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Dimensões materiais da cultura escrita / Anais do Museu Paulista / 2020
Considerações sobre a materialidade da escrita e as três camadas de informação [1]
O texto é fruto de um trabalho intelectual manifesto sobre um suporte físico, da mesma forma como a realidade se expressa e se concretiza em ações materiais. As dimensões imaterial e material dos escritos são resultado de práticas, processos, métodos, saberes e técnicas. São indissociáveis e ambos decorrentes da existência humana. Desde o último quartel do século passado, estudiosos da cultura material têm destacado essa indistinção relativa aos objetos de uso cotidiano das sociedades, [3] na percepção de serem vetores e produtos das relações sociais. No que se refere aos textos, autores como Donald McKenzie, Armando Petrucci, e Francisco Gimeno Blay4 romperam com a perspectiva puramente técnica das disciplinas do campo da descrição material dos textos e de seus suportes. Nos seus estudos, os dados obtidos a partir dessas ferramentas eram aplicados na reflexão sobre inúmeras interfaces das relações sociais.
De fato, dados como a aparência, a constituição física ou a técnica de elaboração dos textos foram incorporados por autores de variadas áreas das humanidades no intuito de pensar suas condições sociais de produção, apropriação, circulação e preservação. Robert Darnton, Roger Chartier, Fernando Bouza Álvarez e Antonio Castillo Gómez,5 inspirados por Petrucci e McKenzie, consideram a associação entre as dimensões material e social suficientemente evidente, sendo prescindível a justificativa sobre suas opções metodológicas ou conceituais, embora estas sejam perceptíveis no conjunto de suas produções acadêmicas. Apesar dessas referências robustas, a perspectiva material da cultura textual não se consolidou em análises sistemáticas até a passagem do século XX para o XXI, sendo ainda hoje necessária a explicação sobre a vinculação do social com o material (e vice-versa) no campo de estudos sobre a produção e a circulação da escrita.6
É como procede James Daybell em trabalho consistente sobre a epistolografia na Inglaterra nos séculos XVI e XVII, dialogando com o campo de estudos textuais sintetizado por G. Thomas Tanselle como “processo social de publicação”.7 Preocupado com a percepção das realidades sociais nas quais os escritos existem, esse campo não descarta as diversas circunstâncias das interações físicas do sujeito com a obra, como os casos de autoria colaborativa a partir de anotações marginais ou a participação dos espaços de leitura e produção como condicionantes da experiência. Daybell tem como uma de suas principais ferramentas teórico-metodológicas a vinculação dos elementos materiais das cartas com as práticas sociais, culturais e intelectuais, dialogando com autores do campo da cultura material como Peter Stallybrass e com os estudos linguísticos, estilísticos e históricos. Dissociada dos métodos das antigas disciplinas, como a codicologia, a paleografia, a sigilografia e a diplomática, a materialidade ganha como atributo o adjetivo “social”. Nas palavras do autor, em referência direta a Donald McKenzie, a “materialidade se relaciona não apenas ao significado das formas físicas, mas também à materialidade social (ou ‘sociologia’) dos textos, que são as práticas sociais e culturais de manuscritos e impressos nos seus contextos de produção, disseminação e consumo”.8
Visto que as experiências de associação entre as dimensões materiais e sociais da escrita já vinham sendo praticadas há décadas por pesquisadores do campo da história da cultura escrita,9 o uso do conceito “materialidade social” nos suscita algumas reflexões acerca da existência de outros tipos de materialidade: sensorial, política, cultural, físico-química, utilitária, espacial… Os qualificativos podem ser inúmeros. As considerações serão sustentadas na ideia da categorização das camadas de informação contidas nos artefatos gráficos, conforme sugerido por Spiros Zervos, Alexandros Koulouris e Georgios Giannakopoulos.[10] De maneira geral, a primeira camada, seja de caráter textual ou visual, é aquela que está inscrita ou impressa sobre o suporte. É uma mensagem de captação direta, e sua compreensão depende da experiência intelectual do leitor / observador. A segunda constitui a forma do objeto e a sua configuração material, características determinadas pelas tecnologias aplicadas e pelos materiais usados para o registro da informação. Para compreendê-la, são necessários exames organolépticos e alguns instrumentos capazes de aumentar as percepções sensoriais do observador, para além dos conhecimentos sobre as tecnologias aplicadas. [11] A terceira camada de informação é a estrutura físico-química dos materiais usados (papel, tinta, couro, tecido etc.), podendo ser considerada o DNA – ou as “digitais” – do objeto, pois carrega dados sobre sua origem geográfica e datação, possibilitando autenticações, atribuições e estudos da passagem do tempo e da ação humana sobre o objeto.
