Medo, reverência, terror: Quatro ensaios de iconografia política – GINZBURG (FH)

GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Resenha de: LINO, Raphael Cesar. Faces da História, Assis, v.3, n.1, p.211-215, jan./jun., 2016.

O historiador italiano Carlo Ginzburg, nascido no ano de 1939, em Turim, é uma referência indispensável dentro dos estudos de história cultural e reconhecido por seus trabalhos sobre crenças populares, heresias e processos inquisitoriais, sendo muitas vezes associado ao surgimento da micro-história, especialmente devido à publicação do livro O queijo e os vermes (1976) e por sua participação na coleção Microstorie, publicada na Itália entre os anos de 1981 e 1993. No entanto, sua produção é bastante eclética no que tange à sua autoria sobre muitas reflexões teóricas e metodológicas, além de trabalhos relacionados à História da Arte.

A obra aqui apresentada, Medo, reverência, terror: quatro ensaios de iconografia política (2014) traz a marca de uma das principais características da produção intelectual de Ginzburg: ser um historiador da inovação, da experimentação. Seu estilo de pesquisa e escrita foi o que Henrique Lima conceituou como método de “deslocamento”, que consiste na transferência de questionamentos e ferramentas de um lugar ao outro, “filologia textual aplicada a textos não literários, problemas de História Social aplicados à História da Arte, análise iconológica recolocada diante dos mitos, morfologia empregada para análise de materiais históricos” (LIMA, 2006, p. 281).

O livro é composto de quatro capítulos independentes, que, em conjunto, se preocupam em evidenciar a conexão entre a produção iconográfica e a política, o que tampouco quer dizer que uma responderia à outra mecanicamente. O destaque para este trabalho é justamente evitar este tipo de relação causal. A análise é construída a partir do estudo das trajetórias individuais, das redes de relações pessoais, bem como do conjunto de referências e escolhas que se constituem e precedem as iconografias.

O primeiro capítulo, Medo, reverência, terror: reler Hobbes hoje, consiste em uma análise de Thomas Hobbes, partindo do livro O Leviatã e sua ilustração mais conhecida2.

Na interpretação de Ginzburg, o pensamento hobbesiano se baseia na constatação de que o medo, juntamente com a sujeição, legitimado pela religião cristã, são os fatoreschave para a formação do Estado. O desenvolvimento dessa afirmação é uma busca na trajetória intelectual e nas vivências pessoais de Hobbes.

Dessa forma, as obras De Cive e, posteriormente, O Leviatã, não buscam somente esboçar uma teoria política, são também resultado da experiência vivenciada em seu contexto histórico. Ao mesmo tempo em que assistia a disputa entre o rei e o parlamento Inglês, Hobbes se exilou na França, em meados do século XVII, após o início da Revolução Inglesa e foi nessa época em que realizou uma tradução de A guerra do Peloponeso de Tucídides.

Em uma das passagens deste trabalho, Hobbes concluiu que o medo dos deuses guiava as leis e os limites da sociedade grega. Com a proliferação da peste em Atenas este medo perdera seu sentido e, desse modo, também toda a coesão social. Na sociedade ocidental, o medo de seu semelhante obriga os homens a cederem seus direitos naturais ao monarca3. A ênfase no medo é colocada em evidência por Ginzburg por um desvio de Hobbes em sua tradução de Tucídides: apeirgein (em grego) “manter sob controle” é transformado em to awe (em inglês) – “amedrontar”.

Ao desenvolver esta teoria, Hobbes realizava uma variação de vocabulário, o que quer dizer que suas leituras foram readaptadas, palavras foram traduzidas com um sentido distinto daquele que teriam em outros idiomas, fato que, para Ginzburg, não tem outra explicação senão o de transformar o medo em algo útil. Hobbes faz dele a própria base do Estado.

