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Gramática dos sentimentos políticos: pensar a Assistência Social com a História | Ana Maria Motta Ribeiro, Gizlene Neder
Resenhamos esta coletânea, organizada por nós. Leia Mais
A coleção Adandozan do Museu Nacional Brasil Daomé/ 1818-2018 | Mariza de Carvalho Soares
Os primeiros anos de graduação são tempos de intensas paixões. A cada semestre, elegemos alguns autores com os quais passamos anos a fio, sempre citando e revisitando, como se sua obra se tornasse uma régua de qualidade que será usada para tudo que vier depois. Então, por força de currículos eurocêntricos, que ainda predominam em muitas universidades, os primeiros a terem este amor são os europeus, muitos destes medievalistas; e assim, com suas abordagens, eles se tornam, também, o paradigma de sucesso a ser alcançado. Leia Mais
A Coleção Adandozan do Museu Nacional. Brasil-Daomé/ 1818-2018 | Mariza de Carvalho Soares
O livro aqui resenhado, vale ressaltar de início, toma outra dimensão ao relembrar o devastador incêndio sofrido pelo Museu Nacional em 2 de setembro de 2018, transformando em cinzas objetos ali guardados ou expostos, entre eles os da coleção estudada pela historiadora Mariza Soares. Acontecimento que confirma o aspecto trágico e a impermanência que rondam museus e coleções no Brasil.1 Isso torna este livro um material de prova, documento e memória daquilo que foi irremediavelmente destruído. Ele foi escrito, declara a autora, para “dar vida a algo que já não existe”, e feito, muito apropriadamente, juntando o argumento historiográfico às práticas de museus (p. 35). Leia Mais
As ciências na história das relações Brasil-EUA | Mgali Romero Sá, Dominichi Miranda de Sá e André Felipe Silva
Organizado pelos pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz Magali Sá, Domichi Sá e André Silva, As ciências na história das relações Brasil-EUA reúne textos que analisam as conexões estabelecidas entre esses dois países tendo como ponto de partida projetos e redes de pesquisa que sinalizam como a diplomacia cultural foi, muitas vezes, também científica. Interesses econômicos e políticos não estão apartados nessas narrativas, sinalizadoras das múltiplas convergências que marcaram essas relações ao longo do século XX. Os 17 capítulos que integram o livro compõem esse recorte temporal amplo, assim como os campos de investigação que são eleitos para análise: agronomia, medicina, física, genética, antropologia, ciências sociais, biologia, entre outros.
Desse modo, o primeiro capítulo trabalha com uma perspectiva de aproximação dos EUA a partir da retórica do pan-americanismo, tomando como objeto as narrativas do Boletim da União Pan-americana do começo do século XX, enquanto o segundo analisa a expedição Roosevelt-Rondon (1913-1914). Já o último capítulo examina a constituição e a institucionalização do campo da biologia da conservação e os projetos a ele relacionados durante a segunda metade do século XX. As diferenças temporal e disciplinar se refletem no modo como os vocabulários pelos quais essas relações se estabeleceram também foram mudando de significado. Assim a “natureza” dos boletins da União Pan-Americana ou da viagem de um Roosevelt “aventureiro” e “caçador” (Sá, Sá, Silva, 2020, p.59) não é a mesma dos projetos de conservação desenvolvidos em parceria pelos ambientalistas, brasileiros e estrangeiros. Entre uma natureza e outra, cabe ao leitor estabelecer uma linha por vezes impossível de ser definida, porque heterogênea em suas associações. O mesmo pode ser dito se tomarmos a Amazônia como elemento aglutinador de alguns dos capítulos. Leia Mais
As ciências na história das relações Brasil-EUA | Magali Romero Sá, Dominichi Miranda de Sá, André Felipe Cândido da Silva
Os 17 artigos desta coletânea têm como tema o relacionamento entre Estados Unidos e Brasil na área técnico- -científica sobretudo a partir da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942. Desde 1933 os Estados Unidos vinham implementando a “política de boa vizinhança” com os países da América Latina, estabelecendo diferentes formas de colaboração diplomática, econômica e militar, para limitar a influência dos países do Eixo na região. A partir de 1940-1941, o governo americano estabeleceu o Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, dirigido pelo milionário Nelson Rockefeller, para conduzir essa política, sobretudo na área cultural. O Brasil vinha se mantendo neutro até então, mas, finalmente, não resistiu à pressão e entrou na guerra do lado americano. A partir daí o relacionamento entre os dois países se estreitou, com a instalação de duas bases militares norte-americanas em Natal; um esforço sistemático de produção de matérias-primas, sobretudo a borracha, mas também outros minerais e alimentos, para apoiar o esforço de guerra americano; o acordo para a construção da Usina de Volta Redonda e de reequipamento das forças armadas brasileiras; e a preparação da Força Expedicionária Brasileira para participar do teatro de guerra europeu. Leia Mais
Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial – VENÂNCIO et al (RHHE)
VENÂNCIO, Giselle; SECRETA, Maria; RIBEIRO, Gladys. Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2017. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 2, n. 5, p.234-239, maio/agosto de 2018.
A obra Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial é organizada por Giselle Venâncio, Maria Secreta e Gladys Ribeiro. Está dividida em duas partes e é composta por um total de onze textos escritos por pesquisadores de instituições distintas.
Cada texto traz abordagens inovadoras, visto que resgatam aspectos da cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes relegados pelos pesquisadores, ao mesmo tempo em que desconstroem a ideia de que as camadas populares estavam distanciadas ou mesmo excluídas do mundo letrado. Para tanto, “cartografar um Rio de Janeiro ainda invisível” (SECRETO; VENANCIO, 2017, p. 9) constitui o objetivo central da obra.
A partir de fontes como os periódicos, os autores mostram que muitos populares na cidade do Rio de Janeiro Imperial tinham acesso à cultura escrita. Ampliando os sujeitos de suas pesquisas, os autores demonstram que escravos, forros, migrantes pobres, estiveram de alguma forma expostos a cultura escrita. É possível conjecturar que casos assim podem ter ocorrido em outras cidades também.
O livro está dividido em duas partes, a primeira delas, “Usos populares da leitura e escrita”, reúne quatro textos em torno dessa temática. A segunda parte, “Práticas educativas de populares no Rio de Janeiro oitocentista”, agrega um total de sete artigos. Para uma melhor explicitação do livro como um todo, realizo uma breve análise de cada um dos textos.
No primeiro texto, “Em primeira pessoa”, de Giselle Venancio, a autora vai analisar a carta que a liberta, Maria Rosa, escreveu à Princesa Isabel na ocasião de seu aniversário quando era comum alforriar alguns escravos. A carta assinada por Maria Rosa solicitava à Imperatriz que interviesse junto à Câmara Municipal para que sua filha, Ludovina, que era mãe de três filhos, fosse alforriada. Os dados que a autora levantou demonstram que escravos e libertos eram alfabetizados e não muito raro investiam também na formação de seus filhos.
No segundo capítulo, “Posta em cena: educação moral e estética e heterogeneidade social e teatro oitocentista”, cujas autoras são María Secreto e Viviana Gelado, a abordagem recai sobre o letramento popular e/ou negro na cidade do Rio de Janeiro, a partir de um ângulo não muito casual: o teatro, visto como mecanismo de educação moral e estética do público carioca.
Segundo as autoras, não sendo o escravo doméstico e especialmente o urbano, almejado pela cidade das letras, via no teatro a chance de depreender uma moral pragmática, assim como também lições de retórica e boas maneiras que “poderiam coadunar para desobstruir o improvável caminho da ascensão social dentro dos limites jurídicos impostos” (SE-CRETO; GELADO, 2017, p. 44-45).
Em “Saber ler, contar e poupar: reflexões entre economia popular e cultura letrada no Rio de Janeiro, 1831/1864”, de Luiz Saraiva e Rita de Cássia Almico, os autores partem de um consenso da historiografia brasileira, o de que as camadas mais baixas da sociedade teriam tido acesso limitado ao mercado financeiro, além do que a baixa circulação financeira teria restringido os trabalhadores pobres e escravos dos conhecimentos mais “sofisticados no âmbito da economia e de uma monetarização crescente” (SECRETO; GELADO, 2017, p. 49), a exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro no decorrer do século XX. Partindo desse ponto, os autores apresentam evidências de um maior protagonismo das camadas populares em atividades ligadas aos setores financeiros, destacam ainda o impacto dessas atuações na economia da cidade.
A partir de anúncios de jornais, os autores levantaram a hipótese de que havia um mercado de bens financeiros e que poderia ser usado por setores populares. Ressaltam também a importância da economia popular para a cidade.
Carlos Eduardo Villa, em “Escrever como curso de transação dos pequenos agentes do Rio de Janeiro na metade do século XX”, parte de dados cartoriais e evidencia que a cultura escrita aumentou consideravelmente ao longo do século XIX, o que leva crer que houve um aumento também dos grupos alfabetizados. Outra defesa do autor é que o aumento de trabalhadores, que ofertavam seus serviços nos jornais que circulavam na cidade, permite afirmar também que houve um incremento da cultura escrita entre os populares.
O texto “Ler, escrever e contar: cartografias da escolarização e práticas educativas no Rio de Janeiro oitocentista”, de Alessandra Shueler e Irma Rizzini, abre a segunda parte do livro. Nele, as autoras trazem questões ainda pouco debatidas e/ou conhecidas pelos historiadores, pois afirmam que a população pobre e seus filhos, assim como os negros, compunham o grupo escolar da cidade, isto é, frequentavam escolas e que, portanto, uma parcela de populares era alfabetizada.
As pesquisas das autoras contrariam uma ideia durante muito tempo hegemônica na historiografia, a de que não havia escolas noturnas e ensino primário voltado ao atendimento do público trabalhador, além de desmitificar a clássica afirmação de que grande parte da população brasileira no Brasil oitocentista era analfabeta, como se vê, essa não é a realidade da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho dessas autoras e alguns outros desconstroem totalmente essas ideias.
Em “Educação no Rio de Janeiro joanino nas páginas da Gazeta do Rio de Janeiro: espaços abertos para a mobilidade social”, Camila Borges da Silva numa perspectiva que se aproxima do artigo anterior, analisa o formato dos espaços educacionais durante a presença da Corte no Brasil. Ela explora também como as aulas noturnas abriam condições de ascensão social às camadas intermediárias da sociedade, formadas em sua maioria por pardos, mulatos e portugueses pobres (SILVA, 2017).
Jonis Freire e Karoline Karula, em “Camadas populares e higienismo no Rio de Janeiro em fins dos anos de 1870”, analisam um grupo social composto por alunos que frequentavam a Escola Noturna da Lagoa, na ci-dade do Rio de Janeiro, no final da década de 1870. Nessa escola foram ofertadas conferências sobre higiene popular, o curioso é que grande parte do público que frequentava essas conferências era composto por alu-nos dessa instituição. As autoras, levando em consideração o fato de que essas conferências ocorriam nos dias em que não havia aula, afirmam que é muito provável que esses alunos iam porque o assunto lhes interessava.
Em “Cidade solidária: beneficência educacional no cotidiano popu-lar da Corte Imperial”, de Marconni Marotta, discute-se a instrução popu-lar financiada por associações, com destaque para a Sociedade Jovial e Ins-trutiva. Aponta também algumas políticas públicas voltadas para a educa-ção primária das camadas populares.
No texto “Aulas do Comércio: mundo da educação versus mundo do trabalho livre e pobre na cidade do Rio de Janeiro”, Gladys Sabina Ribeiro e Paulo Cruz Terra analisam as aulas do Comércio e o mundo do trabalho na cidade do Rio de Janeiro. Eles enfatizam também as transformações sofridas pela instituição a partir da data de sua fundação até a Reforma de 1854.
Tomando uma instituição de ensino como enfoque de seu trabalho, Alexandro Paixão, em “A educação popular no Rio de Janeiro oitocentista: o caso do Liceu Literário Português (1860-1880)”, discute os primeiros anos do Liceu Literário Português do Rio de Janeiro.
A presente instituição foi fundada no ano de 1868 sob os auspícios de alguns membros do Gabinete Português de Leitura e tinha por objetivo atender os ideais de “’comunidade’ relacionados à questão da cultura por-tuguesa, filantropia e instrução popular” (PAIXÃO, 2017, p. 215) no Rio de Janeiro. Foi talvez a primeira instituição na capital do Império a oferecer cursos noturnos gratuitos de instrução primária.