A primeira camada de informação não contém apenas elementos de ordem mental ou intelectual, como se poderia supor. Da mesma forma estão envolvidos modos de percepção e recepção da mensagem, aos quais são agregados valores e sentidos que irão determinar as condições materiais da sua perpetuação no tempo. [12] A relação do corpo com a escrita necessariamente está incluída nessas experiências, não apenas quanto ao deslocamento físico e ao ambiente favorável a essa relação, mas também pelas eventuais repercussões sensoriais suscitadas no observador pelas palavras ou imagens. A visualidade, ou seja, a maneira como o objeto se apresenta ao mundo, que igualmente é um vetor de aproximação do corpo com o texto, é resultante das práticas criativas, das técnicas e das condições materiais pré-existentes. [13] Sensorial, visual e técnico, neste caso, poderiam ser atributos associados à materialidade.
Os elementos materiais são mais evidentes na segunda camada, mas nunca estão dissociados das relações sociais. Nela estão expressas as vinculações entre materiais, técnicas e processos de trabalho: por exemplo, a divisão de atividades em uma oficina ou entre oficinas, a correspondência e a hierarquização entre as diversas especialidades – como as funções do editor, tipógrafo, compositor, gravador e encadernador. Essas inter-relações nas atividades laborais foram tratadas através da materialidade da escrita em vários trabalhos de Darnton [14] ou, mais recentemente, no campo da bibliografia material, por Guadalupe Rodriguez Dominguez e por Ana Utsch, [15] pesquisadoras da área de filologia e de preservação de documentos gráficos. Com esses estudos, percebe-se a dimensão material do objeto como resultado das escolhas e possibilidades de interação das técnicas aplicadas, determinantes da sua tridimensionalidade, no caso dos livros e códices, à exemplo dos formatos e do uso de determinados dispositivos tipográficos. Em uma relação de vinculação interdependente, a própria seleção dos materiais usados é decorrente das capacidades técnicas e intelectuais pertinentes aos momentos históricos.
A vinculação interdependente está presente não apenas na etapa de produção, mas também nas de uso e preservação. O consumo dos objetos deixa marcas materiais impressas nos seus suportes, revelando as diferentes ações e intenções humanas. [16] A mesma atenção deve ser dada às modificações impostas aos objetos em processos de restauração, atualização ou renovação. Qualquer intervenção é movida por conceitos, necessidades, materiais e conhecimentos disponíveis; sobretudo, está vinculada às demandas dos grupos sociais envolvidos e a seus valores. [17] Uma vez mais está evidente que condições físicas registram, e portanto evidenciam, a relação do sujeito e de seu corpo com a escrita durante sua feitura, recepção e perpetuação.
A camada menos visível contém dados registrados nas estruturas físico-químicas constitutivas dos materiais; eles fornecem informações não evidentes sobre sua biografia, do nascimento até os momentos atuais. É a mais difícil de ser apreendida, pois está invisível a olho nu, mas é evidenciada quando os processos de degradação ocorrem e algumas funcionalidades do objeto começam a falhar. A composição química original e suas alterações revelam a deterioração do objeto, fator direta ou indiretamente relacionado aos processos de fabricação e às intervenções posteriores. De outro ponto de vista, a identificação dos índices de degradação do objeto levará a outras ações humanas, como a execução de medidas de engenharia ambiental para aplacar a inevitável decomposição do material.
