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A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber – MATA (AN)
MATA, Sérgio da. A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. 236p. Resenha de: CUNHA, Marcelo Durão Rodrigues. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 417-426, jul. 2014.
Na linha de estudos atuais no campo da história intelectual e das ideias, o professor Sérgio da Mata realiza em A fascinação weberiana: as origens da obra de Max Weber um trabalho que, dentre outros objetivos, busca elucidar as bases do encantamento intelectual, da sedução que a obra de Max Weber suscita na comunidade acadêmica em todo o mundo.
A “fascinação” – termo cunhado na década de 1950 por Nelson Werneck Sodré – denota, segundo o historiador mineiro, um tipo de tentação intelectual que, de forma ambivalente, poderia levar ao mesmo tempo à obliteração da autonomia da obra de um autor, bem como à sua consequente abnegação no campo das ideias.
Na contramão deste caminho entre fascinação e sacrifício do intelecto, Sérgio da Mata traz um instigante estudo acerca do legado weberiano, desde a dívida do intelectual para com a Escola Histórica Alemã até os caminhos e as fronteiras da recepção de sua obra em terras brasileiras.
Ancorados num extenso trabalho de pesquisa em arquivos e bibliotecas alemãs, os estudos reunidos pelo Weberforscher brasileiro baseiam-se em uma melhor compreensão dos chamados “anos de aprendizagem”, de formação histórico-jurídica do intelectual alemão, antes do seu tardio sociological turn, ao fim da primeira década do século vinte.
Com o princípio metodológico básico de analisar apenas o que antecede esse marco, preocupando-se com o “início” e o desenvolvimento progressivo da vida intelectual weberiana, o autor evita a tendência a panoramas retrospectivos ou a um tipo de teleologismo muito comum em abordagens sobre obra de Weber, ainda perceptível em trabalhos recentes, como os de Francisco Teixeira e Celso Frederico (TEIXEIRA; FREDERICO, 2011), ou no artigo de Gerhard Dilcher (DILCHER, 2012).
Tendo como pressuposto a elevação feita pelo próprio Weber da ciência histórica à categoria de Grundwissenschaft, o pesquisador enxerga na formação intelectual do autor de A ética protestante uma perspectiva que seria sempre e decididamente histórica. Essa ideia de um approach weberiano às ciências históricas – que há alguns anos causaria estranhamento a leitores desatentos – é a base do argumento de Mata em boa parte de sua obra.
Em um exercício de história contrafatual, o autor chega mesmo a sustentar que, caso a carreira de Weber tivesse se encerrado em 1909, este dificilmente estaria situado entre os fundadores da moderna sociologia alemã.
É em tal provocação que reside a tentativa por parte do historiador de reconstrução da trajetória de Weber dentro daquilo que denomina a “era de ouro do historicismo”. Discordando de interlocutores que tendem a observar na virada do oitocentos ao século vinte o germe de uma crise da ciência histórica, Mata vê, pelo contrário, na fundamentação epistemológica do historicismo – realizada por Dilthey, Schmoller, Bernheim, Windelband e Rickert no período – uma indissociável gênese da obra e da metodologia weberianas.
É justamente fugindo da sombra da sociologia de Max Weber que o autor inicia todo um capítulo acerca daqueles anos de aprendizagem em Heidelberg, Göttingen e Berlim – “três templos da ciência histórica oitocentista” (MATA, 2013, p. 35) –, quando o jovem “jurista” formar-se-ia em um ambiente intelectual amplamente influenciado pela Weltanschaung histórica.
Mata busca aqui identificar algumas das figuras que mar‑caram o início da trajetória intelectual do estudante oriundo de Erfurt para concluir que Weber foi, nem mais nem menos que qualquer contemporâneo seu, o resultado dos estilos de pensamento histórico
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Anos 90, Porto Alegre, eentão vigentes. Seus laços familiares com o eminente historiador Hermann Baumgarten, a simpatia inicial pelo trabalho de Heinrich von Treitschke, além do convívio do jovem Max com o círculo de Theodore Mommsen, são alguns dos muitos indícios que corroboram a tese do autor.
Desconstruindo a ideia de que Weber teria rejeitado, ou mesmo se oposto à ciência histórica de seu tempo, o historiador nos prova o contrário a partir de um olhar atento sobre a pouco estudada primeira fase da carreira do intelectual germânico. Considerando a perspectiva trazida por Mata nesse primeiro capítulo, torna-se fácil concordar com sua assertiva, segundo a qual “Max Weber começou a tornar-se o Max Weber que conhecemos no berço esplêndido do historicismo alemão” (MATA, 2013, p. 35).
