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Medicalização em psiquiatria – FREITAS; AMARANRE (TES)
FREITAS, Fernando; AMARANRE, Paulo. Medicalização em psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015. 148p. Resenha de: WHITAKER, Robert. Uma leitura crítica da medicalização em psiquiatria. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15, n.1, jan./abr. 2017 .
A psiquiatria moderna tem nos proporcionado uma nova forma de pensar sobre nós mesmos, e nesse curto e fascinante livro, Medicalização em psiquiatria, Fernando Freitas e Paulo Amarante apresentam um conjunto de evidências e argumentos da percepção empobrecida feita sobre nós humanos. Os dois autores também detalham como o atual paradigma de cuidado da psiquiatria é construído sobre ‘ficções’. O livro é concluído com um olhar sobre terapias alternativas promissoras e, como tal, advoga fortemente a necessidade de se repensar os fundamentos do cuidado psiquiátrico.
Se o livro Medicalização em psiquiatria pode ser descrito como uma nova adição à crescente biblioteca internacional de livros de ‘psiquiatria crítica’, é notável que, nesse âmbito, ambos os autores têm posições de liderança dentro do establishment em Saúde Mental.
Paulo Amarante, psiquiatra, é reconhecido por décadas de trabalho e de luta pela reforma da atenção psiquiátrica no Brasil. No final da década de 1980, após ter estudado com Franco Basaglia e outros psiquiatras italianos que desenvolveram o cuidado comunitário em seu país de origem, Amarante militou e colaborou na redação da legislação de saúde mental que tem levado à desinstitucionalização no Brasil. Hoje, ele é o presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), e professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, unidade científica da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), instituição vinculada ao Ministério da Saúde. Fernando Freitas, psicólogo, é ex-diretor da Abrasme e, como Amarante, é professor e pesquisador da Ensp/Fiocruz.
A beleza do livro começa a se tornar evidente no primeiro capítulo, onde ambos proporcionam um contexto filosófico amplo para se entender o que a psiquiatria biológica moderna tem feito. Escrevem sobre a ‘medicalização’ da vida moderna e as consequências que ela tem para nós como indivíduos. É um fenômeno que surgiu no período pós-Segunda Guerra Mundial; e enquanto avanços médicos – como o descobrimento de antibióticos – ajudaram a pôr controle sobre muitas doenças, o crescimento da indústria médica encorajou o cidadão moderno a ver a si próprio através das lentes médicas de ‘o que há de errado comigo’. Isso é particularmente verdadeiro na psiquiatria.
Dessa forma, Freitas e Amarante lembram aos leitores o que está em jogo. Medicalização pode se tornar um meio de controle social, com o indivíduo encorajado a adotar o ‘papel de doente’, o que leva à perda da autonomia individual. Nós somos encorajados a pensar que é ‘anormal’ sofrer, ou experimentar dor em nossas vidas, quando, claro é que, como qualquer busca na literatura irá nos lembrar, o sofrimento é inerente ao ser humano.
No que diz respeito à medicalização de nossas vidas emocionais, ela tem sido alimentada por uma ‘aliança profana’ que foi formada – como os autores apontam – entre a psiquiatria acadêmica e a indústria farmacêutica nos Estados Unidos na década de 1980. As empresas farmacêuticas passaram a contratar psiquiatras de escolas médicas prestigiadas daquele país para servirem como seus consultores, conselheiros e porta-vozes. Tal aliança passou a contar ao público uma narrativa sobre grandes avanços científicos. Pesquisadores haviam descoberto que os transtornos mentais eram ‘doenças cerebrais’ causadas por ‘desequilíbrios químicos’ no cérebro, e que poderiam ser então corrigidas por uma nova geração de drogas psiquiátricas. Com a difusão dessa narrativa para o público, o consumo de drogas psiquiátricas nos Estados Unidos explodiu, e, rapidamente, essa ‘aliança profana’ conseguiu exportá-la para o Brasil e outros países desenvolvidos em todo o mundo.
