecimento e manipulação em momentos e situações históricas diversas. Destacando os desafios de se lidar com memórias sensíveis e traumáticas, propõe a reflexão crítica sobre os usos e os abusos da memória, bem como sobre a promoção de políticas de memória que sirvam à construção de sociedades democráticas.

Finalmente, na composição deste número da revista, cumpre salientar as contribuições trazidas por pesquisas em andamento sobre o período. Também abordando as relações entre imprensa e memória, tendo como material de pesquisa o jornal argentino Clarín, a pesquisadora Micaela Iturralde analisa a posição editorial e as estratégias discursivas desse periódico frente às violações dos direitos humanos, e indaga sobre tratamento dado pelo jornal às questões da violência política e aos “desaparecidos” durante a ditadura militar na Argentina (1975-1983).

Problematizando as políticas de segurança e as ações dos agentes do Estado, a questão da violência institucional e da violação dos direitos humanos também é discutida por Tiago Santos Salgado, em sua pesquisa sobre a Venezuela em períodos mais recentes.

Ao final, o texto de Viviane Tessitore relata a pesquisa sobre a história do projeto Brasil: nunca mais, que mapeou a repressão política durante a ditadura militar no Brasil, a partir dos processos contra presos políticos no início da década de 1980, e que se desenvolve no interior do projeto Brasil: Nunca Mais Digital, o qual, trazido a público recentemente, viabilizou a consulta virtual àquele valioso acervo sobre a repressão durante a ditadura no Brasil.

Heloisa de Faria Cruz


CRUZ, Heloisa de Faria. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 50, 2014. Acessar publicação original [DR]

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O Conflito Israelo-Palestino: História, Memória e Identidades / História (Unesp) / 2014

A revista História (São Paulo) se compraz em oferecer neste número elementos para a reflexão de uma das questões mais sensíveis do cenário internacional, o conflito israelo-palestino. Tema polêmico e pouco visitado pela comunidade acadêmica brasileira, é este abordado de forma criativa e multifacetada nos artigos do dossiê O Conflito Israelo-Palestino: História, Memória e Identidades, sob os cuidados do editor-convidado, professor Marcos Chor Maio, da Fundação Oswaldo Cruz.

A seção de artigos livres contempla a história do Brasil, de Portugal e da América Espanhola a partir de diferentes abordagens. No primeiro dos artigos, Fernando Tavares Pimenta discute a experiência de reforma da administração colonial portuguesa em Angola, entre 1961 / 1962, apontando as fissuras do bloco dirigente português e os fatores que concorreram para o fracasso do projeto. Em seguida, Nelly de Freitas analisa a imigração de mulheres da Ilha da Madeira para o Estado de São Paulo por meio do estudo de dados quantitativos e do exame das trajetórias de algumas dessas personagens. Por sua vez, o lugar da intervenção estatal na organização das relações de trabalho na Constituinte portuguesa de 1911 é o objeto do texto de Teresa Nunes.

O processo político constitui a preocupação de três autores. Carlos Sixirei examina como a disjunção centralismo versus federalismo dividiu conservadores e liberais na Colômbia depois da sua independência em relação à Espanha. Fernanda Pandolfi se debruça sobre o problema da recolonização do Brasil pela metrópole e da reescravização de libertos, mediante a análise da imprensa do Primeiro Reinado. E Patrícia Calvo busca entender como a imprensa de Havana repercutiu e influenciou a insurreição que culminou na Revolução Cubana.

A tecnologia comparece nos temas de dois trabalhos. Áureo Busetto compara os sistemas de arquivamento dos acervos televisivos do Brasil, França e Inglaterra e discute as políticas de preservação e o acesso aos cidadãos e pesquisadores. Em seguida, Lucas de Almeida Pereira investiga a história da informática no Brasil, por meio do exame da instalação dos primeiros computadores importados e dos seus efeitos sociais.

A história cultural é uma vertente explorada por autores interessados no mercado editorial e na produção visual. Leandro Antonio de Almeida lança sua atenção à emergência do mercado de ficção popular de massa no Brasil ao focar a produção literária do escritor mineiro João de Minas, na década de 1930. Os cartões postais com fotografias da cantora lírica italiana Lina Cavalieri são o objeto de Marco Antonio Stancik para analisar o lugar da mulher e as novas formas da sensibilidade contemporânea. O humor é tratado por Maria da Conceição Pires, com vistas a desvendar os fundamentos ideológicos deste segmento artístico à luz da recente produção cartunista brasileira. Por sua vez, o uso da imagem como fonte de interpretação histórica é discutido por Francisco Santiago Júnior, mediante o diálogo com os escritos de Hayden White.

Dois trabalhos examinam aspectos da história econômica e social. No primeiro, Francisco Cancela discute as reformas do Estado Português e a reorganização do trabalho indígena na Capitania de Porto Seguro, no final do século XVIII. No outro, de Jonas Vargas, a economia do charque rio-grandense é analisada no contexto das transformações do comércio internacional, de modo a explicar a crise dessa atividade no final do século XIX. Encerrando o fascículo, Fernando Perli discute o uso do ensino de História no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, e uma resenha se detém na análise da repercussão da Guerra Civil Espanhola no Peru.

Por fim, não podemos deixar de agradecer ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Pró-Reitoria de Pesquisa da UNESP (PROPe) pelo apoio financeiro dispensado à confecção deste fascículo.

José Luis Bendicho Beired

Jean Marcel Carvalho França

Editores


BEIRED, José Luis Bendicho; FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Apresentação. História (São Paulo), Franca, v.33, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e Memória / Cadernos de História / 2013

O Brasil não tem memória (?).

Trata-se de uma afirmação recorrente, já cristalizada no imaginário nacional. Não obstante, observa-se que essa realidade vem sendo modificada nas últimas décadas, com a crescente valorização da memória institucional, através da criação progressiva dos centros de memória em todo o país. Em Belo Horizonte esse quadro resultou na inauguração da Rede dos Centros de Memória de Minas Gerais – REMIG, que reúne, em caráter informal, várias instituições voltadas para o propósito de trocar experiências nessa área. Assim, um dos artigos do presente número dos Cadernos de História da PUC Minas, dedicado ao tema da memória e da história, descreve a sua criação e funcionamento, sob o título “Cooperação e preservação: a história da Rede Memória das Instituições de Minas Gerais – REMIG”. Assinam o texto duas de suas idealizadoras, Isabella Carvalho de Menezes e Ana Maria Matta Machado Diniz, coordenadoras, respectivamente, do Centro de Memória da Fundação Arcelor Mittal Brasil e do Centro de Memória da Justiça do Trabalho em Minas Gerais (TRT), além do Professor Daniel Botelho Rabelo, também do TRT.

Outro indicativo dessa valorização é o expressivo acervo de contribuições, de significativa qualidade e substância, encaminhadas para publicação: artigos, comunicações e depoimentos. A multiplicidade dos trabalhos, das abordagens, dos órgãos envolvidos – públicos e privados – e dos especialistas – juízes, professores, profissionais da ciência da informação, entre outros – são exemplares dessa auspiciosa tendência. Alguns dos textos foram elaborados a partir das discussões travadas durante o II Seminário Memória e Informação nas Instituições, em 2009, no âmbito das comemorações dos vinte anos do Centro de Memória e História da PUC Minas, em parceria com o Departamento de História e a REMIG.

Os artigos iniciais, dentre os sete incluídos, abordam o gerenciamento da documentação aplicado aos órgãos públicos. O primeiro, “Gestão de documentos arquivísticos eletrônicos: o caminho percorrido pela administração pública brasileira”, examina a implementação do sistema na Câmara dos Deputados. O segundo, “Gestão documental e resgate da memória na Justiça do Trabalho: preservação documental é direito do cidadão e dever do Estado”, aponta para a necessidade de investimentos em políticas de gestão e preservação documental nas instituições públicas brasileiras, à luz da experiência desenvolvida no órgão.

Os demais (excluindo o artigo já mencionado sobre a REMIG), abordam casos específicos no tratamento da memória e da educação patrimonial: a implantação do “Centro Inhotim de Memória e Patrimônio – CIMP”; os instrumentos da organização de um acervo pessoal, “A Biblioteca do Mestre: Coleção Arduíno Bolivar”; o relato de uma experiência pedagógica, “Programa de erradicação do trabalho infantil: projeto socioeducativo ‘Educar nos Museus’ na cidade de Vespasiano-MG”; e, finalmente, o exame de um documento fotográfico como lugar de memória, “Exposição de si”.

Na modalidade seguinte, temos duas comunicações sobre a memória institucional envolvendo dois patrimônios expressivos da cidade, a CEMIG e o Minas Tênis Clube – respectivamente, “Pensar pra frente, fazer pro mundo!” e “Programa de Requalificação do Centro de Memória Brenno Renato: desafios e perspectivas”.

Por último, mas não menos importante, encontram-se cinco depoimentos. Um deles analisa também a “Educação patrimonial – uma abordagem empírica, didática e criativa”, relativamente ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA / MG. O outro, “Centros de Memória Institucionais: métodos, procedimentos, ferramentas e tecnologia”, versa sobre questões de ordem prática, voltadas para os afazeres administrativos e o atendimento aos usuários dos Centros de Memória. Os três restantes articulam a experiência acadêmica com a memória institucional da PUC Minas: “Memória Preservada: a trajetória do DCE PUC Minas através de documentos”; “No meio do Caminho tinha um Centro de Memória”; e “Iniciação cientifica no CMPH e as escolhas profissionais”.

Esperamos que este número possa representar uma contribuição relevante dos Cadernos para a comunidade acadêmica, segundo os pressupostos da interação ensino, pesquisa e extensão, da interdisciplinaridade e da socialização do conhecimento.

Heloisa Guaracy Machado – Professora Doutora. Editora-gerente dos Cadernos de História da PUC Minas.


MACHADO, Heloisa Guaracy. Editorial. Cadernos de História. Belo Horizonte, v.14, n.20, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Cidade, memória e identidade | Revista Latino-Americana de História | 2013

Cidade, memória e identidade: uma jornada pela História Cultural

No ano em que completou 15 anos de existência, o Grupo de Trabalho História Cultural (GTHC-RS), vinculado à Associação Nacional de História – Seção Rio Grande do Sul (ANPUH-RS), realizou a sua 11.ª edição da Jornada de História Cultural, nas dependências do Museu Júlio de Castilhos, no centro de Porto Alegre. A escolha do local teve um caráter um tanto simbólico, muito significativo, visto que foi justamente neste mesmo local que se realizou a primeira edição do evento em 1997. O sucesso da Jornada em 2013 foi atestado pela existência de pouco mais de uma centena de inscrições, entre ouvintes e comunicadores, experiência que indica a seus organizadores a necessidade de projeção de um evento ainda maior na sua próxima edição, o que certamente demandará a acolhida de um espaço maior. Mas para além da quantidade, também foi notório para aqueles que acompanharam a Jornada a qualidade e maturidade dos trabalhos. Não estamos nos referindo somente à conferência e às apresentações da mesa-redonda, mas às comunicações em geral, que congregaram profissionais de diferentes campos do conhecimento e que proporcionaram verdadeiras aulas reflexivas em dois dias de aprofundamento pelos campos da história cultural. Leia Mais

Memória da Administração de Minas Gerais / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2013

O moderno arranjo arquivístico da documentação reunida sob a custódia do APM tem disponibilizado o acesso a uma multiplicidade de pesquisas, como as que se norteiam pela história administrativa de Minas, gerando campo de interlocução em que a instituição consolida sua vocação republicana.

Os textos que compõem este Dossiê têm como ponto de partida a intenção de demonstrar o potencial de pesquisa existente nos documentos de caráter arquivístico produzidos e acumulados pelas secretarias de governo implantadas no Estado de Minas Gerais após o estabelecimento do regime republicano, em 1889, e que se encontram sob a guarda do Arquivo Público Mineiro. Leia Mais

Memória e Narrativas nas Religiões e nas Religiosidades / Revista Brasileira de História das Religiões / 2013

Há cerca de dois anos, por ocasião do III Encontro do GT História das Religiões e das Religiosidades, que ocorreu em Florianópolis, surgiu a proposta de o IV Encontro se realizar na UNISINOS. O I, o II e o III encontros realizados em Maringá, Franca e Florianópolis trataram de temas como “Identidades Religiosas e História”, “Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas” e “Questões Teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades”. Já para o IV, o tema proposto foi “Memórias e narrativas nas religiões e religiosidades”.

O desafio lançado pela Coordenação do GT História das Religiões e das Religiosidades em outubro de 2010 foi aceito pelo Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos, assim como pelos demais parceiros, que foram sendo agregados ao longo dos anos de 2011 e 2012.

Vale lembrar que em 2012, foram celebrados os 50 anos da realização do Concilio Vaticano II convocado em 1962, pelo Papa João XXIII, que representou uma atualização da Igreja Católica ao mundo moderno. Este evento teve suma importância na renovação da comunidade católica mundial e modificou a caminhada da mesma no Brasil. Dentre suas determinações destacam-se a legitimação do papel dos leigos na evangelização em áreas de difícil acesso e a substituição do latim pela língua vernácula tornaram a Igreja mais próxima do povo e mais atenta aos problemas sociais que a América Latina enfrentava nesse período. Em 2012, também foi comemorado o centenário da obra clássica de Emile Durkheim, “As Formas Elementares da Vida Religiosa”, livro que é um dos marcos fundadores dos estudos de Antropologia na Escola Francesa e das Ciências Sociais da religião.

Inserido neste contexto, o IV Encontro do GT ANPUH-Nacional História das Religiões e das Religiosidades, que ocorreu na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) de 07 a 09 de novembro de 2012, efetivamente, oportunizou aos pesquisadores e comunidade em geral um espaço de diálogo, aprendizado e troca de experiências e conhecimentos sobre as religiões e religiosidades, instigando-os a refletirem criticamente sobre as posturas de indivíduos e grupos religiosos em suas ações nos âmbitos religiosos, culturais, políticos e sociais. E ainda, sobre a importância de uma prática cidadã valorativa das diferenças sociais e políticas em nosso país para, desta forma, evidenciar a relevância de análises interdisciplinares sobre a temática das religiões e das religiosidades.

A quarta edição do GT História das Religiões e das Religiosidades – Memórias e Narrativas nas Religiões e Religiosidades reuniu pesquisadores de renome e jovens pesquisadores graduandos, pós-graduandos, mestres e doutores em História, Ciências Sociais, Filosofia, Teologia, Educação e Antropologia de várias regiões do Brasil (RS, SC, PR, SP, RJ, MG, BA, PE, PI, MA, AM e MS) e, pela primeira vez, de pesquisadores da Argentina, da Bolívia, do Uruguai e, inclusive, da Polônia, que, ao longo de três dias tiveram a oportunidade de compartilhar suas pesquisas, projetos de investigação e estudos mais consolidados.

Neste dossiê apresentamos 16 Artigos, 3 Comunicações e 1 Resenha, selecionados pelo Conselho Editorial da RBHR e que representam a importância dos encontros do GT e da publicação dos melhores trabalhos apresentados.

Boa Leitura!

Eliane Cristina Deckman Fleck

Solange Ramos de Andrade

Organizadoras do Dossiê

FLECK, Eliane Cristina Deckman; ANDRADE, Solange Ramos de. Editorial. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.5, n.15, Jan., 2013. Acessar publicação original [DR]

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História, memória e patrimônio / Historiae / 2012

Neste número a Historiæ traz ao seu público leitor o Dossiê “História, memória e patrimônio”, abordando prismas diversificados a respeito do tema, tal como foi a proposta fundamental do encontro da ANPUH-RS, neste ano de 2012. A articulação de debates envolvendo as inter-relações entre a ciência histórica, a memória e o patrimônio trazem à tona uma das mais importantes interfaces da contemporaneidade em relação ao papel social do historiador, bem como no que tange à regulamentação de sua profissão.