As informações da terceira camada são reveladas em prática de pesquisa interdisciplinar, pois são necessários métodos das ciências da natureza para extrair seus dados, os quais serão interpretados conjuntamente com métodos das ciências humanas, pois muitas vezes o “visível” não é explicável pela experiência empírica, nem o “invisível” compreendido sem a interpretação histórica. Em análise paleográfica do manuscrito Discurso Histórico sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720, [18] descobriu-se um método ainda desconhecido de correção de letras e palavras já inscritas na folha: a aplicação de uma massa branca sobre o papel. A consulta a manuais de escrita e caligrafia publicados nos séculos XVII e XVIII não foi suficiente para identificar o procedimento, levando até mesmo a conclusões iniciais equivocadas. A revelação da técnica só foi possível com a descoberta dos materiais usados, por meio de microscopia ótica e de fluorescência de raios X (EDXRF): [19] tratava-se de uma massa feita com cera e pigmento branco de chumbo, combinação usada em uma pomada curativa de problemas de pele conhecida à época por “pomada de saturno”. Com esses dados, a pesquisa histórica localizou outras fontes usadas pelo autor gráfico do documento – as farmacopeias –, não só desvelando a invenção de um modo de fazer por um agente da escrita para solucionar determinado problema, mas também agregando outro dado informativo sobre sua cultura intelectual. Mais um exemplo de interação entre os métodos científicos é o empenho de químicos e cientistas da conservação em pesquisar sobre a constituição química das antigas tintas de escrita para compreender seu processo de deterioração; historiadores, por sua vez, os mesmos dados para interpretar as capacidades operativas dos sujeitos em determinadas épocas. A dificuldade encontrada pelos primeiros é a existência de uma grande variedade de combinações de materiais, sem dúvida resultantes de escolhas humanas feitas em determinados momentos. Aqui seria possível a separação entre materialidade “físico-química” e materialidade “social”? Algum objeto existe e sobrevive sem a ação humana em determinada situação histórica?
Quem definirá a abordagem das dimensões materiais do objeto é o sujeito: o investigador, o cientista, o poeta. Para quê qualificar a materialidade se a dissociação entre material e social é impossível? Algumas das discussões sobre as relações entre texto, matéria e vida social são perceptíveis nos artigos deste dossiê Dimensões Materiais da Cultura Escrita. Os textos estão reunidos em três grupos: a) relação física entre leitores e escrita; b) recursos tipográficos como conformadores de leitura; e c) opções materiais para transmissão textual.
O artigo de abertura é de Rafael Climent-Espino. Em “Objetos-livro e escrituras expostas: novas paisagens textuais e literárias na América Latina e Espanha”, o autor discute os limites das visões sobre a materialidade dos textos com base na distinção necessária entre objetos-livro e livros-objeto. Climent-Espino parte da ideia de que não existe escrita sem seus suportes materiais; desta forma, não há texto sem objeto, e a percepção do conteúdo depende dessa vinculação. No entanto, se desde a Antiguidade o texto literário tem a capacidade de existir em suportes diferentes, como pedra, cerâmica, tecidos, ossos etc., a primazia do formato códice e do suporte papel reduziu a nossa compreensão, forçando uma separação entre objeto-livro e livro-objeto. A surpresa do artigo de Rafael Climent-Espino reside em defender a capacidade literária contemporânea de existir fora do formato de códice sem perder o estatuto de literatura. Suas explorações apresentam objetos criados para transmitir texto e, portanto, passíveis de serem considerados “livros” na acepção mais ampla do termo. São, na verdade, “objetos-livro” com formas materiais diversas, como caixa de fósforos, alimentos ou moradias, e convocam o leitor a fazer uma leitura dinâmica e multidirecional. Em algumas dessas experiências, a leitura exige não a manipulação do objeto, mas do próprio corpo.