O Liceu também oferecia aulas de comércio para jovens e adultos que se mostrassem interessados na aprendizagem e no trabalho, logo em seguida passava a compor a classe caixeiral, muito comum naquele mo-mento. Entre os anos de 1868 a 1884, o Liceu formou cerca de 6.500 alu-nos.
O autor destaca a fundação de uma escola noturna que atendia jo-vens e adultos que não podiam frequentar escolas em outros horários. A escola era mantida pelo Gabinete Português. Há também a citação de ou-tra instituição, o Collegio Victorio da Costa, com o externato para meninos pobres, de propriedade de um dos membros do gabinete.
O último texto “Pelos caminhos da liberdade: sujeitos, espaços e prá-ticas educativas (1880-1888)”, Alexandra Lima da Silva e Ana Chrystina Mignot abordam as iniciativas de educação de escravos e libertos, bem como ressaltam o papel do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, que foi criado por funcionários do jornal Gazeta da Tarde e que era, então, dirigido por José do Patrocínio, uma importante figura dentro do movi-mento abolicionista.
Essa perspectiva, defendem as autoras, alarga a compreensão sobre a educação de cativos e libertos para além das escassas escolas que exis-tiam Brasil afora. O Centro Abolicionista, além de abrir e manter escolas primárias noturnas, promovia outras atividades como festas, espetáculos teatrais, musicais etc.
Através da análise de diversos periódicos que circulavam na cidade, as autoras encontraram várias escolas gratuitas que instruíam “menores e adultos livres, libertos e escravos, sem distinção de cor, nacionalidade ou religião” (SILVA; MIGNOT, 2017, p. 245).
Ao analisarem as ações do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, as autoras trouxeram à tona nomes como José do Patrocínio, José Ferreira de Menezes, Israel Soares, dentre outros, que compunham o quadro dos membros do movimento abolicionista. Ressaltam também que figuras como essas, ao escreverem em jornais, pretendiam conquistar a simpatia das elites para benefício de suas causas. No entanto, escreviam também para muitos libertos e descendentes de escravos que possuíam acesso a esses escritos.
Os textos que compõem a obra discutida aqui, com uma linguagem clara e objetiva, levantam questionamentos e desconstroem muitos mitos que se firmaram na historiografia brasileira, no caso específico, o de que as camadas populares no oitocentos estiveram alheias à cultura escrita, ou que sequer entendiam o valor da educação. É justamente isso que os textos buscam desmistificar ao mostrar que havia escolas noturnas, muitas delas mantidas por associações de dentro do movimento abolicionista. Tais escolas eram voltadas ao atendimento de trabalhadores, escravos e libertos, consequentemente uma parcela significativa de populares estavam inseridos no universo da cultura escrita e que, portanto, eram alfabetizados.
Giuslane Francisca da Silva – Doutoranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). Contato: giuslanesilva@hotmail.com.
No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central – DUTRA e SILVA (VH)
DUTRA e SILVA, Sandro. No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. 304 p. HEIZER, Alda. Natureza e Política: A ocupação de Mato Grosso de Goiás entre 1930 e 1950. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 65, Mai./ Ago. 2018.
No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central tem como objetivo apresentar o processo de ocupação de uma região de floresta tropical, mais conhecida como Mato Grosso de Goiás, a partir da análise das políticas de colonização entre 1930 e 1950.
O texto é bem escrito, distribuído em duas partes, ancorado em documentação textual e iconográfica variada, matéria-prima de rigorosa investigação. Privilegia a reflexão sobre os acontecimentos locais à luz de contextos mais amplos e se traduz numa contribuição efetiva “à internacionalização da História ambiental nas Américas” (Dutra e Silva, 2017, p. 16).
Com prefácio de Stephen Bell e apresentação de Donald Worster, ambos professores de universidades norte-americanas e autores preciosos para os argumentos apresentados, o livro propõe uma reflexão sobre como o mito do oeste em Goiás foi construído antes mesmo de se traduzir numa política governamental de colonização e imigração, proposta durante o Estado Novo (1937-1945).
De início, Sandro Dutra e Silva apresenta ao leitor suas escolhas teóricas bem como a opção feita por inserir suas próprias memórias, reforçando seu interesse pela representação do passado. O impacto causado pela cor do primeiro pôr do sol visto pelo autor, ainda menino, no Planalto Central e, mais tarde, ao revisitá-lo, nas descrições do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, de forma proustiana, é, no mínimo, instigante para quem inicia a leitura.
Além disso, para o autor, os sentidos que a paisagem do cerrado tiveram sobre ele são hoje muito mais afetivos e expressão de sua identidade goiana de raízes mineiras. É nesse momento que tem início a aventura do leitor, pelos versos de Cora Coralina, pelas descrições do menino de doze anos que olhava o Cerrado pela janela do automóvel do pai e por sua experiência acadêmica, em 2008, ao participar de um encontro da Sociedad Latinoamericana Y Caribeña de Historia Ambiental (Solcha), em Belo Horizonte – para o autor, um divisor de águas em suas pesquisas sobre a expansão da fronteira agrícola (Dutra e Silva, 2017, p. 29).
O livro oferece uma reflexão sobre o Oeste que ultrapassa a categoria de sertão: o Oeste Eldorado no Brasil central que se opõe a uma noção presente na historiografia brasileira sobre sertão como lugar hostil, terra de índios bravios.
Sandro Dutra e Silva, ao trabalhar fontes variadas, apresenta ao leitor elementos sobre o Oeste como “lugar” de promessas de terras livres, férteis e à disposição de homens e mulheres que se dispusessem a trilhar “a marcha para o Oeste”.
Num exercício constante de situar suas preocupações em um quadro teórico mais amplo no seio da história, e da história ambiental, em particular, o autor busca aproximações e distanciamentos com a tese do historiador norte-americano Frederick Jackson Turner (1861-1932) sobre o mito americano do começo absoluto, da identificação da marcha para o Oeste norte-americana, tão caros às discussões sobre fronteiras, mobilidade social e migrações, e que não poderiam estar de fora desse tipo de abordagem. O autor traz para a cena os autores brasileiros que se apropriaram em diferentes momentos da temática da fronteira, das reflexões sobre o homem e o mundo natural.
Ao apresentar o caso do Oeste brasileiro e o conteúdo ocupação e da colonização do Mato Grosso de Goiás, a obra traz suas especificidades: a destruição trazida pela expansão para o Oeste, a colonização de desflorestamento, a criação de projetos de cidades “signos do provisório” e a convivência lado a lado de projetos excludentes, espaços de modernidade e conservação, em análises muito bem sucedidas por meio de fontes documentais e vivência pessoal.
Um exemplo é o da cidade de Goiânia e o seu protagonismo no contexto da “marcha para o Oeste”. A cidade moderna, projetada em 1930, para seguir os passos de Belo Horizonte, sua precursora, mantinha traços da tradição rural, fato que causou estranhamento a Lévi-Strauss em sua visita, em 1937, ao testemunhar a convivência do palácio e os carros de boi num mesmo espaço (Dutra e Silva, 2017, p. 127).
Outro momento importante do livro é quando o autor traz à cena o lugar do povo outsider: “o outro lado do rio das almas”, a cidade estigmatizada, Barranca, como era conhecida. Anápolis, Ceres, sede da Colônia Agrícola de Goiás (CANG) e outros centros importantes “irradiadores das políticas de colonização”, estão presentes e são analisados historicamente.
Os personagens dessas histórias que se entrelaçam são muitos e poderíamos citar dentre eles Bernardo Sayão, que permitiu ao autor reconhecer os códigos através dos quais a história foi mediada (Dutra e Silva, 2017, p. 256).
Foi durante a década de 1940 e início dos anos 50 que o estado de Goiás utilizou uma intensa propaganda sobre migração e colonização bem como participou de parcerias com instituições e governos com a finalidade de atrair colonos, tanto nacionais como estrangeiros, para ocupar o território goiano. Período em que várias investidas de ocupação foram realizadas, como foi o caso dos alemães que, no pós-guerra, se instalaram no Paraná, mas que tiveram Goiás como primeira opção.
O livro chama a atenção para a criação de centros urbanos e analisa a formação das cidades na fronteira do Oeste do Brasil, consideradas núcleos de civilização. Barranca é um exemplo. Contrastes muito bem apresentados, como as imagens do baile da elite local no clube, o teatro e a rua, as imagens de Rialma, são contundentes.
Por fim, Sandro Dutra e Silva apresenta em seu livro questões que se localizam na fronteira de diferentes campos do saber e que estão na ordem do dia, como a destruição florestal e a perda da diversidade biológica.
O autor apresenta mudanças e permanências no tempo: não é essa afinal a tarefa a que se devem dedicar os historiadores?
Referências
DUTRA e SILVA, Sandro. No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. [ Links ]
Alda Heizer – Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Rua Jardim Botânico, 1008, Rio de Janeiro, RJ, 22.470-180, Brasil. alda.heizer@gmail.com.
Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850 | Roberto Guedes
Analisar as vivências de libertos e seus descendentes através de um conjunto variado de fontes, e conseguir reconstituir trajetórias de famílias com ascendência escrava numa área de produção agrícola para o mercado interno – e, por isso mesmo, representativa de regiões agrárias do Brasil escravista do século XIX – foi o que propôs Roberto Guedes em seu livro.
Este trabalho é resultado de sua tese de doutorado defendida na UFRJ em 2005, e tem como recorte espacial a vila de Porto Feliz, na capitania/província de São Paulo, no período de fins do século XVIII e início do XIX (especificamente a primeira metade do século XIX), e como tema central a mobilidade social. O autor procurou analisar as estratégias de ascensão social empreendidas por libertos e seus descendentes, tais como o trabalho, a estabilidade familiar, a inserção em redes de socialização, dentre outros. Para isso, utilizou como método de abordagem o proposto pela micro-história, realizando um trabalho intenso com diversos tipos de fontes, onde utilizou a técnica do cruzamento onomástico: listas nominativas de habitantes, registros paroquiais de batismo, casamento e óbito, inventários post-mortem, testamentos e prestação de contas de testamentos, notas cartoriais, licenças expedidas pela Câmara Municipal, processos crimes, etc. Assim, foi possível ao autor acompanhar por mais de quatro gerações as trajetórias de libertos e descendentes como, por exemplo, o caso da família Rocha.
Além do trabalho com as fontes, vale ressaltar o cuidado do autor em dialogar com a historiografia no decorrer do livro – como os trabalhos e pressupostos da historiadora Hebe Mattos (1995; 2000), referência nos debates propostos – importante não só para situar sua abordagem, apontar questões que está de acordo ou não, como também para comparar os dados levantados para Porto Feliz com os de outras localidades. Algumas questões importantes para a compreensão de seu livro são o fato do autor entender a sociedade de Porto Feliz como uma sociedade com traços de Antigo Regime e a escravidão como sendo parte integrante dela, ou seja, uma sociedade com traços estamentais e escravista, onde a mobilidade social é entendida não só pela mudança de posição na hierarquia social estamental, mas também pelo viés intragrupal e ainda “não deve ser confundida apenas com enriquecimento” (Guedes, 2008, p. 87). Antes, o mais importante era a manutenção e/ou a redefinição do lugar ocupado na hierarquia social, para o que a riqueza podia colaborar ou não. Desta maneira, Guedes procurou entender como se deu a trajetória de forros e descendentes, apresentando seu livro dividido em cinco capítulos, que se destacam pela riqueza de detalhes não só na forma de escrever, bem como através de quadros, gráficos, diagramas, que nos permitem perceber de forma ampla e precisa a vila de Porto Feliz e sua população.
Primeiramente, é apresentada a paisagem agrária da pequena Porto Feliz, que até 1797 era a freguesia de Araritaguaba, quando foi elevada a vila. Durante todo o século XVIII, este lugarejo foi fundamental na rota fluvial das monções quando se descobriu minas de ouro em Coxipó-Mirim e Cuiabá. Já nos primeiros anos do século XIX, o comércio das monções teve sua importância diminuída devido ao surgimento de outras rotas, o que coincidiu com o desenvolvimento da economia canavieira no oeste paulista, desenvolvimento que Porto Feliz acompanhou, se inserindo entre os municípios situados no “Quadrilátero do Açúcar”, área compreendida entre Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçú e Jundiaí.