Dessa maneira, o referido Dossiê reflete muito das discussões travadas durante o Encontro Estadual de História, a mais importante dentre as atividades científicas organizadas pela ANPUH-RS. Tal evento é realizado bienalmente, nos anos pares, contando com um tema central escolhido de acordo com a pertinência historiográfica e social. Nesse sentido, o XI Encontro Estadual de História ocorreu entre os dias 23 e 27 de julho de 2012, nas dependências da Universidade Federal do Rio Grande, tendo por escopo principal “História, memória e patrimônio”.

A Revista publica também artigos independentes que trazem variadas abordagens de natureza histórica, envolvendo temas como a imprensa, o trabalho, o livro didático, a política, o ambiente e o ensino. Compõe também este número uma resenha a respeito de obra voltada à formação histórica latino-americana.

Com o volume 3 / número 3, a Historiæ – Revista de História da Universidade Federal do Rio Grande continua em sua empreitada de promover uma ampla divulgação da produção acadêmico-científica e cultural voltada aos estudos de cunho histórico promovidos mormente no meio universitário.

Francisco das Neves Alves – Presidente do Corpo Editorial


ALVES, Francisco das Neves. Apresentação. Historiae, Rio Grande- RS, v. 3, n. 3, 2012. Acessar publicação original [DR]

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O Chile de Allende e Pinochet: memória e historiografia / História Unisinos / 2012

11 de setembro de 1973, fim do governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende. A via chilena para o socialismo encontrava com a sua derrota.

11 de setembro de 1973, início da ditadura liderada por Augusto Pinochet que duraria 17 anos e deixaria o saldo de quase quatro mil mortos e desaparecidos.

11 de setembro de 1973, data símbolo dos golpes que marcaram o Cone Sul da América Latina nos anos 1960 e 1970.

Mais do que uma data chilena, o 11 de setembro acabou se transformando em uma data latino-americana que reflete o cenário de ditaduras e violência política da segunda metade do século XX na região. Amplamente documentado, o ataque ao La Moneda pode ser visto em imagens, assim como podemos ouvir o último discurso de Salvador Allende e a gravação feita de forma clandestina dos postos de comando à sede do poder Executivo (Verdugo, 1998). As imagens correram o mundo e hoje, disponíveis na internet, seguem a impressionar, a emocionar.

Visto como um país onde “não se passa nada” em função da sua estabilidade política, especialmente se comparado aos países vizinhos, o Chile possuía certo grau de amadurecimento político que levou o ainda candidato Salvador Allende a afirmar na I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), realizada em Cuba entre os dias 31 de julho e 10 de agosto de 1967, que no seu país a luta armada não seria necessária, pois a via institucional era possível e vitoriosa.

De fato, a eleição da coligação partidária Unidade Popular1 em 1970 demonstrou que a avaliação de Allende não estava completamente equivocada. Contudo, ao longo dos mil dias de governo, a Unidade Popular enfrentou uma crescente oposição nacional (de setores da classe média, representados fortemente por movimentos como o gremialismo, de parte das Forças Armadas e da Igreja Católica) e internacional (com destaque para o Brasil e Estados Unidos). Ao mesmo tempo, setores de apoio ao programa de governo começaram a pressionar pelo avanço e rapidez das mudanças.

As primeiras análises sobre o golpe foram feitas não apenas por pesquisadores, mas também por protagonistas do período. Dentre elas podemos destacar os trabalhos de Valenzuela, Garretón, Moulian e Corvalán.2 Com visões de amplo espectro, sem analisar muitas vezes as disputas internas, esses autores privilegiaram as explicações essencialmente políticas num país supostamente dividido entre favoráveis e opositores ao programa da Unidade Popular, não discutindo as disputas internas e / ou o comportamento pendular de grande parte da sociedade, que ora apoiava o governo e ora partia para o enfrentamento.

Outra explicação para a queda da Unidade Popular foi a forte atuação dos Estados Unidos no golpe de 11 de setembro e o apoio à ditadura recém instalada. Essa visão ficou bastante clara não apenas nos trabalhos acadêmicos ou jornalísticos, com destaque para o livro de Patrícia Verdugo (2003), e em filmes como Missing, de Costa-Gravas. O filme, de 1982, conta a história do assassinato do estadunidense Charles Horman e a procura de explicações para o seu desaparecimento, realizada por seu pai em viagem ao Chile.

Muitas das informações sobre os Estados Unidos fazem parte do Relatório Church, ou “Ações encobertas no Chile 1963-1973”, trabalho redigido pela comissão instalada no Senado dos EUA no ano de 1975 para apurar as ações clandestinas do país. A CIA, principal representante do governo nessas ações, reunia dados, repassava informações, estabelecia conexões com a polícia local, etc. A agência norte-americana investiu ao longo de 10 anos cerca de U$ 14 milhões. O dinheiro foi usado de distintas maneiras, ou seja, desde o investimento em campanhas políticas dos adversários de Allende, passando por propagandas, investimento nos meios de comunicação até pesquisas de opinião, culminando com o financiamento de tentativas de golpe anteriores ao próprio 11 de Setembro.

O golpe no Chile acabou por contribuir para a divulgação das ditaduras do Cone Sul aos olhos do mundo. Convém lembrar que em 1973 já estavam sob governos autoritários, marcados por graves violações dos direitos humanos, Brasil, Paraguai e Uruguai, sendo que nesse último a ditadura havia começado em junho de 1973. No entanto, a busca por asilo em embaixadas (Rollemberg, 1999) e a chegada de uma grande quantidade de exilados em países da Europa, fora as próprias imagens do golpe e a notícia do suicídio de um presidente legitimamente eleito, chocaram o mundo. Com os olhos sobre o país, a ONU também foi pressionada para apurar as graves denúncias de atentados aos direitos humanos (Quadrat, 2008, p. 361-395).

Se a queda da Unidade Popular não apresenta consenso na historiografia, a ditadura também serviu de debates. Para Huneeus, o governo ditatorial chileno possuía três identidades (Huneeus, 2000). A primeira é a identidade econômica neoliberal através do fortalecimento dos Chicago Boys e a intensa campanha de privatização das empresas públicas. A segunda é a identidade coercitiva, pela qual Augusto Pinochet, apesar de contar com o apoio de uma parcela significativa da sociedade, usou da violência para calar a oposição. Por fim, a terceira identidade tem a ver com a própria figura do general. Imbuído de um discurso messiânico de que veio salvar a nação dos males do comunismo.

Embora estejamos falando de debates acadêmicos e jornalísticos, devemos observar que, a exemplo de outros países, como a Argentina, o conhecimento histórico demorou a se ocupar da trajetória recente do país, que durante alguns anos ficou sob os cuidados da antropologia, sociologia, ciência política, linguística etc.

Contudo, em 1999, foi publicado o Manifiesto de historiadores (Grez e Salazar, 1999). Trata-se da resposta de reconhecidos historiadores à Carta a los chilenos, redigida pelo ex-ditador enquanto se encontrava detido em Londres. O documento suscitou um intenso debate no Chile, inclusive com a participação do historiador oficial da ditadura, Gonzalo Vial Correa. Foi a primeira vez que profissionais do ofício da História se integraram de maneira intensa aos debates sobre o passado recente do país.

O dossiê que organizamos para este número da História Unisinos conta com oito contribuições, advindas de diferentes lugares institucionais, e que trazem distintas perspectivas de abordagem da temática proposta pela editoria da revista.

O conjunto dos textos que compreendem este volume não está marcado, auspiciosamente, pela unidade de perspectiva, seja ela teórica, metodológica ou historiográfica. Os autores que submeteram seus manuscritos à revista, notadamente os que foram acolhidos pela presente publicação, repercutem, na variedade de posições aqui representada, a diversidade que a historiografia dedicada aos temas da ditadura na América Latina expressa.

Neste sentido, chama a atenção, por exemplo, a presença da temática do anticomunismo nos dois primeiros artigos que abrem o dossiê. O primeiro deles, de Ernesto Bohoslavsky, destaca os vários âmbitos aos quais pode ser associado o anticomunismo, ao mesmo tempo em que refuta o uso do rótulo “direita” sem a pluralização do substantivo. Para o autor, “[…] el anticomunismo debe ser entendido como una fuerza política central del siglo XX en Chile”. E afirma ainda: “Pero junto con reconocer su peso en la política de Chile entre 1919 y 1989, también hay que hacer notar su grande heterogeneidad y su notable dinamismo a lo largo del tiempo”. Já o texto de Ricardo Souza Mendes, em uma perspectiva temporal de mais curta duração, procura reconhecer no livro de Augusto Pinochet Ensayo sobre un estúdio preliminar de una geopolítica en el año de 1965 a presença de considerações políticas formuladas pelo militar e que, ao mesmo tempo, dizem da compreensão que o general tinha da própria sociedade chilena na década de 1960.

Na sequência, o texto de Claudio Llanos expõe algumas das concepções e ações políticas de grupos populares durante o governo de Salvador Allende. Abarcando o período entre 1970 e 1972, o autor chama a atenção para processos de radicalização dos referidos setores que mostraram uma dinâmica independente da estratégia de organização levada a efeito pelo governo da Unidade Popular.

Já o artigo de Ivan Lima Gomes centra sua análise na dimensão cultural do governo da Unidade Popular, por meio da análise da curta atuação da Editora Quimantú e, especificamente, da revista Cabrochico nos anos de 1971 e 1972. Na construção do “novo homem” que o projeto socialista chileno demandava, a luta no campo do imaginário social se fazia perceber, também, na produção de histórias em quadrinhos conformadas ao novo contexto ideológico que se fazia hegemônico, não obstante as diferentes forças que integravam o “caldeirão político” vinculado ao governo.

O texto de Camilo Negri, por sua vez, analisa as dificuldades de implementação da “via chilena ao socialismo”, por meio do exame do impacto de três propostas econômicas: nacionalização do cobre, reforma agrária e socialização de propriedades privadas. Para este intento, o autor se vale de entrevistas realizadas com sete ex-ministros do governo de Salvador Allende, recentemente feitas, bem como do Programa de Governo da Unidade Popular.

Centrando-se nos acontecimentos que antecederam o golpe militar de setembro de 1973, Carlos Federico Dominguez Avila estabelece um diálogo com a historiografia que tem se dedicado à questão, fazendo uso, ao mesmo tempo, de documentação do Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores, sediado em Brasília. A partir da leitura das referidas fontes, é possível ter acesso à recepção da crise político-social chilena por meio da avaliação produzida pela embaixada brasileira em Santiago, a qual era, na ocasião (Governo de Emílio Médici), comandada por Antônio Câmara Canto.

Para concluir o dossiê, integram o presente volume dois artigos cuja fonte principal de pesquisa são relatos de memória de personagens estrangeiros que viveram em algum momento de suas trajetórias no Chile. O texto de Claudia Wasserman reconstitui o percurso de quatro intelectuais – um alemão e três brasileiros – que estiveram no Chile e que “tiveram experiência acadêmica, de pesquisa e militância política no país governado pela Unidade Popular”. A autora faz uso de relatos autobiográficos (entre os quais, memoriais acadêmicos), currículos e produção intelectual de André Gunder Frank, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, a fim de recompor a experiência chilena dos referidos intelectuais na conjuntura anterior à ascensão de Allende ao poder e durante o seu governo. Para Wasserman, “Os memoriais e a produção intelectual sobre o Chile permitem entrever quais eram as preocupações dos brasileiros no exílio chileno entre 1970 e 1973 e como eles combinaram a sua militância política e o labor acadêmico, quais eram as suas atividades e até mesmo seus temores diante daquela realidade em transição. Mas os memoriais, escritos na década de 1990, depois do retorno ao Brasil, também permitem compreender a situação brasileira do período no qual esses textos foram redigidos.

Finaliza a seção o texto de Carla Simone Rodeghero, o qual traz a extensa entrevista feita pela autora com o músico brasileiro Raul Ellwanger. Neste depoimento, refaz-se a trajetória do referido compositor e cantor, desde Porto Alegre até o exílio no Chile e na Argentina, entre os anos de 1970 e 1977. A produção artística de Ellwanger, na análise de Rodeghero, acaba por repercutir sua vivência pessoal de expatriado. O texto finaliza com o relato tocante da viagem de retorno do músico ao Chile no ano de 2011. Nesta situação, a memória desdobrada no depoimento à autora alimentou-se de novo vigor. Nas palavras da autora: “Voltar fisicamente, rever as ruas e praças por onde caminhou, as casas nas quais morou, as tumbas onde estão enterrados os companheiros que caíram, o Estádio Nacional onde tantos ficaram presos e onde muitos morreram, a Universidade do Chile, os amigos ou familiares daqueles que foram solidários nos momentos mais difíceis, tudo isso pode ser oportunidade para repensar o significado daquela experiência para aquele que volta, para as esquerdas, para o Chile, para o Brasil, para a América Latina”.

No ano de 2003, ocasião em que se comemorava os 30 anos do golpe de estado militar que colocou Augusto Pinochet Ugarte no poder, foram várias as formas pelas quais lembrou-se o desditoso evento que traumatizou a nação chilena.3 Na avaliação feita por Manuel Antonio Garretón, naquela circunstância, “No hay entonces propiamente uma memoria colectiva consensual en torno a lo que somos como país y, por lo tanto, no podemos vernos como parte de uma misma comunidad ético-histórica, de algo a lo que pertenecemos que no sea la pura habitación geográfica” (Garretón, 2003, p. 223). Se existe ou não a necessidade de que se constitua uma “memória coletiva consensual” no país em relação ao longo período ditatorial é uma questão a ser discutida. Certamente, a morte de Pinochet em 2006 trouxe a este debate novos ingredientes, já que o passamento do líder militar “coloco una vez más el pasado de la dictadura en el centro del debate social” (Ruderer, 2010, p. 174).

Em 2013, a efeméride dos 40 anos do Pronunciamiento do 11 de setembro de 1973 renova os motivos para se pensar sobre o passado recente chileno, sobre projetos e ações fracassados ou vitoriosos, desde o ponto de vista de seus personagens e da memória que os mesmos foram capazes de constituir e que ainda estão elaborando. A atualização desta memória no campo midiático, no campo político e no campo historiográfico é motivo suficiente para dirigirmos nosso olhar a este tempo atualizado pela história.

O Chile de Allende e Pinochet: memória e historiografia quer concorrer – no cômputo de seus textos e nos limites desta modesta contribuição – a que se revigore os estudos sobre as experiências democrático-populares e ditatoriais da história recente da América Latina, o seu debate histórico e historiográfico, as suas memórias, desde os mais diversos pontos de vista, a partir das mais variadas fontes de pesquisa. Isto é um começo. Desejamos a todos uma boa leitura.

Notas

1. A Unidade Popular era formada pelos seguintes partidos e grupos: Comunista (PC), Socialista (PS), Radicais (PR), Social-Democratas (PSD), Ação Popular Independente (API) e parte da esquerda católica com o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU).

2. Dentre os trabalhos desses autores destacamos: Valenzuela (1978); Corvalán (2001); Garretón e Moulian (1978, 1983); Corvalán (2006).

3. Ver, a este respeito, o rol de publicações e outros eventos que marcaram o trigésimo aniversário do golpe no texto de Lecco (2004, p. 341-356).

Referências

CORVALÁN, L. 2006. A treinta años del 11 de septiembre: el imperativo ético de reescribir la historia. In: F. ZAPATA (comp). Frágiles Suturas. Chile a treinta años del gobierno de Salvador Allende. México, Fondo de Cultura Económica.

CORVALÁN, L. 2001. Del anticapitalismo al neoliberalismo en Chile. Santiago, Sudamericana, 507 p.