Freitas e Amarante proporcionam uma desconstrução sucinta dessa narrativa, começando com a crise existencial que por fim levou a Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês) a adotar sua narrativa de ‘modelo baseado na doença’. Nos Estados Unidos, assim como igualmente se passava em muitos outros países, os psiquiatras nos anos 1960 geralmente não eram vistos como ‘médicos de verdade’. Então, no início dos anos 1970, o psicólogo David Rosenhan, da Universidade de Standford, publicou um estudo que publicamente humilhou a profissão.
Rosenhan e outros sete voluntários ‘normais’ se apresentaram em hospitais psiquiátricos, afirmando que ouviam uma voz que dizia ‘vazio’ ou alguma outra palavra simples. Todos foram admitidos e diagnosticados como ‘esquizofrênicos’, e ainda que eles se comportassem normalmente dentro do hospital, nenhum membro da equipe hospitalar – incluindo psiquiatras – identificou-os como impostores. Em contraste, os outros pacientes no hospital os reconheceram. Os ‘loucos‘ no hospital manifestaram muito mais discernimento que os profissionais.
Essa humilhação – e outros desafios sociais para a sua legitimidade – forçou a APA a refazer o seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM). A corporação profissional precisava apresentar os psiquiatras ao público como ‘médicos de verdade‘, e, em 1980, foi publicado o DSM III, que passou a ser propagandeado como um grande avanço científico, por passar a ser um manual de ‘doenças’ e de ‘transtornos’ reais que poderiam ser confiavelmente diagnosticados. Mas, como Freitas e Amarante escrevem, o DSM – que se tornou a ‘bíblia’ mundial da psiquiatria – não é baseado na ciência. Os diagnósticos são ‘constructos’ com critérios de sintomas arbitrariamente definidos; 35 anos de pesquisa têm fracassado em validar qualquer um dos transtornos mentais como doenças distintas.
Com o DSM III em mãos, a psiquiatria americana passou a nos persuadir a acreditar na noção de que depressão, ansiedade, psicose e outros transtornos mentais são causados por desequilíbrios químicos no cérebro. Essa narrativa é a de que as doenças cerebrais podem ser tratadas com sucesso por meio de medicamentos. Mas, como os autores explicam, pode-se considerar que a hipótese química tenha sido derrubada em 1996, quando Stephen Hyman, à época diretor do Nacional Instituto de Saúde Mental (NIMH) nos Estados Unidos, escreveu um artigo sobre como as drogas psiquiátricas ‘perturbam’ a função normal do cérebro em vez de corrigir um desequilíbrio químico. Remédios psiquiátricos, conforme os autores corretamente explicam, fazem o seu ‘cérebro funcionar anormalmente’.
Dessa forma, Freitas e Amarante desconstroem o ‘mito’ da psiquiatria moderna passo a passo. Em seguida, revisam a literatura de resultados sobre antipsicóticos e antidepressivos. Essa sessão talvez pareça particularmente surpreendente para leitores leigos. Um olhar atento à pesquisa revela que as drogas não proporcionam particularmente um benefício maior em relação ao placebo, nem mesmo em curto prazo, e que, a longo prazo, pacientes sem medicação – e isso é verdade até para aqueles diagnosticados com esquizofrenia – têm melhores resultados.
Então, o que há para ser feito? Se o Brasil e outras sociedades têm organizado o seu cuidado em torno de uma falsa narrativa, quais novos caminhos podem ser achados para ajudar aqueles que sofrem com suas mentes? No seu capítulo de encerramento, Freitas e Amarante descrevem um caminho à frente. Eles discutem vários programas terapêuticos, no passado e no presente, que têm focado em proporcionar um cuidado psicossocial e fazendo uso limitado – ou não – de medicações, que têm provado ser bastante bem-sucedidos. Em particular, falam da abordagem do ‘Diálogo aberto’ (Open dialogue) empregada no norte da Finlândia, que tem produzido notáveis resultados a longo prazo para as pessoas diagnosticadas com transtornos psicóticos.
Em suma, os dois autores visam um novo paradigma de cuidados que possa ‘oferecer uma atenção psiquiátrica’ fora dos manicômios e que não crie pacientes crônicos. Em outras palavras, Freitas e Amarante visam um paradigma de cuidado que ajude as pessoas que lutam com as suas mentes a verdadeiramente se recuperarem e poderem levar as suas vidas da melhor forma possível.