Mas, longe de limitar a ascendência intelectual do jovem autor aos domínios da Ciência Histórica, Mata fornece-nos o panorama de toda uma constelação de ideias e relações intelectuais que teriam influenciado a formação do economista e historiador do direito Max Weber.
A partir da leitura sincrônica de alguns dos mais importantes estudos históricos e econômicos publicados pelo autor até 1905, Mata é capaz de identificar um padrão metódico comum na obra do então professor de Heidelberg. Ao tratar em especial da concepção plural das relações de causalidade e, ao mesmo tempo, da tendência de Weber a enfatizar determinadas macrodeterminações em função do problema específico elucidado, o pesquisador contesta aquelas leituras que tendem a exagerar a perspectiva “idealista” do autor alemão.
É este apurado exame dos primeiros trabalhos de Weber que permite ao historiador chegar a duas conclusões gerais: primeiro, que Weber (ao menos na primeira fase de sua carreira) não teria proposto nem se tornado refém de uma “teoria” histórico-social abrangente. Segundo, que somente o desconhecimento em relação à obra weberiana explicaria por que se chegou a ver no autor de Erfurt uma versão idealista de Marx. E são justamente as preocupações práticas que permitem ao historiador identificar uma “clavis weberiana” – especialmente nos vinte primeiros anos da trajetória intelectual do autor. Por trás da inteligência teórica, Weber falaria sempre em uma intenção prática.
Na trilha do que persegue nas digressões teóricas de um Weber prematuro, Mata procurará, entretanto, nas publicações tardias do intelectual turíngio, sinais de uma possível concepção filosófica da história. Principalmente no que tange à sua percepção do processo de racionalização ocidental e no caráter inexorável que atribui ao conceito de Rationalizierung, o autor brasileiro irá buscar no resultado das investigações empíricas weberianas possíveis ligações com a obra do historiador escocês Thomas Carlyle.
Por sua “extraordinária força ética” e pelo ideal de reforma social em harmonia com a recusa a toda alternativa que implicasse a subversão violenta da ordem, Carlyle tornara-se bastante sedutor aos olhos da intelectualidade alemã do fin-de-siècle. Do autor de Past and Present, Weber herdara, por exemplo, aquela ampla dimensão atribuída ao trabalho na modernidade e as idiossincrasias da noção de “heroís‑mo carismático” no cerne do processo de burocratização ocidental.
Exercício semelhante é feito pelo autor no que diz respeito à dívida weberiana ao pensamento do filósofo neokantiano Heinrich Rickert. Distanciando-se da apressada leitura de Ivan Domingues (DOMINGUES, 2004) e dos equívocos cometidos por Fritz Ringer (RINGER, 2004) na análise de tal relação, Mata insiste na necessidade de entendimento dos pressupostos rickertianos para melhor compreensão dos fundamentos do pensamento histórico de Weber. Do autor de Os limites da formação de conceitos nas ciências naturais, Weber extraíra a ideia de que as pré-condições à caracterização de um trabalho de história como científico seriam: objetividade, contextualização e imputação causal. Weber teria expressado bem esta preocupação de Rickert ao observar que o historiador que abre mão dessas pré-condições comporia “um romance histórico, não uma verificação científica”.
Além disso, do filósofo prussiano, teria sido importante para o economista político aquele abrangente conceito de cultura – segundo o qual o cultural seria qualquer realidade investida não apenas de sentido, mas de valor – e o seu ideal de “verdade” como um valor do qual a ciência jamais poderia abrir mão. Longe de expressar um relativismo, o perspectivismo histórico weberiano, como exposto por Mata, estaria muito mais próximo daquele modesto ideal de verdade defendido por Rickert. 420 Marcelo Durão Rodrigues da Cunha.
Abertas tais perspectivas críticas quanto à análise das origens do pensamento histórico weberiano, Sérgio da Mata amplia o debate no quarto capítulo, ao tratar da discussão em torno da “teoria” dos tipos ideais, desenvolvida por Weber. É realizando uma história do próprio conceito em tela que o autor relativiza a originalidade da tal aspecto do pensamento teórico-metodológico do intelectual alemão.
