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El Portugués – CLEMENTE (LH)
CLEMENTE, Eloy Fernández. El Portugués. Zaragoza: Doce Robles, 2017, 329 pp. Resenha de: MAURÍCIO, Carlos. Ler História, v.74, p. 284-287, 2019.
1 Pode um historiador escrever um romance histórico? Tendo o mais importante historiador português do século XIX – Alexandre Herculano – sido o autor de três romances históricos, não vejo motivos para uma resposta negativa. Que a erudição académica é inteiramente compatível com a escrita ficcional, prova-o O Nome da Rosa, da autoria do semiótico e filósofo Umberto Eco, que vendeu já mais de 50 milhões de exemplares em todo o mundo. Num dado momento da sua carreira, um historiador pode sentir-se motivado a procurar uma outra forma de expressão, liberta dos parâmetros que condicionam a escrita historiográfica. Uma forma que lhe permita criar um texto factualmente bem fundamentado, mas dotado de uma razoável margem de dramatização, cuja autoridade assente mais na plausibilidade, ou mera possibilidade de ter ocorrido, do que no grau de certeza e na exaustividade da informação que se exige aos trabalhos académicos. Eloy Fernández Clemente reproduz (p. 329) justamente as palavras do escritor e guionista espanhol Javier Moro, no seu romance sobre o imperador do Brasil, Pedro I: “Los personajes, las situaciones y el marco histórico de este libro son reales, y su reflejo fruto de una investigación exhaustiva. He dramatizado escenas y recreado diálogos sobre la base de mi própria interpretación para contar desde dentro lo que los historiadores han contado desde fuera.” Assim sendo, não se estranhe que a recensão deste romance histórico – em que o protagonista e a maioria dos personagens que com ele contracenam foram sujeitos históricos reais – apareça nas páginas de uma revista de história.
2 Eloy Fernández Clemente nasceu em 1942, em Andorra, mas foi viver para Espanha aos três anos de idade. Doutorado em Filosofia e Letras, ele pode ser melhor descrito como um historiador aragonês (em 1997, o Ayuntamiento de Zaragoza concedeu-lhe o título de “hijo adoptivo”). É autor de uma vasta obra historiográfica e um reconhecido especialista em temas da história de Aragão e, em particular, sobre o político e economista Joaquín Costa. Publicou também estudos históricos sobre Portugal e a Grécia. El Portugués assinala a sua estreia no domínio do romance histórico. Através da obra acompanhamos a vida do protagonista – Oliveira Martins – durante o período em que viveu na Andaluzia (1870-1874), exercendo funções administrativas nas minas de Santa Eufémia, então arrendadas por uma sociedade portuguesa. Naturalmente, o autor sabe do que fala, pois é autor de vários trabalhos académicos sobre Oliveira Martins.1
3 A estratégia narrativa utilizada pelo autor assenta no discurso na primeira pessoa. No texto alternam as impressões, relatos, ideias e pensamentos íntimos do protagonista com os seus diálogos com personagens reais que conheceu em Espanha, mas também com personagens ficcionais (os diálogos com o farmacêutico Don Vicente revelam-se um recurso útil para a exposição das ideias do protagonista). Por vezes ainda, reproduzem-se excertos das obras de Martins ou das cartas trocadas com amigos, portugueses ou espanhóis. Não deixa, no entanto, de ser curioso que apenas uma personagem com quem Martins privou quase todos os dias não seja dotada de discurso próprio: a esposa, D. Vitória. Sobre ela, só sabemos o que pensa o protagonista…
4 O romance encontra-se dividido em quatro partes, segundo uma ordem cronológica, a que se segue um epílogo. A primeira começa por introduzir a mina, o mundo operário e as questões mais prementes – técnicas e sociais – com que a administração se depara. Através de pensamentos e ações o protagonista revela amiúde as suas preocupações com a dignificação dos trabalhadores e suas famílias, com especial atenção aos filhos. Afirmando que a escola é a primeira obrigação da empresa, o protagonista cria uma escola, de que a esposa se irá encarregar. Mas, em simultâneo, o autor dá início à exposição da avaliação do protagonista sobre a situação política em Portugal, na Europa (da Guerra Franco-Prussiana à Comuna de Paris), mas sobretudo em Espanha (a Revolução de 1868, que inaugura o Sexénio Democrático, a instauração da monarquia parlamentar, a chegada do novo ocupante ao trono, a transição para a República e o seu colapso). Os avanços organizativos da Associação Internacional dos Trabalhadores, em Espanha como em Portugal, também fazem parte das preocupações do protagonista-narrador. O livro detém-se particularmente nas suas ideias políticas, onde se mesclam um republicanismo federalista com os ideais socialistas proudhonianos. A primeira parte não termina, porém, sem que tenha lugar o encontro que se irá revelar a fonte motora da intriga que durará até às últimas páginas. No hospital de Almadén, o protagonista trava conhecimento com a enfermeira-chefe, Adelaida Rúa (p. 65), e uma afeição por ela vai ganhando progressivamente força.