*Tradução de Flávio Sagnori Mota e Nina Isabel Soalheiro, integrantes da equipe do Grupo de Pesquisa Desinstitucionalização, Políticas Públicas e Cuidado da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
Robert Whitaker – Jornalista especializado em Medicina e Ciência, presidente da Mad in America Foundation, Cambridge, MA, EUA <rwhitaker@madinamerica.com>
(P)
FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE. Grupo de Trabalho Educação & Saúde (REi)
FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE. Grupo de Trabalho Educação & Saúde. Resenha de: VIEGAS, Lygia Sousa. Revista Entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 171-175, jan./jun. 2014.
Recomendações de práticas não medicalizantes para profissionais e serviços de saúde e educação. São Paulo, 2012¹
Mais do que esperada, a publicação de “Recomendações de práticas não medicalizantes para profissionais e serviços de saúde e educação”, capitaneada pelo Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade, foi mesmo comemorada por importantes setores da educação e da saúde, por representar um passo significativo no enfrentamento da patologização de crianças e adolescentes com dificuldades escolares.
Na introdução, os autores explicitam o que entendem por medicalização:
o processo por meio do qual as questões da vida social – complexas, multifatoriais e marcadas pela cultura e pelo tempo histórico – são reduzidas a um tipo de racionalidade que vincula artificialmente os desvios em relação às normas sociais a um suposto determinismo orgânico que se expressaria no adoecimento do indivíduo. (p. 14)
Citando exemplos de educação medicalizada, merece destaque a síndrome de burnout, que escamoteia as péssimas condições de trabalho a que professores estão submetidos; e a dislexia, suposta doença neurológica que impediria o aprendizado da língua escrita, explicação frágil nos termos da racionalidade médica, mas que cala o rico debate sobre a complexidade sócio-histórica envolvida nessa aprendizagem.
Ciente da importância desse debate, tal Fórum tem protagonizado a crítica à lógica medicalizante presente nas propostas hegemônicas de diagnóstico e tratamento daqueles que aprendem e se comportam de modos diferentes. Nesses debates, não é raro que, diante de casos emblemáticos, o Fórum seja interpelado por uma pergunta: “que fazer?”. Essa questão, nada simples, reporta à dimensão teórico-metodológica; envolve estudo, debate, (auto) crítica, reconfiguração, experimentações, disposição para (re)pensar… Em uma palavra, envolve trabalho.
Para realizá-lo, foi montado o Grupo de Trabalho Educação & Saúde, equipe interdisciplinar e multiprofissional2, que, durante aproximadamente um ano, reuniu-se sistematicamente, tendo por objetivo propor recomendações de como entender e atender tais situações sem recair no olhar medicalizante. Resultado de intenso trabalho, eis um documento riquíssimo, integralmente disponível no site do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, deixando clara a ausência de interesses corporativos.
Desde o início, chama atenção a linguagem ao mesmo tempo adequada e acessível, fundamentada na intencionalidade dos autores: que ele seja apropriado por profissionais que estão na ponta dos serviços de saúde e educação e que recebem crianças de quem se suspeita da capacidade de aprender e se comportar adequadamente.
Assim, dialogam diretamente com professores, médicos, psicólogos, assistentes sociais, fonoaudiólogos e enfermeiros, primeiro por meio de uma carta, e ao final, de uma despedida. Nesse diálogo, situam o aumento exponencial de encaminhamentos de alunos para serviços de saúde, situação reveladora da lógica medicalizante, pois parte da suposição de que as dificuldades vividas na escola decorrem de problemas dos alunos, mormente orgânicos.
Decorrência desse reducionismo, a pessoa, “de aprendiz passa a ser entendida e acolhida como doente” (p. 5).
Contrapondo-se a essa visão, as Recomendações se pautam em ao menos duas viradas teórico-metodológicas: primeiro, a concepção de aprendizagem como processo multideterminado, atravessado por diversos fatores que desembocam nas condições sociais. Como decorrência óbvia, diante de uma criança que fracassa na escola, para além de aspectos individuais, outros devem ser considerados, com destaque para os históricos, políticos, econômicos, sociais, pedagógicos, institucionais e relacionais.