Ginzburg finaliza o capítulo estabelecendo uma relação com a geopolítica atual, em que as disputas entre os Estados se assemelham ao estado natural do homem, e, na busca pela hegemonia, medo e terror são duas armas utilizadas amplamente nessa disputa, com objetivos hobbesianos como a submissão e renúncia às liberdades individuais, criando um mundo cada vez mais globalmente controlado.

O segundo capítulo, David, Marat: Arte, política, religião, trata sobre uma análise do quadro Marat em seu último suspiro, do pintor francês Jacques-Louis David (1793).

Não é uma descrição feita a partir do ponto de vista artístico, mas das correspondências políticas com as quais a obra dialoga, pois foi elaborada em um momento decisivo da república proclamada na Revolução Francesa.

Como sabemos, a Revolução foi uma tentativa de ruptura com o Antigo Regime, contra a monarquia e contra o cristianismo. A ruptura com a primeira foi decidida na guilhotina, no caso da religião foram elaborados um conjunto de novos símbolos “republicanos” para substituí-la.

Marat, assassinado e retratado, foi visto como um mártir da República, mas permeado por elementos da tradição cristã. Por exemplo, seus objetos de trabalho, que foram expostos como relíquias sagradas, assim como disputa pela posse de seu coração, retirado de seu corpo antes de ser sepultado, criaram um verdadeiro culto a Marat. Este descompasso entre as intenções e as ações foi comentado por Ginzburg: “Marat falava numa língua clássica, mas com sotaque cristão” (GINZBURG, 2014, p. 44).

David teve uma carreira política dentro da revolução, fora deputado, secretário e depois presidente da Convenção. Ao mesmo tempo, sua carreira artística foi impulsionada, tornando-se uma espécie de cenógrafo político. Seu quadro em homenagem a Marat foi um ato político e com responsabilidades políticas. Obra esta que acabou considerada como marginal no decorrer dos acontecimentos na França naqueles anos, e que, mesmo anos depois da morte de David (1825), continuou vista como fruto dos excessos do Terror.

Ginzburg procura desvendar a história do quadro pelo conjunto de influências artísticas que David acumulara em sua formação e em sua vida. Uma obra anterior a Marat teria semelhanças inegáveis com o quadro francês, Stanislas Kostka, de Pierre Legros (sem data). David a teria conhecido durante seus anos de formação artística, em Roma (entre 1775 e 1778). Stanislas teria elementos indiscutivelmente similares a Marat, a posição do corpo, as mãos, o sorriso dado na hora da morte.

Além desta constatação, entretecem tradições no quadro de David: a clássica greco-romana e a cristã. Esta escolha para representar um mártir republicano seria inconciliável com o ideal de república, o cristianismo era considerado propício à tirania.

A derrubada da monarquia, sustentada pelo direito divino, necessitava de legitimidade e invadia a esfera do sagrado, até então monopolizado pela religião.

Finalizando esta passagem, do mesmo modo que a religião se apropriava dos mais variados elementos para se transformar e assim sobreviver, a arte também se apropriava de outros elementos, mas com o objetivo de criar algo oposto. Marat ilustrava essa tendência.

No terceiro capítulo, Seu país precisa de você: Um estudo de caso em iconografia política, Ginzburg se utiliza do conceito do historiador alemão Aby Warburg, “fórmulas de emoções” (Pathosformeln, em alemão), para pensar a iconografia, cujo foco é a representação de um olhar que cria a impressão de acompanhar o espectador a partir de qualquer ângulo.

O ponto de partida deste capítulo é o cartaz inglês de recrutamento feito durante a Primeira Guerra Mundial, que trazia o General Lord Kitchener estampado, com seu bigode espesso e que, apontando imperativamente com sua mão direita, convocava os jovens a se alistarem como voluntários no exército. Expectadores contemporâneos ao cartaz dão uma percepção sobre como se sentiam observados: “de qualquer ângulo que se observassem, os olhos se encontravam aos do espectador e nunca o deixavam” (DAVRAY, H.D. 1962, p. 55 apud GINZBURG, 2014, p. 77).

