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Memória, arquivos e direitos / História & Perspectivas / 2016
Atualmente, vivemos, hoje, no Brasil, momentos que nos impelem a insistir na pergunta sobre que projeto social queremos para nossa sociedade. Parece-nos inadiável retomarmos as reflexões sobre o que é viver em uma democracia, sobre qual seu inverso, sobre como cultivar valores democráticos e valores para a construção e a conquista de direitos sociais.
No Brasil, e em diferentes países, vimos emergir grupos e lutas que reivindicam o direito à memória, enfatizando que, enquanto prática social, deve ser perguntada e investigada para compreendermos campos e percursos de disputa pela história. Essas experiências vêm conquistando vocalização importante nos espaços de debate e de pesquisa, ao passo que ganham formas como conquista social. Muitos historiadores, arquivistas e outros cientistas sociais, em grande medida provocados por estas demandas, têm se dedicado a pensar o direito à memória e seus desdobramentos temáticos.
As articulações entre memória, arquivos e direitos foram a base para a proposição deste dossiê que a Revista História & Perspectivas ora apresenta. O interesse em discutir e aprofundar diferentes dimensões da memória como direito e em explorar as políticas de arquivo e documentação na perspectiva dos direitos humanos motivou esse processo.
Nessa perspectiva, importava trazer para reflexão as análises que tratassem sobre memória, documentação e direitos humanos, sobre as políticas de memória e sua força na afirmação de direitos, sobre os arquivos e centros de documentação compreendidos como lugares de memória e espaços de afirmação de direitos. No âmbito das relações entre ações e políticas de patrimônio, importava considerar o patrimônio documental como dimensão explorada pelos historiadores no processo de luta cultural, de luta pela afirmação e conquista de direitos, incluindo a preservação documental e o direito à memória. O presente dossiê é composto por cinco artigos que destacam a articulação entre memória, arquivo e direitos.
O primeiro artigo, de Ricard Vinyes, “Memoria, democracia y gestión”, nos provoca a pensar nos significados dessas dimensões que formam o título do artigo. Problematiza que políticas públicas de memória devem ser tratadas como condicionantes da qualidade do sistema democrático e argumenta sobre a importância de o Estado garantir, como direito civil, o exercício da memória de passados políticos traumáticos por constituir um patrimônio ético cuja proteção e conservação enriquecem a cidadania.
O segundo artigo, “Direito à memória e patrimônio documental”, de Heloisa de Faria Cruz, aborda as relações entre a historicidade das lutas pelo direito à memória no Brasil, a identificação, a preservação e a patrimonialização de conjuntos documentais relativos à história do Brasil contemporâneo e sua vinculação a acervos de direitos humanos. A autora destaca a força de extensão de uma discussão sobre o direito à memória e sobre a preservação do patrimônio histórico para além dos espaços acadêmicos, indicando a cidadania e as políticas públicas de memória como campo fundamental de disputa, construção de novos espaços de direitos e conquistas sociais.
O artigo “Caminhos para autodeclaração: a luta por reconhecimento de mulheres quilombolas de Santa Tereza do Matupiri, na fronteira Amazonas-Pará” de Renan Albuquerque Rodrigues, João Marinho da Rocha e José Vicente de Souza Aguiar, toma por base diferentes estudos acerca da produção do conhecimento na Amazônia e sobre a Amazônia, junto a memórias de lutas de mulheres quilombolas, para analisar comunidades negras do leste do Amazonas, com destaque para as mulheres como lideranças na luta por direitos e memória na perspectiva da autodeclaração identitária.
“Conflitos pela memória no semiárido cearense: relações entre as comunidades rurais do Tabuleiro de Russas e o DNOCS”, artigo de Mário Martins Viana Júnior e Diego Gadelha de Almeida, analisa os processos de construção de memória investidos por ação do Estado, aqui representado pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. Essa análise se conjuga ao estudo do processo de construção, em seus conflitos e contradições, de memórias de comunidades rurais da localidade Tabuleiro de Russas, no Ceará, atingidas por políticas de modernização no campo, em fins do século XX e no início do XXI.
O último texto que compõe o dossiê, “Imagens para lembrar: o caso das fotografias do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo – MJDH (1984-1986)”, de Francisca Ferreira Michelone e Roberta Pinto Medeiros, empreende discussão em torno da relação entre memória, fotografia e direitos humanos, explorando fotografias que integram o acervo do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, proposto, organizado e mantido pela Organização Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).
Compõem ainda esse número da revista cinco artigos e uma resenha que estão em outras duas seções, versando sobre temas diversos. Merece destaque, na última seção, a entrevista realizada com a Professora Cláudia Sapag Ricci, que aborda questões relativas ao texto preliminar da Base Nacional Comum Curricular da disciplina de História.
No que concerne aos procedimentos de escrita dos artigos do dossiê, destacamos o desafio enfrentado por todos os autores em abordar a memória, situando-a no tempo, no espaço e na conjuntura social, para indagar seus significados enquanto prática social e para construir sentidos históricos na relação com cultura, história e cidadania. Outro desafio foi o da atenção permanente para a relação entre pesquisa, acervos documentais e a sociedade onde os registros da vida social e política se constituem, ganham importância ou são silenciados, num processo que, longe de ser natural e linear, é composto pelas marcas de conflitos e pelas contradições que também pontuam a vida em sociedade. A relação que se assinala entre história e memória indica a possibilidade de reconstrução de práticas por meio da abordagem e da problematização dos filtros que traduzam, revelem ou mesmo pretendam ocultar essas contradições e esses conflitos.
Lembramos a reflexão de Déa Fenelon sobre historiografia, pesquisa e a necessária atenção para as pulsações que brotam da própria realidade. No horizonte de conceitos e de áreas por onde nos movemos constam acervos documentais e linguagens que contribuem para definir vigorosas teias em torno dos conceitos de memória e cultura. Atentamos para a noção de que o vivido e o narrado precisam ser pensados, trabalhados enquanto criação de registros e produção de sentidos das relações sociais – de dominação, de subordinação, de conciliação ou de resistência. O que nos faz valorizar a reflexão sobre símbolos, valores, meios que enunciam, forjam, preservam a memória de grupos sociais diversos, para entender as maneiras pelas quais se produzem e também os usos que deles se faz no jogo de perpetuação de efeitos de verdade. Um trabalho acadêmico, mas, sobretudo, um trabalho político.
Heloisa de Faria Cruz
Marta Emisia Jacinto Barbosa
CRUZ, Heloisa de Faria; BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Memória, arquivos e direitos. História & Perspectivas, Uberlândia, v.29, n.54, 2016. Acessar publicação original [DR].