A segunda virada é a percepção de que a superação do olhar medicalizante implica em não focalizar apenas o que falta à criança (atenção, disciplina, alimento, coordenação motora), mas buscar suas potencialidades, ponto de partida para qualquer mudança significativa. E buscar potencialidades implica em se conectar com o sujeito singular, e não operar com a ultrageneralização que sustenta os manuais normativos.
Partindo dessa compreensão, os autores buscam afetar a atuação profissional em três âmbitos: ético-político (já que se apoiam numa tomada de posição e engajamento nas políticas públicas); acadêmico-científico (pois formulam estudos e argumentos teóricos sobre o tema) e técnico (uma vez que fornecem instrumentos potencializadores de práticas de educação e saúde).
Antes de elencar as recomendações propriamente ditas, deixam claro: este não é um manual fechado de diagnósticos e condutas. Ao contrário, trata-se de documento aberto, que partilha um conjunto de experiências interessantes na educação e na saúde, a fim de potencializar escolas e serviços de saúde na criação de práticas não medicalizantes. Assim, apresentam capítulos diferentes para os seguintes campos3: escolas; cuidados em saúde; fonoaudiólogos que trabalham com leitura e escrita; interação de profissionais em rede de serviços, setores e com a comunidade; e políticas públicas.
Ao adentrar no tema do fracasso escolar, os autores relatam uma curiosa situação vivenciada pelo GT: ao ouvir a opinião de educadores, foi notável que, se as escolas tendem a operar com a individualização, encaminhando alunos que aprendem ou se comportam de formas diferentes para os serviços de saúde; elas, ao mesmo tempo, reconhecem a importância de parceria respeitosa e democrática na direção de superar as dificuldades enfrentadas não apenas por alunos, mas também pelos educadores, todos cientes de que a escola oferecida está longe de ser a desejada. Ou seja, eles sabem que o número de alunos em sala de aula, a arquitetura da escola, as políticas educacionais, os materiais pedagógicos, o salário e as condições de trabalho afetam a aprendizagem e o comportamento dos alunos, o que significa reconhecer que os alunos não são o foco do problema. Dessa discussão, depreende-se que há nas escolas terreno propício à consolidação de práticas não patologizantes, que podem ser bem recebidas nas escolas também porque nelas há a aposta na potencialidade da escola em lidar com as dificuldades.
Analisando especificamente o capítulo “Recomendações para a escola como espaço potencial”, destaca-se a crítica à busca de culpados, que focaliza apenas as faltas de todos, produzindo efeitos imobilizadores. E pergunta: “Não seria interessante mudar a lógica da culpa para a busca de possibilidades de compreensão dos envolvidos no processo ensino-aprendizagem e ampliar as intervenções e ações na escola?” (p. 43) Sendo a escolarização um fenômeno complexo, a recomendação é a busca de estratégias que reconheçam essa complexidade.
Rompendo a ideia de receita, apostam que casos singulares devem ser analisados em sua singularidade, que, ao mesmo tempo, deve ser compreendida no conjunto de aspectos envolvidos. As recomendações concretas são: implicar a escola como um todo na construção de projetos pedagógicos; discutir e refletir coletivamente sobre iniciativas e estratégias bem sucedidas; planejar estratégias grupais; articular os interesses de alunos e o de professores no planejamento das atividades pedagógicas; aprender e ensinar a conviver com a diferença.
Apesar de haver capítulos específicos para as diversas áreas envolvidas, há um capítulo que recomenda a parceria entre equipes, serviços e comunidade. Os autores sabem que tal proposta não é simples, sobretudo frente à sobrecarga de trabalho de todos; à dificuldade de trabalhar de forma partilhada; e por vezes à falta de autonomia dos profissionais e equipes. No entanto, o argumento em seu favor é consistente: acionar diferentes saberes e perspectivas caminha na superação da fragmentação das práticas dominantes.
Entender tais dificuldades, em realidade, é parte do trabalho, e por isso há no documento sugestões de como lidar com elas.