GARRETÓN, M.A. 2003. Memória y proyecto de país. Revista de Ciencia Política, XXIII(2):215-230.

GARRETÓN, M.; MOULIAN, T. 1978. Analisis coyuntural y proceso político. San José, Universitaria Centroamericana EDUCA, 113 p.

GARRETÓN, M.; MOULIAN, T. 1983. La UP y el conflicto político en Chile. Santiago, Mingo.

GREZ, S.; SALAZAR, G. (comp.). 1999. Manifiesto de historiadores. Santiago, LOM, 117 p.

HUNEEUS, C. 2000. El régimen de Pinochet. Santiago, Sudamericana, 670 p.

LECCO, E.C. di. 2004. Visiones del trigésimo aniversário del golpe de estado del 11 de septiembre de 1973. Política, 42:341-356.

QUADRAT, S. 2008. A emergência do tema dos direitos humanos na América Latina. In: C. FICO et al., Ditadura e Democracia na América Latina. Rio de Janeiro, FGV, p. 361-395.

ROLLEMBERG, D. 1999. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro, Record, 375 p.

RUDERER, S. 2010. La política del pasado en Chile 1990-2006: un modelo chileno. Universum, 25(2):161-177.

VALENZUELA, A. 1978. El quiebre de la democracia en Chile. Santiago, FLACSO, 322 p.

VERDUGO, P. 1998. Interferencia secreta, 11 de Septiembre de 1973. Santiago de Chile, Sudamericana, 197 p.

VERDUGO, P. 2003. Como os Estados Unidos derrubaram Salvador Allende. Rio de Janeiro, Revan, 146 p.

Samantha Viz Quadrat

Cláudio Pereira Elmir

Organizadores do Dossiê


QUADRAT, Samantha Viz; ELMIR, Cláudio Pereira. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.16, n.1., janeiro / abril, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Os males da memória / História Unisinos / 2011

Os males de memória: lembrar-se dos traumatismos da grande História [1]

De todos os ventos de memória que varrem nosso mundo globalizado, aqueles movidos pelos traumatismos da história sopram, em nossos dias, com uma intensidade sem precedentes. Guerras, diásporas, deportações, repressões, genocídios, confinamentos, escravaturas e totalitarismos alimentam suas respectivas memórias da dor. Ontem ilegítimas, recalcadas, encobertas pelo silêncio imposto pela estigmatização, pela incompreensão, pela simples desatenção ou, ainda, pelo medo do mal-entendido, essas memórias rompem, hoje, com a denegação e saem da sombra, para atiçar uma efervescência memorial que as ultrapassa e, ao mesmo tempo, as engloba. Amplificando o eco do “elogio incondicional da memória” (Todorov, 1995, p. 13) que ressoa por toda parte, elas participam de um culto compósito em que o hedonismo da nostalgia disputa com a obrigação do dever. E isso até à sacralização. Sem dúvida, podemos, com Tzvetan Todorov, supor que a tomada de consciência das manipulações de memória de que os totalitarismos se tornaram culpados, não é alheia a esse aumento de potência das memórias do traumatismo. Entendido, a partir de então, como um ato de resistência, como uma revanche contra o mal suportado e endurecido [2], o ato de reminiscência se vê imbuído de uma razão de ser inédita. Mas se não cabem dúvidas quanto à incidência dessa reviravolta, operada sob a influência esclarecida dos historiadores, dos filósofos e dos escritores, pode-se, também, suspeitar de razões ao mesmo tempo mais profundas e mais disseminadas.

Notemos, antes de mais nada, que essas memórias que, de um extremo ao outro do planeta, fazem, hoje, sangrar o passado, se inscrevem não apenas no contexto hipermnésico evocado acima, mas, também, numa história, numa cronologia do fato memorial, inaugurada e dominada pela experiência memorial do judeocídio. Ninguém pode refutar o fato de que, ao longo da segunda metade do século XX, “a Shoah se tornou a medida do mal absoluto”, e que, paralelamente, “o combate judeu pela memória do genocídio e o reconhecimento finalmente obtido” se impuseram por sua vez como “modelo e […] quadro referencial para outras populações perseguidas” (Lapierre, 2007, p. 475). Sem dúvida, é pela importância dos debates que suscita que melhor se pode medir esse triunfo. No concerto das vozes que se elevam para denunciar os abusos de todos os tipos (mercadorização da lembrança trágica, turistifi cação dos lugares de memória, deriva obsessiva, promoção de um humanismo pessimista, etc.), podemos, com efeito, escutar a expressão de uma resistência – vã ? – a uma – irreversível ? – fatalidade mimética. O modelo é assim discutido, contestado, não apenas pelos intelectuais que, nesses desrecalques memoriais, não param de encontrar matéria para pensar, mas, também, pelos próprios atores sociais, portadores e defensores de memórias análogas, prontos para acusar a memória dos judeus de ocupar todo o lugar. Em suma, vítima de seu sucesso, a memória da Shoah está metida numa guerra das memórias, numa competição vitimária que muito se aparenta com uma armadilha para as memórias que se deixam encerrar nela (Traverso, 2011). Buscando assemelhar-se, e ao mesmo tempo distinguir-se, da memória do genocídio judeu, graças, principalmente, a um exagero na invocação do horror sofrido, as memórias do traumatismo, judia e outras, têm geralmente, em comum, rivais bem mais difíceis de desafiar, a saber: as memórias instituídas que são as memórias dos Estados-nações, mais “naturalmente” inclinadas ao esquecimento, senão à denegação, do que à introspecção. Obrigando as sociedades nacionais a voltar às páginas mais trágicas e menos gloriosas de sua história, a afirmação das memórias outras força, hoje, os Estados, a uma completa refundição das políticas memorialistas (Michel, 2010; Blanchard e Vayrat-Masson, 2008). Declarações de arrependimento, pedidos de perdão, reconhecimentos de crimes contra a humanidade, votações, aprovações de leis memorialistas recobrem a atualidade, minando, cada vez mais, a integridade das memórias nacionais. Assim sendo, esse trabalho de escavação não poderia nos induzir à crença, numa relação de força necessariamente favorável às “pequenas” memórias. A bem da verdade, a relação entre essas memórias e as “grandes” é mais complexa, para não dizer mais ambígua, do que parece. Pois, nesse caso, o Estado se mostra bem mais do que um acusado potencial: ele é também a instância de recurso, aquela que faz justiça e pela qual pode ser obtida uma reparação do passado. Mas o que as memórias outras não desfazem do interior, não deixa de ser contrabalançado pelo que desfazem do exterior. Cosmopolitas, transnacionais, certas memórias do traumatismo, entre as quais ocupa, por certo, o primeiro lugar aquela da Shoah, podem já ser entendidas como “memórias-Mundo” (Auzas e Jewsiewicki, 2008) e, portanto, cúmplices da globalização financeira, econômica e cultural, que reduz, a cada dia, a margem de manobras dos Estados-nações.

Isso posto, poderíamos nos contentar em interpretar cada batalha vencida contra o esquecimento e a denegação como o índice do triunfo da psicanálise, ou, ao menos, de seus conceitos (traumatismo, recalque, luto, neurose…), doravante entendidos e reempregados em escala coletiva (Garcia, 2008). Mas, olhando de mais perto, as memórias do traumatismo dão testemunho de bem mais ainda. A requalificação do passado que implicam vai de par com a desmonetização de toda uma série de valores. A homenagem ao combatente heróico que sacrifica sua vida pela causa da pátria é substituída pela compaixão pelas vítimas, todas iguais, aliás. Vencedores e vencidos se apagam, e com eles o sentido da história. Como constata inquieta Régine Robin, “Não há mais responsáveis, mas uma condição humana dolorosa diante da qual é preciso se inclinar. O ‘infortúnio dos tempos’ se torna, assim, a grande causalidade que substitui todo e qualquer conceito” (Robin, 2007, p. 396). Somente a testemunha, ao mesmo tempo fonte, prova, ator da história e portador de memória, parece em condições de resistir, ainda, nessa nova ordem de valores. O historiador, considerado um mercenário da história oficial, se vê acusado de ilegitimidade. Quanto ao traumatismo, ele se vê elevado à categoria de acontecimento fundador que se deve não apenas partilhar, passar, transmitir, herdar, mas, também, fazer reconhecer no espaço público.

Ora, como nota acertadamente Michèle Baussant, “nem todos os pedidos de reparação, de reconhecimento, nem todas as expressões da memória ou evocações do passado encontram o mesmo eco numa determinada sociedade” (Baussant, 2007, p. 391-393). Cabe ao pesquisador em ciências sociais analisar a maneira como a comunidade memorial dá conta desse desafio do reconhecimento: que palavras, que linguagem, que imagens lhe permitem encontrar a sensibilidade coletiva e dizer assim a si mesma? Para assim fazer passar a lembrança do mal da esfera privada à esfera pública, por que procedimento consegue-se tornar recebível a ilegitimidade memorial que atinge, a princípio, esse tipo de reminiscências? Em outros termos, como se passa da ocultação à celebração, do “tempo da vergonha” ao “tempo da glória” (Chaumont, 2002)? Quais são as etapas intermediárias? Que lugar têm os modelos memoriais, como aquele da Shoah evocado acima, nos dispositivos de validação das expectativas? Como se constrói uma figura aceitável da vítima? Como, da comunidade memorial à coletividade, nacional ou outra, que a inclui, emerge uma lógica de consenso? Tais são as questões que o antropólogo coloca, no conforto relativo que lhe propicia sua prática do “olhar distanciado”. É, em todo caso, o que se pode dizer do posicionamento desse pesquisador, tomando emprestado a Lévi-Strauss sua maneira de designar aquilo que é para ele, ao mesmo tempo, uma postura e uma metodologia. Sua tranquilidade se deve, também, à sua maior familiaridade com as problemáticas da memória, devida à frequentação assídua, há cerca de vinte anos, dos terrenos a elas relacionados (museus, história local, arqueologia, emoções patrimoniais, etc.). Dão testemunho disso as contribuições dos etnólogos franceses apresentadas neste número da revista História Unisinos.

Para quem se empenha na escrita da história, as coisas são diferentes. Este é um terreno minado. Por muito tempo a disciplina história buscou se afastar de tudo que se referisse à memória. Esta era pensada como o inverso da possibilidade de constituição de uma ciência. A crítica da tradição oral era o principal argumento da busca pela cientificidade (Joutard, 1998, p. 43). O uso de fontes orais baseadas na memória, a partir, principalmente, de meados do século XX, foi cercada de desconfiança. Os depoimentos eram, inicialmente, cercados de cuidados, buscando expulsar qualquer subjetividade. Além disso, visavam colher depoimentos para historiadores do futuro. Estes eram colhidos entre pessoas consideradas importantes no campo político-institucional. Este momento, que podemos chamar de uma primeira geração de historiadores que usavam a memória como fonte, pretendia, no máximo, preencher as lacunas que as fontes escritas não cobriam.

Novas gerações de historiadores ocuparam-se da memória, e passaram a abordar estas narrativas colhidas como “outras histórias”. Não visavam mais completar informações. Mesmo assim, perante a comunidade de historiadores, aqueles têm sido tratados com desconfiança. Philippe Joutard (1998, p. 44), falando da França, mostra-nos o quanto estes ficavam à margem da história acadêmica. No Brasil, pode-se dizer que esta desconfiança é certamente menor, mas, mesmo assim, ela existe.

Como qualquer memória, estas, que se referem ao traumatismo dos chamados grandes acontecimentos da história, têm relação com estes mesmos acontecimentos e, ao mesmo tempo, os contradizem, falam de outro lugar. Fazem emergir outras histórias. Longe da grande narrativa, em geral linear, dos acontecimentos, estas memórias trazem outros tempos. Aqui, os nomes e lugares de destaque não são, necessariamente, aqueles que constam nos grandes compêndios. E mesmo quando se referem a eles, é para melhor desmontá-los. Os heróis e as vítimas não são os mesmos. Nas memórias, o fragmento é mais significativo. Nas memórias, o livro de história ajuda pouco. Situa, por vezes, define uma data, organiza, quem sabe, uma parte do que se lembra. Mas é de outro lugar que se fala. A subjetividade aqui tem livre vazão, não é inimiga do relato. Dá sentido a este.

Quem trabalha com memórias já aprendeu a tornar a subjetividade uma aliada. Quem trabalha com memórias, principalmente aquelas fundadas na história oral, sabe que as fontes são pessoas que nunca reduzirão sua vida a um conjunto de fatos, disponíveis para a interpretação dos outros. “Recordar e contar já é interpretar” (Portelli, 1996, p. 60). E, ainda, as pessoas transformadas em depoentes, reagem às interpretações que se fazem de suas narrativas, recusam-se a ser veículos de significados que não controlam. Interpretam seus próprios intérpretes (Portelli, 2010, p. 59-60).

Pierre Nora (1993, p. 13), separando história e memória, dizia que os “lugares de memória” são como “as conchas na praia, quando o mar se retira da memória viva”. Criticava a proliferação de espaços que pretendem guardar a memória que, posteriormente, seria alvo da pesquisa histórica. Claro que falava de uma historiografia que se pensava científica, para a qual a subjetividade era empecilho para a “verdadeira história”. Memórias hoje pretendem – não sem resistências – fazer parte da narrativa histórica. Mesmo assim, ainda são olhadas com desconfiança. Nos compêndios de história, elas são a parte da curiosidade. São elas, entretanto, que, mesmo “enquadradas”, subterrâneas (Pollak, 1989), vilipendiadas, ou não, ainda dão vida àquilo que, por vezes, não passa de um pequeno registro.

Neste dossiê, etnólogos franceses e historiadoras brasileiras cobrem com memória um amplo leque de “acontecimentos da grande história”: O tráfico de escravos, a segunda guerra mundial, a Guerra Civil Espanhola e o exílio na França, as guerras no Líbano, a migração alemã no Sul do Brasil e a ditadura militar dos anos sessenta e setenta, são grandes acontecimentos visitados pela memória. Todos têm, em comum, o fato de serem alvo de narrativas historiográficas baseadas em muitas fontes escritas, e serem alvo de muita controvérsia também.

Abrindo o dossiê com etnólogos franceses, Gaetano Ciarcia focaliza a escravidão africana, no artigo Dar a ver memórias indizíveis. O presente do passado da escravidão em Ouidah, Benin, onde pretende perceber como os usos memoriais e patrimoniais do passado de escravidão estão ligados à renovação das antigas tradições religiosas, como no vodu. Yves Pourcher, por sua vez, focaliza a Segunda Guerra Mundial, no artigo Três mortos pela França, onde narra as desventuras de três soldados mortos durante a segunda guerra mundial. Destaca, principalmente, os sentimentos da família, diante da morte. A memória e os males dela, neste caso, são enfocados, pois, para alguns lembrar é uma grande tristeza, ou, por vezes, uma grande vergonha. Véronique Moulinié centra sua pesquisa sobre a Guerra civil Espanhola e o exílio dos republicanos que seguiram para a França, no artigo Memória da Retirada e sucessão das gerações: do silêncio ao discurso ensurdecedor. Neste texto, escreve sobre as associações de descendentes de refugiados espanhóis, que multiplicam as atividades comemorativas (marcha da lembrança, inaugurações de estelas, exposições, etc.). A autora mostra como essa memória sofre mudanças sutis, mas importantes. Sylvie Sagnes também centraliza a “retirada”, após a guerra civil espanhola, no artigo Uma memória compartilhada: O romance francês da guerra civil, do êxodo e do exílio espanhóis. Aqui, a principal fonte são os romances que narram a “retirada” e a autora faz uma etnografia do romance da Retirada, abrindo, assim, novas perspectivas sobre a memória do êxodo e do exílio, que tende a cobrir a voz das associações que militam pelo reconhecimento desta memória. Sophie Brones escreve sobre as guerras no Oriente Médio no artigo Al-Khandaq al-Ghamiq. Memórias de um bairro em ruína no centro de Beirute. A autora sublinha, através da memória, a antropologia urbana de uma cidade que viveu 15 anos de guerra. Mostra os deslocamentos dos habitantes, os esquecimentos, a atuação do poder público definindo setores que são alvo de transformação urbana e de locais de memória.