Ginzburg traça uma digressão histórica, remontando alguns comentários artísticos sobre a representação de rostos, como, por exemplo, Alexandre, o Grande, ou os santos na Idade Média. O chamado de Kitchener seria uma versão atualizada e contextualizada do gesto de Jesus nas pinturas medievais, cujo efeito do olhar se baseia na mesma técnica de representação, fazendo um chamado religioso. No cartaz inglês, o chamado seria às armas, evocando autoridade e submissão. Ademais, o cartaz de recrutamento é fortalecido pela linguagem publicitária, difundindo numericamente o chamado de general aos ingleses.

Biógrafos do general associam sua imagem ao Grande Irmão de George Orwell (1949). Tal referência não é despropositada, pois a descrição de Orwell sobre a imagem do Grande Irmão traz uma frase próxima à descrição do referido cartaz: “o grande irmão está de olho em você” (ORWELL, 2009, p.11-12). Como sempre, atento à trajetória biográfica de seus interlocutores, Ginzburg associa à descrição de Orwell a uma possível lembrança de sua infância na Inglaterra, para onde se mudara em 1907. George Orwell publicara aos 11 anos um primeiro poema em um jornal fazendo apelo ao chamado de Kitchener.

Da descrição do quadro de Alexandre, o Grande (montado em um cavalo e segurando um raio – de Zeus) ao Grande Irmão de George Orwell, a imagem como elemento de interferência na realidade e na percepção das pessoas ressurge historicamente.

O último capítulo, A espada e a lâmpada, é uma leitura de Guernica, de Pablo Picasso, elaborada e exibida em 1937 em uma exposição em Paris. Nesta ocasião, a exposição era dominada pela apresentação de obras de arte dos países totalitários, Alemanha, Itália e URSS, marcados pela utilização de elementos clássicos e neoclássicos em suas composições. A arte moderna seria uma contraposição aos regimes totalitários, o que fez da exposição uma arena ideológica.

Guernica era um manifesto contra Franco que na época, liderando o exército insurgente contra a recente república espanhola, com ajuda da Alemanha, bombardeou a cidade espanhola de Guernica. O grande número de fotografias e anotações existentes, feitos durante a pintura, a tornam a mais bem documentada obra de arte do mundo ocidental.

Inicialmente, Picasso escolhera como tema “o pintor e seu modelo”, mas após a notícia sobre o bombardeio de Guernica o artista alterou seu projeto. Os esboços iniciais realizados para a pintura do quadro mostram que quase não houve alterações do primeiro desenho feito por Picasso. Quase. Este quase é enfatizado por Ginzburg, que parte dele para as próximas considerações e pelo estudo dos esboços reconstitui seu desenvolvimento até chegar à obra final. Guernica é analisada segundo uma trajetória evolutiva das opções artísticas do pintor, variando de elementos clássicos a modernos, que se mesclaram na versão final. Processo que envolveu incertezas, explorações e escolhas.

Pela leitura de trabalhos que comentam Picasso, Ginzburg coloca em destaque um comentário pouco conhecido de Marcel Proust, que olhava atentamente as trocas artísticas de Picasso com o francês Cocteau. Havia referências aos gregos nessa relação e que apareciam em alguns esboços iniciais do quadro.

Enquanto os Estados totalitários detinham nas mãos a arte que se utilizava de antigos mitos clássicos em suas composições, Picasso transmutava esses mitos pela sua estética artística, cuja origem seria o irracionalismo que, ao mesmo tempo, distorcia a realidade e permitia novos olhares sobre ela. O mito presente na arte deveria ser retirado do Fascismo e este foi o grande triunfo do pintor espanhol.