O “objeto-livro”, ou a escrita fora do códice, já existia no século de ouro espanhol. Bules, copos, taças, lamparinas, sopeiras, capacetes, armaduras, joias, colares, lenços, vestidos, calções, sapatos, edifícios, paredes e tumbas, sem esquecer os papeis, são testemunhos dessa prática. Naquele momento, cancioneiros ampliaram o conceito de suporte do texto e, com isso, aproximaram a cultura textual da cultura material. “Poesía fuera del cancionero: la inscripción de lo cotidiano y lo sublime”, o artigo de Ana María Gómez-Bravo, nos convida a perceber a íntima relação entre cultura escrita, material e visual ao buscar as conexões existentes entre texto, imagem, objetos e sensações corporais na poesia do século XV. Suas reflexões destacam a capacidade do texto de representar e propagar sensações provocadas por objetos e, por outro lado, modificar o estatuto simbólico de artefatos com a simples presença da escrita. Além dos numerosos exemplos de relações estabelecidas entre objetos e lugares através dos elementos gráficos, outros dois enfoques da cultura escrita destacados pela autora não podem deixar de ser mencionados. Um deles é a capacidade técnica plural dos profissionais da escrita para lidar com suportes tão diferentes quanto o vidro, o metal, o papel e a pedra; o outro é a promoção do livro-objeto a veículo de fortalecimento de relações sociais. Gómez-Bravo discute alguns exemplos de como o uso de elementos gráficos – como os monogramas reais em objetos privados de diversas naturezas (arquitetônica, decorativa ou utilitária) – revelava relações de fidelidade entre os membros da nobreza. O termo “bibliopolítica” é usado pela autora para se referir a quando os livros eram o veículo dessa prática social.
O fortalecimento de relações sociais entre a nobreza através dos livros é perceptível nas encomendas de manuscritos iluminados – sustentadoras da produção, comercialização e preservação desse tipo de obra20 – que posteriormente passaram a fazer parte de coleções bibliográficas reais. Este é o tema do artigo “Das mãos aos cofres: reflexões sobre transformações materiais e transferência de propriedade de livros devocionais do tardo-medievo”, de Márcia Almada. Após discorrer sobre circunstâncias da produção de códices iluminados na região da Europa central, a autora apresenta exemplos de como os objetos eram transformados materialmente para atender às demandas dos novos proprietários, cujas marcas distintivas de propriedade podem ser incluídas no conceito de “bibliopolítica” usado por Ana Gómez-Bravo. As galerias da Biblioteca de Mafra, em Portugal, são apresentadas para se compreender como a localização física e as condições de acesso no início do século XIX, além das alterações pontuais feitas ao longo do tempo, são elementos concretos para refletir sobre as diversas atribuições de sentido e possibilidades de experiências sensoriais do patrimônio bibliográfico. Afinal, como já afirmava Armando Petrucci, os modelos de bibliotecas acompanham os modos de ler e escrever,21 e a disposição espacial das estantes que guardam os livros revela muito sobre os modos como são utilizadas.
O segundo grupo de artigos discute a utilização dos recursos tipográficos como conformadores da leitura. Em “A primeira página da história: configuração material e funções da folha de rosto em livros de história alemães do século XVIII”, André de Melo Araújo reforça o coro de Gómez-Bravo e de Almada na perspectiva bibliopolítica sobre as ornamentações e técnicas aplicadas nos revestimentos externos do códice. Mas esse é apenas o argumento introdutório, pois o artigo está interessado em destacar a importância da folha de rosto como testemunha das inúmeras problemáticas envolvidas no trabalho editorial e a função desse dispositivo tipográfico de qualificar a obra comercial, social e intelectualmente. O historiador elucida, com exemplos concretos, a maneira pela qual as formas materiais dos livros impressos serviam para reforçar os vínculos do livro-objeto com a tradição cultural à qual se referenciava e com as práticas de leitura, pois formatos, dimensões e estilos tipográficos se adaptavam às demandas variadas dos consumidores, sendo estas escolhas determinadas pelo editor ou pelo autor. Araújo articula a análise visual, material e social do tratamento de obras impressas da era moderna, amparada pelas teorias que apreendem as escolhas técnicas e materiais como dimensões cultural e histórica. Predominam as referências bibliográficas de tradição alemã, proporcionando a oportunidade de ampliação da experiência de leitura no campo da história do livro, firmada predominantemente no viés francês ou britânico / estadunidense.