Guedes mostra como o cultivo da cana-de-açúcar, voltado para o mercado externo à vila, estimulou o desenvolvimento de Porto Feliz, possibilitando o crescimento do “miolo urbano” com construção de algumas casas, instalação de vendas; influenciou também o aumento da população, principalmente da população escrava em função do tráfico de cativos para trabalhar nas lavouras; estimulou o mercado de animais e a criação de gado para alimentação e para moverem os engenhos, e também a produção de alimentos como milho, feijão, arroz, entre outros, destinados ao consumo próprio e comercializados na vila. Inicialmente, foram os pequenos escravistas que participaram plenamente da atividade açucareira, mas a partir de 1820-1824 os grandes produtores aumentaram sua participação e intensificaram a concentração da propriedade escrava. Para a montagem de um engenho era preciso cabedais, e o crédito foi fundamental para o financiamento, assim como o fato dos senhores de engenho se dedicarem a outras atividades como negócio de fazendas secas, lavouras, o comércio das monções, etc.
Ao verificar em seus dados levantados para Porto Feliz o exercício de outras atividades pelos principais da terra, Roberto Guedes estabelece um intenso diálogo com a historiografia, tendo o „trabalho‟ como questão importante. Assim, a partir do conceito de trabalho de Caio Prado Jr. no passado colonial/imperial no Brasil e da análise de outros estudos que seguem a mesma perspectiva, o autor matiza a idéia de que o defeito mecânico e a escravidão inviabilizaram o trabalho livre não só no sentido de ocupação de espaços nas esferas produtivas, mas também no de imputar estigma social a trabalhadores, em especial a forros e descendentes. Tendo como base estudos como os do historiador João Fragoso, comparando os dados levantados para outras localidades com Porto Feliz, Guedes constatou que as elites locais dedicavam-se a outras atividades como comércio e que não deixaram de ser estimados socialmente. Desta forma, podiam não ter uma ideologia negativa do trabalho e, por isso, afirma a importância de se analisar cada realidade local e temporal e “ressaltar as nuances que as noções de trabalho tiveram na colônia/império e entre distintos segmentos sociais” (Guedes, 2008, p. 76). Desta maneira, o autor concentra sua análise nos indivíduos que não eram membros da elite, especificamente forros e descendentes, analisando o trabalho como uma das estratégias, uma das várias formas de mobilidade social.
Para abordar este grupo, Guedes se baseou em concepções de Stuart Schwartz (1988) e Hebe Mattos, se fundamentando nas questões de que a escravidão impunha referenciais de hierarquia distinguindo social e juridicamente escravos, livres, forros e descendentes de escravos e que a transposição de uma categoria jurídica a outra e o posterior afastamento de um antepassado escravo pressupõem passos na hierarquia social, para o qual a cor da pele podia estar relacionada. Assim, o autor analisa através de listas nominativas e mapas de habitantes, o trabalho relacionado a cor/condição social, e verifica como a ocupação diferenciou forros e descendentes de escravos e ambos entre si, corroborando com evidências de que o trabalho propiciava mobilidade social expressas na cor.
É válido ressaltar a preocupação do autor em relação ao cuidado que se deve ter durante a análise desses documentos, no que diz respeito à questão de quem atribuiu ou auto- atribuiu a cor e de quem faz o registro, além da variação nas fontes, etc, pois nem sempre há consonância entre os termos utilizados por autoridades que elaboraram os mapas e os utilizados por recenseadores que fizeram as listas, mesmo que ambos se referissem a uma mesma cor/condição social. No geral, Guedes constatou, por exemplo, que a escravidão influenciou nas cores das pessoas em Porto Feliz e que o trabalho influenciou na oscilação da cor, o que era frequente. Em relação ao registro da cor, percebeu que o termo mulato pode ter tido um sentido pejorativo, e que ser caracterizado como branco marcava uma diferenciação fundamental em relação aos escravos e um distanciamento maior da escravidão em relação aos pardos. Enfim, na análise proposta pelo autor, a hierarquia e a posição social manifestas na cor eram fluidas e dependiam de circunstâncias sociais.
Vista pelo autor como o primeiro passo na hierarquia social, a alforria era onde os forros se diferenciavam dos escravos, por isso Guedes também procurou analisar como se dava essa passagem da escravidão para a liberdade, bem como alguns caminhos que conduziam à liberdade e seus momentos posteriores. O autor compreende a alforria como uma troca equitativa entre senhores e escravos, mas obviamente baseada na desigualdade, ou seja, uma relação de troca assentada na reciprocidade, sem esquecer que reciprocidade não é sinônimo de equivalência. Assim, nesta relação, do ponto de vista do escravo, o autor destaca a questão da submissão, que implica reconhecimento do poder senhorial, que juntamente com a obediência e os bons serviços prestados, podem ser vistos como estratégias de mobilidade social, uma vez que submissão não deve ser entendida apenas de forma unilateral, sendo necessário atentar para o interesse do submisso pela submissão, através das quais se podiam alcançar vantagens.
Outras formas de alforrias, de estratégias, destacadas pelo autor foram casos que, segundo ele, não eram frequentes, de ascensão social de cativas e/ou de seus filhos derivada de relações sexuais/afetivas com seus senhores, onde as ex-escravas e/ou seus filhos, além da liberdade, também herdaram alguns bens dos senhores. O matrimônio foi outro exemplo de forma de alforria, pois existiram casos de casamento de libertos(as) com escravas(os), onde a última foi alforriada. E uma vez inseridos na nova condição jurídico social, foi importante estabelecer relações sociais, as quais tinham sempre que ser reatualizadas para manutenção da nova posição, seja pelos forros ou seus descendentes.
É no último capítulo que percebemos a análise do autor por completo, pois através das trajetórias de algumas famílias ele comprova todas as suas hipóteses: a mobilidade social, seu tema central, relacionada conjuntamente ao trabalho, estabilidade familiar, mostrando a solidariedade intragrupal e a inserção em redes de sociabilidade, como as alianças com potentados locais, tudo isso associado à mudança no registro da cor da pele. Foram nessas trajetórias que o autor propôs aplicar o método da micro-história, e realizou o cruzamento de diversos tipos de fontes, analisando a mobilidade social dos egressos da escravidão, onde as trajetórias foram descritas passo a passo a fim de apreender tais estratégias.
Encontrando pontos em comum nessas trajetórias, o autor mostrou que o trabalho podia ser percebido de forma positiva e ainda poderia propiciar margens de autonomia e ascensão social para forros e descendentes, não só em termos materiais, mas também no que diz respeito à reputação, às questões de reconhecimento e atuação social. Sobre a família e a inserção em redes de sociabilidade, os vínculos se percebem, por exemplo, nas relações de compadrio, e mesmo os que conseguiram ascender à condição de escravistas, não implicava o afastamento em relação aos seus iguais. Estes mantinham as relações horizontais, já que não havia porque fechar portas em um mundo instável, apadrinhavam filhos ou eram testemunhas de casamentos de escravos ou forros, mas para apadrinhar seus filhos preferiam pessoas com títulos como donas, tenentes, capitães, etc. Assim, Guedes nos fala da “transformação” de alguns pardos em brancos, como alguns pardos conseguiram se inserir no mundo senhorial, mostrando os fatores associados à mobilidade social também como um processo geracional.
O livro de Roberto Guedes, portanto, mostra como a mobilidade social contribuía para a manutenção de hierarquias sociais, não estando acessível a todos, mas tornando possível a forros e seus descendentes atuarem numa sociedade caracterizada pela desigualdade. O trabalho de Guedes contribui para estudos sobre a escravidão que se voltam para substituir a ideia de “vítima” pela de “agente social”, ou seja, o escravo como um ser ativo na dinâmica da sociedade. Também é importante para estudos que buscam entender a participação social de libertos e seus descendentes, deixando de lado a visão de uma sociedade bipolarizada entre senhores e escravos, com aquele grupo incluído entre os vadios, os desclassificados sociais, com poucas chances de ascensão social; estudos que se voltam para a análise dos usos e significados sociais dos designativos de cor, bem como os que abordam a alforria, principalmente com enfoque para áreas rurais, o que pode servir também para estudos comparativos entre regiões urbanas e rurais.
Referências
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
______. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550- 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Iara de Oliveira Maia – Mestre, licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail: iaramaia_ufop@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4762-4836
GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008. Resenha de: MAIA, Iara de Oliveira. Os significados da mobilidade social para forros e seus descendentes. Caminhos da História. Montes Claros, v.22, n.2, p.121-125, jul./dez.,2017. Acessar publicação original [DR]
Professores de história: entre saberes e prática | Ana Maria Monteiro
Entre diversos livros que abordam a temática do ensino de História, por que o livro da professora Ana Maria Monteiro continua tendo muito a nos dizer mesmo dez anos depois de sua publicação? Esta é a pergunta que move o desafio de escrever sobre este trabalho que foi apresentado inicialmente como tese de doutoramento em 2002 e publicado em forma de livro em 2007.
Dentre os seus interesses de pesquisa estão os temas do currículo, conhecimento escolar e disciplinas escolares, identidade profissional, saberes ensinados. Leia Mais
Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX – DEMETRIO et al (RIHGB)
DEMETRIO, Denise Vieira; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos; GUEDES, Roberto (orgs.). Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. Resenha de: TAVARES, Luiz Fabiano de Freitas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 178 (474) p.343-349, maio/ago. 2017.
Segundo um de nossos mestres maiores, Sérgio Buarque de Holanda, uma das funções sociais do historiador consistiria em exorcizar os fantasmas do passado. Entre os espectros do nosso Brasil podemos contar a experiência histórica da escravidão, que ainda nos assombra, passados já cento e trinta anos da abolição. Objeto ainda de discussões sobre o presente e de polêmicos projetos para o futuro do país, o tema convida sempre o historiador a retomar e renovar a reflexão sobre esse fenômeno social que gostaríamos talvez de esquecer. Assim sendo, são sempre bem -vindos estudos como Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos, organizado por Denise Vieira Demetrio, Ítalo Domingos Santirocchi e Roberto Guedes.
Vale destacar, antes de tudo, a qualidade de composição da obra enquanto conjunto, uma vez que os capítulos se articulam com notável harmonia, complementando-se mutuamente de modo muito consistente – virtude importantíssima para qualquer obra coletiva. Não vemos no livro uma colcha de retalhos apressadamente costurada, mas um conjunto orgânico, dando-se a perceber como fruto de um diálogo amplo e continuado entre seus autores, ligados aos projetos Governos, resgates de cativos e escravidões (Brasil e Angola, séculos XVII e XVIII) e Testamentos e hierarquias em sociedades escravistas ibero-americanas (séculos XVI -XVIII), ambos coordenados pelo professor Roberto Guedes desde 2011.
O próprio título já é bastante feliz: a contraposição entre “escravizar gente” e “governar escravos” explicita as incontornáveis tensões e contradições vivenciadas em sociedades baseadas no trabalho escravo, exploradas de modo muito rico em suas múltiplas facetas ao longo dos capítulos do livro. Recorrendo à diversificada gama de fontes primárias, os autores perseguem com grande consistência empírica os rastros documentais tanto da gente escravizada quanto da gente que governava escravos – por sinal, gente que, às vezes, tanto foi escravizada quanto governou escravos, em diferentes momentos da vida, no que poderia parecer um paradoxo para nós do século XXI. Evitando compromissos fáceis com modismos acadêmicos ou causas sociais e políticas do presente, os autores analisam suas fontes sem ceder a interpretações de ordem teleológica acerca de problemas que ainda hoje nos acompanham, nem ao uso anacrônico do conceito de racismo, que, como salienta Guedes, em certas abordagens historiográficas recentes “se tornou tão largo que explica tudo, ou nada”2.
Recorrendo a testamentos, registros de batismo, recenseamentos, correspondências administrativas, periódicos e relatos de viagem, entre outros gêneros de documento, os autores nos apresentam um curioso elenco de personagens célebres ou nem tanto do mundo escravista dos dois lados do Atlântico, como Maria Correia de Sá, forra e senhora de escravos, Braz Leme, apresador de índios e pai de muitos mestiços, D. Paschoal, jaga de Cassange e (suposto) vassalo da coroa lusitana, D. Antônio Viçoso, “bispo ultramontano e antiescravista” ou ainda László Magyar, aventureiro húngaro nos sertões e costas angolanos, entre muitos outros.