5 A segunda parte do livro aprofunda o tópico da defesa martiniana de uma federação ibérica, por oposição à união dinástica, para reorganizar as sociedades peninsulares a braços com problemas políticos (governos corruptos, burocracia desmesurada, eleições manipuladas) e sociais (um povo vivendo na miséria, explorado por um bando de agiotas ante uma classe média mergulhada na inércia). E dá a conhecer as cogitações do protagonista sobre o debate entre marxistas e proudhonianos, ou temas como a religião ou o feminismo. Os pensamentos e diálogos do protagonista acerca do conflito entre Marx e Proudhon são, aliás, um tema recorrente no livro. Eis, porém, que o que parecia ser um amor platónico se descobre subitamente um amor reprovado pelas normas sociais: um amor proibido. A cena do beijo (p. 153) revela que o protagonista, seis anos apenas volvidos sobre o seu matrimónio, estava envolvido num affaire bem mais sério. A partir daí vamos encontrá-lo mergulhado num conflito íntimo: abandonar a esposa para seguir Adelaida, manter em paralelo o casamento e uma relação extraconjugal – situação a que Adelaida não se presta (p. 281) – ou afastar-se de Adelaida para não abandonar Vitória.
6 A terceira e a quarta partes giram em torno de dois temas: (1) As vicissitudes que marcam o nascimento da I Internacional nos dois países, processo que o protagonista acompanha com interesse através dos seus contatos em Espanha e da correspondência trocada com Portugal; (2) A meteórica transição da monarquia liberal à I República e o desfazer desta, em Espanha. Entre os encontros que o protagonista tem no país vizinho sobressaem nomes sonantes, como o republicano federalista catalão Pi y Margall, com quem o vemos a conversar pouco após a demissão deste de Presidente da República, ou Don Juan Valera, antigo embaixador de Espanha em Lisboa. É impossível ler este livro sem pensar no contexto em que foi escrito: o do crescimento do nacionalismo catalão, medido nas manifestações de massas de 2012 e 2013, na votação em crescendo dos partidos independentistas nas eleições para o parlamento catalão de 2015 e 2017, e que desembocou no referendo de 1 de outubro de 2017 (o livro seria publicado em novembro seguinte). Os três livros que Oliveira Martins escreveu em Espanha – Ensaio sobre Camões, Teoria do Socialismo e Portugal e o Socialismo – são também sucintamente expostos pelo protagonista. Entretanto, o dilema afetivo com que se debate aumenta de intensidade dramática. Adelaida revela-lhe que esperava um filho seu (facto que ele desconhecia), mas que o filho morrera de parto prematuro. “He llorado – confessa então o protagonista (p. 269) –, he llorado de pena por ella y ese niño, mi único hijo; por mi abandono y desidia; de ira y rabia, por mi impotencia y mis dudas.”