Kleber Clementino, em “Mina secreta, aríete forçoso: o livro na historicização da Guerra Holandesa (1625-1660)”, igualmente investiga os livros de história. No entanto, o foco dirige-se para as publicações sobre a Guerra Holandesa saídas de prelos da Península Ibérica. Sua problemática refere-se à utilização do gênero histórico como meio de propagar os relatos sobre a guerra, ao uso do livro como um “artefato bélico metafórico” e à percepção da atividade editorial como um evento da guerra. Essa batalha foi travada entre a fidalguia militar ibérica que retornava à Europa e a elite vinculada aos trópicos; do mesmo modo, ela existiu entre dois gêneros textuais: a relação de sucessos e a literatura histórica. Os conflitos foram tipificados materialmente pela concorrência da veiculação de panfletos ou de livros, e o uso desses dois produtos tipográficos revelou a descontinuidade não só de fórmulas discursivas, mas igualmente de forças políticas, favorecendo a promoção socioeconômica dos grupos sociais em ascensão nos domínios ultramarinos. O livro garantia a perpetuação duradoura dos relatos, a circulação mais restrita aos círculos elitistas da sociedade e a formação de camadas simbólicas. No entanto, ao requerer um juízo político e submeter-se à censura, o texto ou o autor poderiam ser envolvidos em uma disputa editorial, impedindo a impressão ou a circulação das obras.
O tema da guerra editorial também é explorado por Verônica Calsoni Lima em “Edição & censura: a materialidade dos panfletos de Sir Roger L’Estrange no início dos anos 1660”. A batalha descrita nesse caso se dá entre um escritor e censor e seus opositores. A personagem, em associação com seu editor, manejava os recursos tipográficos com habilidade para enfatizar passagens e mover as emoções do leitor no decorrer do texto. Por meio do exame textual e material das obras de L’Estrange, o artigo é construído sobre a perspectiva da dupla atuação literária da personagem e sua ascendência sobre as escolhas tipográficas das publicações. A manipulação desses dispositivos, na opinião da autora, facultava um trânsito entre as formas de comunicação textual, visual e oral, impactando a absorção do conteúdo discursivo usado no embate político-religioso. Outro trânsito de interesse é o deslocamento do corpo no exercício das atividades profissionais. Avaliando a instalação do escritório de L’Estrange na região londrina onde se aglomeravam as tipografias no século XVII, a autora procura compreender a relação física entre o censor e seus investigados e entre o autor e seu editor. Ademais, destaca a necessária interação entre condições de produção do autor, análise material e visual, e gênero textual, além de tecer considerações sobre as funções de autor e censor.
O terceiro tema do dossiê refere-se à disponibilidade de materiais e técnicas para a transmissão textual. Em “Um texto setecentista em três séculos: os conteúdos, as formas e os significados da Noticia Primeira Practica, de João Antonio Cabral Camello (XVIII-XX)”, Jean Gomes de Souza traça a biografia do relato textual sobre uma viagem fluvial de Sorocaba (SP) a Cuiabá (MT) ocorrida no ano de 1727. A história do escrito percorre o período de 1734, ano da primeira versão conhecida, a 1953, quando ressurge em obra organizada por Afonso d’Escragnolle Taunay – Relatos monçoeiros destaca-se entre as demais publicações do relato por ter se tornado referência para as publicações subsequentes no século XX. A compreensão das condições de produção de cada uma das edições é fundamentada na biografia de seus produtores, impedindo o deslocamento da obra textual das situações históricas nas quais é concebida, apropriada e preservada. A noção de versão utilizada pelo autor permite perceber o texto como uma obra em aberto, estando sujeita a desmembramentos, refazimentos e reajuntamentos que darão ao conteúdo condições diferentes de fruição e uso. Os métodos e as preocupações de disciplinas como a cultura material, cultura escrita, paleografia e bibliografia material são coordenados para perceber o texto escrito como representação histórica, social, linguística e material.