Expressando uma tentativa de fundamentar a perspectiva tipologizante nas ciências naturais, o autor alerta que a noção de “tipo” havia se tornado um jargão na Alemanha entre fins do século dezenove e início do vinte. Como reverberação da Methodenstreit entre economistas alemães e austríacos – envolvendo nomes como Gustav von Schmoller e Carl Menger (RINGER, 2000) – e do debate, igualmente intenso, que contrapôs historiadores políticos a historiadores culturais (ELIAS, 1997, p. 117), Mata verifica a percepção de alguns daqueles limites do historicismo que contribuíram para a reformulação epistemológica da disciplina histórica na Alemanha guilhermina. Nas discussões entre Eberhard Gothein, Dietrich Schäfer e Ernst Troeltsch, seria perceptível o embate acerca da utilidade de categorias tipológicas que visassem a extrapolar os limites do singular na representação de fenômenos históricos.
É também na ciência jurídica e na ligação de Weber com o jurista Georg Jellinek que Mata identifica como o autor do artigo sobre a “Objetividade”, de 1904, teria feito uso dos “tipos empíricos” de Jellinek, invertendo seus polos – os denominando “tipos ideais” – de modo a se distanciar de seu elemento propriamente normativo, – aproximando-os do que classificava como “ciências da realidade”.
A dívida de Weber para com a teologia – e aqui destacam-se as formulações de Ernst Troeltsch – é ressaltada como igualmente importante naquilo que se tornaria tão central em sua obra. Como uma espécie de conceito jurídico “desnormativizado”, o tipo ideal weberiano representaria uma forma de compromisso entre o abandono e a conservação da filosofia da história, sendo, nesse sentido, uma “forma resignada da filosofia da história”. Mais do que simples‑mente comprovar que não há originalidade na “teoria” weberiana dos tipos ideais, Mata é capaz de trazer novamente à tona uma série de debates entre eruditos que outrora padeciam em um longo período de esquecimento.
Ao tratar de outro controverso aspecto da obra de Weber, a “isenção de valor” ou “neutralidade axiológica” (Wertfreiheit) do conhecimento histórico social, o autor opta por reconstruir a evolução de tal sentido na obra de Weber, contrapondo a posição do intelectual às de alguns de seus contemporâneos. Em trabalhos como o ensaio sobre a “Objetividade” ou em A ética protestante, além do diálogo com as obras de Rickert e Schmoller, o historiador evidencia, em um primeiro momento, que há na obra de Weber uma preocupação com o “dever ser” (Sollen) do erudito que extrapola o campo propriamente epistemológico, estendendo-se também à ética da prática pedagógica.
Mata conclui que Weber sustenta a opinião segundo a qual o historiador, o jurista e o sociólogo podem e devem ter sua própria visão de mundo, sua ética e suas convicções políticas, mas não a ciência histórica, o direito e a sociologia enquanto tais. Weber afirmaria querer se afastar dos adeptos de uma neutralidade axiológica “radical”, para quem a historicidade dos postulados éticos deporia contra a importância histórica destes. Ao mesmo tempo, julgaria que não cabe à ciência empírica valorar positivamente uma ética só por ela ter dado forma a épocas e culturas inteiras. Nesse sentido, a neutralidade axiológica weberiana residiria, em última análise, numa transposição da ética da convicção para o campo gnosiológico.
Apontando o caráter estritamente formal da solução weberiana para o problema dos valores, além de sua posição pouco consequente do ponto de vista filosófico, Mata joga luz sobre o tão atual debate acerca das relações entre ciência e consciência moral.
Dando prosseguimento ao debate acerca da influência do pensamento weberiano na ciência histórica, o pesquisador ambiciona, no sexto capítulo, compreender os motivos do amplo desconhecimento a respeito da obra de Weber – tanto no Brasil quanto no exterior – e do seu legado para o ofício dos historiadores.
Dedicando-se ao entendimento de alguns importantes aspectos da visão de Weber sobre a ciência histórica, Mata analisa a opinião do intelectual frente aos escritos de três relevantes historiadores – Leopold von Ranke, Karl Lamprecht e Eduard Meyer – de modo a melhor aproximar-se de sua própria visão a respeito do tema.
Em tal exercício, o historiador conclui que tudo parece afastar as posições de Weber, sobretudo, do segundo desses autores. Os argumentos apresentados na polêmica com Meyer levam-no, toda‑via, a concluir que entre a história “positivista” de Lamprecht e a história compreendida como “ciência cultural” de Weber existiam evidentes afinidades eletivas. Mata percebe que ambos se reconheciam como representantes de uma história cultural que desafiava abertamente os rígidos cânones historiográficos vigentes.