7 Passando agora a uma apreciação global, começarei pelo que me parece ter resultado bem. Revelou-se acertada a escolha da narração na primeira pessoa, ao modo de um diário (e não de memórias), em que o protagonista comunica connosco através dos seus pensamentos, dos diálogos nos quais toma parte e das passagens das suas obras e cartas (umas e outras historicamente factuais). Qualquer arte narrativa vive da progressão, entre o início e o fim, do conflito entre as personagens (e dentro delas), da construção de um clímax – numa palavra: de uma intriga. A intriga em El Portugués repousa sobre o amor socialmente reprovável do protagonista por uma personagem que tem voz própria e sentimentos. Entre os dois nasce a paixão e acaba por se abrir um conflito que atinge o seu clímax perto do final (p. 269-81). A isto acresce o simbolismo forte que recai sobre “ese niño prematuro, estrangulado por su próprio cordón umbilical, que hubiera sido español y português, plenamente ibérico” (p. 311). Bravo, Fernández Clemente!
8 Já outros aspetos da obra me parecem ter sido menos bem conseguidos. Antes de mais, o grande peso da erudição. Um exemplo apenas: ao longo das 320 páginas de texto assomam 465 títulos de livros ou de publicações periódicas, muitas vezes inseridos nos diálogos. Ora, um romance (e o mesmo se dirá de qualquer arte narrativa, do teatro ao cinema ou à ópera) deve captar o leitor não tanto por uma erudição apurada como pela emoção capaz de gerar nele. Este livro surge sobrecarregado de informação (títulos de livros, nomes de figuras históricas, riqueza mineralógica da Andaluzia, descrição detalhada dos pratos), o que torna por vezes a sua leitura pouco apelativa. Ser um profundo conhecedor da biografia do sujeito histórico que se propõe romancear, e do seu universo de interações, não garante por si só a escrita de um romance capaz de cativar um largo público.
9 Em segundo lugar, se o conflito que faz mover a obra é bem urdido, poder-se-ia pensar numa conflitualidade alternativa (ou paralela), não de natureza sentimental, mas racional. Desde o momento em que chega a Espanha até ao seu regresso a Portugal, o pensamento de Oliveira Martins sofre modificações – não tanto como viria a conhecer depois, mas, mesmo assim, reais. Um conflito interno poderia ter sido desenhado sobre o percurso intelectual de Oliveira Martins, com as suas dúvidas e as suas superações. Isso ajudaria a reforçar a progressão do romance, no qual, para além do drama amoroso, a existência e o pensar do protagonista acabam por resultar um pouco estáticos. Dir-se-ia que o acompanhamento em direto do sexénio democrático em Espanha, a Comuna de Paris, a intensa conflitualidade que acompanhou a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, e que levou ao seu rápido desaparecimento, não parecem ter feito infletir o seu pensamento político. Ora, se Martins era um convicto republicano federalista em 1870, quando regressou à pátria, em 1874, era um socialista proudhoniano, a quem a república já não entusiasmava e no qual uma sincera hispanofilia ocupava o lugar do federalismo tout court…
10 Concluindo: este é um livro que será lido com agrado por todos aqueles que, em Espanha como em Portugal, são leitores das obras de Oliveira Martins e conhecem as linhas essenciais da sua vida. O autor fornece uma descrição muito detalhada do que foi (ou poderia ter sido) a sua estadia em Espanha, colocando-a com mestria no contexto histórico então vivido na Península Ibérica e na Europa em convulsão. As manobras diplomáticas das potências, a guerra franco-prussiana, a Comuna de Paris, os acontecimentos vertiginosos em Espanha entre 1868 e 1874, e o processo acidentado da construção da A.I.T. têm uma inserção informada e adequada na trama do romance. Ao mesmo tempo, o romance El Portugués é uma ilustração das dificuldades e dilemas com que um historiador se confronta quando empreende escrever um romance histórico.
Notas
1 Entre os quais: “J.P. d’Oliveira Martins nas minas de Santa Eufémia, 1870-1874”, Ler História, 54 (…)
Carlos Maurício – CIES-IUL, ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. E-mail: carlos.mauricio@iscte-iul.pt.