A questão material é evidente nos arquivos quando se lida com uma grande massa documental produzida pela administração pública dos Estados modernos. Diante dessa evidente e copiosa matéria, poucos foram os que se perguntaram: de onde vinha todo esse papel? Havia uma regulação do comércio desse material? Havia controle da administração quanto ao envio de papel para suas colônias? As tintas e as penas eram produzidas localmente ou compradas? Quem detinha esse saber: todos os capazes de escrever ou somente os especialistas? Quem era responsável pela produção de livros de notas, anotações e registros? E quem encadernava os “papéis vários”? Há muito a ser pesquisado sobre as atividades escriturárias e os saberes envolvidos além da leitura e escrita. Com um olhar de reconhecimento sobre as dimensões materiais das atividades humanas, Régis Quintão percebeu na documentação do Erário Régio do Arquivo Histórico do Tribunal de Contas de Portugal informações substanciais para iniciar um caminho para responder a algumas dessas questões. Em “‘Papel, penas e drogas para tinta’: materiais de escritório na administração diamantina no século XVIII”, o autor se debruça sobre registros textuais acerca dos insumos utilizados para a escrita administrativa. Como destacado, embora de uso corrente e necessário para as práticas administrativas, sociais e culturais, o dispendioso papel raramente é citado nas pesquisas sobre o comércio internacional, tampouco nos relatos de viajantes – talvez por ser óbvio demais. Mas, como disse José Newton Coelho Meneses,22 não se pode escusar de dizer o óbvio. Quem se interessa por essas questões encontrará algumas surpresas no artigo de Régis Quintão. São perguntas possíveis de marcar uma agenda de pesquisas necessárias no campo das dimensões materiais da cultura escrita.
Uma constante discussão no campo acadêmico, desde a predominância da digitalização de acervos como política de preservação e difusão de conteúdo, é referente à restrição do acesso presencial e seu impacto na análise material do objeto. Essa questão se tornou mais evidente durante o ano de 2020, quando a crise sanitária provocada pelo Sars-CoV-2, o novo coronavírus, impediu a presença física de pesquisadores nos acervos. A principal pergunta é: como analisamos materialmente um artefato através de imagens digitalizadas? Sem negar que o contato com o objeto é propulsor de questões, e levando em conta as experiências dos artigos publicados neste dossiê, pode-se desenhar algumas possibilidades. Quando a linha de estudo é de reflexão teórica / conceitual acerca das possibilidades materiais da expressão humana e da fruição de produtos, o contato físico com o objeto é voluntário; portanto, o uso de registros visuais dos artefatos não é proibitivo. O suporte teórico definirá as problemáticas de investigação. É o caso dos estudos de Rafael Climent-Espino, Ana María Gómez-Bravo e Kleber Clementino, que observam a existência de textos poéticos e narrativos em suportes materiais diferentes. Já Régis Quintão faz uso das fontes documentais para pesquisar sobre as possibilidades materiais da escrita. Nesse caso, os inventários, livros de registros de compras e livros de receita e despesa são ótimas fontes sobre as condições materiais existentes em determinadas épocas.
Outro caminho de pesquisa é aquele percorrido por André Araújo, Verônica Calsoni e Jean Gomes, firmado na análise visual para captar as condições materiais das escolhas técnicas e funcionais de agentes responsáveis pela produção textual, mesmo que eles tenham tido a oportunidade anterior de estar diante dos artefatos estudados e possivelmente tenham feito sua própria documentação por imagem. Usar a visualidade como um dado material exige do pesquisador um conhecimento aprofundado dos processos técnicos e das condições de produção para enxergar no produto final as ações implementadas e nelas encontrar as informações perseguidas.
Mais uma oportunidade de extrair dados das condições materiais de um artefato é a consulta aos catálogos e às fichas descritivas de bibliotecas, conforme feito por Márcia Almada. Segundo Armando Petrucci,23 durante o século XIX as bibliotecas nacionais viraram laboratórios de investigação no campo da cultura escrita. Nas minuciosas descrições feitas a partir dos métodos da bibliografia material, resgatam-se informações consistentes sobre aspectos técnicos e constitutivos, proveniência, posse e intervenções sofridas ao longo do tempo. A utilização e a elaboração desses catálogos devem ser estimuladas. Por outro lado, pesquisas recentes têm gerado trabalhos monográficos sobre objetos em particular e podem ser usados em análises paradigmáticas. A consulta às áreas dedicadas à produção de conhecimento sobre os aspectos constitutivos dos objetos pode ser um recurso extraordinário. Alguns centros de pesquisa disponibilizam resultados de projetos e de exames voltados para a análise material, como no caso do estudo sobre a cor nos manuscritos medievais portugueses realizado pelo Laboratório Associado para a Química Verde (LAQV-Requimte), formado por um grupo interdisciplinar de químicos e cientistas da conservação,24 e no caso do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa, que recentemente disponibilizou sua base de dados sobre manuscritos medievais, com acesso aberto às fichas científicas dos manuscritos.25 Os relatórios de tratamentos de restauração também fornecem informações valiosas sobre a biografia dos objetos e podem ser usados como fonte.