A aproximação com o trabalho do Weber historiador no atual momento do que classifica como “crises de sentido intersubjetivas” seria, segundo Mata, profícua na medida em que – distanciando-se de uma perspectiva de exagero do ficcional – este versaria sobre uma ciência preocupada com os desdobramentos do real.
Nos capítulos seguintes, o autor reitera tal posição referente à relevância da Weberforschung no presente, ao analisar o uso do conceito de “despotismo oriental” e o debate acerca da existência de uma posição religiosa e de uma teologia política na obra de Max Weber.
No primeiro caso, em um pequeno excurso complementar, Mata empreende uma elucidativa avaliação dos escritos weberianos acerca da situação política na Rússia do início do século vinte. Em sua análise, o autor conclui que Weber surpreendentemente mantém sua opinião a respeito do suposto imobilismo russo – de forma coerente com o que era pensado pelos fundadores do materialismo histórico em sua noção de “despotismo oriental”.
No segundo, Mata reserva dois capítulos inteiros para debater a complexa relação do autor em tela com a teologia e a prática religiosa. A partir de uma perspectiva própria à história das ideias, o historiador enaltece a importância do homo religiosus Max Weber para o “estudioso da religião Max Weber”. Em uma minuciosa análise da trajetória dos estudos teológicos de sua família, além das relações do jovem jurista com seu primo Otto Baumgarten, o autor percebe que, longe do que era pregado por Friedrich Schleiermacher, Weber entendia que vida religiosa interior e ação transformadora no mundo não deveriam nem poderiam se contradizer.
Mais adiante, ao discutir a existência de uma teologia política por trás da Ética protestante, o autor traz – em recurso a elementos sociopolíticos, acadêmicos e biográficos do contexto de produção da obra – uma surpreendente interpretação do mais conhecido trabalho do intelectual alemão. Levando em consideração elementos biográficos, além da posição do autor diante da política de seu tempo, Mata é capaz de perceber no estudo de história cultural weberiano tanto a expressão tardia do Kulturkampf1 quanto um tratado de teologia política.
Tratando ainda do clássico estudo de Weber, o historiador irá desconstruir no capítulo seguinte o que considera a formulação do mito de A ética protestante e o espírito do capitalismo como obra de sociologia. Considerando a forma pela qual o autor emprega as categorias de “tipos ideais” – “uma construção mental destinada à medição e caracterização sistemática de conexões individuais, isto é, importantes devido à sua especificidade” (WEBER apud MATA, 2013, p. 180) –, Mata percebe em tal recurso heurístico a tentativa por parte do autor de facilitar a identificação e a análise de realidades percebidas como singulares, que seriam, em última instância, históricas. Além disso, declarações do próprio Max Weber e uma análise do contexto de produção historiográfica do período corroboram a tese do historiador mineiro, segundo a qual A ética protestante teria sido concebida, antes de tudo, como um estudo de história cultural.
Uma última e relevante preocupação de Mata em seu traba‑lho diz respeito à recepção da obra de Max Weber entre historiadores brasileiros desde o início da difusão de seus escritos em território nacional ao longo do último século. De uma favorável leitura de suas ideias durante as décadas de 1930 e 1940 – em interlocutores como Sérgio Buarque de Holanda e José Honório Rodrigues – à crítica e incompreensão de sua “interpretação espiritualista da História” Mata busca em nossa historiografia aquele “elo perdido” entre a obra weberiana e sua interpretação por interlocutores locais.
Neste caminho de reconstrução de itinerários e desmistificação de noções há muito atreladas à herança weberiana, o autor brasileiro erige novas perspectivas úteis à apreciação do “mito de Heidelberg” e de sua obra. Como alternativa a uma ótica demasiado contextualista, Mata opta por trabalhar com a noção de constelações intelectuais e suas delimitações (HEINRICH, 2005, p. 15-30) – ou “espaços de pensamento”. Tal esforço metodológico, conforme buscou-se demonstrar no curto espaço desta resenha, é coroado pelo sucesso da análise do autor em combinar contextos e insights biográficos, fornecendo-nos um panorama das principais conquistas da obra histórico-sociológica de Max Weber.