Historia de la civilización ibérica – MARTINS (LH)
MARTINS, J. P. Oliveira. Historia de la civilización ibérica. Con un estudio preliminar de Sérgio Campos Matos. Pamplona: Urgoiti Editores, 2009. Resenha de: MAURÍCIO, Carlos. Ler História, n.60, p.193-195, 2011.
1A História da Civilização Ibérica de Oliveira Martins acaba de ser publicada pela sétima vez no país vizinho. Após seis edições pela mão de editoras madrilenas, coube agora a vez a uma casa editorial de Navarra. Esta sétima edição, que reproduz, com algumas correcções e acrescentos, a tradução pioneira de Luciano de Taxonera (1894), caucionada pelo próprio Martins, traz ainda um detalhado estudo introdutório da autoria de Sérgio Campos Matos. Após uma breve introdução ao historiador, destinada ao público de língua castelhana, S.C.M. descreve as relações de Oliveira Martins com Espanha e com o mundo intelectual do país vizinho, o contexto cultural em que foi escrita a História da Civilização Ibérica e os combates em que se inseriu, a recepção da obra em Espanha e o historial das suas traduções e edições no mundo hispânico.
2 É sobre alguns aspectos deste estudo que a presente recensão se debruça. Oliveira Martins terá sido o intelectual português, do seu tempo, que melhor conheceu Espanha e as culturas hispânicas. A História da Civilização Ibérica (originalmente publicada em 1879) foi a primeira – e até agora a única – tentativa de história integrada da Península Ibérica. Facto que não passou despercebido a diversos autores espanhóis. Salvador de Madariaga, na primeira edição da obra em língua inglesa (em 1930), sublinhava o facto de a primeira perspectiva ibérica sobre a história da Península ter sido escrita por um português. E já em 1886, Menéndez Pelayo comentava a propósito do livro: «es hasta ahora lo más ibérico que ha salido de pluma alguna española ni de allá ni de acá». A recepção favorável da História da Civilização Ibérica em Espanha, escreve S.C.M., deveu muito à utilização que dela foi feita no combate político e cultural contra o incipiente nacionalismo catalão. Em meados do século passado, esta recepção estendeu-se a vários países da América Latina, como o atestam duas edições na Argentina, uma no Peru e outra no México. Eu acrescentaria ainda que, para a cultura e a política portuguesas, o iberismo foi quase sempre um «fantasma de serviço», muito útil como arma de arremesso (Basta lembrar o alarmismo provocado ainda há poucos anos pelas considerações de Saramago). Já para a Espanha, o receio de uma absorção pelo pequeno Portugal nunca fez qualquer sentido. Daí não ser de espantar o sucesso editorial desta obra do outro lado da fronteira, a contrastar com as traduções para castelhano da restante bibliografia martiniana: Navegaciones y descubrimientos de los portugueses anteriores al viaje de Colón (Madrid, 1892) e Los hijos de Don Juan I (Buenos Aires, 1946).
3 É verdade que, da parte dos autores espanhóis, as críticas não deixaram também de se ouvir. A mais eloquente terá sido talvez a de Sánchez Moguel, que acarinhou, com Oliveira Martins, o projecto de uma Liga Ibérica. Entre os objectivos desta iniciativa estava a produção de uma historiografia peninsular capaz de transcender as dimensões regionais. Ora, após o início da publicação das monografias relativas à Casa de Avis, Moguel pôs em dúvida a sinceridade da hispanofilia ostentada por Martins na obra de 1879. No entender deste crítico, as monografias de 1891 e 1893, onde aflorava um «particularismo regional», vinham contradizer as grandes linhas que presidiam à História da Civilização Ibérica. Esta contradição também não escapou a diversos autores portugueses contemporâneos do historiador, embora lhe dessem, geralmente, uma interpretação diversa: depois de uma fase demolidora, plasmada na trilogia da História da Civilização Ibérica (1979), História de Portugal (1979) e Portugal Contemporâneo (1881), Martins passara a uma fase de reconciliação com o passado pátrio.