A historiadora brasileira Janine Gomes da Silva aborda a Colonização Alemã em Santa Catarina, no artigo Memória, alimentação e etnias, através do qual (re)significa a história e o patrimônio cultural da região de Joinville, ampliando os estudos no campo do patrimônio alimentar. Também do Brasil, Joana Maria Pedro e Cristina Scheibe Wolff tratam dos anos de ditadura militar no Brasil, no artigo As dores e as delícias de lembrar a ditadura no Brasil: uma questão de gênero; mostram que as narrativas de algumas mulheres têm sido, também, permeadas por avaliações marcadas por suas identificações com o feminismo. Em outros casos, são os próprios familiares que exigem o silêncio. Desta maneira, a memória do passado recente vem formatada por múltiplos constrangimentos.

São estes os artigos que querem discutir os “males da memória”; estes pensados desde uma abordagem da antropologia e da história. Convidamos, todos, a acompanhar este debate.

Notas

1. Este texto foi escrito parte em francês, parte em português. A parte francesa deste texto foi traduzida por Fernando Scheibe. Agradeço também a Aimberê Araken Machado pela revisão do texto em português.

2. Enduré et induré. (N.T.).

Referências

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BAUSSANT, M. 2007. Penser les mémoires. Ethnologie française, XXXVII(3):389-394. http: / / dx.doi.org / 10.3917 / ethn.073.0389

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CHAUMONT, J-M. 2002. La concurrence des victimes : génocide, identité, reconnaissance. Paris, La Découverte, 384 p.

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POLLAK, M. 1989. Memória Esquecimento e Silêncio. Estudos Históricos, 2(3):3-15.

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TRAVERSO, E. 2011. L’histoire comme champ de bataille. Interpréter les violences du XXème siècle. Paris, La Découverte, 299 p.

Joana Maria Pedro – Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina. Atua no Programa de Pós-Graduação em História e no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, onde é Coordenadora. É uma das coordenadoras da Revista Estudos Feministas. E-mail: joanamaria.pedro@gmail.com

Sylvie Sagnes – Etnóloga, pesquisadora no CNRS, Sylvie Sagnes traz ao terreno das práticas patrimoniais (história local, arqueologia, museu da sociedade, etc.) a problemática do nativo abordada na sua tese. Além deste tema, ela se interessa pela história da sua disciplina e consequentemente ela questiona os processos de constituição das identidades eruditas (poligrafia, parentesco intelectual…). E-mail: sylviesagnes@wanadoo.fr


PEDRO, Joana Maria; SAGNES, Sylvie. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.15, n.3., setembro / dezembro, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônio e memória da escravidão atlântica – História e Política / Tempo / 2010

O Dossiê Patrimônio e Memória da Escravidão Atlântica começou a ser planejado há quase dois anos, quando eu voltava de um estágio de pós-doutorado na França, onde tive a oportunidade de participar com Bogumil Koss Jewsiewicki na iniciativa de organizar o primeiro “Festival Internacional do Filme de Pesquisa sobre Patrimônio e Memória da Escravidão Moderna”.1 Como titular da cátedra de história comparada da memória na Universidade de Laval, no Canadá, Jewsiewicki mantinha em Paris um importante seminário sobre história da memória na EHESS (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales), em conjunto com Philippe Joutard, da Universidade de Aix-en-Provence. Desde 1994, eu desenvolvia no Laboratório de História Oral e Imagem o projeto de documentação e pesquisa Memórias do Cativeiro, que já havia dado origem a um livro, com Ana Lugão Rios2, diversos acervos audiovisuais abertos à consulta (www.historia.uff.br / jongos) e dois filmes: Memórias do Cativeiro e Jongos, Calangos e Folias, desenvolvidos em parceria com Martha Abreu.3 Tive a oportunidade de discutir os filmes e demais resultados do projeto junto ao Centre d’Etudes du Brésil et de l’Atantique Sud, da Universidade de Paris IV e ao CRBC – Centre de Recherche du Brésil Contemporain e ao CIRESC – Centre International de Recherche sur les Esclavages, na EHESS. O festival do filme de pesquisa surgiu de certa forma da rede então constituída e marcou, para mim, o início de uma reflexão comparada sobre história da memória da escravidão nas antigas sociedades escravistas do mundo atlântico.

O impacto na África do processo de patrimonialização da memória da escravidão a partir do projeto Rota dos Escravos da UNESCO e os debates em curso entre historiadores e cientistas sociais franceses sobre explosão memorial e dever de memória estavam, sem dúvida, na base da reflexão. Principalmente, a presentificação da memória da escravidão e sua apropriação política por movimentos antiracistas no Brasil e na França emprestavam novas nuanças às complexas relações entre história da escravidão, memória e usos políticos do passado. O presente dossiê foi pensado na perspectiva de contribuir para aprofundar a compreensão de tais relações, levando em consideração o estado atual da discussão no campo da história e das ciências sociais no Brasil.

Para a escolha dos artigos, parti de uma definição simples de memória: a presença do passado no presente. Os artigos do dossiê procuram refletir sobre a multiplicidade de sentidos atribuídos hoje à experiência da escravidão na era moderna.

Abre o volume o artigo A Herança Musical da Escravidão: da crioulização à world music, de Denis Constant-Martin (Centre d’Etudes d’Afrique Noire, Université de Bordeaux), pesquisador que reúne de forma instigante as competências do cientista político, do historiador e do musicólogo. Sua frase inicial é impactante: “Todas as músicas ditas hoje “populares” ou de “massa” derivam, de uma forma ou de outra, de práticas surgidas no seio de sociedades organizadas em torno da escravidão em territórios conquistados por europeus.” A memória da escravidão no artigo é problematizada como “herança musical” dos processos criativos que emergiram desses contatos, ocorridos “em condições específicas de desigualdade e de violência absolutas fundadas na negação da humanidade de pessoas deportadas”. Nos seus termos, a mestiçagem cultural e os processos de inovação dela decorrentes seriam resultantes imperativas do deslocamento em massa de pessoas para servirem como escravos, em qualquer das sociedades que conheceram a instituição, e para estudar o processo toma como exemplo os casos dos Estados Unidos e da África do Sul. Entre o muito que aprendemos no artigo, está que o contato cultural em situação de desigualdade não impede nem engendra formas específicas de relações raciais, mas produz um nível acelerado de inovação cultural, que atinge igualmente senhores e escravos. Fruto da resistência do escravizado à desumanização, a mestiçagem cultural seria parte inerente às sociedades escravistas e sem dúvida uma herança positiva da escravidão às sociedades contemporâneas, em meio a tantos legados de iniqüidade.

O segundo artigo do dossiê (Aquele que salva a mãe e o filho), da historiadora brasileira Ana Lucia Araujo, professora na Universidade de Howard nos Estados Unidos, nos transporta aos problemas colocados pelo processo de construção de uma memória pública da escravidão e do tráfico negreiro nas sociedades africanas contemporâneas. O tráfico atlântico de africanos escravizados para as Américas foi oficialmente considerado crime contra a humanidade pela ONU que, através da UNESCO, desenvolveu o projeto A Rota dos Escravos, como dever de memória e celebração das contribuições sócio-culturais da diáspora forçada de africanos. Também as condições de desequilíbrio que permitiram a colonização européia da África e a extrema pobreza do continente africano hoje se apresentam, pelo menos em parte, como decorrência do impacto do tráfico negreiro nas sociedades africanas. Neste contexto, a participação das elites africanas no mesmo é tema difícil no exercício da memória no continente ainda hoje. São as tensões entre a pluralidade de memórias sobre o tráfico negreiro e o movimento de patrimonialização da memória da escravidão como crime contra a humanidade no Benin, após a redemocratização do país, que estão no cerne da discussão apresentada por Ana Lucia Araujo em torno da abertura ao público, em Ajudá, do Memorial a Francisco Felix de Souza, negreiro brasileiro radicado no então reino do Daomé, no século XIX.

Os dois artigos seguintes voltam-se para a história da memória da escravidão no Brasil em relação com o processo transnacional de patrimonialização da escravidão e do tráfico como crime da humanidade ainda em curso. Como vimos no caso do Benin, são inúmeras e muitas vezes concorrentes e conflituosas as memórias públicas sobre a escravidão engendradas nesse contexto. Os artigos selecionados procuram dar conta de dois aspectos importantes e diferenciados do momento atual.

O de Matthias Assunção (A memória do cativeiro no Maranhão), historiador da Universidade de Essex, no Reino Unido, pesquisador associado ao LABHOI / UFF e professor visitante na nossa Universidade no ano de 2007, retoma aquele que tem sido o mote principal do projeto Memórias do Cativeiro, desde sua implementação no LABHOI em 1994 – dar visibilidade à memória familiar da experiência do cativeiro presente entre os descendentes da última geração de escravizados no Brasil. Com este objetivo, Assunção revistou as transcrições de entrevistas por ele realizadas ainda no início dos ano 80, no Maranhão, tendo como questão principal a memória da Balaiada, guerra civil que arrasou a região na primeira metade do século XIX. A força da memória do tempo do cativeiro, vivido por pais ou avós dos camponeses então entrevistados emerge com uma força surpreendente, levando-nos mais uma vez a constatar quão próxima ainda é a experiência escravista da realidade do Brasil contemporâneo. O artigo nos faz também indagar sobre o silêncio em que essa memória permaneceu até recentemente. Memória subterrânea, antes enquadrada pelo medo e a ética paternalista, emerge à cena pública através da pesquisa de um historiador e adquire novos significados. Tem-se, assim, uma espécie de efeito secundário da explosão memorial contemporânea, sempre criticada nos seus aspectos superficiais e homogeneizadores por historiadores e cientistas sociais – a emergência de memórias específicas de grupos marginalizados que funcionam como chave para novas leituras do passado.4

O reverso desse processo é a produção de contra discursos públicos e generalizantes sobre a história da escravidão e da abolição no Brasil e sua apropriação por grupos marginalizados em luta por cidadania. É o que acompanhamos no último artigo, sobre uma encenação memorial e educativa levada a efeito pela mãe de santo de um terreiro de candomblé na Baixada Fluminense. O Navio Negreiro, artigo de Francine Saillant, antropóloga da Universidade de Laval, no Canadá, transcreve e analisa a narrativa discursiva e corporal sobre a memória da escravidão produzida naquele contexto, bem como seus significados de reconfiguração de identidade. O artigo complementa, e dialoga com, o filme de pesquisa de mesmo titulo, apresentado na primeira versão do festival do filme de pesquisa sobre patrimônio e memória da escravidão moderna, e disponível em DVD no acervo do LABHOI / UFF, na Biblioteca Central do Gragoatá.

Boa leitura.

Notas

1 A primeira edição do festival itinerante teve início em abril de 2008 em Toronto, Canadá, sob auspícios do Harriet Tubman Resource Centre for the African Diaspora da Universidade de York. Depois repetiu-se em mais 10 cidades no Canadá, França, Senegal, Burkina Faso e Brasil. A edição brasileira ocorreu em novembro do mesmo ano na Universidade Federal Fluminense e no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.
2 Rios, Ana Lugão e Mattos, Hebe. Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
3 Abreu, Martha e Mattos, Hebe (direção geral). Memórias do Cativeiro, produção LABHOI / UFF 2005 e Jongos, Calangos e Folias. Música Negra, memória e poesia. Produção LABHOI / UFF, Patrocínio Petrobras, 2007.
4 Sobre o tema, ver também Chivallon, Christine. « Mémoires de l’esclavage à la Martinique L’explosion mémorielle et la révélation de mémoires anonymes ». Cahiers D’Etudes Africaines. N. 197, 2010 / 1.

Hebe Mattos


MATTOS, Hebe. Apresentação. Tempo. Niterói, v.15, n.29, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

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História e Memória | SÆCULUM – Revista de História | 2010

Prezados Leitores:

Discutir sobre História e Memória no âmbito do ofício dos historiadores tem constituído momentos recorrentes, e poderíamos sublinhar que eles estão presentes até mesmo nas espacialidades exteriores às academias (institucionais). As incursões nos meandros da memória estão instigando várias áreas dos saberes e o interesse das sociabilidades em geral. Há uma imensa curiosidade em desvendar os segredos que participam da lembrança e do esquecimento.

História e Memória estão imbricadas, uma e outra. São relacionais e estabelecem variadas possibilidades, da complementaridade à negação. Compartilham tessituras das nossas sensibilidades ao dizer das interfaces das nossas temporalidades e espacialidades plurais. Leia Mais

História e Memória / Sæculum / 2010

Discutir sobre História e Memória no âmbito do ofício dos historiadores tem constituído momentos recorrentes, e poderíamos sublinhar que eles estão presentes até mesmo nas espacialidades exteriores às academias (institucionais). As incursões nos meandros da memória estão instigando várias áreas dos saberes e o interesse das sociabilidades em geral. Há uma imensa curiosidade em desvendar os segredos que participam da lembrança e do esquecimento.

História e Memória estão imbricadas, uma e outra. São relacionais e estabelecem variadas possibilidades, da complementaridade à negação. Compartilham tessituras das nossas sensibilidades ao dizer das interfaces das nossas temporalidades e espacialidades plurais.

Nuances da relação entre história e memórias participam das diversas tendências teórico-metodológicas presentes nas produções historiográficas contemporâneas, sejam da eclética história cultural, da história social ou política, bem como dos esforços na verticalização dos aportes teóricos e, entre outros debates, podemos citar aqueles acerca dos sentidos atribuídos à cultura histórica e à cultura política.

A revista Sæculum, continuando sua trajetória editorial de edições no formato de dossiê, traz em seu número 23 a temática de História e Memória, intentando contribuir com as discussões coetâneas que atravessam as preocupações dos historiadores em problematizar as relações de alteridades e de consonâncias entre história e memória. Neste dossiê, apresentamos ensaios, resenhas e uma entrevista que refletem, de forma pertinente, questões em torno da temática proposta.

Os artigos que compõem o dossiê transitam sobre diversificados aspectos da relação entre história e memória, incluindo biografias, memórias gustativas, patrimônio, comemorações. Textos que nos possibilitam leituras quanto aos testemunhos orais, aos calendários cívicos e a memória individual e coletiva.

Duas resenhas abordam publicações sobre mitos celtas e sobre a história dos vikings, o que concorre para a compreensão das memórias e histórias preservadas e que ainda suscitam o interesse de muitos, inclusive constituindo temáticas responsáveis por sucessos editorais. As discussões dos historiadores apontam para a criticidade necessária em torno desses temas. Outra resenha se debruça sobre a relação da história com a literatura, palmilhando aspectos da escrita de si e da escrita da história e com isso iluminando sentidos quanto às biografias, os testemunhos.

Para a última parte do Dossiê História e Memória, as editoras deste número, realizaram uma entrevista e a disponibilizaram, com o consentimento da Profª Dra. Regina Beatriz Guimarães Neto, a sua publicação. A entrevista enfocou, além da sua trajetória de estudos, questões importantes como a relação entre História e Memória, as possibilidades e enfrentamentos entre História e Filosofia, as práticas que envolvem memórias, registros orais e documentação escrita e as possibilidades da inserção da memória no ensino de história.