Os capítulos alternam diversas escalas de análise, alguns centrados em trajetórias individuais, outros voltados à análise serial em escala regional, por vezes combinando métodos quantitativos e qualitativos de análise. A exemplo de outros grandes trabalhos em história atlântica, os estudos exploram de modo rico as dimensões partilhadas e imbricadas de experiências americanas e africanas. Sob esse aspecto, há que ressaltar a atenção concedida às práticas de escravidão vigentes em África, lançando nova luz sobre alguns aspectos da vivência da escravidão na América, apontando interseções e divergências entre as duas margens daquele “rio chamado Atlântico”. Também do ponto de vista cronológico há grande variedade de abordagens, enfatizando tanto processos de curta quanto de longa duração, de modo a desvelar as complexas e variadas temporalidades da escravidão atlântica entre os séculos XVII e XIX. O desdobramento dos capítulos permite refletir sobre continuidades e descontinuidades ao longo de todo esse período, apresentando a escravidão não como um bloco monolítico, mas como uma série de momentos distintos, um conjunto de experiências singulares, interligadas, mas não homogêneas, cada uma delas refletindo e refratando as dinâmicas mais amplas de uma América portuguesa, uma África não tão lusitana e um mundo atlântico em perpétuo movimento. Bom exemplo disso são as complicadas relações entre o jaga de Cassange e a coroa lusitana exploradas por Flávia Maria de Carvalho, que, embora vertidas no familiar idioma da vassalagem, revelam dimensões muito mais complexas, nem de parceria, nem de rivalidade, nem de dominação, nem de submissão – ou melhor, são um pouco de cada, à medida que se mostram diplomáticas, tanto quanto dialéticas: desdobram-se na duração, a partir dos encontros e desencontros de tensos cúmplices do trato negreiro3.
Uma característica digna de destaque é o apuro terminológico da obra, cujos autores se mostram atentos aos riscos de usar variados termos de modo anacrônico, reducionista ou reificado, salientando muitas vezes que essas noções não eram usadas de maneira linear ou uniforme em todos os contextos abordados, lembrando a polissemia de diversas palavras importantes no léxico da escravidão. Nesse sentido, são interessantes as anotações de Éva Sebestyén sobre as categorias de escravos que o idioma ovimbundu distinguia, como háfuka (escravo de penhor), em oposição ao pika ou dongo (escravo de compra), cujos respectivos estatutos jurídicos e perspectivas de vida no sobado de Bié eram bastante diferenciados, ou ainda sobre as distintas formas de fuga reconhecidas, como vatira, tombika ou kilombo. Seguem caminho semelhante as observações de Silvana Godoy acerca dos ambíguos significados de termos como alforria ou liberdade nos testamentos da São Paulo seiscentista. Da mesma forma, Guedes propõe interessantíssima discussão acerca do uso das “qualidades de cor” como negro, preto, mulato, pardo ou branco – qualificações que, muitas vezes, podiam ser aplicadas ao mesmo indivíduo em momentos, e principalmente, em circunstâncias distintas4.
Algumas problemáticas atravessam diversos capítulos da obra. Uma delas é a questão da heterogeneidade da classe senhorial; longe de constituir um grupo homogêneo e coeso, sua composição aponta para um caráter extremamente diversificado. Entre os senhores de escravos se encontravam desde os grandes pecuaristas e senhores de engenho aos pequenos agricultores e mesmo boa quantidade de egressos do cativeiro, alguns até nascidos em terras africanas; senhores que contavam seus escravos nos dedos de uma mão, e aqueles que os contavam às centenas. Ao que tudo indica, é provável que esses senhores com perfis tão variados mantivessem relações igualmente diversificadas com seus cativos. O estudo de Ana Paula Souza Rodrigues Machado investiga testamentos em busca de pistas sobre como diferentes senhores no recôncavo da Guanabara conduziam suas respectivas escravarias, enquanto o capítulo de Márcio de Souza Soares traça amplo panorama das peculiaridades da demografia da escravidão na região de Campos dos Goytacazes entre 1698 e 1830; Nielson Rosa Bezerra e Moisés Peixoto, por sua vez, estudam as trajetórias de duas senhoras egressas do cativeiro. Por fim, como ressalta Demetrio, a coisa podia se complicar ainda mais quando o senhor de escravos era também funcionário a serviço da Coroa5.
Outra rica problemática explorada pela obra é a questão da alforria em seus múltiplos aspectos. As situações de alforria estudadas pelos autores são interessantes não apenas enquanto testemunhos dessa prática, mas pela luz mais ampla que jogam sobre o próprio cotidiano da escravidão.
Em seu conjunto, os estudos enfatizam que em episódios específicos as modalidades jurídicas sob as quais a prática podia se dar contavam tanto quanto – ou até menos que – as motivações para sua realização, bem como os diferentíssimos significados com que os envolvidos em cada caso podiam investi-la. As detalhadíssimas instruções testamentárias deixadas por alguns senhores, alforriando certos escravos e deixando outros no cativeiro, legando aos libertos mais ou menos bens, exigindo ou impondo condições diferenciadas para cada remissão sugerem quanto de singularidade as relações entre um senhor e cada um de seus cativos podia comportar. O livro nos apresenta a alforria como fenômeno complexo, envolvendo dimensões de barganha e disciplina, cálculo econômico e gratidão, afeição e piedade cristã, entre outras possibilidades.
Desse modo, os autores exploram a alforria para além da prosa jurídica, abordando-a como um costume cujas implicações repercutiam em todas as esferas da sociedade escravista; longe de ser mero problema de razão econômica, atravessava os domínios da sexualidade e da religiosidade, do cotidiano doméstico e da governança pública, do nascimento e da morte.
Em seus variados registros documentais, os episódios de alforria permitem entrever a multiplicidade de vínculos entre senhores e escravos, livres, libertos e cativos, superando as simples relações dicotômicas entre opressores e oprimidos.
No desenrolar de seus capítulos, a obra também explora, com significativo rendimento analítico, as imbricações entre a escravidão e a religiosidade cristã; não poderia ser de outro modo numa sociedade profundamente católica e amplamente escravista. O cativeiro era, obviamente, objeto de controvérsias teológicas, mas essas interseções são igualmente visíveis enquanto problema moral, nas alforrias concedidas por amor de Deus ou por descargo da consciência, como discute Godoy. Também se refletia nas dimensões litúrgicas da vida, como o batismo, que tanto produzia parentesco espiritual como conformava o cotidiano de escravos, libertos e livres nas relações de compadrio, como Maria Lemke analisa cotejando registros de batismo. Também era tema de política eclesiástica, conforme exploram Ítalo Domingos Santirocchi e Manoel de Jesus Barros Martins em seu excelente capítulo sobre D. Antônio Viçoso, que propõe questionamentos importantes acerca das relações históricas entre a Igreja Católica e a escravidão no Brasil, convidando a repensar os significados do ultramontanismo no Império, bem como o conteúdo específico do conservadorismo professado pelo clero ultramontano, para além de estereótipos historiográficos consagrados6.
Por fim, vale mencionar os últimos capítulos do livro, centrados principalmente nas dinâmicas escravistas em solo africano, enfatizando principalmente as dimensões diplomáticas das relações estabelecidas entre autoridades lusitanas e poderes políticos africanos, como o estudo de Ariane Carvalho, devotado às dinâmicas guerreiras entretidas em terras angolanas, ou ainda o capítulo onde Ingrid Silva de Oliveira Leite explora
as sutis nuances dos escritos de Elias Alexandre da Silva Correa, militar português que servira em África no século XVIII7.
Evidentemente nenhum livro conseguiria exorcizar os fantasmas da escravidão em nossa formação nacional, mas Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos certamente traz valiosas contribuições para se pensar sobre o assunto a partir de um trabalho empírico denso e metodologicamente robusto, escorado em interlocuções historiográficas consistentes e questionamentos teóricos instigantes, a um só tempo olhando para o passado e dialogando com questões atuais de modo delicado, prudente e desapaixonado, com as melhores ferramentas que a crítica acadêmica pode oferecer.
1 – Luiz Fabiano de Freitas Tavares – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional. Autor dos livros Entre Genebra e a Guanabara – A discussão política huguenote sobre a França Antártica (Topbooks, 2011), Da Guanabara ao Sena – Relatos e cartas sobre a França Antártica nas Guerras de Religião (EdUFF, 2011) e A ilha e o tempo – Séculos e vidas de São Luís do Maranhão (Instituto Geia, 2012).
2 – Cf. GUEDES, Roberto. “Senhoras pretas forras, seus escravos negros, seus forros mulatos e parentes sem qualidades de cor: uma história de racismo ou de escravidão?”. In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Ítalo Domingos e GUEDES, Roberto (org.). Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017, pp. 31-33, 43-45.
3 – Cf. CARVALHO, Flávia Maria de. Uma saga no sertão africano: o jaga de Cassange e a diplomacia comercial portuguesa no final do século XVIII. In: DEMETRIO, Denise Vieira. SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 227-252.
4 – Cf. SEBESTYÉN, Éva. Escravização, escravidão e fugas na vida e obra do viajante explorador húngaro László Magyar (Angola, meados do século XIX); GODOY, Silvana. Alforrias de forros indígenas: pelo amor de Deus e por descargo da consciência (São Paulo, século XVII). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 173-196, 291-312.
5 – Cf. MACHADO, Ana Paula Souza Rodrigues. Testemunhos da mente: elites e seus escravos em testamentos (Fundo da Baía do Rio de Janeiro, 1790-1830); SOARES, Márcio de Souza. Angolas e crioulos na planície açucareira dos Campos de Goytacazes (1698-1830); BEZERRA, Nielson Bezerra e PEIXOTO, Moisés. Gracia Maria da Conceição Magalhães e Rosa Maria da Silva: os testamentos como documentos autobiográficos de africanos na diáspora; DEMETRIO, Denise Vieira. Artur de Sá e Meneses: governador e senhor de escravos. Rio de Janeiro, século XVII. In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 51-108, 125-172.
6 – LEMKE, Maria. Nem só de tratos ilícitos se forma uma família no sertão dos Guayazes. Os Gomes de Oliveira diante da pia batismal, c. 1740-1840; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos e MARTINS, Manoel de Jesus Barros. “Quanto ao serviço dos escravos, eu os dispenso”: D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo ultramontano e escravista (século XIX). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. org.), op. cit., pp. 109-124, 197-224.
7 – CARVALHO, Ariane. “E carrega de cativos os vencedores”: guerra e escravização no reino de Angola (1749-1772); LEITE, Ingrid Silva de Oliveira. Tráfico e escravidão em Elias Alexandre da Silva Corrêa (Angola, século XVIII). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 253-290.
Páginas da arte, páginas da vida – DIAS (CN)
DIAS, Rosa. Páginas da arte, páginas da vida. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016. Resenha de: GONÇALVES, Alexander. Cadernos Nietzsche, v.38 n.1 São Paulo jan./abr. 2017
O tema da arte atravessa toda a produção bibliográfica de Rosa Dias. Desde o seu Nietzsche e a Música (Rio de Janeiro: Imago, 1994) até Nietzsche, vida como obra de arte (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011), a arte tem sido protagonista de uma reflexão que se move sempre no sentido de assumir o compromisso nietzschiano de superar os limites entre pensamento e vida, entre vida e arte. Em Páginas da vida, páginas da arte (Rio de Janeiro: Mauad X, 2016), este compromisso é uma vez mais afirmado e o resultado é uma obra cuja constituição teórica vem sempre acompanhada de um olhar sensível sobre a vida. Assim, os dez capítulos que compõem o livro apresentam a relação entre vida e arte de maneira programática e sob perspectivas teóricas diversas.