Finalmente, vale enfatizar a importância do capítulo voltado para as políticas públicas, pensadas a partir da defesa de sua construção a partir da plena participação popular. Assim, recomendam a atuação junto aos conselhos de classe, sindicatos, instâncias de controle social, buscando abrir canais de comunicação com o poder público, bem como o amplo debate, esclarecendo a população sobre a complexidade envolvida nas políticas públicas de atenção às dificuldades de escolarização, sobretudo quando com contornos medializantes.
Vale ressaltar que, ao longo das Recomendações, os autores generosamente trazem diversas sugestões de leitura e vídeos para subsidiar a compreensão do tema, além de sugerirem algumas possíveis práticas. E deixam claro, tanto no começo, quanto no final, que se trata de um documento aberto, o que significa que ele é apenas um passo na direção da reunião de recomendações de práticas aos profissionais.
Mas esse não é um passo qualquer. É um passo fundamental, pois abre uma nova trilha, que agora pode ser percorrida e ampliada por outros profissionais, dando continuidade à consolidação de caminhos outros, que possam de fato acolher e enfrentar as dificuldades, mas apoiados no respeito às diferenças. Sem concebê-las como doenças.
Notas
1. Disponível em . Acesso em: 24 de abril de 2013
2. Compuseram o GT profissionais de antropologia, fonoaudiologia, medicina, pedagogia e psicologia, das seguintes instituições: Associação Palavra Criativa/IFONO, Centro de Saúde Escola “Samuel Barnsley Pessoa” da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Campinas (UNICAMP), Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Psicologia da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP), Campus Assis, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar, Instituto SEDES Sapientiae, Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisa em Psicologia Escolar e Educacional, Rede Humaniza-SUS, Serviço de Psicologia do Hospital do Servidor Público Municipal e União de Mulheres do Município de São Paulo.
3. No âmbito da presente resenha, serão destacados os aspectos relativos à educação, por ser este o foco da Revista Entreideias. No entanto, reconhecemos a riqueza e profundidade do material apresentado nas Recomendações no campo da saúde.
Lygia Sousa Viegas – Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFBA. E-mail: lyosviegas@gmail.com
A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito – COELHO (REi)
COELHO, J. R. A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito. Rio Grande do Norte: Editora Sapiens, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Ariane Rocha Felício de. Revista Entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 165-169, jan./jun. 2014.
A obra de José Ramos Coelho, filósofo e doutor em psicologia clínica, tem como proposta principal mostrar como a psiquiatria está ampliando seu campo de conhecimento e atuação para todos os aspectos da vida humana, levantando um debate em torno da temática da medicalização. As questões próprias das pessoas e da sua existência estão sendo postas como algo relacionado à bioquímica cerebral, podendo ser, com isso, lidadas apenas com indicação de fármacos. O modo pelo qual a crítica à medicalização da existência se dá é, tomando os gregos clássicos como exemplo, a partir de uma alusão a um espetáculo teatral, no qual estão envolvidos os personagens, o cenário, a trama e os atos, contextualizando criticamente as práticas dos médicos, sobretudo dos psiquiatras, a partir de uma perspectiva filosófica. Numa linguagem de fácil compreensão e com uso frequente de metáforas e ironias, o livro discute a morte do sujeito enquanto ser pensante e dotado de sentimento e sensibilidade, através de uma “cura” das suas inquietações por meio de fármacos.
Fortes emoções, sentimentos intensos, dor, alegria, falta de concentração, etc. Tudo isso está sendo concebido como doenças mentais ou como sinal de algum distúrbio. Nesse sentido, Ramos traz na sua obra que a psiquiatrização da existência está suscitando um grande aumento no número de casos de doenças mentais ao longo de todo o mundo, usando como exemplo o autismo, o qual passa por um crescimento significativo dos casos. O modo pelo qual a medicina contemporânea, sobretudo psiquiatria, está concebendo o homem é, em realidade, o sintoma de uma mudança mais ampla e profunda, uma vez que as ciências médicas não estão à parte da sociedade, mas são, também, o reflexo dela.