Assim, convidamos os leitores a usufruírem os escritos e pontos de vista dos autores que compuseram esse Dossiê, na perspectiva de nutrir uma profícua e permanente reflexão sobre História e Memória.

Os Editores


Equipe Editorial. Editorial. Sæculum, João Pessoa, n.23, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Memória, Narrativa, Política / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2010

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. (Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio)

A revista CLIO apresenta o dossiê “Memória, Narrativa, Política. ” que reúne artigos de historiadores e historiadoras do Brasil e demais países da América Latina, numa contribuição à análise da historiografia e suas relações com a memória, problematizando a narrativa e a cultura. Os percursos realizados contemplam diferentes espacialidades e temporalidades, com abordagens teóricas e metodológicas múltiplas, o que torna esse número da revista Clio – Série Histórica – um caleidoscópio de narrativas e análises históricas. Os textos, ao dialogarem com um amplo leque de fontes documentais, projetam significativas contribuições ao debate metodológico acerca das práticas historiográficas. Práticas estas que enfrentam o desafio de transformar palavras, inscrições e os mais diversos registros em relatos escritos.

Com base na leitura dos títulos dos artigos selecionados, é possível ter uma primeira percepção do campo documental e metodológico constitutivo da escrita histórica deste número da revista CLIO: 1. A botija do Rio Formoso e outras histórias. Profa. Maria do Socorro Cipriano. 2. La función de la oralidad a través de los mitos y leyendas. Su papel en la construcción de la pertenencia cultural en pueblos aborígenes Nicaraos y Chorotegas. Profa. Ligia Madrigal Mendieta. 3. Palavras Afiadas: memórias e representações africanistas na escrita de Carolina Maria de Jesus. Prof. Élio Chaves Flores. 4. Imprensa e Imagens: a construção de representações do Piauí e de Teresina através de jornais diários na década de 1970. Prof. Francisco Alcides do Nascimento.5. Quimera amazônica: mecenato e colecionismo em Belém do Pará, 1890-1910. Prof. Aldrin Moura de Figueiredo. 6. Memoria y Cultura obrera. Profa. Mariana Mastrángelo.7. La Idea de “La Determinación” em R. Williams y los Orígenes Del movimiento de derechos humanos de Tucumán. Prof. Rubén Isidoro Kotler. 8. “Era como una droga escucharlo a Perón”. Recordando la militancia treinta años más tarde (1955 a 1976). Prof. Pablo Pozzi. 9. Historiografia & Narrativa: do arquivo ao texto. Profa. Regina B. Guimarães Neto. 10. Travessias e desafios. Prof. Antonio Torres Montenegro. 11. A esposa-espírito Nambiquara. Profa. Anna Ribeiro F. M. Costa. 12. Júlio Bello: um homem velho fala sobre as velhices que viu e viveu. Prof. Alarcon Agra do Ó.

Ao reunir esta série de autores tivemos como critério definir a presença de historiadores e historiadoras que operam criticamente no fazer de suas pesquisas e procedimentos de análise, sem, contudo, instaurarmos princípios ou conceitualizações apriorísticas, que os classificam ou encerram em determinadas posições teóricas. Entendemos que o conjunto de textos, aqui apresentados, longe de projetar dicotomias teóricas e polêmicas que esvaziam o discurso historiográfico e fixam procedimentos desligados das práticas de pesquisa, insere-se em relações mais complexas. Aquelas que se estabelecem entre relato histórico, fontes documentais e proposições metodológicas. Portanto, nossa preocupação e interesse nos direcionam a refletir acerca dos processos de leitura como ato criativo na construção dos relatos e na produção da escrita, em sua historicidade, aos quais se associam os debates sobre o conceito de memória, cultura e narrativa.

Também incluímos neste número quatro artigos que, embora não estejam incluídos no Dossiê, assinalam uma significativa pesquisa documental associada a narrativas em que as problemáticas metodológicas se revelam no próprio percurso escriturístico. São eles: 13. Artífices de cor do Recife: dos privilégios corporativos à tentativa de controle da escolarização dos ofícios – décadas de 1840 E 1850 – Marcelo Mac Cord. 14. Crias do abandono, filhos da ordem. Assistência, poder e resistência no Colégio dos Órfãos de Pernambuco. (1835 a 1875) – Alcileide Cabral Nascimento e Gabriel Navarro Barros. 15. Os conceitos de “modo de produção” e “determinismo” – revisitando as diversas discussões no âmbito do Materialismo Histórico – José D’Assunção Barros. 16. Pajés, demônios e canibais: representações acerca do indígena americano na iconografia européia do século XVI. – Rodrigo Luiz Simas de Aguiar e Aline Maria Müller.

Há muitas inter-relações entre os textos deste número da revista Clio e neles se delineia um amplo espectro de abordagens, com destaque para o foco nas pesquisas realizadas. Sem pautar por uma exposição linear de assuntos ou temas, em espaços e tempos diversos, as contribuições destes autores nos levam a paragens desconhecidas. Desejamos que por meio de aproximações e diferenças o movimento da leitura destes artigos seja um convite para novas e instigantes viagens.

Para finalizar, queremos agradecer aos historiadores e historiadoras que enviaram seus artigos e, dessa forma, nos possibilitaram organizar mais este número da Revista Clio – Série Histórica –.

Professora Doutora Regina Beatriz Guimarães Neto.

Professor Doutor Antonio Torres Montenegro.


GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz; MONTENEGRO, Antonio Torres. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.28, n.1, jan / jun, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Memória, Narrativa, Política / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2010

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. (Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio)

A revista CLIO apresenta o dossiê “Memória, Narrativa, Política. ” que reúne artigos de historiadores e historiadoras do Brasil e demais países da América Latina, numa contribuição à análise da historiografia e suas relações com a memória, problematizando a narrativa e a cultura. Os percursos realizados contemplam diferentes espacialidades e temporalidades, com abordagens teóricas e metodológicas múltiplas, o que torna esse número da revista Clio – Série Histórica – um caleidoscópio de narrativas e análises históricas. Os textos, ao dialogarem com um amplo leque de fontes documentais, projetam significativas contribuições ao debate metodológico acerca das práticas historiográficas. Práticas estas que enfrentam o desafio de transformar palavras, inscrições e os mais diversos registros em relatos escritos.

Com base na leitura dos títulos dos artigos selecionados, é possível ter uma primeira percepção do campo documental e metodológico constitutivo da escrita histórica deste número da revista CLIO: 1. A botija do Rio Formoso e outras histórias. Profa. Maria do Socorro Cipriano. 2. La función de la oralidad a través de los mitos y leyendas. Su papel en la construcción de la pertenencia cultural en pueblos aborígenes Nicaraos y Chorotegas. Profa. Ligia Madrigal Mendieta. 3. Palavras Afiadas: memórias e representações africanistas na escrita de Carolina Maria de Jesus. Prof. Élio Chaves Flores. 4. Imprensa e Imagens: a construção de representações do Piauí e de Teresina através de jornais diários na década de 1970. Prof. Francisco Alcides do Nascimento.5. Quimera amazônica: mecenato e colecionismo em Belém do Pará, 1890-1910. Prof. Aldrin Moura de Figueiredo. 6. Memoria y Cultura obrera. Profa. Mariana Mastrángelo.7. La Idea de “La Determinación” em R. Williams y los Orígenes Del movimiento de derechos humanos de Tucumán. Prof. Rubén Isidoro Kotler. 8. “Era como una droga escucharlo a Perón”. Recordando la militancia treinta años más tarde (1955 a 1976). Prof. Pablo Pozzi. 9. Historiografia & Narrativa: do arquivo ao texto. Profa. Regina B. Guimarães Neto. 10. Travessias e desafios. Prof. Antonio Torres Montenegro. 11. A esposa-espírito Nambiquara. Profa. Anna Ribeiro F. M. Costa. 12. Júlio Bello: um homem velho fala sobre as velhices que viu e viveu. Prof. Alarcon Agra do Ó.

Ao reunir esta série de autores tivemos como critério definir a presença de historiadores e historiadoras que operam criticamente no fazer de suas pesquisas e procedimentos de análise, sem, contudo, instaurarmos princípios ou conceitualizações apriorísticas, que os classificam ou encerram em determinadas posições teóricas. Entendemos que o conjunto de textos, aqui apresentados, longe de projetar dicotomias teóricas e polêmicas que esvaziam o discurso historiográfico e fixam procedimentos desligados das práticas de pesquisa, insere-se em relações mais complexas. Aquelas que se estabelecem entre relato histórico, fontes documentais e proposições metodológicas. Portanto, nossa preocupação e interesse nos direcionam a refletir acerca dos processos de leitura como ato criativo na construção dos relatos e na produção da escrita, em sua historicidade, aos quais se associam os debates sobre o conceito de memória, cultura e narrativa.

Também incluímos neste número quatro artigos que, embora não estejam incluídos no Dossiê, assinalam uma significativa pesquisa documental associada a narrativas em que as problemáticas metodológicas se revelam no próprio percurso escriturístico. São eles: 13. Artífices de cor do Recife: dos privilégios corporativos à tentativa de controle da escolarização dos ofícios – décadas de 1840 E 1850 – Marcelo Mac Cord. 14. Crias do abandono, filhos da ordem. Assistência, poder e resistência no Colégio dos Órfãos de Pernambuco. (1835 a 1875) – Alcileide Cabral Nascimento e Gabriel Navarro Barros. 15. Os conceitos de “modo de produção” e “determinismo” – revisitando as diversas discussões no âmbito do Materialismo Histórico – José D’Assunção Barros. 16. Pajés, demônios e canibais: representações acerca do indígena americano na iconografia européia do século XVI. – Rodrigo Luiz Simas de Aguiar e Aline Maria Müller.

Há muitas inter-relações entre os textos deste número da revista Clio e neles se delineia um amplo espectro de abordagens, com destaque para o foco nas pesquisas realizadas. Sem pautar por uma exposição linear de assuntos ou temas, em espaços e tempos diversos, as contribuições destes autores nos levam a paragens desconhecidas. Desejamos que por meio de aproximações e diferenças o movimento da leitura destes artigos seja um convite para novas e instigantes viagens.

Para finalizar, queremos agradecer aos historiadores e historiadoras que enviaram seus artigos e, dessa forma, nos possibilitaram organizar mais este número da Revista Clio – Série Histórica –.

Professora Doutora Regina Beatriz Guimarães Neto.

Professor Doutor Antonio Torres Montenegro.


NETO, Regina Beatriz Guimarães; MONTENEGRO, Antonio Torres. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.28, n.1, jan / jun, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Memória, Narrativa, Política / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2010

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. (Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio)

A revista CLIO apresenta o dossiê “Memória, Narrativa, Política. ” que reúne artigos de historiadores e historiadoras do Brasil e demais países da América Latina, numa contribuição à análise da historiografia e suas relações com a memória, problematizando a narrativa e a cultura. Os percursos realizados contemplam diferentes espacialidades e temporalidades, com abordagens teóricas e metodológicas múltiplas, o que torna esse número da revista Clio – Série Histórica – um caleidoscópio de narrativas e análises históricas. Os textos, ao dialogarem com um amplo leque de fontes documentais, projetam significativas contribuições ao debate metodológico acerca das práticas historiográficas. Práticas estas que enfrentam o desafio de transformar palavras, inscrições e os mais diversos registros em relatos escritos.

Com base na leitura dos títulos dos artigos selecionados, é possível ter uma primeira percepção do campo documental e metodológico constitutivo da escrita histórica deste número da revista CLIO: 1. A botija do Rio Formoso e outras histórias. Profa. Maria do Socorro Cipriano. 2. La función de la oralidad a través de los mitos y leyendas. Su papel en la construcción de la pertenencia cultural en pueblos aborígenes Nicaraos y Chorotegas. Profa. Ligia Madrigal Mendieta. 3. Palavras Afiadas: memórias e representações africanistas na escrita de Carolina Maria de Jesus. Prof. Élio Chaves Flores. 4. Imprensa e Imagens: a construção de representações do Piauí e de Teresina através de jornais diários na década de 1970. Prof. Francisco Alcides do Nascimento.5. Quimera amazônica: mecenato e colecionismo em Belém do Pará, 1890-1910. Prof. Aldrin Moura de Figueiredo. 6. Memoria y Cultura obrera. Profa. Mariana Mastrángelo.7. La Idea de “La Determinación” em R. Williams y los Orígenes Del movimiento de derechos humanos de Tucumán. Prof. Rubén Isidoro Kotler. 8. “Era como una droga escucharlo a Perón”. Recordando la militancia treinta años más tarde (1955 a 1976). Prof. Pablo Pozzi. 9. Historiografia & Narrativa: do arquivo ao texto. Profa. Regina B. Guimarães Neto. 10. Travessias e desafios. Prof. Antonio Torres Montenegro. 11. A esposa-espírito Nambiquara. Profa. Anna Ribeiro F. M. Costa. 12. Júlio Bello: um homem velho fala sobre as velhices que viu e viveu. Prof. Alarcon Agra do Ó.

Ao reunir esta série de autores tivemos como critério definir a presença de historiadores e historiadoras que operam criticamente no fazer de suas pesquisas e procedimentos de análise, sem, contudo, instaurarmos princípios ou conceitualizações apriorísticas, que os classificam ou encerram em determinadas posições teóricas. Entendemos que o conjunto de textos, aqui apresentados, longe de projetar dicotomias teóricas e polêmicas que esvaziam o discurso historiográfico e fixam procedimentos desligados das práticas de pesquisa, insere-se em relações mais complexas. Aquelas que se estabelecem entre relato histórico, fontes documentais e proposições metodológicas. Portanto, nossa preocupação e interesse nos direcionam a refletir acerca dos processos de leitura como ato criativo na construção dos relatos e na produção da escrita, em sua historicidade, aos quais se associam os debates sobre o conceito de memória, cultura e narrativa.

Também incluímos neste número quatro artigos que, embora não estejam incluídos no Dossiê, assinalam uma significativa pesquisa documental associada a narrativas em que as problemáticas metodológicas se revelam no próprio percurso escriturístico. São eles: 13. Artífices de cor do Recife: dos privilégios corporativos à tentativa de controle da escolarização dos ofícios – décadas de 1840 E 1850 – Marcelo Mac Cord. 14. Crias do abandono, filhos da ordem. Assistência, poder e resistência no Colégio dos Órfãos de Pernambuco. (1835 a 1875) – Alcileide Cabral Nascimento e Gabriel Navarro Barros. 15. Os conceitos de “modo de produção” e “determinismo” – revisitando as diversas discussões no âmbito do Materialismo Histórico – José D’Assunção Barros. 16. Pajés, demônios e canibais: representações acerca do indígena americano na iconografia européia do século XVI. – Rodrigo Luiz Simas de Aguiar e Aline Maria Müller.

Há muitas inter-relações entre os textos deste número da revista Clio e neles se delineia um amplo espectro de abordagens, com destaque para o foco nas pesquisas realizadas. Sem pautar por uma exposição linear de assuntos ou temas, em espaços e tempos diversos, as contribuições destes autores nos levam a paragens desconhecidas. Desejamos que por meio de aproximações e diferenças o movimento da leitura destes artigos seja um convite para novas e instigantes viagens.

Para finalizar, queremos agradecer aos historiadores e historiadoras que enviaram seus artigos e, dessa forma, nos possibilitaram organizar mais este número da Revista Clio – Série Histórica –.

Professora Doutora Regina Beatriz Guimarães Neto.

Professor Doutor Antonio Torres Montenegro.