Os esboços que anteciparam a elaboração de Guernica permitem entrar no estúdio-laboratório de Picasso. Seguindo suas intuições ao estilo de Morelli, Ginzburg retraça os caminhos da arte neoclássica que se desenvolveu no mundo cristão e ocidental e, por meio de semelhanças e repetições encontra uma série de relações entre diversos pintores: a posição dos corpos, distribuição da imagem e referências a símbolos mitológicos, reconhecendo “citações” de outros artistas em diversas pinturas (GINZBURG, 1989).

Os temas clássicos se repetem na história, como, por exemplo, a representação da morte de Caio Graco (reformador romano), pintada no século XVIII em homenagem a um jacobino guilhotinado por tentar derrubar o Diretório, pintado por Topino-Lebrun (também guilhotinado posteriormente em 1800).

Essa descrição entra como hipótese, mas não conclusiva, das possíveis influências que Picasso teria ao pintar Guernica, especialmente pela presença de Picasso em Paris em 1912 em companhia de Georges Braque. O quadro Estúdio com cabeça de gesso seria a antecipação de Guernica que combinava o cubismo com referências da Antiguidade Clássica.

Guernica foi uma obra de resistência ao fascismo, e, dentro do plano ideológico estabelecido na arena da exposição, marcou bem sua posição, não se sujeitando as inclinações dos países totalitários. O fascismo deveria ser derrotado na esfera das artes, o que remete à Guernica e à arte moderna.

Concluindo esta pequena apresentação do livro, vemos que a relação entre iconografia e política é pensada por diferentes dimensões, centrada na trajetória individual de cada uma, de sua autoria aos seus interlocutores. Estas interlocuções também estão em consonância com a própria marca de Carlo Ginzburg, cuja formação intelectual o faz um historiador capaz de intensos diálogos com diferentes disciplinas.

Medo, reverência, terror é mais um resultado desta característica, que o torna um importante ícone na história da historiografia, especialmente para temas culturais.

Notas

2. A primeira imagem ilustrativa d’O Leviatã foi uma homenagem ao rei Carlos II (GINZBURG, 2014, p.26).

3. O estado natural para Hobbes seria a “luta de todos contra todos”: Bellum omnium contra omnes (GINZBURG, 2014, p. 14).

Referências

GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

______. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais – morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: Escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Raphael Cesar Lino – 1. Mestrando em História – Programa de Pós-graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CNPq. E-mail: rph_lino@yahoo.com.br.

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Medo, reverência, terror: Quatros ensaios de iconografia política – GINZBURG (VH)

GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatros ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 200 p. Tradução de Federico Carotti, Júlio Castañon Guimarães e Joana Angélica d’Avila Melo. RABELO, Elson de Assis. Medo, reverência, terror: Quatros ensaios de iconografia política. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 55, Jan./ Abr. 2015.

Já faz algum tempo que a dimensão visual da história e da vida em sociedade tem chamado a atenção do principal nome do campo conhecido como micro-história, seja na Itália ou fora dela. Depois de seus estudos mais importantes nesse campo, o autor passou a explorar o gênero do ensaio, com a verve da polêmica e da erudição, como se vê nas obras Relações de forçaOlhos de madeiraO fio e os rastros, nas quais Carlo Ginzburg tem apresentado sucessivamente não apenas seu farto conhecimento sobre longos períodos da história do Ocidente, particularmente da Europa, mas tem posto essa erudição em função de problemas históricos instigantes, a partir das possibilidades dadas pelo método indiciário que ele sistematizara em texto hoje clássico.

O ponto de partida que reúne os quatros capítulos do seu mais recente livro, Medo, reverência, terror, originalmente publicados como quatro ensaios independentes, é a temática mais ou menos comum que lhes abrange e que Ginzburg filia ao conceito de Pathosformeln. Lançado pelo historiador da arte alemão Aby Warburg, mestre de uma geração e conhecida referência do autor italiano, o conceito designa as fórmulas históricas de representação das emoções na arte, vazadas na gestualidade corporal ou na expressividade facial dos sujeitos. Mas, desta vez, trata-se de uma releitura, considerando-se que Ginzburg, em Mitos, Emblemas, Sinais, já mapeara o conceito sobre a obra de Warburg.