O contexto médico-hospitalar está refém do que Ramos denomina de “pharmacolonialismo”. Se com o avanço tecnológico a medicina conseguiu progressos significativos para o controle e a erradicação de algumas doenças, outras novas estão surgindo e/ ou sendo inventadas pelo marketing da psiquiatria. No protocolo seguido pelos médicos e psiquiatras, parece que aquele ser humano “cuidado” é o que menos importa no cenário. Ir de encontro a essa perspectiva é a grande luta presente no livro, ele convida o leitor a refletir criticamente acerca da medicalização de todos os aspectos da vida, se portando contra o fenômeno, sendo a favor da singularidade, da autonomia e partindo para uma defesa contundente da vida.
Ramos nos põe a pensar que a doença no cenário atual está sendo analisada de forma descontextualizada. O enfoque principal é o agente patogênico ou a desordem e desequilíbrio na saúde que possa estar causando tal manifestação, negligenciando o adoecer como um processo. É como se a doença fosse considerada como uma fatalidade que ocorreu ao indivíduo, como se a pessoa fosse uma vítima de um infortúnio indesejado que a acometeu. O autor ressalta que a doença está presente num contexto, que pode ser oriundo de um conflito vivido pela pessoa ou do ambiente externo do qual ela faz parte; salientando que esses fatores estão sobrepostos e não atuam sozinhos.
É interessante pensar na reflexão que Ramos faz sobre os diferentes momentos vividos pela psiquiatria: antes vivíamos a história do horror, em que as torturas eram permitidas e o internamento era a saída mais plausível; hoje vivemos uma busca voluntária por um tratamento, na tentativa de aliviar os sintomas apresentados, de procurar seu papel social, ser escutado e cuidado. Dentro desse último momento é que Ramos afirma que a subjetividade contemporânea se sustenta: no primeiro momento o paciente, sentido algum tipo de mal-estar, se envolve na relação, buscando ser ouvido/assistido; no segundo, o conteúdo presente no seu discurso é “decodificado” a partir de um saber médico já pré-estabelecido, no qual a fala só se torna inteligível no momento em que é nomeado ou inserido em algum tipo de doença ou patologia; no terceiro, após a análise dos sintomas e sinais apresentados, o paciente é diagnosticado no seu mal-estar, classificado e batizado; finalmente no último ato, ele é medicado no intuito de voltar ao seu sadio e normal.
Usando o mito da caverna para elucidar sua crítica, Ramos afirma que quando a pessoa chega ao consultório médico a fim de buscar ajuda, ela julga não saber sobre sua própria história, não compreender o que se passa com ela. Ramos alega que isso ocorre, pois ela foi acostumada a pensar assim, muito embora ressalte que a pessoa que carrega consigo aquele mal-estar é também quem porta o conhecimento sobre sua própria angústia, seu próprio sofrimento; o fato é que não se tem noção desse conhecimento, pois, por vezes, as pessoas não conseguem acessá-los. No consultório, a pessoa encontra um especialista que supostamente (e os dois lados supõem isso) detém o conhecimento apropriado sobre o que está se passando e, com isso, é capaz de curá-la.
O autor ressalta que o perigo dessa doação dos cuidados da sua vida para um especialista pode estar na maneira com a qual o psiquiatra lida com isso. A quem ele está servindo? Ao paciente ou ao sistema? Ramos salienta que o psiquiatra pode assumir posturas diferentes. Pode se posicionar no sentido do não-saber e dialogar com a pessoa que o procura, estando aberto para a escuta, voltando seu trabalho para o esclarecimento, permitindo que o outro se conheça, possibilitando liberdade do sujeito. Por outro lado, o profissional pode se posicionar ao lado do sistema, facilitando a permanência da pessoa no lugar de alguém “cego” sobre sua própria vida, classificando-o dentro de alguma patologia e indicando o melhor fármaco a ser administrado.
Ramos tem o cuidado de não culpabilizar o médico/psiquiatra pelo possível posicionamento de surdez diante da pessoa que o procura. Ele salienta que o médico também está preso dentro do sistema (estão também aprisionados nele), que é regido pelo pharmacolonialismo. Caso se distancie dessa lógica e atue de outra maneira, o médico pode sofrer consequências reais, tais como ser processado por negligência e descaso. Com isso, muitos profissionais continuam seguindo o protocolo do sistema, pois isso lhes imuniza e assegura.