NETO, Regina Beatriz Guimarães; MONTENEGRO, Antonio Torres. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.28, n.1, jan / jun, 2010. Acessar publicação original [DR]

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História, Memória e Natureza / História & Perspectivas / 2009

Esta edição de História & Perspectivas nos convida a refletir sobre os temas História, Memória e Natureza, nas suas vinculações e retro-alimentações que podem ajudar a percebê-los como elementos chaves nas transformações requeridas nas sociedades contemporâneas, quando a própria natureza está a mostrar a necessidade da volta à história e à memória para nos posicionarmos sobre os erros e acertos incorridos pela humanidade, uma vez que parte dela já reconhece a urgência desta reflexão.

O dossiê que compõe o número 41 inicia uma reflexão sobre agricultura multifuncional e ruralidade. A autora vai a campo para estudar diferentes histórias de agricultores em uma área que está entre as mais produtivas da Itália central, numa época em que se passa de um modelo no qual a valorização econômica se baseava majoritariamente no aumento da produtividade da terra à piora das externalidades negativas da agricultura convencional. Situação que requer um novo pacto social entre os agricultores e seus concidadãos do resto da sociedade, pois as mudanças necessárias requerem a contribuição de todos os seus membros. Dentre elas, pode-se mencionar as que ocorrem neste importante setor, a agricultura, por aqueles que nele atuam e são portadores de uma “racionalidade campesina”, que assume a reprodução dos recursos e a autonomia como pré-requisitos da administração empresarial. Racionalidade que se explicita na capacidade de trabalhar com cuidado os recursos naturais do setor; e que permite e impõe um modo de viver a própria atividade em uma relação estreita com a natureza e a sociedade (VAN DER PLOEG, 2006). Examina histórias que falam de compromisso, e do que Van der Ploeg chama de cura (cuidado), como elemento que caracteriza quem não tem só o dinheiro como objetivo e motor da ação.

Os três artigos seguintes tratam, primeiramente, de alternativas tais como os sistemas agro-florestais e o desenvolvimento local sustentável para este e outro importante setor, o florestal, que permitem aquele tipo de relação com a natureza ao tempo que fornecem à sociedade alimentos e produtos florestais na perspectiva agro-ecológica. O segundo chama a atenção para a cautela que se deve ter ao discutir um dos problemas ambientais mais sérios da atualidade, as mudanças climáticas – que podem trazer consequências graves para os setores mencionados – e que é também uma questão global, a Amazônia. Considera que o meio ambiente é único, desde a esfera subatômica até a dimensão universal, com resultados entre estes extremos: indivíduo, espécie humana, reino animal e organismos vivos. E baseando-se em pesquisa sobre a Iniciativa MAP (Madre de Dios / Peru, Acre / Brasil e Pando / Bolívia), considerada uma das dez regiões mais ricas em biodiversidade do planeta, os autores do texto seguinte buscam problematizar a luta pela dominação da terra na Amazônia, sob condições de aprofundamento da mercantilização da natureza e perda de controle das populações locais sobre seus territórios / recursos, num processo de “desterritorialização”.

Dentre os três artigos finais do dossiê, o primeiro analisa o modo de vida dos beraderos sanfranciscanos antes da construção da represa de Sobradinho, evidenciando que, além de propiciar a eles meios de vida, o Rio São Francisco era a sua principal referência espacial, temporal, cultural. No segundo se discute as modificações ocorridas na vida do homem do campo do distrito de Martinésia, Uberlândia-MG, a partir da década de 1970, com relação às atividades agrícola e pecuária e às formas de viver, trabalhar, se relacionar, nos sentidos e maneiras de vivenciar a terra e a relação com a natureza. O terceiro artigo aponta para uma dimensão central quando se trata da natureza, a cultura, que a autora relaciona à produção intelectual ou artística, e ao modo de vida de uma sociedade, possuindo ainda, o sentido de cultivar, diretamente vinculado aos temas centrais do dossiê: o cultivo dos meios de vida para as sociedades. Relaciona-o também com o cuidado que este cultivo precisa ter com os recursos naturais. Que sejam usados de acordo com os objetivos de uma sociedade que busque se reconciliar consigo mesma, numa época de tantas contradições, conflitos e possibilidades de reconstruções, os quais permitem esta conciliação consigo e com a natureza da qual faz parte, e sobre a qual atua de formas insustentáveis, como a realidade nos mostra e a memória pode revelar.

O documento seguinte já contribui, em sua interface entre a pesquisa e a extensão, com a investigação e coleta de dados sobre transformações sociais e ambientais na região do Triângulo Mineiro nas últimas décadas, ocorridas com a implantação da cana-de-açúcar e produção de álcool e açúcar. Tem como preocupação fundamental, não apenas recolher material, mas, sobretudo, estabelecer contato e discussões com certos grupos de trabalhadores sobre referências e sentidos dos impactos e transformações relacionados a esta atividade e em relação às experiências vividas.

Com relação aos artigos seguintes, o primeiro analisa a ONG Ação Moradia, que atua através de programas ligados à habitação em Uberlândia, construindo moradias ou fornecendo tijolos ecológicos, além de oferecer cursos profissionalizantes e outras atividades de cunho social. Busca compreender o problema da demanda de moradias nesta cidade e o significado da casa própria como representação de acesso à cidadania e conquista do espaço urbano, além de refletir sobre o papel do estado no planejamento do ambiente urbano. O segundo trata da escravidão em Belém, capital da província do Pará, durante a segunda metade do século XIX, nos variados aspectos de constituição e dinâmica da escravidão naquela cidade, tais como mercado, controle social e os conflitos sociais dentro do espaço urbano. O artigo seguinte mostra a mobilização diferenciada de profissionais médicos (civis e militares), professores catedráticos e estudantes de Medicina e Farmácia da Faculdade de Medicina da Bahia, para o importante apoio aos feridos durante a Guerra do Paraguai. E o quarto texto faz a análise de um artigo publicado na revista Veja acerca do Partido dos Trabalhadores em 12 / 09 / 2007. Se pauta no constructo teórico da análise do discurso de vertente francesa, voltando-se para as noções de sujeito e sentido discursivo propostos por Pêcheux (1997), de heterogeneidades segundo Authier-Revuz (2004), dos conceitos de memória e intericonicidade segundo Courtine (2006), e ainda os conceitos de polifonia e dialogismo, segundo Bakhtin.

As duas resenhas tratam primeiro do desenvolvimento territorial, de caráter multidisciplinar, como importante e vasta área de debate acadêmico, com transbordamentos para a prática de gestão de políticas públicas; por sua forma de percepção da realidade através do re-ordenamento espacial do território, entendido não só do ponto de vista geográfico, mas agregando dimensões econômico-sociais que conferem a algumas regiões características singulares. A partir destas, são analisadas as formas de intervenção estatal (modelo top-down) e o processo de gestão participativa, com demandas locais, coadunando as proposições top-down com as do tipo button-up, não em uma defesa do localismo, mas mostrando a importância do capital-social enquanto detonador de um processo de gestão participativa, alicerçado pelo aparato estatal, concatenando os interesses sub-nacionais com os de âmbito nacional. Na segunda resenha, o autor constrói sua narrativa destacando o lugar central que Otelo ocupa pela seletividade de seu passado, oferecido a ler em um movimento de heroicização, com o propósito de que os acontecimentos sobre o artista tenham o caráter de grandeza, transformando-o em herói do cinema e do teatro, e enfatizando a sua notoriedade, brilhantismo e genialidade, espinha dorsal da escrita do autor, pelo manuseio do passado na construção de uma memória sobre Grande Otelo. Uma referência à memória, destacada neste número da revista História & Perspectivas como central ao papel de todos nós na construção de sociedades historicamente referenciadas, socialmente justas e ambientalmente sustentáveis, tarefa para a qual o brilhantismo de todos está sendo solicitado.

Conselho Editorial


História, Memória e Natureza. História & Perspectivas, Uberlândia, v.1, n.30, 2009. Acessar publicação original desta apresentação [DR].

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Memória e comemorações: história e historiografia nas Américas | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2009

A 8ª edição da Revista Eletrônica da ANPHLAC apresenta o dossiê Memória e comemorações: história e historiografia nas Américas. Debruçar-se sobre tais questões no atual momento tem um significado especial, tendo em vista a sequência de efemérides relacionadas à História da América nos anos de 2009 e 2010. São exemplos o bicentenário das Independências, o centenário da Revolução Mexicana e o cinquentenário da Revolução Cubana.

Intelectuais, historiadores e demais profissionais da área das Ciências Humanas são convidados a participar de eventos acadêmicos, a colaborar com publicações em revistas especializadas e na imprensa, e a tomar parte de celebrações oficiais. Trata-se de uma oportunidade de se repensar, à luz das questões contemporâneas, esses momentos do passado, que guardam em comum, entre tantos aspectos, o profundo anseio por transformações, nem sempre fáceis de serem efetivadas. Leia Mais

História e Memória / Outros Tempos / 2009

Sobre a Memória e o esquecimento

Não poderia haver melhor frase para iniciar este número da revista Outros Tempos – Pesquisa em Foco que a frase de Milan Kundera em O livro do riso e do esquecimento de 1981: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. Neste número temos o orgulho de apresentar o dossiê História e Memória no qual são veiculados oito artigos que utilizaram o conceito de memória em seus trabalhos. Trabalhos como o de Jayme Ribeiro que percebe a utilização da memória acerca da Bomba Atômica por partes dos comunistas e dos não comunistas, ou, ainda, de Sonia Maria de Meneses problematizando as relações entre mídia, memória e esquecimento. Já os trabalhos de Carolina Cunha e Raquel França dos Santos Ferreira, examinam o acervo documental escrito, a primeira perscrutou as Memórias do frei dominicano Servando Teresa de Mier na tentativa de entender o ideário iluminista, enquanto a segunda examinou as crônicas de Antonio Maria, compositor e produtor pernambucano, para entender o imaginário carioca da década de 1950. Já Daniel Choma analisa não os escritos de determinado personagem, mas o acervo fotográfico de Armínio Kaiser, enquanto Rafael Hansen Quinsani analisa a memória a partir do filme Soldados de Salamina, de 2003. Fábio da Silva Souza, por sua vez, analisa a história e a memória da famigerada Revolução Mexicana, e Leonardo da Costa Ferreira discute a memória de luta política de Amadeu Amaral.

Para completar o Dossiê de História e Memória temos a transcrição de um documento cedido e comentado pela professora Júlia Constança Pereira Camêlo, na realidade, uma entrevista concedida em 1996, por Onofre Alves de Siqueira, o Bebelo, à Cléa Camêlo de Albuquerque, referente às Ligas Camponesas. E, por fim, uma entrevista com a historiadora e pesquisadora Ana Maria Mauad, responsável pelo Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense.

Na seção livre, com artigos dos mais diversos assuntos, vocês leitores podem encontrar o artigo de Maria Regina Santos de Souza evidenciando as dificuldades enfrentadas por viúvas na petições de pensão de seus maridos mortos na Guerra do Paraguai, ou, ainda, o trabalho de Marili Peres Junqueira enfocando as relações diplomáticas entre Brasil e Itália no final do século XIX. Thiago Cavaliere Mourelle, discute as origens do trabalhismo através do interventor Pedro Ernesto. No artigo em co-autoria de Valter Fernandes e Victor Abril poderão encontrar ainda uma discussão sobre a complexa relação de poder existente no império português a partir do Rio de Janeiro.

O desfecho dos artigos esta por conta da antropóloga italiana Anna Casella Paltrinieri com o texto intitulado Imigração, raça e cultura: o ensinamento de Franz Boas publicado na revista italiana Quaderni del Premio Letterario Giuseppe Acerbi, em novembro de 2008, e traduzido, para essa edição, pelos professores Claúdio Zannoni e Maria Mirtes dos Santos Barros.

Além dos artigos os leitores poderão encontrar, ainda, duas resenhas: a primeira do historiador Rogério Chaves da Silva do livro História Viva – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico, do historiador alemão Jorn Rusen; e a segunda, de Régia Agostinho da Silva, sobre a obra Uma escritora na periferia do império: vida e obra de Emília Freitas, escrita por Alcilene Cavalcante.

Como podem observar, esse número está quase que exclusivamente dedicado à Memória, e a maior parte das colaborações surgiu a partir de historiadores, contudo, isso não significa dizer que esquecemos os outros pesquisadores e escritores acadêmicos, o espaço está aberto para todas as contribuições e continuamos aguardando seus trabalhos.

A todos, boa leitura!

Reinaldo dos Santos Barroso Junior


BARROSO JUNIOR, Reinaldo dos Santos. Editorial. Outros Tempos, Maranhão, v. 6, n.7, 2009. Acessar publicação original [DR]

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Memória e História Oral / Esboços / 2009

Memória e História Oral / Esboços / 2009

Memória e globalização” é o título do artigo que introduz este novo número de Esboços – a revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC. Este texto, apresentado há alguns anos pelo historiador italiano Carlo Ginzburg como conferência de abertura em um encontro internacional sobre História Oral, e traduzido nas páginas de nossa revista, cumpre dois propósitos essenciais. O primeiro deles é o de fazer circular mais uma vez em nosso ambiente acadêmico a sutileza de argumento e a capacidade de sugestão que as discussões de Ginzburg sempre produzem. Por outro lado, cumpre também o propósito, igualmente nobre, de servir como introdução ao mini-dossiê que inaugura este número e que dedicamos aos temas amplos e correlatos “Memória e História Oral”. Traz assim uma discussão instigante – como de costume neste autor – sobre os significados e as implicações ambíguas da “memória” enquanto realidade e enquanto conceito, desde a tradição filosófica grega até os nossos tempos “digitais”.

Memórias e apreensões marcam igualmente a reflexão de Antonio Montenegro que segue o dossiê, onde o professor pernambucano revisita sua trajetória de pesquisa nos últimos anos para nos trazer reflexões sobre a História Oral em que milita. Em seguida, Cristina Ennes da Silva, Paula Regina Puhl e Carlos Eduardo Ströher expõem o resultado de suas pesquisas – fortemente amparadas na história oral – sobre as transformações nos espaços de sociabilidade em Novo Hamburgo, tomando as salas de cinema como posto de observação. Concluindo o mini-dossiê, Gerson Ledezma discute os embates pela memória na comemoração do 1º Centenário da Independência da Bahia, em 1923.

Para além do dossiê, temos cinco contribuições importantes sobre temas diversos, que complementam as publicações deste número. A primeira delas é o trabalho de Ivaldo Marciano Lima sobre os afoxés pernambucanos, seguido do artigo de Marco Antonio Stancik sobre a medicina e a saúde pública o Brasil entre a colônia e os primeiros anos do século XX e o texto de Maikel Borrego sobre os “yacht clubs” da capital cubana entre a independência e a revolução. Completa ainda essa seção de artigos os textos de Alcides Goularti Filho sobre a Companhia de Navegação Fluvial a Vapor Itajahy-Blumenau na virada do século XIX para o XX, bem como o texto escrito a quatro mãos por Ancelmo Schörner e José Adilçon Campigoto sobre as representações de cultura e costume entre o campo e a cidade no Paraná dos anos 60-70.

Concluindo nosso número de Esboços estão ainda as contribuições de Waldir Rampinelli, João Pedro Cabreira Cabral, Ricardo Santhiago e Martin Dreher, que resenham algumas obras que saíram recentemente no campo da história e das ciências humanas.

Enfim, este é o plano piloto deste vigésimo primeiro número da revista Esboços que, em 2009, completa seu décimo sexto ano de existência.