Como “instrumento analítico”, as Pathosformeln constituem uma noção que “ilumina as raízes antigas de imagens modernas e a maneira como tais raízes foram reelaboradas” (p.12), especialmente sob o signo da ambivalência entre emoções contraditórias. As Pathosformeln informariam a criação visual, mesmo que o próprio artista eventualmente não saiba de onde vêm essas formas que ele emprega. Ao acentuar a tensão entre morfologia e história, que também havia sido abordada antes, Ginzburg, enquanto historiador, testa o conceito em favor da condição histórica das obras de arte, de sua criação e recepção, com ênfase na questão do político e dos temas das três emoções correlatas (medo, reverência, terror) que, embora distintas, teriam se reforçado e sustentado a dominação, a contestação e a memória do poder.

Ricos em imagens, os capítulos têm o mérito de não reduzi-las ao uso ilustrativo, mas convoca-as para a narrativa, chamando o leitor para que veja os indícios privilegiados na abordagem. No entanto, esse exercício chega a ser um tanto exaustivo, dado o volume de vestígios e informações levantados, que pedem, e permitem, mais análise das imagens em si mesmas. Inclusive, no primeiro capítulo, o privilégio não é dado à imagem e sua constituição: o próprio Ginzburg diz que trata, antes, de um caso de Logosformel (“fórmula de ideias”), pois a abordagem sobre os frontispícios de duas edições do Leviatã, de Hobbes, cede espaço à discussão dos conceitos do medo e da reverência, onde são exploradas as possíveis conotações religiosas da construção filosófica do pensador inglês sobre o Estado, contrariando a tradição que o considera já secularizado, e secularizador, da política.

No segundo capítulo, uma das mais famosas pinturas do período revolucionário francês, o Marat em seu último suspiro, de Jacques-Louis David, é confrontada com outras obras de seu tempo e com as formas capturadas indiretamente da religião e que teriam favorecido o surgimento do “culto” a esse personagem político. O terceiro capítulo indaga detalhes do cartaz que trazia o rosto do marechal-de-campo inglês Lord Kitchener, no começo do século XX, que veio a inspirar não apenas o cartaz estadunidense de recrutamento para a guerra com o rosto do Tio Sam, como também vários produtos similares da propaganda política que tiveram por função intimar o espectador. Segundo o historiador, a língua “demótica” da propaganda atualizou um motivo clássico da pintura – aquele do olhar vigilante e do dedo apontado que parecem saltar da tela rumo ao espectador por força da expressão pictórica.

O quarto capítulo, em que Ginzburg mais uma vez visita a obra de Pablo Picasso, depois do ensaio anteriormente publicado sobre Demoiselles d’Avignon, é, sem dúvida, o mais denso, e o que mais chama a atenção dos historiadores interessados nas circunstâncias sociais de elaboração de uma obra de arte. Após nova digressão pelos temas clássicos da pintura das paixões encarnadas nos corpos, temas que de algum modo chegaram a Picasso, Ginzburg olha para a iconosfera e para os impressos que envolviam o pintor, antes e no momento da produção de Guernica, em 1937: a arquitetura, os objetos escultóricos, a imprensa, os textos surrealistas. E o cotejamento com os esboços fotografados do mural ampliam ainda mais esse espectro documental, e colocam a possibilidade de análise das operações de escolha e exclusão do artista, repercutidas na obra acabada e no tecido histórico para o qual ela virá à luz e do qual fará parte.