4 O iberismo de Oliveira Martins é naturalmente um dos temas centrais deste estudo preliminar. O iberismo da História da Civilização Ibérica não é de natureza política, sublinha S.C.M., mas eminentemente cultural. No final dos anos 80, Martins advogava uma cooperação entre os dois Estados visando um melhor conhecimento recíproco das respectivas histórias e culturas bem como eventuais alianças diplomáticas. Sob o influxo do Ultimatum, o escritor consideraria mesmo desejável a extensão desta aliança às antigas colónias peninsulares na América Latina com o fim de contrariar a asfixiante hegemonia britânica no mundo. O significado do iberismo martiniano foi um tópico bastante controverso até aos anos 40, em Portugal, e continua sendo debatido hoje. É certo que, até 1870, Martins fez a apologia da reorganização federativa do estado português num quadro republicano e peninsular. Depois, sob o influxo do pensamento proudhoniano, entrosou o seu iberismo republicano com o socialismo mutualista (1872/73). Depressa se desiludiu porém com o ideário federal e a ideologia republicana, distanciando-se também do seu mestre Proudhon. Em poucos anos, evoluiu para uma concepção organicista da sociedade, onde o Estado adquiria uma posição predominante e a questão do regime deixava de ter importância. Em 1885 cortou os últimos laços com os políticos anti-sistémicos e encetou uma carreira política na monarquia. Em 1892 ascendeu a Ministro da Fazenda e incitou o jovem rei D. Carlos a prosseguir na via de um cesarismo democrático. Até ao fim dos seus dias Martins continuou a intitular-se socialista, tendo-se aproximado dos princípios do socialismo catedrático. Ao contrário do Príncipe de Salina, em Oliveira Martins foi necessário que alguma coisa permanecesse para que tudo o mais mudasse. E o que permaneceu foi essa hispanofilia dos vinte e poucos anos de idade e uma postura anti-liberal estribada na percepção/construção socialista do dilema liberdade-igualdade.
5 O iberismo vertido na História da Civilização Ibérica tinha porém outras dimensões, como nota S.C.M.. Era uma resposta – ibérica – à lenda negra que fora sendo gerada nas nações protestantes do Norte da Europa e que retratava as sociedades peninsulares como atrasadas, onde imperava o medo, a superstição e um mau uso das riquezas ultramarinas. Ao utilitarismo e ao materialismo dos anglo-saxónicos – um dos seus ódios de estimação – Martins contrapunha o génio peninsular, feito de idealismo e acção. Quando esse utilitarismo entrasse em declínio, aos povos peninsulares estaria destinado iluminar espiritualmente o mundo. Uma questão que mereceria alguma reflexão é a seguinte: dispondo de modelos consagrados de histórias da civilização francesa (Guizot, 1832) ou espanhola (Tapia, 1840), Martins entendeu escrever uma história da civilização ibérica, mas não uma história da civilização portuguesa. À história nacional dedicou a História de Portugal (1879) e o Portugal Contemporâneo 1881), é certo, mas os contrastes entre a História da Civilização Ibérica e a narração do caso português têm merecido a atenção de múltiplos estudiosos. S.C.M. vê nesta dicotomia a maneira de o historiador harmonizar uma abordagem das dimensões institucionais, sociais e de mentalidades de uma sociedade com uma abordagem, mais narrativa, dos seus sucessos políticos. Pela minha parte, a dicotomia entre a perspectiva idealista, com tonalidades messiânicas, patente na História da Civilização Ibérica e a perspectiva iconoclasta e pessimista com que as outras duas obras estão escritas foi a solução encontrada por Martins para lidar com uma tensão, muito estrutural no seu pensamento, entre o plano do ideal e a execução real. A regeneração da Península parecia-lhe sorrir num futuro algo distante, mas só muito esporadicamente reconhecia aos portugueses a capacidade de se auto-regenerar. Martins foi toda a sua vida um pregador de penitência, tão mais convicto da sua missão quanto mais sabia que um paraíso de bonança era possível – se bem que muito difícil – de alcançar. É também por esta contradição tão íntima que continuamos hoje a (re)lê-lo.
Carlos Maurício – CEHC – Instituto Universitário de Lisboa