Uma data que marca também uma transição importante: Como resultado não planejado do sucesso da revista na sua conversão à plataforma digital do Sistema de Editoração Eletrônica de Revistas (SEER) no Portal de Periódicos da Universidade Federal de Santa Catarina, a partir deste número Esboços deixa de ter seus números impressos em papel e passa desde agora a publicar-se exclusivamente em forma eletrônica. Nessa decisão, seguimos os passos de outros periódicos que enfrentam, tal qual o nosso, as dificuldades (financeiras, sobretudo) em publicar por vias mais tradicionais seu conteúdo. Mas também fazemos isso na convicção que o futuro da maior parte das nossas revistas acadêmicas encontra-se aí: na circulação, cada vez mais ampla, e na visibilidade proporcionada pela rede mundial de computadores. Confirmando esta convicção, nos tornamos parte também do Portal de Periódicos da CAPES em 2009 e iremos, nos próximos anos, redobrar o esforço para participar de outros portais de conteúdo e indexadores acadêmicos. Contamos com nossos leitores e colaboradores para fazerem desta iniciativa outro passo bem sucedido.

Os Editores

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História e Memória / Anos 90 / 2007

São incontáveis os títulos de livros ou periódicos temáticos com o enunciado História e Memória. Se apresentamos ao leitor mais um conjunto de textos sobre o assunto é porque, mais que um tema que continua importante, o assunto parece ter se tornado emblemático da atividade do historiador. Se, como afirma Le Goff, (1992, p. 426), tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas, não seria uma tarefa dos historiadores elucidar, nos mais diferentes contextos, quem são os senhores da memória e desvendar o que foi relegado ao esquecimento? Tendo acompanhado os desenvolvimentos da memória em diferentes épocas históricas e sua ampliação e diversificação na sociedade contemporânea, sua provável resposta a uma questão semelhante não deixaria dúvidas: Cabe, com efeito, aos profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica (LE GOFF, 1992, p. 477). Em Pierre Nora encontramos uma contraposição semelhante, explicitada no artigo de Benito Schmidt: enquanto a memória teria um caráter afetivo e sacralizante, a história supõe um enfoque racional e laicizante. Portanto, podemos tratar de questões de memória e história separadamente, mas se, freqüentemente, os termos formam uma dupla é porque, quando operando em um mesmo campo, há uma grande probabilidade que atuem na contramão um do outro. E as particularidades de um são relativas às do outro. Porque a memória é dominadora, a história deve ser democrática; porque a memória é afetiva, a história deve ser científica, objetiva e racional; se a memória tende para o sacro, a história deve apontar sua base humana.

Há um campo da história que precisou enfrentar essas questões de maneira mais aguda que outros, o da História Oral. A idéia de que a história oral fosse mais democrática norteou a visão daqueles que impulsionaram internacionalmente a moderna história oral (THOMPSON, 1987, p. 10). Mas logo tal concepção foi criticada (PORTELLI, 1981, p. 104). Com o refinamento dos debates podemos dizer, então, que a história oral contribui para a democratização da memória, de uma forma certamente muito importante e diferenciada da história baseada em documentos escritos, mas, como qualquer outra, a história oral não é essencialmente democrática. Contudo, o entusiasmo inicial dos historiadores orais por estarem contribuindo para versões mais matizadas da história, por trazerem à cena o relato dos que vivenciaram os acontecimentos e processos, cedeu espaço a uma reflexão que surgiu com o progresso das discussões metodológicas: a visão dos entrevistados não é diferente apenas de outras memórias construídas, ela também costuma ser diferente da interpretação do historiador, aquele mesmo que depende da boa-vontade do entrevistado. Em suma, o historiador oral, ao se pretender científico, estará desconstruindo não apenas memórias sistematizadas, produzidas a alguma distância, mas memórias que ele demandou e que ele obteve por métodos dos quais não está ausente uma certa dose de sedução. Os debates, portanto, são complexos e exigiram um aperfeiçoamento dos conceitos e das interpretações. Para tal refinamento da discussão no campo da história oral no Brasil, tem sido fundamental a reflexão de Verena Alberti, conhecida também por alguns dos melhores textos de sistematização dos procedimentos da história oral (ALBERTI, 1990; ALBERTI, 2005). Neste número de Anos 90 contamos com artigo de sua autoria, enfocando um campo muito próximo ao da história oral, o da tradição oral, em um texto que nos traz um exemplo contundente de luta pela democratização da memória, ou, mais especificamente, a luta pelo reconhecimento de direitos dos maoris da Nova Zelândia dos dias de hoje, que se legitima pela afirmação de uma determinada memória.

Os diferentes modos de construção da memória são um dos temas que têm se desenvolvido com ampliação dos estudos sobre memória nas últimas décadas. Se Capistrano de Abreu passou a ser reconhecido por muitos como o mais importante historiador brasileiro das décadas iniciais do século XX, e se foi transformado em modelo de intelectual e símbolo da nacionalidade, algum trabalho de construção de memória operou-se sobre sua figura. De uma vasta memorialística construída em torno do autor (necrológios, artigos, resenhas, biografias, sonetos, retratos, charges, fotografias, dissertações e teses, além de cartas do próprio Capistrano que contêm reflexões sobre si) Rebeca Gontijo busca nos textos biográficos sobre o estudioso os elementos para compreender como a identidade de um indivíduo pode ser apresentada como símbolo da nacionalidade. Retomando Le Goff (1992, p. 476): A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Também sobre a relação entre memória e construção de representações identitárias trata o texto de Ernesto Seidl, sendo os construtores, neste caso, agentes vinculados à Igreja católica do Rio Grande do Sul, que atuam em diferentes esferas sociais (religiosa, científico-acadêmica, intelectual, artística), e os grupos étnicos oriundos da imigração alemã e italiana, aqueles sobre quem se escreve uma história, dos quais a memória que se busca divulgar não sem disputas é a memória do êxito.

Entretanto, não poderia um texto memorialístico ser apropriado pelo historiador, não ou não apenas para sofrer uma desconstrução, para este apontar-lhe as elaborações afetivas, mas como aquilo que é básico do trabalho científico do historiador, como fonte histórica? Analisando a autobiografia póstuma do jornalista Samuel Wainer, Minha razão de viver, Luís Carlos Martins propõe que ela possa ser vista como um documento importante para compreendermos a criação do jornal Última Hora e muitos acontecimentos fundamentais do Segundo Governo Vargas. Memórias escritas serão sempre um documento importante, mesmo que seu autor não tenha sido alguém importante ou não tenha convivido com personagens históricos. Infelizmente, no Brasil, não dispomos de autobiografias ou diários de pessoas do povo, como os escritos por artesãos calvinistas ou líderes religiosos ingleses no século XVIII, estimulados a registrar os sinais de sua fé pessoal ou da de sua comunidade, munindo os historiadores dos séculos seguintes de uma preciosa fonte de pesquisa sobre os trabalhadores (ver THOMPSON, 1987).

O período da ditadura militar brasileira, por sua vez como em outros regimes em que o arbítrio leva ao encarceramento, à perda de direitos, ao exílio e à morte , ocasionou, passados quarenta anos, candentes batalhas da memória, que extrapolam os diretamente envolvidos, as vítimas e os agentes do regime repressivo, dizendo respeito a toda sociedade. Para o campo histórico, como mostra o artigo de Benito Schmidt, a presença de historiadores que foram também testemunhas cobra aos estudos de memória reflexões que dêem conta de tais imbricações.

Nos artigos diversos, dois assuntos que abordam fenômenos do processo de urbanização de um país ainda predominantemente rural. No primeiro caso, em uma das capitais Porto Alegre de um Brasil que organizava sua novel vida republicana, tornava-se necessário, em função de projetos de saneamento, regular o comércio e a prestação de serviços ambulantes. Regulamentar significa restringir, e as populações atingidas por tais medidas não deixaram de reagir. No outro caso, na região de colonização alemã, o prefeito de uma cidade recém-emancipada Novo Hamburgo narra, em 1931, através das páginas do jornal que representava a municipalidade, uma história segundo a qual os primeiros colonos da região teriam enfrentado, cem anos antes, um grupo de índios comandados por um escravo fugido. As velhas representações da superioridade branca européia, associadas a uma pitada de nacionalismo romântico (contaram com a ajuda de um cacique amigo) são utilizadas para a afirmação regional de descendentes de imigrantes.

A entrevista de Hugo Bauzá, professor titular de Literatura Latina e Artes na Universidade de Buenos Aires, com Jean Jacques Wunenburger, da Faculdade de Filosofia da Universidade de Lyon, inaugura a abertura de Anos 90 à publicação de artigos em espanhol, com alteração de nossas normas editorais. Tal procedimento apenas consolida o intercâmbio já existente entre nosso programa de Pós-Graduação e os pesquisadores da América espanhola. Em breves palavras, Francisco Marshall apresenta ao leitor o campo de discussão que aproximou Bauzá de Wunenburger.

Por fim, contamos com duas resenhas, uma de Diogo da Silva Roiz sobre a coletânea Fontes Históricas, e outra de Carla Rodeghero sobre a biografia de Jango, escrita por Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes.

A elaboração deste número contou com a colaboração de mais de vinte pareceristas, cujo trabalho anônimo e generoso nós agradecemos.

Referências

ALBERTI, Verena. História Oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990.

______. Histórias dentro da História. In: PINSKI, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 155-202.

LE GOFF, Jacques. História e Memória, 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.

PORTELLI, Alessandro. The Peculiarities of Oral History. History Workshop, n. 12, p. 96-107, 1981.

THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. 1.

Regina Weber – Professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS. Editora de Anos 90.

WEBER, Regina. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 26, dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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África-Brasil / Anos 90 / 2008


Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, jul., 2008. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Projeto Memória da Administração do Estado de Minas Gerais (1889-1945) / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2008

República e modernidade em Minas

O presente Dossiê é fruto de mais uma aproximação entre duas instituições que, com orgulho, têm contribuído para o desenvolvimento científico e cultural do Brasil. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desde 2001, implementa o Projeto República: núcleo de pesquisa, documentação e memória. O Arquivo Público Mineiro (APM), responsável pelo mais importante acervo documental referente à história mineira, desenvolve, desde 2005, o Projeto Memória da Administração do Estado de Minas Gerais (1889-1945). Leia Mais

História, tempo e memória / Estudos Ibero-Americanos / 2006

Colocamos à disposição dos leitores um número especial de Estudos Ibero-Americanos que trata de História, tempo e memória. Esses temas representam um domínio de estudos muito vasto em que se interceptam diferentes caminhos de análise, isto é, situa-se no cruzamento de diversas vias da pesquisa histórica. A história das idéias, como uma via de pesquisa, permite observar a ressonância da propagação das idéias sobre o tempo e a memória na cultura ocidental. Embora as perguntas sobre essas questões se constituam como complexidades perenes, a forma de respondê-las vem se modificando sem, no entanto, haver respostas conclusivas, o que permite novas pesquisas. Ao “aproximar” o passado e o presente, as experiências existentes no âmbito acadêmico possibilitaram realizar, no Programa de Pós-Graduação em História, um ciclo de conferências sobre História, tempo e memória objetivando ampliar a discussão que embora povoe desde um passado bastante distante os debates, o mesmo se presentifica e se torna cada vez mais importante para os historiadores.

Os artigos reunidos neste volume cruzam diversas perspectivas, apresentam olhares vários, propõem maneiras diferentes de analisar e de compreender o encontro entre o texto e seus autores. Fernando Catroga, através da história dos conceitos, propõe investigar a idéia de História como mestra da vida, desde os seus primórdios com Cícero – historia magistra vitae – até o mundo contemporâneo, quando a História passa por uma crise de sentido, crise que legitima a pergunta pela História como mestra da vida. Wolfgang Heuer relata a utilização da memória pela História e nos remete à questão da confiabilidade, e, com isso, “ao voto de confiança” (Ricoeur) à testemunha. Em contraste com as formas usuais de tentar impedir ou impor a memória, o interesse público contemporâneo por depoimentos pessoais tem levado a vários casos de falsificação da memória, entre os quais o mais famoso é a história de “Wilkomirski”. O artigo se dedica às formas atuais de auto-vitimização, procurando entender por que a maioria dos historiadores falhou em reconhecer a falsificação, por que mentir traz mais vantagens do que dizer a verdade, e qual a função do julgamento crítico como pré-requisito para a confiabilidade. Marion Brepohl de Magalhães apresenta uma proposta de refletir sobre o papel da memória e da História em nossa cultura contemporânea, através de uma aproximação ao pensamento de Hannah Arendt e de Walter Benjamin. Salo de Carvalho avalia as práticas punitivas como mnemotécnicas, aproximando a perspectiva filosófica de Nietzsche e a teoria agnóstica da pena. A hipótese desenvolvida na investigação é de que a ritualização e institucionalização dos castigos, através dos primitivos procedimentos penais, atuam como mecanismos de manutenção da memória dos delitos, da “culpa moral” e do “sentimento de dever”. Carlos Henrique Armani traz um estudo ao pensamento de alguns intelectuais que viveram durante a Primeira Guerra Mundial e testemunharam um período histórico profundamente conturbado pela violência e morte – a experiência da temporalidade. Marçal de Menezes Paredes focaliza a polêmica entre dois intelectuais que marcaram a cena cultural luso-brasileira: Silvio Romero e Teófilo Braga. O estudo da intensidade, abrangência e extensão dessa polêmica possibilita o delineamento dos termos nos quais se davam as trocas, debates e críticas culturais entre Brasil e Portugal no final do século XIX, além de possibilitar uma reflexão sobre a dimensão escalar da nação como critério histórico utilizado na compreensão de interfaces culturais, imagens que funcionam como instrumentos taxonômicos de memórias nacionais.

Ruth M. Chittó Gauer – Organizadora

GAUER, Ruth M. Chittó. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, Edição Especial, v.32, n. 2, 2006. Acessar publicação original [DR]

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Relações internacionais / Estudos Ibero-Americanos / 2008

SILVEIRA Helder Gordim da (Org d), RECKZIEGEL Ana Luiza Setti (Org d), SVARTMANN Eduardo Munhoz (Org d), Relações internacionais / Estudos Ibero-Americanos / 2008, Relações Internacionais (d), Estudos Ibero-Americanos (EId)

Apresentamos neste número de Estudos Ibero-Americanos um dossiê reunindo artigos de autores brasileiros, uruguaios e argentinos acerca das relações internacionais e políticas externas destes países nos contextos hemisférico e global.

Os artigos privilegiam os campos econômico, político e estratégico daquelas relações, vistas em cenários bilaterais e multilaterais, envolvendo, direta ou indiretamente, a inserção da sub-região sul-americana na sociedade internacional, em diferentes conjunturas históricas nos séculos XIX e XX, e considerando o papel desempenhado pelos centros hegemônicos britânico e norte-americano naquelas conjunturas.

As temáticas variam de abordagens teóricas e conceituais gerais a análises de aspectos históricos específicos, os quais, entretanto, nunca deixam de ser notavelmente elucidativos ao representarem a concretização de tendências históricas conjunturais e mesmo estruturais da inserção internacional do Brasil, da Argentina, do Uruguai e dos demais países da sub-região.

Desejamos a todos uma excelente leitura.

Helder Gordim da Silveira

Ana Luiza Setti Reckziegel

Eduardo Munhoz Svartmann

Organizadores desta edição


SILVEIRA, Helder Gordim da; RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti; SVARTMANN, Eduardo Munhoz. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v.34, n. 1, jun., 2008. Acessar publicação original [DR]

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Imprensa e Memória / História & Perspectivas / 2008

Imprensa e Memórias é o tema selecionado pela revista História & Perspectivas para compor o seu número 39. Ao longo desses anos, a revista tem enfrentado o desafio de propor reflexões não apenas no âmbito da História, mas de forma ampla no das Ciências Humanas.

Neste presente número, temos a articulação entre imprensa e memórias como um campo rico de investigação e debate. No Brasil, os estudos sobre a imprensa não se circunscrevem aos pesquisadores da área da comunicação e têm avançado em suas problematizações, contando com a importante contribuição de historiadores, cientistas sociais e tantos outros interessados em desvendar as diferentes formas de imprensa, seus complexos caminhos e espaços de composição. Historiadores que trabalham numa perspectiva de fazer uma história da imprensa se somam a outros que, para além desta preocupação, discutem os processos de produção, expansão e instituição da imprensa nas suas múltiplas historicidades, enfrentando diversas linguagens e narrativas que compõem o seu universo.