Se um dos objetivos de Sérgio da Mata – conforme exposto em suas últimas digressões – estava associado à compreensão de um autor dedicado à história como ciência da realidade, pode-se considerar que seu trabalho cumpre à risca a intenção de trazer à tona tal debate. De posse daquela “coragem diante do real” e diante da recente tendência à “ficcionalização de tudo”, Mata é capaz de perceber em seu estudo o quanto o legado de Max Weber se mostra cada vez mais relevante ao entendimento do real enquanto vocação e profissão também no mundo contemporâneo.
Notas
1 Política implementada pelo chanceler Otto von Bismarck entre 1871 e 1878 com o objetivo de secularizar o Estado alemão e eliminar a influência da Igreja Católica Romana sobre a cultura e a sociedade germânica do período.
Referências
DIEHL, Astor Antônio. Max Weber e a história. Passo Fundo: Ediupf, 2004.
DILCHER, Gerhard. As raízes jurídicas de Max Weber. Tempo social, v. 24, n. 1, p. 85-98, 2012.
DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 2004.
ELIAS, Norbert. “História da cultura” e “história política”. In:______. Os alemães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
HEINRICH, Dieter. Konstellationsforschung zur klassischen deutschen Philosophie. In: MUSLOW, Martin; STAMM, Marcelo (Hrsg.). Konstellationsforschung. Frankfurt am Main: C.H. Beck, 2005.
HÜBINGER, Gangolf. Max Weber e a história cultural da modernidade.
RINGER, Fritz. O declínio dos mandarins alemães: a Comunidade Acadêmica Alemã, 1890-1933. São Paulo: Edusp, 2000.
______. A metodologia de Max Weber. São Paulo: Edusp, 2004.
TEIXEIRA, Francisco José Soares; FREDERICO, Celso. Marx, Weber e o marxismo weberiano. São Paulo: Cortez, 2011.
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.
______. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Marcelo Durão Rodrigues da Cunha – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista Fapes. E-mail: marceloduraocunha@gmail.com.
Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX – MATA (T-RAA)
MATA, Sergio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX. Berlin: WVB, 2002. 304p. Resenha de: PEREIRA NETO, Francisco. Chão de Deus (resenha). Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 245-252, jul./dez. 2013.
CHÃO DE DEUS
É pertinente pensar que uma das principais vantagens de se concentrar estudos em torno de uma temática específica é a potencialidade da orientação interdisciplinar das pesquisas sobre essa mesma temática. Tratando especificamente do tema da religião, é notória a contribuição da obra “Chão de Deus: catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais”, de Sérgio da Mata. Trata-se de um estudo histórico, pautado por sua metodologia clássica, mas que constrói seu objeto através de um diálogo intenso com a geografia, com as ciências sociais (prioritariamente com a antropologia e a sociologia) e mesmo com a filosofia, em função do investimento do autor em esclarecer as bases epistemológicas do seu estudo.
Esse investimento na definição dos pressupostos teóricos do estudo se justifica na medida em que, como o próprio autor salienta, ao se propor a uma investigação histórica que privilegie a relação entre espaço e religião, o trabalho acaba apresentando uma abordagem original no campo da historiografia brasileira. O autor detecta entre as principais lacunas na literatura sobre a cidade brasileira, uma ausência de estudos sobre as origens e uma ausência do fator religioso. Portanto, seu estudo trata da constituição do espaço através de uma gênese religiosa, ou seja, da produção de uma proto-história das cidades mineiras. Com esta preocupação o autor propõe um debate importante com a historiografia sobre as cidades, que normalmente percebe a constituição do espaço urbano por seu caráter civilizacional e, em decorrência, definem a constituição das estruturas espaciais de origem, tal como os arraiais mineiros dos séculos XVIII e XIX, como uma iniciativa espontânea de uma sociedade em estruturação. Nas palavras do autor “[o trabalho] se propõe a estudar de forma sistemática a importância das representações e práticas religiosas na gênese das cidades e embriões de cidades em Minas Gerais ao longo dos séculos XVIII e XIX” (MATA, 2002, p. 20). É constante a defesa da tese de que em Minas Gerais, na origem do espaço urbano este é definido como um espaço sagrado. Utilizando-se do conceito de “longa duração” de Braudel (um dos expoentes da relação entre história e geografia), o autor afirma que “a formação de um arraial a partir de uma capela e do seu patrimônio é um processo de tal força e regularidade que não hesitaria em qualificá-lo de estrutural” (MATA, 2002, p. 23).