Já de início, em Homenagem ao professor Gerd Bornhein, o reconhecimento da autora ao intelectual gaúcho e seu importante legado para a filosofia e para a crítica da arte não está alheio ao sentimento de gratidão da aluna em relação ao mestre e educador, que pelos caminhos da vida diz ter encontrado a arte e que, pela via da arte, passou a pensar a vida.Em Uma filosofia do amor em Cartola, a crítica à atual situação de indiferença da cultura brasileira em relação aos seus “grandes homens”dá ensejo a considerações de notória inspiração nietzschiana acerca da obra de Angenor de Oliveira, o Cartola. Dentre elas, destaco aquela em que Rosa Dias sugere que a poesia e a música do compositor carioca emanam de um sentimento profundo de afirmação do amor, que também é, em última análise, afirmação da dor e do sofrimento, enfim, da própria vida em sua condição trágica. A relação entre arte e sociedade é o objeto dos dois capítulos seguintes, momento em que a autora investiga, com Platão e Aristóteles, o papel que a música desempenha na vida do homem grego.Em Música e tragédia no pensamento de Platão, a autora procura avaliar o intento platônico de provocar profundas transformações no ethos grego tomando como ponto de partida uma revolucionária normatização dos procedimentos musicais da cidade ideal. Já no que diz respeito às idéias musicais de Aristóteles, em A música no pensamento de Aristóteles a autora se ocupa de apresentar, além da função político-pedagógica que a música assume em Aristóteles – e que este herda do mestre ateniense uma nova função de natureza psicológica: a purificação. Assim, ao apontar para o lugar de preponderância que a música ocupa no pensamento e na vida dos helenos, seja no âmbito político-pedagógico da Paidéia platônica, seja no registro psicológico da catarse aristotélica, Rosa Dias põe a nu a indiferença hodierna no que tange a relação entre música e a vida assinalando o abismo interposto entre nós e os antigos. Em “O autor de si mesmo”: Machado de Assis, leitor de Schopenhauer, o ponto de partida da reflexão será a inspirada interpretação machadiana da “metafísica do amor” do filósofo de Danzig. Dias resgata de maneira muito precisa e interessante alguns pontos consoantes às visões de mundo dos dois autores para, a partir daí, demonstrar de que maneira o “grande drama da existência humana”, drama em que o amor é protagonista, é posto em cena no afã de explicitar o pessimismo constitutivo de ambos em relação à felicidade humana e à vida.“Ecos” da filosofia de schopenhaueriana “ressoam” também na obra do escritor francês Marcel Proust. Em Proust: um leitor de Schopenhauer, o esforço da autora consiste em demonstrar a influência do pensador alemão no modo como Proust compreende o processo de criação estética. A busca incansável do narrador proustiano pela matéria de sua literatura; os esforços empregados pelo escritor na tarefa de apreensão e fixação dos signos sensíveis de sua arte; tudo isso é analisado sob a perspectiva da “metafísica do belo” de Schopenhauer e avaliado segundo o modo como este filósofo pensa o processo de apreensão das essências das coisas e a sua reprodução na arte. Os quatro últimos capítulos, todos eles dedicados ao pensamento de Nietzsche, nos oferecem uma visão panorâmica do modo como o filósofo alemão tratou a relação entre a vida e a arte desde suas reflexões juvenis até a constituição de seu pensamento maduro, o que deixa evidente a familiaridade da autora com o tema e com o corpus nietzschiano.Assim, enquanto Metafísica do gênio nas extemporâneas de Nietzsche explora as teses que o jovem Nietzsche apresentou, sobretudo em sua Terceira Extemporânea, em torno da problemática da “estética do gênio”, Do Imaculado Conhecimento: “olhos ébrios de lua” procura investigar na obra madura, de maneira especial no Zaratustra, os desdobramentos desta alegoria contida no título no sentido de reconstituir a crítica que Nietzsche dirige ao conhecimento puro, teórico e abstrato.Na sequência, Arte e vida no pensamento de Nietzsche procura abordar de maneira direta a relação arte e vida. Como já é anunciado nas linhas iniciais, o escopo aqui consiste em explicitar a concepção de vida como obra de arte na obra de Nietzsche. Percebe-se aqui certa insuficiência analítica que talvez resulte da amplitude do corpus escolhido, o que resta à autora dar à questão um tratamento panorâmico tornando inviável qualquer análise mais exaustiva. O confronto entre Nietzsche e Bergson fecha o livro de Rosa Dias. Em A questão da criação em Nietzsche e Bergson, o objetivo consiste em avaliar este confronto a partir do conceito de “criação”, isto é, do modo com que cada um destes filósofos pensou a vida como ato criador e, talvez, como obra de arte.
Fruto de longa reflexão e trabalho duro, Páginas da vida, páginas da arte oferece ao leitor, numa linguagem leve e elegante, uma reflexão sensível e plena de estímulos acerca daquele que talvez seja, para Rosa Dias, o seu tema mais caro: a relação entre vida e arte.
Alexander Gonçalves – Professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Correio eletrônico: alexandergoncalves@uenp.edu.br
Portugal: a revolução e a descolonização | Maurício Paiva
Resenhista
Juvenal de Carvalho Conceição – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: juvenal@ufrb.edu.br Leia Mais
Pesquisa em Ensino de História / Ana M. Monteiro, Warley da Costa, Carmen T. Gabriel e Cinthia M. de Araújo
Abordando diferentes perspectivas teórico-metodológicas e múltiplas abordagens epistemológicas, o livro ora resenhado é uma coletânea composta por 16 artigos, contando com uma apresentação elaborada pelas organizadoras – Ana Maria Monteiro, Carmen Teresa Gabriel, Cinthia Monteiro de Araújo e Warley da Costa – e um prefácio de Circe Fernandes Bittencourt. Ao longo do trabalho, predomina a marca institucional do lugar de pertencimento dos autores envolvidos, pois estes integram o Núcleo de Estudos de Currículo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEC/UFRJ), sendo em sua maioria também vinculados ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História (LEPEH/UFRJ). Essa especificidade confere coerência interna, apesar da heterogeneidade nos pontos de vista, em torno de uma questão-chave: o reconhecimento desse campo de pesquisa como fronteira permeável em que referenciais de ambas as áreas – Educação e História – encontram-se articulados.
Há grande diversidade temática entre os artigos, alguns dos quais são extratos de pesquisas de mestrado e doutorado no âmbito NEC/LEPEH. Entre os vinte autores e autoras da coletânea há, também, grande diversidade no que tange à filiação institucional: são docentes do Ensino Superior, docentes da Educação Básica, pesquisadores; doutores, mestres, graduados, mestrandos e doutorandos.
O conjunto de textos reunidos no livro oferece subsídios consistentes para a discussão dos impasses epistemológicos contemporâneos e apostas políticas no cenário da educação básica pública, particularmente no campo de ensino da referida disciplina, compreendido como um espaço de disputas e variadas possibilidades investigativas.
A proposta explicitada pela obra contribui substancialmente para o adensamento do debate acadêmico atual, propondo novas perspectivas com base no olhar de pesquisadoras e pesquisadores em relação ao “espaço-tempo de fronteira” entre Educação e História, ambiente no qual se reconfiguram distintas interpretações a partir das interações dialéticas entre os dois campos de saber. Dessa forma, a publicação reúne análises diversificadas sobre currículo, teoria, ensino, historiografia, livro didático, tensionamentos políticos e identitários, legislação educacional, experiências e saberes docentes e demandas sociais, entre outros aspectos inter-relacionados ao “fazer pesquisa” em História escolar.
O propósito central das discussões converge para o enfrentamento dos dilemas político-institucionais ligados ao reconhecimento e valorização do potencial da escola pública como lócus privilegiado de difusão e democratização de bens culturais, incluindo o conhecimento científico. E paralelamente, está vinculado a uma intencionalidade, a um posicionamento político em defesa da função social do conhecimento histórico como instrumento cognitivo relevante para a significação de nossas experiências temporais diante das exigências do momento presente. Ao mesmo tempo, assume um desafio epistemológico, articulando campos distintos e mobilizando discursos da historiografia, das teorias do currículo, da didática e da pedagogia que construam sentido e legitimidade para o ensino da disciplina de História.
Os textos foram organizados em três blocos temáticos intitulados, respectivamente, “diálogos teóricos possíveis”; “aula de História como espaço-tempo de fronteira” e “livros didáticos de História e pesquisa em ensino de História – múltiplas apropriações”.
A primeira parte compõe-se de cinco artigos que discutem a relação entre História e Educação, enfatizando seus aspectos teórico-metodológicos com centralidade no debate epistemológico. O texto de abertura, “Currículo de História e narrativa: entre desafios epistemológicos e apostas políticas”, das organizadoras Ana Maria Monteiro e Carmen Teresa Gabriel, convida à reflexão sobre os sentidos de narrativa, suas possibilidades e limites epistemológicos para problematização de questões educacionais contemporâneas, dialogando com referenciais pós-críticos, com destaque para Stuart Hall, bem como fundamentando-se no paradigma narrativista (Hartog e Ricoeur). Em seguida, Fernando de Araújo Penna nos apresenta “A Relevância da Didática para uma Epistemologia da História”. O autor propõe uma discussão teórica sobre a epistemologia da disciplina, para além do campo de produção acadêmica, destacando a relação desses saberes com um espectro social mais amplo. Partindo de um viés historiográfico, Penna sugere uma nova apropriação do conceito de operação historiográfica tecido por Certeau, articulando-o ao conceito de transposição didática proposto por Chevallard para estabelecer uma conexão entre Epistemologia e Didática, em um movimento de deslocamento da produção de conhecimento histórico escolar para o âmbito da operação historiográfica, tornando Didática e Epistemologia “indissociáveis” (p.50).
Os três artigos subsequentes introduzem outras perspectivas de articulação entre História e Educação, possibilitadas pela análise do currículo e da trajetória dessa disciplina no contexto escolar brasileiro. Em seu trabalho intitulado: “A História e os Estudos Sociais, entre tradição acadêmica e tradição pedagógica: o Colégio Pedro II e a reforma educacional da década de 1970”, Beatriz Boclin Marques dos Santos estuda o impacto e as resistências da Lei de Diretrizes e Bases 5.692/1971 no currículo daquela instituição, onde, a despeito da orientação legal, a disciplina História manteve-se como disciplina autônoma.
Investiga as características da dinâmica curricular da disciplina Estudos Sociais imposta em 1971 e suas implicações para o ensino de História, referenciando- se nos “padrões de estabilidade e mudança” propostos por Ivor F.
Goodson. O trabalho de Rodrigo Lamosa, “O ensino de História e as transições paradigmáticas no contexto da nova regulação do trabalho docente” traz importantes considerações sobre as transformações no ensino de História e nas condições e formas de regulação das atividades profissionais docentes nessa área, a partir do período de redemocratização. Lamosa demonstra que as avaliações externas e as parcerias empresariais têm empurrado o ensino de História a uma pedagogia tradicional, posto que “os modelos baseados no adestramento dos alunos para a realização dos exames estão sendo difundidos pelas escolas” (p.77).
Posteriormente, Marcele Xavier Torres e Marcia Serra Ferreira, no artigo “Currículo de História: reflexões sobre a problemática da mudança a partir da Lei 10.639/2003”, tecem, em diálogo com Hannah Arendt, considerações a respeito da inserção do componente História e cultura africana e afro-brasileira, avaliando seus impactos para o ensino de História. As autoras reconhecem a importância de instrumentos legais, mas afirmam a sua insuficiência na mudança de uma tradição eurocêntrica se a tradição expressa na cultura escolar não for, ela própria, objeto de mudanças.
Nos cinco textos reunidos no segundo bloco da coletânea, o foco principal está na análise das relações discursivas estabelecidas entre sujeitos do processo ensino-aprendizagem e conhecimento histórico escolar. Abrindo essas discussões encontra-se o artigo “Identidades Sociais: produção de sentido nas enunciações de uma docência”, no qual Ana Paula Taveira Soares apresenta resultados de sua pesquisa empreendida no mestrado sobre currículo e linguagem nas negociações de sentidos que constituem, qualificam e transformam as marcas identitárias presentes nos discursos dos docentes em suas aulas de História, enquanto práticas discursivas sociais. No artigo seguinte, “A produção de sentido na História ensinada e sua relação constitutiva com o espaço- -tempo”, Patrícia Bastos de Azevedo reflete sobre a História ensinada, as contingências e os constrangimentos que permeiam esse tempo-espaço composto por múltiplas forças histórico-sociais que compõem a cultura escolar e limitam/ delimitam a ação do professor, compreendido como protagonista desse processo, assim como o aluno é o agente central da História aprendida.
Partindo das potencialidades dialógicas entre ensino de História, a teoria do discurso de Laclau e Mouffe e os aportes da transposição didática de Chevallard, Warley da Costa, no texto “Currículo de História e produção da diferença: fluxos de sentido de negro recontextualizados na História ensinada”, analisa as configurações das narrativas históricas produzidas pelos discentes na realização de uma atividade proposta em sala de aula para alertar sobre a necessidade de deslocar “leituras dicotômicas e conservadoras de mundo” (p.144), que reatualizam discursos racistas, a despeito do alargamento da presença de conteúdos não binários sobre o tema. Costa evidencia esse espaço como território curricular de lutas político-identitárias que envolvem as relações étnico-raciais contemporâneas. Márcia Cristina de Souza Pugas apresenta o texto “Currículo, Diferença, Identidade e Conhecimento Histórico Escolar”, o qual compreende parte da pesquisa de mestrado da autora em que investiga os conhecimentos históricos escolares pelo viés da cultura e da diferença, sob o enfoque das negociações acerca dos sentidos de brasilidade mobilizados por alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental, utilizando como arcabouço teórico os estudos culturais pós-coloniais e o repertório analítico da crítica do discurso. Concluindo esse bloco, o texto de Daniel de Albuquerque Bahiense, “Articulações hegemônicas na construção discursiva sobre bons alunos de História” aborda a relação estudante/professor/conhecimento histórico, pensada na interface currículo, conhecimento e identidades sociais discursivas. O pesquisador procura entender como são fixados sentidos provisórios sobre “bons alunos de História” e o conhecimento histórico escolar.