Tais perspectivas apontam para a imprensa como espaço amplo de produção e circulação de jornais, revistas, livros, materiais impressos e não impressos e, porque não dizer, um lastro de produção virtual que conquista ordem e sentido no mundo contemporâneo da comunicação. As possibilidades de pesquisas proporcionadas por esse campo podem nos colocar diante de muitas histórias: história da imprensa, do livro, do jornal, da leitura, da instrução, e assim podemos seguir enumerando. Histórias que também desvendem seus produtores, seus sujeitos e redes de relações sociais como parte constitutiva da vida em sociedade.

Importante, nesta trajetória, é considerar a articulação entre imprensa e memórias enquanto relação necessária à reflexão de todos nós que lidamos com esses materiais. Como discutir a experiência de produção de memórias dentro do vasto empreendimento da imprensa? De que modo enfrentar sua materialidade, suas linguagens, sua força social? Explorar a memória, nesse sentido, pode tornar possível a construção de uma visibilidade para sujeitos e projetos distintos.

Os artigos que compõem o dossiê apresentam caminhos de reflexão para esses estudos. Seja ao discutir os sentidos de comemoração por ocasião dos 200 anos de imprensa, para pensar no que existe por detrás dos festejos e discursos laudatórios e propor um olhar mais amplo e crítico dos estudiosos para o presente e para as posições que assumimos historiográfica e historicamente em relação aos marcos históricos; seja na investigação da constituição de uma imprensa feita por trabalhadores, para discutir os significados de uma imprensa popular ou ainda compreender os sentidos da experiência desses trabalhadores na cidade. Tudo isso adverte para a necessidade de refletir sobre a existência de múltiplas experiências de imprensa, constituindo força em diferentes espaços de ação, para desvendar os vários circuitos, a formação de redes de comunicação, os caminhos dos livros, da literatura, etc., buscando provocar a construção de novos horizontes de pesquisa em meio às interrogações sobre o tema.

Para além da temática central deste número, a revista publica tradução de artigo de Alessandro Portelli, analisando diferentes maneiras de abordar os fatos históricos, as dos historiadores e as dos narradores sociais, buscando explicar os significados dessas divergências e artigos de pesquisadores de diversas instituições do país, que abordam temas variados que trazem questões metodológicas importantes, como os significados de nação, formação de identidades, história e política.

Na sessão de resenhas são apresentadas duas publicações, onde, na primeira, os desafios de refletir sobre diversidade, políticas públicas e cidadania cultural estão no foco das análises sobre o Apartheid e, na segunda, esse foco se situa nas relações entre memórias, histórias, culturas e linguagens.

Essas investigações permitem entrar na discussão dos vários temas da vida social, dos enfrentamentos cotidianos que circulam entre os jornais, as revistas, a literatura. Permitem perguntar sobre os modos como lidamos com cada conjunto documental, como colocamos as questões para o presente pelo diálogo entre pesquisadores e materiais de pesquisa e para nós mesmos enquanto historiadores e pesquisadores preocupados com as mais variadas realidades. Ao apresentar diferentes percursos de pesquisa, indicados pelas escolhas e maneiras de lidar com as mais variadas fontes e perspectivas de História, para além de fazer circular as idéias, História & Perspectivas lança o desafio do debate.

Conselho Editorial


Imprensa e Memória. História & Perspectivas, Uberlândia, v.1, n.39, 2008.

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Cidade e Memória / Esboços / 2004

Apresentamos aos leitores e pesquisadores mais um número da Revista Esboços que se constituiu no resultado de uni trabalho conjunto de alunos e professores do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC. Nesse número estão publicados artigos, entrevistas e traduções de textos que foram objeto de reflexão e debates no Programa durante o Seminário de Pesquisa que transcorreu no ano de 2002. Nesse Seminário teve lugar uma série de leituras e discussões teóricas que resultaram na presente publicação. A partir também do Seminário os alunos do Programa refletiram acerca dos diferentes objetos de suas pesquisas, apresentando agora ao público um resultado parcial do seu envolvimento com as fontes historiográficas e com a teoria e metodologia da história. Dessa experiência com o fazer do historiador resultaram os “Esboços” aqui publicados. As resenhas apresentadas no final dessa publicação se referem às bibliografias discutidas e amadurecidas nas discussões levadas a termo nos Seminários dos cursos durante o ano 2003.

Quanto à temática do Dossiê, as possibilidades de abordar as conexões entre cidade e memória são múltiplas e variadas e, nesse número da Revista, são apresentadas algumas trajetórias de pesquisa que entrecruzam estes temas. Como a “Esboços” é uma Revista ligada à Pós-Graduação em História, privilegiou-se uni procedimento próprio de Historiador, embora os temas atravessem discussões compartilhadas com áreas próximas à da história. Neste sentido as conexões entre cidade e memória se definem no campo da história, evocando imagens que suscitam possibilidades de abordagens historiográficas.

A historiadora Margarida de Souza Neves problematizou a memória a partir do “comemorar” que teve lugar no centenário de Cecilia Meireles. Naquele momento, argumenta a autora, ao historiador caberia a tarefa não de situar o homenageado num pedestal inatingível, mas de dar visibilidade às tensões e conflitos vivenciados por Cecília Meireles, especialmente aqueles que envolveram o campo da educação. A autora propõe tanto uma distinção entre memória e história bem como uma abordagem dos livros de memórias, das cartas privadas, e dos demais escritos íntimos que o historiador poderá lançar mão como fontes. Fontes essas tomadas enquanto versões, e não como fatos, enquanto construções do que foi vivido e de si mesmo.

Na temática discutida por Sandra Jatahy Pesavento deparamos com o olhar do historiador diante de unia superposição de textos escritos que se referem ao passado. Novos escritos ocultam os antigos, que deixam traços, vestígios, que podem ser recuperados. O historiador lida com tais possibilidades de descoberta, não só na esfera da escrita, mas também com marcas acumuladas no plano das lembranças, das recordações. Recuperar pelo inconsciente e evocar experiências e sensações adormecidas constituem possibilidades de lidar com a memória. A cidade foi pensada aqui a partir de uma sucessão de camadas superpostas pelo tempo, unia Cidade contendo outras cidades, num espaço marcado por trajetórias distintas, por rastros do que é arcaico e do que é moderno, por rupturas e continuidades entre passado e presente. Dessa superposição espacial e temporal emerge a possibilidade de unia leitura historio gráfica da cidade que  contemple diferentes temporalidades e espacialidades, e de unia interpretação histórica muito próxima daquilo que poderia ser chamado tanto de costura como de bordado, montagem, colagem ou urdidura. Nesses procedimentos, detalhes a princípio tomados na sua pequenez ou banalidade poderão ser resignificados, adquirindo, dessa forma, dimensões distintas.

O cruzamento entre diferentes espaços na cidade foi problematizado por Rosângela Cherem em Desterro nos finais do XIX, a partir da consideração de que a dinâmica dos pedestres nas ruas e seu movimento cotidiano tende a aproximar o que está longe e distanciar o que está perto. A memória da cidade tem unia dimensão espacial, está ligada a uma certa experiência na paisagem urbana. Assim se configurava a Ilha de Santa Catarina naqueles tempos: isolada, mas na busca de formas de inserção nos territórios do moderno. O olhar das pessoas de Desterro buscava um outro lugar: desejava o externo, o fora da Ilha, afirma Rosângela. Parece que esse movimento era muito próprio das formas de sensibilidade e percepção daquelas praias (ou Ilha). Era parte de uma dinâmica própria das dicotomias e separações construídas pela linguagem na modernidade. Da pobreza lançava-se uni olhar para a riqueza, da falta desejava-se a abundância, do mundo primitivo almejava-se o civilizado, do tradicional imaginava-se o industrializado. A autora percorre esse olhar “desejante” dos habitantes urbanos de Desterro: intenções de superação latejavam, provenientes de lugares como da praça, do hospital, do cemitério, do teatro e de outros lugares de memória.

Finalmente a Revista traz em sua seção “Tradução” um texto que, embora não tratando especificamente da temática do Dossiê, traz para o debate unia questão que até certo ponto vincula-se às preocupações de Rosângela Cherem ao tratar de modernidade e de século XIX; e de Margarida de Sousa Neves, ao falar em educação na obra de Cecilia Meirelles. Não estamos agora mais em Desterro, nem no Brasil, mas na França do século XIX, em meio a uni debate travado no interior da produção literária. Uni outro lugar onde circulava, no momento de afirmação da República Francesa ou da “Belle Époque”, unia “modernidade” educativa, conforme a autora, a francesa Gabrielle Houbre. Essas preocupações educativas que também estiveram presentes entre os intelectuais brasileiros do início do século XX evidenciaram-se na formação das moças francesas. Essas “ex-demoiselles”, que agora passaram a ser reconhecidas como “estudantes”, deixam pouco a pouco de atender ao antigo padrão de inocência, virgindade, religiosidade e casamento, próprios da “tutela”; para passar a expressar comportamentos “modernos” como autodeterminação, experiências diversas e relações de flerte com o sexo masculino.

Que essa apresentação motive a leitura dos textos.

Cynthia Machado Campos

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Memória, Identidade e Historiografia / Textos de História / 2002

Apresentação

Tempo e Memória

A tarefa de assenhorear-se do tempo pela memória, de o inserir na consciência histórica e de dar-lhe um sentido aceitável é uma constante da atividade humana. O agente racional humano busca, ininterruptamente, atribuir sentido ao que faz. Isso ocorre no plano intencional: valores, idéias ou interesses fundamentam e orientam o agir. Esse plano antecede, ao menos logicamente, o agir concreto. No plano interpretativo, existe a mesma preocupação com o estabelecimento de um sentido plausível para o agir constatado pela pesquisa. Em ambos os casos, dá-se o esforço por construir um tempo histórico em que a existência e a ação tenham sentido e produzam sentido. Esse sentido atribuído à memória histórica ou construído para ela desempenha um papel decisivo para a identidade de cada um, do grupo a que pertence e da sociedade que forma. Origem cultural, estratificação social, sistema de produção, linguagem, religião, organização e hierarquia, e tantos outros elementos consagrados nesse processo são definidos, delimitados, investigados, interpretados, estruturados e articulados.

A memória e a identidade estabelecem uma encruzilhada em que as diversas perspectivas do senso comum como do conhecimento científico se encontram. História, psicologia, literatura, economia, sociologia, filosofia, antropologia e tantas mais concorrem, umas e outras, para que se constitua um feixe de fatores em cuja intersecção se reconhece o sujeito. Nesse ponto focai, memória individual, tempo coletivo e espaço social se associam para formar a cultura histórica com a qual a identidade se forja, consolida, atua e reproduz. A memória pessoal, associada à memória coletiva inscrita na historicidade do espaço social em que cada indivíduo emerge, marca não apenas a identidade particular do sujeito agente, mas também a coletividade identitária com que cada um se depara e que cada um quer assumir, modificar, transformar e mesmo rejeitar. Está-se aqui inserido em uma dinâmica que se pode chamar, com Jõrn Rüsen, de constante antropológica da cultura histórica. O que significa isso? Tal realidade é a de todos, e a de cada um: a cada instante todos os instantes precisam (ou são, de fato) processados idealmente em um construto significativo que apelidamos “história”. Passado, presente e futuro são fatores da cultura histórica operado pela síntese ativa do agente racional humano como cenário, encontrado e produzido, da vida concreta. Independentemente de essa operação ser efetuada por um “leigo” ou por um “profissional”.

Entender como a memória histórica se compõe e forma, como ela é operada e que efeitos provoca, como ela é entendida e administrada pelos homens de cada tempo e de todos os tempos, é um efeito, no campo da ciência histórica, da dinâmica da história de todos os campos. Como, de que forma e porquê ficam registrados — tirando a obviedade dos documentos e monumentos — pessoas, objetos, acontecimentos? Essa memória histórica, que parece tão personalizada (tão subjetiva, diriam alguns), é forjada também pela experiência coletiva e pelas representações públicas. Meio-ambiente familiar, língua, cultura, meios de comunicação, celebrações e comemorações influenciam, e mesmo marcam, não apenas o quê os indivíduos e as sociedades são, mas certamente também o que foram, o que serão e em que contexto vivem e viverão.

O 19° Congresso Mundial de História realizado em 2000, em Oslo, dedicou um amplo espaço de discussão ao tema da memória e da consciência histórica. Organizados a cada cinco anos pelo Comitê Internacional de Ciências Históricas, os congressos mundiais reúnem expressivo número de historiadores de todo o mundo, representando a suma da historiografia e de seus avanços. Foi-me dado organizar um tema especializado sobre “Memória e Identidade Coletiva: como as sociedades constróem e administram seu passado.” A vinculação da memória à representação coletiva da identidade sugere a perspectiva de uma percepção social da inserção das pessoas no plano da identidade. Evitar-se-ia, por conseguinte, a tentação de deslizar para o campo da subjetividade individual como eixo de referência, embora não se a possa excluir. A segunda parte do título apresenta à reflexão a questão ativa, mutante, dos processos sociais de elaboração da consciência histórica.

A intenção foi a de provocar o debate em torno do aspecto empírico e ficcional subsumidos nos sistemas de memória — pública e privada — das sociedades, e acerca da sua gestão no quotidiano.

Para permitir um amplo leque de alternativas de análise, o tema foi tratado por especialistas de diversas procedências e de diferentes opções teórico-metodológicas. Brasil (Estevão de Rezende Martins), Argentina (Dora Schwarzstein), Alemanha (Jórn Rüsen), Israel (Moshe Zimmerman), Espanha (Joseba Agirreazkuenaga), índia (Shradda Sahasrabuddhe), Austrália (Joan Beaumont), Bélgica (Chantal Kesteloot), França (Henry Rousso), Holanda (Frank Ankersmit) trouxeram sua reflexões a um público de mais de 500 pessoas que lotou o auditório em que teve lugar o debate, na Universidade de Oslo. A Universidade de Brasília, por seu Programa de Pós-Graduação em História, traz agora a lume, na primeira parte deste volume, o conjunto dos textos preparados pelos participantes, oferecendo essas contribuições a um círculo ainda mais largo de interessados e estudiosos.

As questões de fundo suscitadas e debatidas desde Oslo vieram também à discussão no 21° Simpósio Nacional de História, organizado pela Associação Nacional de História (ANPUH), na Universidade Federal Fluminense, em julho de 2001. O papel da organização mental da consciência histórica, sob a forma da narrativa historiográfica e de suas variantes ao longo do tempo foi objeto de debates intensos, com forte participação. Os textos apresentados à reflexão por Estevão de Rezende Martins (Brasília), José Carlos Reis (Belo Horizonte), Astor A. Diehl (Passo Fundo) e Jurandir Malerba (então João Pessoa, hoje Washington), estão reunidos na segunda parte deste volume, consolidando mais uma etapa da contribuição brasileira para a análise e a crítica teórica e historiográfica contemporâneas. A inserção internacional da produção historiográfica brasileira recebe, com o presente volume, um significativo campo de ressonância. Essa difusão é assim apoiada pela iniciativa do Programa de Mestrado e Doutorado em História da Universidade de Brasília, de publicar este 10° volume da “Textos de História” coligindo essas contribuições.

Estevão Chaves de Rezende Martins

Organizador

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Memória, história, historiografia: ensino de história / Revista Brasileira de História / 1992-1993

[Memória, história, historiografia: ensino de história]. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.13, n.25-26, set 1992 / ago., 1993. Acessar dossiê [DR]