Porém, se o autor inova na temática e empreende um proveitoso esforço em favor da interdisciplinaridade para o tratamento do tema da religião, como veremos adiante, ele é conservador na utilização dos documentos para a produção de dados2. Neste aspecto critica a falta de
2 Para desenvolver seu estudo, Mata recorre a um denso material documental composto prioritariamente por um conjunto de documentos coletados no Arquivo Público Mineiro, nos arquivos eclesiásticos das arquidioceses de Diamantina, Belo Horizonte e Mariana e da diocese de Campanha, com especial destaque para o conjunto de documentos coletados pelo Vigário-Geral da Cúria, Monsenhor Júlio Bicalho, no final do século XIX. Além destes documentos foram consultados os livros de viajantes que percorreram Minas Gerais no século XIX, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (EMB) e o Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais (DHGMG). O autor recorreu também a obras literárias de escritores mineiros: Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimarães, João G. Rosa, entre outros.
referencial teórico na historiografia que procura trabalhar com a história das mentalidades e a história cultural, aliando-se a Jörn Rüsen, historiador alemão, que considera o “retorno à narrativa” na produção histórica como, de um lado, um prejuízo do ideal de objetividade, e de outro, uma sobre-valorização da “ficcionalidade” no trabalho do historiador. Em termos de referências teóricas é interessante que o estudo historiográfico de Mata avança em originalidade apropriando-se de influências distintas daquelas que normalmente a historiografia brasileira utilizou para produzir sua renovação, ou seja, as historiografias francesa, inglesa e norte-americana. A aproximação com a tradição alemã nos oferece, por exemplo, a possibilidade de conhecermos trabalhos da “Escola de Bochum” num campo de estudos reconhecido como geografia da religião, estudos que dão ênfase numa geografia das atitudes mentais. Por outro lado, mesmo criticando o que chamou de um ultra-relativismo da história das mentalidades e da história cultural, o autor não se furtou em utilizar historiadores como Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas para saudar o aparecimento de novas abordagens sobre a religiosidade no Brasil, livres da concepção institucionalista e anti-pluralista dos processos sócio-culturais que predominava na historiografia até então.
A abertura para a dimensão simbólica da realidade social e cultural é intensificada na concepção do autor sobre a cidade como espaço vivido. Chama a atenção para o fato de que nos aos 90 presenciamos ao retorno do espaço como interesse para os estudos no campo das ciências humanas. Para justificar a idéia de retorno o autor traz várias páginas apresentando o debate entre geógrafos e historiadores travado na Europa na primeira metade do século XX, o qual teria conseqüências interessantes no momento atual. A título de exemplo, o autor chama a atenção para a importância do projeto de geografia humana proposto pelo alemão Friedrich Ratzel no início do século XX, especialmente porque tal proposta enfatiza que a dialética entre espaço e história não se processa num nível puramente formal. Para este autor o espaço influencia a constituição física e mesmo a mentalidade (o „espírito‟) de um grupo. Para Mata, essa abordagem “culturalista” do espaço enfrenta uma outra visão que reduz o espaço a uma “palco”, tradicional entre historiadores e defendida por nomes eminentes como Lucien Febvre3 e Fernand Braudel. Neste caso o termo “culturalista” indica muito mais uma vocação para perceber o espaço através de sua dimensão simbólica e, portanto, com uma relação dialética construtiva com a vida social.
Para desenvolver sua compreensão da dimensão simbólica do espaço o autor vai lançar mão da contribuição de vários autores das Ciências Humanas. Explora, por exemplo, as idéias de Simmel que coloca a grande cidade como locus da mentalidade moderna; ou mesmo do conceito de “espaço mítico” de Ernest Cassirer, que diferencia o espaço carregado de sentido daquele que se apresenta aos nossos órgãos sensoriais e que vai ser definido como “espaço geométrico”. Nestes dois autores o espaço é visto, sobretudo, como expressão da atividade simbólica do homem e, deste modo, qualificam a relação de interdependência entre religião e a origem do espaço urbano que Mata coloca como fundamental para entender o processo de proto-urbanização em Minas Gerais. Vários outros autores reforçam este debate. Entre os principais estão Durkheim, Franz Boas, Edward Sorja, Bachelard, Michel Foucault, Lévi-Strauss, Herskovits, Marc Auge, Yi-fu Tuan, entre outros. Por esta nominata é possível perceber a amplitude da base teórica do autor, transitando pela geografia humana, história, sociologia, antropologia e fenomenologia para fundamentar as possibilidades que se abrem o tratar da relação entre espaço e religião. O mérito desta amplitude de perspectivas teóricas é abrir possibilidades de investigação do tema, que evidentemente não são esgotadas pelo estudo que o autor faz da constituição história das cidades em Minas Gerais.