O terceiro e último bloco, formado pelo encadeamento de seis textos, articula-se em torno da questão do conhecimento escolar e a escolha/produção do livro didático da disciplina. Em “Narrativas do ‘outro’ no currículo de História: uma reflexão a partir de livros didáticos”, Adriana Soares Ralejo e Érika Elizabeth Vieira Frazão examinam como são abordados os conteúdos sobre História e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas obras didáticas, após a promulgação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. No texto seguinte “‘Brasil: uma História dinâmica’: desafios didáticos no Ensino de História”, partindo das articulações entre ensino de História e historiografia, os autores Ana Maria Monteiro, Adriana Soares Ralejo e Vicente Cicarino avaliam as mediações didático-culturais promovidas pelo livro didático Brasil: uma História dinâmica, publicado e utilizado na década de 1970. No terceiro texto, “A Revolta dos Malês nos livros didáticos de História e a Lei 10.639/2003: uma análise a partir da ‘epistemologia social escolar’”, os autores Luciene Maciel Stumbo Moraes e Wallace dos Santos Moraes estudam a presença dos conteúdos referentes ao movimento rebelde de 1835 em livros didáticos de História, tomando como aporte as contribuições teóricas da epistemologia social escolar, entendendo a inclusão desse conteúdo como desdobramento de um processo mais amplo de questionamento social a respeito da disputa de sentidos e memórias no âmbito da história ensinada consubstanciado pela implantação da Lei 10.639/2003.
Os três últimos artigos abordam questões relacionadas à história do tempo presente. Cinthia Monteiro de Araujo, no texto “Por outras Histórias possíveis: construindo uma alternativa à tradição moderna”, compara duas obras didáticas com abordagens diferentes – a História Temática e a História Integrada – para perceber as tensões entre a tradição e as visões alternativas de articulação temporal dos processos históricos. Conclui alertando sobre os perigos de uma tradição curricular de História única e eurocêntrica, apoiada na perspectiva temporal linear e progressiva, ainda vigente em grande parte das escolas brasileiras. Com base em Hartog e Koselleck, destaca a necessidade de investimento em novas práticas pedagógicas abertas a uma concepção pluralista que envolve múltiplas narrativas, temporalidades e espacialidades. No quinto capítulo da Parte III, “Currículo de História e Projetos de Democratização: entre memórias e demandas de cada presente”, Carmen Teresa Gabriel e Érika Elizabeth Vieira Frazão analisam as transformações nos sentidos de conceitos como democracia e cidadania no decorrer das décadas posteriores à redemocratização, utilizando, para isso, três edições de um mesmo livro didático. Encerrando o bloco, o artigo “Demandas do tempo presente e sentidos de cidadania: redefinições e deslocamentos no currículo de História (anos 1980 x anos 2010)”, cujos autores, Diego Bruno Velasco e Vitor Andrade Barcellos, analisam diferentes edições de uma mesma obra com o objetivo de identificar os deslocamentos no sentido de cidadania provocados pelas mudanças nas demandas sociais.
Pesquisa em Ensino de História apresenta, assim, um leque de perspectivas para quem se interesse pela área e suas faces de contato com a Historiografia, a Teoria e a Filosofia da História, os estudos sobre currículo, identidades e contemporaneidade. Os artigos amalgamados na obra acrescentam elementos para reflexão e abordagens paradigmáticas apoiadas nos repertórios crítico e pós-moderno, possibilitando o aprofundamento de perspectivas teórico-metodológicas e epistemológicas que articulam aspectos da teoria do currículo e da historiografia. Contribuem, também, para pensarmos a escola real e seu dia a dia, tanto pelos instrumentos didáticos quanto pelos seus sujeitos – docentes e discentes e seus saberes – desvelando-se, na visão dos autores, como um espaço repleto de contradições, mas, fundamentalmente, de possibilidades.
Como bem aponta Circe Bittencourt em seu prefácio, os temas e problemas apresentados pela obra “se abrem para formulações relevantes sobre as relações entre escola, cultura e poder” (p.19), o que para os autores traduz-se no comprometimento com a dimensão política desse campo, principalmente no tocante ao atendimento das demandas sócio-históricas do tempo presente, que constantemente mobilizam seus pesquisadores a questionar, reavaliar e reinventar o papel da História como componente curricular da educação básica.
Em tempos de ataques à História como disciplina escolar e de tentativas de criminalização da autonomia docente, o Ensino de História e a sua pesquisa transformam-se em arena fundamental na defesa dos valores democráticos e da diversidade, objetos privilegiados do campo a que nos dedicamos.
Isabelle de Lacerda Nascentes – Professora de História da rede pública do estado do Rio de Janeiro (Seduc/RJ); aluna do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ProfHistória/ UFRRJ). Seropédica, RJ, Brasil. isanascentes@hotmail.com.br.
Sérgio Armando Diniz Guerra Filho – Doutor em História Social. Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Cachoeira, BA, Brasil. sadgfilho@gmail.com.
MONTEIRO, Ana Maria; COSTA, Warley da; GABRIEL, Carmen Teresa; ARAUJO, Cinthia Monteiro de (Org). Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj, 2014. 280p. Resenha de: NASCENTES, Isabelle de; GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. Ensino de História e Currículo: interfaces teóricas e metodológicas. Revista História Hoje, v. 4, nº 8, p. 315-321 – 2015.
Dinâmica Imperial no antigo Regime Português: escravidão, governos, fronteiras, poderes e legados: séculos XVII-XIX | Roberto Guedes
Nesta obra, Roberto Guedes organiza textos acerca do Antigo Regime Português, em especial, de suas práticas políticas, econômicas, religiosas e culturais, entre outras, ligadas à escravidão na América portuguesa e em outras colônias do Império Português. A coletânea se depara com o contexto “pluricontinental” da administração imperial portuguesa e propõe uma visão de interdependência da colônia face à metrópole.
O livro “Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português” desdobra-se em cinco partes que enfatizam: escravidão, governos, fronteiras, poderes e legados. Esses cinco conceitos nos instigam a pesquisar a América portuguesa, convidando-nos a um caminho de descobertas da história do não dito e dos pequenos feitos nesse universo da Colônia. Leia Mais
Liberdades Negras nas Paragens do Sul | Gabriel Aladrén; Egressos do Cativeiro, c.1798 – c.1850) | Roberto Guedes; A Remissão do Cativeiro, c.1750 – c.1830 | Márcio de Sousa Soares
A historiografia brasileira já conta com um número substantivo de pesquisas sobre alforrias e a vida de africanos e afro-descendentes no período posterior à libertação. Em se tratando do primeiro tema, as investigações versam, em especial, sobre as modalidades de manumissão e o perfil de escravos alforriados. No que tange aos libertos, as pesquisas apresentam conclusões dicotômicas, ora associando-os à pobreza e marginalidade, ora à ascensão econômica. A primeira vertente teve início em 1942, com algumas considerações feitas por Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), como a relação estabelecida entre esse segmento da população e os grupos intermediários da sociedade colonial, ou seja, aqueles que não se inseriam nas categorias de senhores nem de escravos. Os estudos subsequentes como os de Laura de Mello e Souza (Desclassificados do Ouro, 1982) e Núbia Braga Ribeiro (Cotidiano e Liberdade, 1996) adotaram essa linha interpretativa ao considerarem esse segmento social como desclassificado, temido socialmente e sujeito a políticas de controle pela administração portuguesa. Outros trabalhos, porém, negligenciaram a associação à pobreza e marginalidade e deram lugar às investigações acerca da ascensão econômica desses grupos, como Sheila de Castro Faria (A Colônia em Movimento, 2004), Eduardo França Paiva (Escravos e Libertos nas Minas Gerais, 1996 e Escravidão e Universo Cultural na Colônia, 2001), Cláudia Cristina Mól (Mulheres forras, 2002), dentre outros.
Os três livros recentes de Roberto Guedes, Márcio de Sousa Soares e Gabriel Aladrén se destacam nesse campo por procurarem integrar o estudo das alforrias ao exame das trajetórias sociais dos egressos do cativeiro durante a vigência do regime escravista. As referidas publicações são fruto de trabalhos apresentados em programas de pós-graduação: os trabalhos de Guedes e Soares foram originalmente defendidos como teses de doutoramento na UFRJ, em 2005, e na UFF, em 2006; o livro de Aladrén resultou de uma dissertação de mestrado defendida na UFF, em 2008.
Guedes e Soares priorizam a análise das famílias de libertos e seus descendentes e sua atuação na dinâmica econômica local. O primeiro estudou Porto Feliz, em São Paulo, e, o segundo, Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Já Aladrén se deteve nas trajetórias individuais e analisou os ex-escravos a partir dos acontecimentos políticos que inquietaram a região de Porto Alegre nas três primeiras décadas do século XIX.
Esses autores atribuem importante papel aos escravos em prol da liberdade e de melhoria das condições de vida após a sua efetivação. Embora fosse um acordo entre desiguais, a alforria consistia em uma doação feita pelo proprietário, mas, acima de tudo, aceita pelos escravos. Tratava-se, portanto, de uma troca que gerava novos vínculos entre os forros e seus antigos senhores, os quais se perpetuavam para o resto de suas vidas. Os ex-senhores esperavam dos escravos alforriados (gratuitamente ou sob condição) constante respeito e subordinação. Qualquer desvio ou rompimento dessas referências colocava em risco a legitimidade do novo status.
Várias discussões já propuseram que as manumissões estariam vinculadas à negação da ordem escravista, mas os três autores as analisam como parte de um sistema composto pela tríade tráfico, escravidão e liberdade. A alforria seria parte estrutural da escravidão, amortecendo conflitos inerentes à relação existente entre escravos e seus proprietários. Outro ponto marcante desses trabalhos consiste na idéia de que, após a conquista da liberdade, os libertos buscavam melhores condições de vida. Ainda que encontrassem limitações inerentes à condição social, estiveram atentos às oportunidades que lhes eram apresentadas e conseguiram trilhar caminhos diferenciados daqueles em que se encontrava grande parcela dessa população.
A ascensão econômica não indicou necessariamente ascensão social. Em especial, Roberto Guedes e Márcio de Sousa Soares mostram que a mobilidade social era geracional, ou seja, acontecia predominantemente para gerações que descendiam dos libertos. Os casamentos com pessoas livres contribuíram fortemente para isso. Também evidenciam que as categorias de cor encontradas em registros coloniais e do período imperial eram fundamentais para a inserção de pretos e pardos na hierarquia social vigente.
Os três livros contribuem de maneira decisiva para os estudos sobre a escravidão no Brasil. Além de levantar dados sobre as alforrias em regiões pouco exploradas pelos historiadores que os antecederam, como as áreas rurais e o sul do país, ainda avançaram na análise da vida dos escravos após a libertação. Os três pesquisadores utilizaram métodos qualitativos e seriais. Recorreram à micro- história e reuniram fontes diferenciadas que permitem conhecer múltiplas experiências dos homens e mulheres investigados. Os registros referentes à justiça colonial e imperial como os processos crime e as ações cíveis forneceram importantes recursos para tal perspectiva.
O trabalho de Roberto Guedes consiste na análise de quatro gerações de famílias de Porto Feliz, compostas por libertos e seus descendentes, entre os anos de 1798 e 1850. A partir de cruzamento onomástico, o autor acompanha a dinâmica econômica e social de seus membros, com o objetivo de compreender as principais estratégias de mobilidade social em âmbito familiar. Márcio Soares fez um estudo da escravidão, priorizando a região de Campos dos Goytacazes no período que compreende a segunda metade do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX. Seu foco, contudo, é a investigação das complexas relações entre senhores e escravos em uma região rural. Observou principalmente as estratégias sociais que favoreciam o acesso à liberdade e a inserção social de libertos e seus descendentes.