Ramos questiona o conceito de saúde, visto como a capacidade em manter-se em equilíbrio, argumentando que o sistema pode se manter saudável mesmo com mudanças, existe a possibilidade de adaptação dessas modificações. Além desse argumento, também salienta outro, através de uma metáfora com um skatista, concluindo que a doença poderia ser vista como uma tentativa do organismo de voltar para o seu equilíbrio. Ter saúde, então, não seria viver num preso modo que consensualmente é aceitável, mas poder sair do equilíbrio e depois equilibrar-se novamente, tendo domínio sobre isso, tornando a vida menos enrijecida.
A partir de uma historicidade rica e interessante através da filosofia, sobre concepção de saúde, Ramos salienta que o homem se situa entre a natureza e a cultura, perpassando-se entre os dois. A busca por precisão das ciências exatas, a exigência de cientificidade acaba inibindo esse confronto entre as duas instâncias citadas. A ciência da saúde segue esse rumo e tende a transpor os conflitos do homem a conhecimentos e técnicas dos estudos bioquímicos, tentando curá-los através de medicações. Sobre essa questão (uso de medicamentos), Ramos enfatiza o crescimento das indústrias farmacêuticas a partir da segunda metade do século XX e sua importância para a verdade seguida pelos psiquiatras: “a verdade como adequação do diagnóstico à doença, via medicação”, sem manifestar muita sensibilidade com o outro e sua história. Embora a ciência da saúde tenha a pretensão de uma objetividade, de uma exatidão, Ramos ressalta que não é possível medir através de instrumentos, como régua e esquadro, se uma pessoa se encontra doente, portanto, esse diagnóstico fica a critério da subjetividade do psiquiatra; salientando que as fronteiras entre o normal e o patológico nunca foram demarcadas.
Fazendo uma alusão à bíblia, o autor afirma que quem rege esse modo de classificar as pessoas entre doentes e sadios é o código geral de doenças mentais. É ele que traz o consenso dos psiquiatras daquilo que deve ser considerado normal ou anormal; Ramos questiona o critério de verdade, a cientificidade desse consenso.
O autor questiona também a objetividade científica do DSM, que é fundado em comportamentos observáveis, quantificáveis e testáveis, parecendo negligenciar que os humanos são dotados de cultura, valores e linguagens. Com o DSM e o CID, toda a atividade profissional do psiquiatra é ouvir a queixa do paciente e enquadrar o que ouviu em alguma categoria nosológica, enquadrando-o e medicando-o, o sentido do enredo do paciente não interessa muito.
Com isso, para o autor, a psiquiatria acaba deixando de lado seus próprios objetivos, acarretando nas palavras do autor, uma “morte da psiquiatria”, pois tal especialidade médica tem como objetivo estudar a alma humana (psique=alma; iatros=médico) e não atuar da maneira que a nova psiquiatria atua, numa afinidade considerável com a neurociência, medicina e genética, deixando de lado uma postura terapêutica prospectiva e uma sensibilidade que o tornaria capaz de sentir o outro.
Ramos faz uma crítica a respeito das medicações, que vai além de efeitos colaterais ou dependência química, o autor se reporta também à permissão para o desequilíbrio, uma vez que ameniza qualquer sentimento, autoriza que a pessoa se sinta assim. O revista entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 165-169, jan./jun. 2014 169 medicamento atua como uma máscara da aparência da normalidade e causa também uma “despersonalização”, o que contribui fortemente para a morte do sujeito.
Nessa obra, o autor procura refletir e demonstrar sua crítica a respeito da visão unilateral (via medicamentosa) das questões humanas. Querer tratar os conflitos com medicamentos é, para Ramos, suprimir a pessoa enquanto sujeito, criador de si e das suas particularidades. Ademais, o autor crê na possibilidade de uma intervenção terapêutica eficaz que respeita o reino da subjetividade.
Ariane Rocha Felício de Oliveira – Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Educação. E-mail: felicioariane@yahoo.com.br