No que se refere a religião, que é o outro elemento importante presente no marco analítico de Mata, a sua preocupação é qualificar o tipo de fenômeno religioso que estamos tratando ao pensar na sociedade mineira dos séculos XVIII e XIX. Para tanto, como foi colocado anteriormente, sua perspectiva de religião ultrapassa os seus marcos institucionais e vai preocupar-se com as questões da experiência religiosa. Neste caso o autor se aproxima das discussões sobre as expressões de religiosidade popular em Minas Gerais no período que compreende o estudo. Como base teórica, vai apropriar-se do conceito de Luckmann que entende “religião” como a “organização social das relações com a transcendência”, entendido que para este autor qualquer forma de experiência extra-cotidiana constitui uma transcendência. Para a discussão sobre religiosidade popular brasileira o autor vai utilizar-se do trabalho de historiadores como os supracitados e de autores do campo das ciências sociais como Maria Pereira de Queiroz, Gilberto Freyre e Pierre Sanchis, este último com forte influência nas análises de Mata.
O investimento do autor para trabalhar teoricamente os conceitos chaves presentes no texto, ou seja, espaço e religião, conferem à sua obra a potencialidade de um trabalho histórico no qual, ao estudar questões locais, coloca seus resultados em diálogo com questões teóricas mais amplas, de caráter universal, oferecendo elementos para o confronto dos conceitos gerais com a realidade.
Falando especificamente de Minas Gerais, o autor percebe duas dinâmicas distintas que estão na base dos processos de formação das cidades. São dinâmicas interdependentes, mas que mantém especificidades visíveis. Em primeiro lugar temos os arraiais e vilas forjadas em função de processos sociais decorrentes da exploração do ouro em Minas Gerais no século XVIII. É claro neste caso que a formação das localidades mantinha estreita relação com a atividade extrativista mineral. Em segundo lugar temos a formação de localidades em função do processo de “ruralização” da sociedade mineira, processo este que se acentuou com a diminuição da atividade mineira, mas que coexistiu com os arraiais de origem mineradora. Esta segunda forma de ocupação está intimamente vinculada a prática de fazendeiros em estabelecer um “patrimônio”, ou seja, um pedaço de terras ou uma doação em dinheiro, que serviriam para a construção de capelas e para a sua posterior manutenção. Para Mata, a gênese das cidades mineiras foi dependente da equação patrimônio-capela-arraial, uma vez que a prática comum é que a população se fixasse nos patrimônios doados para as capelas e dali surgissem as vilas e, posteriormente, as cidades. Por esta razão é que o autor chama a atenção para o fato de que os patrimônios que deram origem aos arraiais e às vilas foram os constituídos por doação de terras.
Para abordar os tipos humanos engendrados pelo ambiente societário de Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX e, especialmente, para defender a capacidade criativa da religiosidade vivida por esses homens, o autor vai tecer um olhar crítico à tese weberiana do “desencantamento do mundo” e de suas exigências de um tipo específico de racionalidade para as relações nas sociedades modernas. Para construir uma visão alternativa às nossas idéias mais poderosas sobre a relação entre religião e civilização, Mata apóia-se na riqueza das definições sobre religiosidade popular e, olhando a religião sob esta perspectiva, vai procurar compor um dos tipos mineiros característicos à época: o homo ludens. Vai propor a idéia de que a relação básica entre o homem mineiro e o espaço não era a de enraizamento, mas que o mesmo seguia a “lógica do movimento” ao estabelecer seu estilo de vida. Apóia-se em conceitos como o de “concepção espaçosa do mundo”, de Sérgio Buarque de Holanda, e de “habitus nômade”, de Pierre Sanchis, para dar contornos para o que seria o homem do período da mineração. O “mito do Eldorado, antes de tudo” povoava a imaginação desses primeiros mineiros e justificava sua predisposição para o jogo e a aventura. Para Mata estas motivações são compreensíveis como resposta a uma sociedade com pouca mobilidade e que barra o acesso a melhores condições através do trabalho. O autor vai propor uma relação criativa entre a Rússia e Minas Gerais ao utilizar o romance “O jogador”, de Dostoiewski, para ilustrar suas definições sobre o homo ludens mineiro. Com este recurso à literatura o autor busca lançar luz aos sentidos da prática do jogo e resistir a crítica européia, segundo ele de natureza etnocêntrica, à “indolência” dos brasileiros. Para se contrapor a ética protestante alemã, Dostoiewski afirma que “o dinheiro preciso para mim mesmo, e longe de mim ver todo o meu Ser como acessório do capital” (apud MATA, 2002, p. 251). Em suma, habitus nômade e religião conformavam a visão de realidade do homo ludens mineiro.