O conjunto de artigos presentes no dossiê Dimensões Materiais da Cultura Escrita nos apresenta resultados de reflexões e de pesquisas recentes sobre a presença material da escrita na história e na contemporaneidade. Da mesma forma, nos convida a visitar os suportes metodológicos dos autores vinculados à teoria que defende a materialidade como requisito fundamental para a existência dos textos e para a criação de condições específicas de recepção da mensagem. Como foi discutido, as três camadas da informação são interligadas, e não há como dissociar o material do mental ou do social, pois o processo criativo humano se concretiza concomitantemente nesses domínios. Torna-se desnecessário, portanto, qualificar o substantivo “materialidade”.
Notas
- Agradeço a José Newton Coelho Meneses pela parceria acadêmica que tem permitido o aprofundamento dos questionamentos. Estas reflexões são fruto das pesquisas realizadas no âmbito do Convênio de Cooperação Acadêmica entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a University of West Attica (Uniwa) e do projeto Capes Auxpe nº 585 / 2015.
- Professora do Curso de Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis da Escola de Belas Artes da UFMG. Pesquisadora do projeto “A materialidade dos documentos pintados, entre a história e a preservação” (Capes Auxpe nº 585 / 2015).
- Alguns autores que devem ser mencionados são Ulpiano Bezerra de Meneses, Marcelo Rede, Daniel Miller, Arjun Appadurai, Peter Stallybrass, Amanda Vickery e Leila Algranti.
- McKenzie (1999); Petrucci (1999); Gimeno Blay (1986).
- Darnton (2009, 2012); Chartier (2007); Bouza Álvarez (2001); Castillo Gómez (2002).
- Recentemente Álvaro Antunes realizou uma breve discussão conceitual sobre o uso do termo “cultura escrita” e “cultura do escrito”. Em ambas as definições, no entanto, destaca que, para a história, os “efeitos sociais, políticos e culturais” são o que se busca, extrapolando a perspectiva de tecnologia da informação (Antunes, 2020, p. 623).
- Tanselle apud Daybell (2012, p. 15). No original: “the social process of publication”.
- Daybell (2012, p. 15, grifo nosso). No original: “materiality relates not only to the significance of physical forms, but also to the social materiality (or ‘sociology’) of texts, that is the social and cultural practices of manuscript and print in the contexts in which they were produced, disseminated and consumed”.
- Antonio Castillo Gómez (op. cit., p. 20) define o campo da “história social da cultura escrita” relacionado a três conceitos-chave – os discursos, as práticas e as representações – e afirma que o que a distingue de outras formas de fazer história é a “importância outorgada à materialidade dos objetos escritos” (no original: “es la importância outorgada a la materialidade de los objetos escritos”). Para uma apresentação mais ampla do campo da cultura escrita e da dissociação entre material e social, ver Chartier (op. cit.).
- Zervos; Koulouris; Giannakopoulos (2011).
- Cf. Almada (2018).
- Cf. Petrucci, op. cit.
- Cf. Elkins (2008).
- Cf. Darnton (2009, 2012).
- Rodríguez Domínguez (2018); Utsch (2020).
- Cf. Correia (2015).
- Cf. Campos (2019); Castro (2012).
- Discurso… ([1720?]).
- Almada; Monteiro (2019). Exames foram realizados no Laboratório da Ciência da Conservação da Escola de Belas Artes da UFMG pelo professor João Cura D’Ars e pela técnica Selma Otília Gonçalves.
- Para um estudo mais aprofundado sobre a manutenção da produção de manuscritos iluminados até a era moderna, ver Almada (2012).
- Petrucci, op. cit., p. 283.
- Meneses (2017)
- Petrucci, op. cit., p. 287.
- O laboratório tem inúmeras publicações no campo, entre elas a de Nabais et al. (2020).
- Cf. Morais (2017).
Referências
Fonte manuscrita
DISCURSO Histórico sobre a Sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Arquivo Público Mineiro, AVC17. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, [1720?].
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