Pode-se dizer que os ensaios de Ginzburg têm a ver com um momento em que a historiografia tem se preocupado com aquilo que foi chamado por vários nomes, como cultura visual, modos de ver, com a visualização, enfim, do passado – e que não é preocupação exclusiva dos historiadores que privilegiam a abordagem de documentos visuais, mas um ângulo estratégico de questionamento dos vestígios que pode interessar seja aos historiadores da arte, seja aos da mídia, ou aos da política. E isso é indicativo de uma atenção ética, pontuada pelo autor logo no primeiro capítulo, ao assédio exercido atualmente pelas imagens, que, por sua ubiquidade, tornaram-se cada vez mais indissociáveis das nossas práticas de conhecimento, de produção cultural e de inserção na esfera do político. Embora o autor defina critérios próprios de análise e chegue às suas conclusões em função de problemas específicos, é inegável a constatação de que seus textos engrossam a fileira de uma historiografia que tem relacionado o político e a dimensão visual, exemplificada no capítulo sobre poder e protesto do livro de Peter Burke, Testemunha Ocular, ou no outro livro deste sobre Luís XIV, e nas diferentes tradições de estudos que têm relacionado a arte às suas demais implicações na sociedade, e daí podem se incluir, dentre outros, os nomes de importantes historiadores, como o próprio Warburg e seu círculo de Hamburgo e Londres, Pierre Francastel, Svetlana Alpers, Michael Baxandall, Louis Marin e Georges Didi-Huberman, embora Ginzburg se afaste deliberadamente de algumas perspectivas deste último.

Resta que, em que pese a defesa, por Ginzburg, de um método por excelência conjectural, nem sempre ficam claros os trânsitos de perdas e acréscimos das Pathosformeln, o que demandaria estudos de mais fôlego do que os ensaios podem comportar. Mas isso em si é revelador de que o historiador italiano não toma o conceito de Warburg como cartilha mecânica, mas como provocação para que se investiguem questões particulares com rigor de método para tratar os artefatos trabalhados como documentos, como ele demonstra em relação ao circuito social de produção, circulação e, eventualmente, consumo de algumas obras.

Além disso, lembramos que certas vertentes da historiografia brasileira, por vezes genericamente chamada de “história cultural”, acostumaram-se a trabalhar com as emoções e sensibilidades, nem sempre com chaves de leituras como a do medo, mas, em todo caso, com pouca articulação com a questão do político, e pouca exploração da dimensão visual, salvo algumas exceções. Mas se existe nesse tipo de abordagem o risco de só ver os vestígios históricos das emoções naqueles produtos que foram nomeados como o sendo o “sorriso da sociedade” (como a arte, a literatura ou mesmo a publicidade), seria possível pensar na existência, entre os grupos sociais sem escrita e sem o mercado institucionalizado de arte, de formas históricas recorrentes, e que sofrem reinterpretações, na expressão e na representação das emoções? Seus vínculos, cotidianos, insuspeitos, com a política, não constituiriam matéria de interesse para o historiador, sobretudo em espaços, como os que há e houve no Brasil, nos quais a política, seus ritos e seu espetáculo foram durante muito tempo expressos, veiculados e vividos em termos orais, gestuais, costumeiros, cerimoniais, que recorriam também ao ver e à sua historicidade? Por outro lado, a ferramenta conceitual das Pathosformeln serve para o tratamento de outras imagens, aquelas chamadas de “técnicas” pela crítica especializada, como o cinema e a fotografia, que, a depender do circuito social, podem, com efetividade, jogar o papel inequívoco de cristalização e veiculação das paixões políticas?

Para finalizar, entendemos, portanto, que o livro de Ginzburg abre clareiras metodológicas que ultrapassam suas referências predominantemente europeias, sendo útil no sentido de pensar, para outras configurações sociais, uma história política, ou uma história social da arte, ou uma história das sensibilidades, que desbordem seus campos tradicionais, pondo em xeque os engavetamentos – “história cultural”, “história política” etc. -, e enfocando os problemas a partir do cruzamento de abordagens.

Elson de Assis Rabelo – Colegiado de Artes Visuais, Universidade Federal do Vale do São Francisco Av. Antonio Carlos Magalhães, 510, Juazeiro, BA, 48.902-300, Brasil elson_rabelo@hotmail.com.