Como foi colocado acima, neste contexto a possibilidade do estabelecimento de vilas e arraias estava estreitamente vinculada a um processo de “domesticação religiosa” do espaço. Porém, o patrimônio que sustentava a construção de capelas e, em conseqüência, das outras casas do povoado tinha sua origem em valores e crenças de uma religiosidade que pouco devia à oficialidade da Igreja católica. Tratava-se de uma religiosidade em que o extraordinário estava incrustado no cotidiano, em que uma oposição rígida entre o natural e o sobrenatural era estranha às visões de mundo que proporcionava. O autor chega a utilizar a idéia de “sagrado selvagem” de Bastide para definir a religiosidade da época, sem, no entanto deixar suspeitas da existência de uma religiosidade “pré-lógica”. A capacidade constitutiva de um espaço público desta mentalidade religiosa aparece nas análises que o trabalho nos oferece do simbolismo que envolvia a casa, a capela, a praça, o cemitério, em contraposição com o espaço repleto de ambiguidades representado pelo sertão. Da mesma forma, nos fala das relações entre os agentes sociais trazendo análises e informações sobre a segregação das mulheres e das relações entre os fazendeiros e os grupos menos favorecidos (lavradores, escravos, etc.). Neste ponto o texto peca ao minimizar o peso das relações de subjugação presentes numa sociedade fortemente hierarquizada como a sociedade mineira da época. O autor propõe-se a um debate interessante com Luis Mott sobre o tema, sem, no entanto, conseguir que os argumentos do texto superem a impressão de uma certa minimização freiriana das relações de dominação, aqui em versão mineira. Por outro lado, ao falar sobre o culto dos santos e de outras práticas a religiosidade popular mineira, o autor nega a definição etnocêntrica do pretenso “exteriorismo” do catolicismo tradicional, segundo esse argumento incapaz de desenvolver uma religiosidade mais profunda. Coloca tal visão como uma “projeção de ilusões tipicamente modernas” e prefere tratar a perenidade e o apego às formas presentes no catolicismo popular como próprio daquilo que Sanchis define como “prevalência do significante” para o catolicismo ibérico.
O autor encerra o livro com a seguinte pergunta: derrota da “cidade selvagem”? Tendo em vista o aparecimento de sistemas mais racionalizados de criação do espaço urbano, como é o caso de Belo Horizonte, no final do século XIX, e de Brasília, em meados do XX, representações vivas da geometrização das cidades, Mata se pergunta sobre a ausência do elemento mítico e religioso nas conformações do espaço urbano contemporâneo. Neste caso o próprio autor mostra a influência religiosa que presidiu a construção destas utopias urbanas modernas, permitindo que se pense na cidade planejada como prenhe de um sentido religioso, tal qual ocorre com muitos de seus habitantes, hoje vivendo em um contexto, o do pluralismo religioso, propício a intensificação das dinâmicas de encantamento do espaço dessas mesmas cidades.
Nota
2 Para desenvolver seu estudo, Mata recorre a um denso material documental composto prioritariamente por um conjunto de documentos coletados no Arquivo Público Mineiro, nos arquivos eclesiásticos das arquidioceses de Diamantina, Belo Horizonte e Mariana e da diocese de Campanha, com especial destaque para o conjunto de documentos coletados pelo Vigário-Geral da Cúria, Monsenhor Júlio Bicalho, no final do século XIX. Além destes documentos foram consultados os livros de viajantes que percorreram Minas Gerais no século XIX, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (EMB) e o Dicionário Histórico- Geográfico de Minas Gerais (DHGMG). O autor recorreu também a obras literárias de escritores mineiros: Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimarães, João G. Rosa, entre outros.
3 Lucien Febvre, por sua vez, definia as ideias de Ratzel como um “determinismo geográfico”.
Referência
MATA, Sergio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX. Berlin: WVB, 2002. 304p.
Francisco Pereira Neto – Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Adjunto na Universidade Federal de Pelotas. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: Francisco.fpneto@gmail.com .