Gabriel Aladrén trata basicamente dos padrões de alforrias encontrados nas proximidades de Porto Alegre e das experiências dos egressos do cativeiro e seus descendentes entre os anos de 1800 e 1835, período de grandes conflitos militares como as Guerras Cisplatinas e a dos Farrapos. O autor acredita que esse conturbado momento contribuiu para o recrutamento de escravos e libertos para o exército, milícias e guerrilhas, favorecendo, por sua vez, a incidência de alforrias, inserção e mobilidade social dos mesmos.
Os estudos desses autores partem de uma abordagem que relaciona as forças econômicas e sociais. As três localidades sofreram mudanças significativas na economia. Em Porto Feliz, o crescimento da produção de alimentos e de açúcar na primeira metade do século XIX foi responsável por um considerável aumento do contingente populacional na região, acompanhado também pelo crescimento de escravos. O mercado de gêneros alimentícios passou a ser controlado por pequenos proprietários. Isso implicou uma população composta por pessoas de parcos recursos em meio a uma parcela reduzida de produtores que concentravam maiores posses. Campos dos Goytacases verificou grande expansão açucareira entre os anos de 1750 a 1830, voltada para a exportação. Esse processo foi acompanhado por uma concentração de propriedade de escravos, sem impedir, contudo, que pequenos e médios proprietários tivessem acesso à sua posse. Já a região de Porto Alegre era formada pela vila e algumas freguesias como a Aldeia dos Anjos e Viamão. Caracterizada por extensa área rural, suas fazendas, chácaras e campos conjugavam a produção agrícola e agropecuária para o abastecimento interno.
O ponto de partida dessas pesquisas foi o estudo das alforrias. Os autores buscam conhecer as principais características dessa prática a partir do levantamento de fontes como registros de batismos, testamentos, cartas de liberdade e livros de notas. Analisam os perfis dos senhores, dos escravos alforriados e o significado dessas libertações para ambos. As incidências foram significativas nas três localidades, seguindo os padrões anteriormente vigentes na América Portuguesa. Eram predominantes as concessões para as mulheres e escravos nascidos na colônia, favorecidos com libertações gratuitas, condicionais ou pagas por terceiros, em detrimento dos africanos que compravam a própria liberdade.
No final da década de 1970, Jacob Gorender (O Escravismo Colonial, 1978) afirmou que as manumissões foram associadas aos interesses senhoriais, e que um escravo estaria mais propenso a receber a liberdade em momentos de crise econômica. Contudo, Aladrén, Souza e Guedes adotaram outro viés para a compreensão das alforrias, valorizando o papel que tiveram no contexto do sistema escravista. Para esses autores, as concessões em testamentos e pias batismais foram compreendidas como um reforço do paternalismo inerente à escravidão. Essa atribuição cabia unicamente ao proprietário, e seu desdobramento era a produção de dependentes, pois era fruto de um arranjo entre desiguais. Obediência, respeito e gratidão deveriam pautar as relações entre o ex-senhor e o liberto para que o mesmo pudesse manter o novo status alcançado. Salvo algumas exceções, o empenho desses homens e mulheres era sempre em função de ganhos pessoais. Seus esforços visavam a conquista da própria liberdade ou de terceiros, sem nunca questionar a instituição da escravidão.
Roberto Guedes ainda destaca a função importante que os casamentos entre escravos desempenhavam no incentivo à liberdade. No primeiro momento, os senhores acabavam adquirindo status quando incentivavam as uniões entre seus cativos. Em Porto Feliz, as alforrias eram prerrogativas mais direcionadas às escravas, que passavam a ser agregadas, enquanto seus maridos permaneciam na condição de escravos. Essas uniões eram duradouras e somente rompidas pela morte de um dos cônjuges. Predominavam as uniões exogâmicas entre os próprios crioulos e entre os africanos.
Soares destaca que as liberdades concedidas em testamentos e pias batismais, de alguma forma, se associavam a razões morais e afetivas. Do intercurso sexual entre escravas e seus senhores acabavam nascendo crianças que recebiam alforria como forma dos pais se redimirem do erro de ter gerado um filho em cativeiro. Os altos índices de ilegitimidade entre as crianças batizadas levam a crer que as alforrias em pia batismal eram formas veladas de reconhecimento da paternidade. Já o momento da morte mostrou-se propício para que os senhores concedessem a liberdade a seus cativos, ou parte deles. Em ocasiões de doenças ou mesmo velhice, alguns fiéis buscavam a salvação da alma e a remissão de suas culpas.
Tendo em vista a incidência de concessões de manumissões onerosas, esses estudos abordam os artifícios empregados pelos libertos como forma de acumularem pecúlio e até mesmo ascenderem economicamente. A idéia de que a ascensão econômica não significou necessariamente mobilidade social é comum aos três trabalhos; o que os diferencia são as metodologias utilizadas para a análise desse aspecto.
A partir do levantamento de inventários post mortem, Gabriel Aladrén busca conhecer as ocupações dos libertos da região de Porto Alegre. Os indícios apontam para o envolvimento em atividades agrícolas e o acesso à terra. Utiliza processos crime como forma de viabilizar a reconstituição de algumas trajetórias de libertos que praticaram ou sofreram algum tipo de delito. A análise de dados pessoais e de depoimentos de pessoas próximas permitiu identificar eventos marcantes na vida de ex-escravos daquelas paragens. A inserção no meio social, o estabelecimento de redes de sociabilidade, o acesso a bens materiais e até mesmo o alcance de uma posição mais favorável são alguns deles.
O método utilizado por Roberto Guedes em seu estudo é peculiar. O autor acompanha gerações de cinco famílias de egressos do cativeiro da região de Porto Feliz e se reporta a diferentes momentos de suas vidas para mostrar que a combinação entre estabilidade familiar, trabalho e boas relações contribuíam para a ascensão econômica. Encerra seu livro afirmando que os escravos contraíam matrimônio, conseguiam a liberdade, herdavam bens, tornavam-se proprietários de escravos e contribuíam para que seus descendentes deixassem de carregar o estigma da escravidão a partir da percepção social da cor.
Soares chega às mesmas conclusões; porém, seu método se baseia na análise de casos específicos, sem acompanhar registros de uma mesma família, como o fez Guedes. Mostra que as possibilidades de obterem melhores condições de vida eram condicionadas a fatores como bons casamentos, relações com pessoas influentes da sociedade, mas também às ocupações de postos militares ou em irmandades. A presença de ao menos um desses aspectos era suficiente para diferenciar um liberto de outras pessoas com a mesma condição social. Ao analisar testamentos e inventários post-mortem, verifica que eles acumularam posses e acabaram se comprometendo com a escravidão ao se tornarem proprietários de escravos. As alforrias recebidas e acompanhadas de bens que os senhores, por vezes, os deixavam, contribuíram muito nesse sentido. Para esse autor, a mudança de status favoreceu a alteração da identificação da pessoa quanto à cor. Essa atribuição era dinâmica e variava conforme as diferentes gradações da hierarquia social.
A análise das hierarquias raciais vigentes nos períodos colonial e imperial é outro ponto abordado nesses trabalhos, porém mais explorado por Aladrén. O autor lembra que a escravidão no Brasil não foi pautada em bases raciais, embora a classificação da população, sobretudo no que se referia a escravos e seus descendentes, tivesse sido estruturada a partir das categorias estamentais vigentes no Antigo Regime português. Nesse sentido, concorda com Hebe Mattos (Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, 2000) ao considerar que, na prática social, houve uma hierarquia relativa à raça nos tempos coloniais, que foi redefinida a partir da independência da América Portuguesa e da construção da nova nação.
Em se tratando da colônia, as designações dos escravos, libertos e seus descendentes eram determinadas pela classificação de cor e origem. Fatores como riqueza, posição social e comportamento também tinham peso. Tais critérios não eram rígidos; formas diferenciadas podiam ser atribuídas de acordo com a época, região e a pessoa que os empregava. Os autores observam que a alteração ou até mesmo o desaparecimento dos designativos de cor ocorriam quando se tratava de pessoas que provinham da terceira geração de descendentes de escravos e, principalmente, no caso de ex-escravos que contraíam matrimônio com livres. O trabalho supracitado de Hebe Mattos e também o de Sheila de Castro Faria (A colônia em movimento, 1998) evidenciam ainda que o termo pardo indicava miscigenação, embora não deixasse de eximir a marca da ascendência escrava. Já o termo “pardo livre” surgiu a partir do aumento da população de egressos do cativeiro e de seus descendentes, em fins do século XVIII e início do XIX, como uma necessidade de diferenciar aqueles que não passaram pela experiência do cativeiro.
Aladrén compara ainda os designativos conferidos aos escravos no momento em que iam receber a liberdade e as assinaturas encontradas depois de libertos. Assim, verifica que os mapas de população elucidam uma linguagem oficial, porém não tão distinta daquela utilizada nas práticas cotidianas da população. Com o processo de independência e de construção da nação brasileira nas primeiras décadas do século XIX, foram observadas “formas específicas de racialização”. As expressões utilizadas acabavam delimitando socialmente as fronteiras entre pessoas brancas, libertos e seus descendentes.
Para compreender as estratégias de inserção social dos pretos e pardos no período das Guerras Cisplatinas e da Independência do Brasil, Aladrén estudou o recrutamento das tropas regulares. No final do período colonial, a convocação seguia critérios raciais. As tropas classificadas como de primeira linha admitiam somente homens brancos ou de pele bem clara. Já as de segunda aceitavam brancos, pardos e também pretos. Segundo Aladrén, os conflitos ocorridos na região de Porto Alegre e, sobretudo, a conjuntura gerada com os movimentos de emancipação da América Portuguesa contribuíram de maneira decisiva para que a composição do exército tomasse novos formatos, passando a recrutar escravos, livres e também libertos. Os escravos e libertos se alistavam voluntariamente nos batalhões visando futuramente a alforria e a melhoria das condições de vida ou a mobilidade social. Parcela considerável daqueles que lutavam ao lado de seus senhores recebiam a liberdade.
O reconhecimento social dos direitos garantidos a libertos e seus descendentes pela legislação do Império do Brasil é outro tema que chama a atenção do autor. Para conhecer esse aspecto, ele analisa alguns conflitos cotidianos por meio de processos crime. Assim, avalia o posicionamento desses e das demais pessoas envolvidas em demandas judiciais. Conclui que os brancos daquela sociedade, nas primeiras décadas do século XIX, ainda operavam de acordo com os padrões hierárquicos do Antigo Regime. Alguns continuavam desqualificando negros com discursos racialistas, provando que, mesmo conquistando postos mais elevados, acabavam sendo vistos com desconfiança.
O principal aspecto que diferencia o trabalho de Aladrén dos demais autores resenhados é o peso que ele confere às mudanças políticas como determinantes na inserção social dos libertos e seus descendentes. De maneira geral, os três livros trazem avanços notáveis para o campo de estudos sobre os ex- escravos e seus descendentes. No primeiro momento, analisam as alforrias locais sem perder de vista as características estruturais que engendravam essa prática. As modalidades, o perfil dos escravos libertados, as possibilidades de anulação de status alcançado, são fatores que ajudam a visualizar a complexidade da escravidão na América Portuguesa e no Brasil Independente. Não há como apreender esse complexo sistema sem passar pelas alforrias, pois elas são parte constitutiva do mesmo. Em um segundo passo, buscam compreender a inserção social dos egressos do cativeiro. Enquanto Guedes e Soares se baseiam no estudo de casos de famílias de libertos e suas estratégias de mobilidade social em um contexto de expansão econômica, Aladrén se detém nas trajetórias individuais em um período compreendido por profundas mudanças políticas.
A passagem da escravidão para a liberdade acarretou mudanças significativas. A aquisição de capacidade civil foi a principal delas, pois permitiu o direito à constituição de família, à mobilidade, à herança e à propriedade. Por maior que fosse a autonomia de um escravo, suas prerrogativas não se equiparavam às de um liberto. Em um momento de intensas transformações políticas como as da virada do século XVIII para o XIX e, especificamente, no contexto de independência da América Portuguesa, ocorreram mudanças significativas para a população liberta. Soares e Guedes não exploram esse contexto político; Aladrén, por sua vez, enfrenta a questão, mas valoriza basicamente a inserção social incentivada pela necessidade de novos recrutamentos para as forças militares em conflito. Em função disso, restringe-se à análise do gênero masculino, mesmo tendo em vista que as mulheres eram as mais alforriadas no período por ele abordado.
O exame da inserção de libertos e seus descendentes na América Portuguesa e no Brasil Independente é o principal fio condutor desses trabalhos. Os três autores conduzem suas pesquisas na contramão de parte da historiografia, anteriormente mencionada, que tende a considerar os ex-escravos como uma subcategoria social. Ao contrário, Guedes, Soares e Aladrén empregam métodos peculiares e revelam as diferentes estratégias por eles adotadas em função de galgarem melhores condições de vida. Mais do que discutir os caminhos para a manumissão e o perfil dos manumissos, esses historiadores mostram que homens e mulheres forras souberam alongar o horizonte da liberdade, fosse por meio da constituição de família, da inserção em irmandades e ou ordens militares.
Os referidos estudos ainda somam- se à historiografia e tornam evidente que as esferas públicas foram palco das mais variadas reivindicações iniciadas por egressos do cativeiro na passagem do século XVIII e XIX. O acesso à justiça, sobretudo no período colonial, pode indicar que ela funcionou como um importante instrumento de garantia do que hoje entendemos por direitos civis para os ex- escravos. É possível que os litígios tivessem uma conotação de luta pela afirmação das conquistas dos ex- escravos após a obtenção da liberdade. A investigação das práticas cotidianas nos contextos de inserção política nos momentos que antecederam a Constituição de 1824, enfim, ainda não foi explorada.
Renata Romualdo Diório – Doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil). E-mail: diorio@usp.br
ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforria e inserção social dos libertos em Porto Alegre. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2008. SOARES, Márcio de Sousa. A Remissão do Cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750 – c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. Resenha de: DIÓRIO, Renata Romualdo. Alforria e mobilidade social nos séculos XVIII e XIX: os casos de Porto Feliz, Campos dos Goitacases e Porto Alegre. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.155-161, jan./jun., 2011.
Partido político ou bode expiatório. Um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) / Lúcia Gringberg
O estudo de Lúcia Grinberg sobre a ARENA tem o mérito de valorizar duas funções essenciais da pesquisa histórica. Seu livro, primeiro, é uma história que estuda criticamente o passado, que vai às fontes, que, com seus métodos e descobertas, questiona a rigidez e a solidez de memórias sociais específicas. Segundo, toma a memória social como objeto de investigação. Quem as reproduz, as difunde, muitas vezes não possui consciência do processo pelo qual tal construção memorialística passou até chegar a sua forma final. A memória também é histórica. Ela também foi construída ao longo do tempo para legitimar práticas e propostas.
Afinal, pergunta-se Lúcia, qual ARENA ela encontrou ao iniciar suas pesquisas? O primeiro indício é a reação de seus colegas de pós-graduação. Riram. Perguntaram se ela não teria se enganado, se não pretendia pesquisar o Teatro de Arena. Além do seu círculo social, a autora identificou uma memória claramente estabelecida sobre o partido na década de 1990. Entre vários exemplos, cita o caso de membros do PFL que, em 1995, esforçavam-se para desvincular a imagem do partido criado em 1985 com a memória negativa sobre a ARENA. Em resumo, a ARENA seria o partido do adesismo irrestrito aos mandos militares e, também, um partido artificial, sem representatividade alguma, simples instrumento utilizado pelos militares para dar ares de legitimidade aos seus governos. O que Lúcia quer entender é: serão verdades todas as generalizações que atualmente se fazem sobre a ARENA? Como tais generalizações se construíram? A quais propósitos serviram? E qual a importância de criticá-las para uma nova visão sobre o período da ditadura militar?
É a partir do início da ARENA que podemos ver os primeiros problemas. Não foi formada apenas por antigos udenistas que apoiaram o movimento de 64. A diferença entre o número de parlamentares udenistas que foram para a ARENA e ex-membros do PSD é de apenas 08 membros. Ex-udenistas contribuíram com 86 parlamentares e ex-membros do PSD com 78. Estava certo o jornalista Villas-Boas-Corrêa ao brincar que a ARENA seria a filha da UDN que caiu na zona? Ou o partido foi inicialmente formado por setores políticos conservadores que não estavam apenas na UDN? Aliás, por políticos com grande experiência eleitoral, com nomes conhecidos pelos eleitores. A autora traz uma lista com o nome de todos os primeiros membros do diretório nacional da ARENA, sua filiação partidária antiga e os cargos públicos que tinham ocupado. Nenhum deles surgiu do nada. Lideranças nacionais como Benedito Valadares, Milton Campos, Gustavo Capanema e Magalhães Pinto tornaram-se arenistas. O que indica, para a autora, certo consenso entre as elites conservadoras brasileiras e, principalmente, que a ARENA tinha uma representação social historicamente associada aos nomes que congregou, representação esta que não pode ser negada. Cairia mais um mito: o da ARENA como um partido biônico, sem valor social, sem representação.
Afinal, Lúcia quer ver a ARENA não apenas como uma criação institucional artificial, mas como um sintoma de algo mais amplo, de características conservadoras da sociedade brasileira. Para reforçar seu argumento, traz cartas enviadas para o Diretório Nacional do partido de cidadãos comuns, não ligados diretamente à política. Cartas de apoio ao partido. De defesa dos abstratos princípios da Revolução de 64, contra o comunismo, contra os baderneiros, contra a anarquia que teria se instalado antes da retirada de Goulart do Poder.
Outro mito que Lúcia derruba é a da relação eternamente dócil entre ARENA e governos militares. Sua análise mais forte é sobre o chamado caso “Márcio Moreira Alves”. Por críticas feitas à invasão da Universidade de Brasília pelos militares, Márcio Moreira Alves tornou-se alvo de ódio por parte dos setores mais radicais das Forças Armadas. A pressão foi tão grande que o Executivo pediu licença ao Congresso para cassar o mandato do Deputado. Chega ao plenário o pedido e, ao contrário do que insinuaria a idéia do “sim, senhor”, da subserviência irrestrita, do total de 216 deputados que rejeitaram o pedido, 95 eram da ARENA.
Um dia depois, Costa e Silva baixa o AI-5. E o governo passa a tratar o “seu” partido de forma diferente. Lideranças “liberais” da ARENA se afastaram de posições de comando, como Daniel Krieger, Milton Campos e Carvalho Pinto. Mas Lúcia salienta a obscuridade do período imediatamente após o AI-5. Os arquivos da ARENA pouco dizem. O que lhe restou, diz, foi procurar na imprensa declarações de arenistas. Uma delas é exemplar de como o caso Márcio Moreira Alves é um marco para a história da relação entre ARENA e os militares. Geraldo Freire, líder da ARENA na Câmara dos Deputados, teria declarado a jornalistas que seria necessário a criação de um novo partido. A ARENA teria falhado. Era rebelde. O que o regime precisava era efetivamente de um partido do “sim, senhor”, da rendição incondicional aos mandos dos militares.
Outra solução seria a manutenção da ARENA, precedida por uma limpeza ideológica. Os elementos possivelmente rebeldes deveriam ser retirados do partido. E foi o que o governo fez. 27 parlamentares efetivos da ARENA foram cassados. Contando os 06 suplentes cassados, o total é de 31. Politicamente, a principal arma utilizada contra a ARENA foi a aprovação da Emenda Constitucional número 1. Ela previa a perda do mandato do parlamentar que por votos ou atitudes contrariasse as diretrizes estabelecidas pelas lideranças partidárias. Seria uma forma de controlar os arenistas sem recorrer a expedientes como o fechamento do Congresso. Como as lideranças eram escolhidas pelos governos militares, tornou-se realmente mais tranqüilo para o Executivo comandar o seu partido de sustentação. Percebe-se, portanto, como a história da relação entre ARENA e governo não foi estática. Teve seu dinamismo.
A autora traz outros episódios evidentemente menores que marcaram certas distâncias entre a ARENA e o governo até o período que considera o de liberalização do regime, 1974-1979. Nele, inicia-se a construção de um dos clichês solidificados na memória social atual sobre a ARENA: o partido do “sim, senhor”. Segundo a autora, com a maior liberalização do regime a partir de 1974, e com as vitórias eleitorais do MDB, os embates parlamentares tornaram-se mais ácidos, mais competitivos. E uma das formas dos parlamentares do MDB de ridicularizar a ARENA era acentuar sua subserviência. Ao estudar documentos internos do partido, Lúcia salienta como o “sim, senhor” incomodou os arenistas. Não eram discursos feitos para o público, para serem divulgados, eram discussões privadas que mostravam o grande incômodo que os parlamentares sentiam com as provocações do MDB.
Para continuar a historicização da memória solidificada atualmente sobre a ARENA, Lúcia sai do parlamento e vai para a imprensa. Analisa principalmente charges publicadas em jornais de grande circulação, como o Estado de São Paulo e o Correio da Manhã. A explicação para o estudo e análise das charges é simples: em momentos autoritários, a imprensa é obrigada a recorrer a estratégias alternativas para abrir o mínimo de espaço que seja para a crítica, e o humor é uma das principais.
A autora analisa diversas charges que repetem temas como a indecisão da ARENA, sua falta de identidade, mas as partes mais interessantes são sobre as charges que falam sobre a relação da ARENA com o governo. Nelas, a ARENA é quase sempre representada como uma mulher. Sempre em posição de subordinação, cozinhando para o marido “governo”, ou se pintando e arrumando para o amante “governo”. Charges mais críticas representavam a ARENA como uma prostituta ou uma boneca inflável, dois objetos de desejo que se venderiam fácil para os militares. Uma das charges, por exemplo, mostra uma mulher toda pintada e arrumada, usando uma saia com ARENA escrito e, suspirando, diz: “ele sorriu pra mim…ele sorriu pra mim…” E, ao longe, vemos as costas de um militar. Em outra charge, de Hilde Weber, publicada no ESP em 7/2/1969, a ARENA é representada como uma mulher pobre, usando roupas sujas e esburacadas, com lágrimas nos olhos ao ver que as portas de uma casa estão sendo abertas a ela. O nome da casa: governo. O título da charge: volta ao lar. Há, no entanto, uma importante ressalva feita pela autora: as charges feitas no período militar sobre a ARENA não seriam tão virulentas e ridicularizadoras como as feitas na década de 1990. Isso indicaria uma mudança ainda maior de atitude da sociedade brasileira da década de 1990 sobre o período militar, devedora, diz, do processo de redemocratização iniciado na década de 1980 que, para se legitimar, ridicularizou e repudiou fortemente os militares e a ditadura em geral.
Eis que Lúcia conclui, a partir de seu estudo: a ARENA atuou muitas vezes como partido político realmente, tendo representação social digna de ser considerada como parte importante da cultura política de determinados setores da sociedade brasileira, mas a ARENA também foi um bode expiatório. A partir da transição democrática, a ARENA e os militares foram inteiramente responsabilizados pelos tempos ditatoriais. Os militares seriam os gorilas, a força bruta, ignorante. E a ARENA, a parte fraca, covarde, que não só não resistiu como apoiou a ditadura e todos os seus feitos.
E aí está o maior mérito da pesquisa feita por Lúcia Grinberg. Ridicularizar a ARENA e os militares, diz, é ignorar que setores importantes e representativos da sociedade brasileira também apoiaram o regime militar. Lúcia se recusa a pensar a ARENA como uma entidade vazia. Não, suas atitudes, sua construção, os votos que recebeu mesmo quando havia a possibilidade do MDB, apesar de todas as restrições eleitorais, indicam, sim, representatividade. Indicam, sim, que a ditadura militar brasileira não se sustentou por tanto tempo apenas pela habilidade dos militares e dos políticos que teriam apoiado o regime. Indicam, finalmente, que é importante tirar a ditadura militar e a ARENA do campo da memória para melhor entendermos o período de 64-79. É a graça das piadas sobre a ARENA que nos impede de olhar além, criticamente. É verdade, por fim, que a autora desconstrói piadas e nos tira algumas boas risadas, mas nos propõe algo valioso em troca: um olhar crítico que traga de volta como objeto de pesquisa o grande elemento silencioso do período militar, a sociedade civil.
João Leonel da Rosa Pantoja – Mestrando em História Social pela Universidade de Brasília. Contato: jotaleonel@gmail.com.
GRINBERG, Lúcia. Partido político ou bode expiatório. Um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), 1965-1979. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009, 301p. Resenha de: PANTOJA, João Leonel da Rosa. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.17, p.112-116, ago./dez., 2010. Acessar publicação original. [IF].