Nietzsche y “la nueva concepción del mundo” MARTON (CN)

MARTON, Scarlett. Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”. Córdoba: Brujas: 2017. Resenha de: PASCHOAL, Antonio Edmilson. O mundo como medida: o papel conferido por Scarlett Marton à cosmologia na interpretação da filosofia de Friedrich Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.2 maio/ago. 2018.

Com o livro Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”, publicado pela Editorial Brujas, de Córdoba, Argentina, em 2017, 114 p., Scarlett Marton oferece à comunidade de língua espanhola uma de suas teses mais caras: a de que a filosofia de Nietzsche enuncia uma “nova visão de mundo”. A demonstração dessa tese, como se pode observar, segue um itinerário peculiar em meio ao conjunto de textos publicados e apontamentos do filósofo posteriores a 1883, o que faz do livro um comentário, ao certo, mas, acima de tudo, uma interpretação plausível e justificável da filosofia de Nietzsche a partir de possibilidades deixadas por ele em sua obra. Uma interpretação que se aplica especialmente para os escritos do filósofo posteriores a Assim falou Zaratustra.

Para nos inteirarmos dessa interpretação singular e apreendermos a tese defendida pela autora, seguiremos seus passos pelo percurso proposto, observando como se move naquele conjunto labiríntico de escritos, suas opções, sua metodologia e o modo como tece a sua argumentação, passando com sutileza do que já é conhecido entre os leitores de Nietzsche para o inusitado e inesperado. Uma argumentação que, embora enuncie desde o início o seu propósito, só o revela de fato em toda a sua complexidade e consequências nas últimas linhas do texto. No final da trilha.

Inicialmente, cabe observar que em Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”, S. Marton se mantém fiel a alguns pontos centrais de uma interpretação geral do pensamento de Nietzsche e que já nortearam vários outros trabalhos publicados por ela em diversos idiomas. Em especial, neste livro, mantém-se coerente com a ideia de que Nietzsche não produz uma ontologia, nem constrói um pensamento nos padrões de uma metafísica, mas propõe uma cosmologia, ao modo como fazem os filósofos pré-socráticos. Uma cosmologia, ou concepção de mundo, à qual se vinculariam outros temas da obra do filósofo, como é o caso, por exemplo, de sua crítica aos valores. O detalhamento exigido pelo tema, contudo, impõe a divisão ao livro em duas partes. Uma primeira voltada especificamente ao conceito de vontade de poder e, uma segunda dedicada particularmente ao conceito de eterno retorno do mesmo. Dois conceitos que se interligam, conforme veremos, por meio da teoria das forças de Nietzsche.

O conceito de vontade de poder, conforme lembra a autora, foi exposto por Nietzsche pela primeira vez na obra publicada em Assim falou Zaratustra. Uma exposição na qual se acentua o caráter orgânico do conceito que, naquela publicação, se identifica com a vida. Já neste ponto do livro, contudo, para além do conteúdo exposto, chama a atenção do leitor o modo como a autora constrói seus argumentos. Apoiando-se nos textos publicados, nas anotações do filósofo e recorrendo às suas fontes, como é o caso dos biólogos Wilhelm Roux e William Rolph, além de manter um debate permanente com outras interpretações sobre o tema em pauta. O que permite constatar no seu trabalho a herança, tanto de um tipo de análise que remete a intérpretes clássicos como Walter Kaufmann (W. Kaufmann, 1974) quanto de uma metodologia de leitura dos escritos de Nietzsche que foi consagrada por Mazzino Montinari como “histórico filológica”. Uma metodologia que estabelece uma íntima conexão entre a obra publicada pelo filósofo e os fragmentos póstumos do período, além de colocar em relevo o papel das “fontes” utilizadas para a compreensão de seu pensamento (M. Montinari, 1997, p. 78).

Assim, apoiando-se em parte na obra publicada, em parte nos apontamentos pessoais do filósofo e também nas leituras decisivas sobre o tema feitas por ele na época em que formula sua filosofia, Marton coloca em relevo o modo como o conceito de vontade de poder se vincula, então, à ideia de vida entendida como um conflito tanto entre os seres vivos quanto entre órgãos. Um conflito no qual “as minúsculas partes de um organismo vivo, não luta(m( por prazer ou por um objetivo que seria, por exemplo, a auto conservação ou subsistência, como pensa Darwin, mas por ‘um plus de poder’ (S. Marton, p. 34)”. Em resumo, uma concepção em que a vida, entendida como vontade de poder, se pautaria por um conflito permanente, não “pela autodefesa, mas pela voracidade” (p. 40), pela superabundância.

Após o Zaratustra, embora o filósofo mantenha o uso da biologia para a construção de seus argumentos ligados ao tema, em especial nas suas anotações pessoais, o fato é que ele amplia o conceito de vontade de poder para além do universo dos seres vivos. O marco dessa mudança, que na obra publicada tem lugar especial em Além do bem e do mal, consiste em retirar aquele “traço distintivo fundamental” entre orgânico e inorgânico. A partir de então, para o filosofo, ambos, orgânico e inorgânico, participariam do mesmo princípio. Em ambos “atua [wirkt] a vontade de poder” (p. 43) que passa a compreender o mundo em sua totalidade.

A ampliação do campo de atuação do conceito de vontade de poder obriga a intérprete a se ocupar de forma mais pormenorizada da teoria das forças de Nietzsche, construída pelo filósofo, segundo ela, justamente em função da necessidade de “decifrar o modo como se efetua a passagem da matéria inerte para vida, um dos problemas fundamentas para a ciência da época” (p. 44). No âmbito dessa teoria, uma força corresponderia a um quantum de vontade, de atividade e, assim, a algo que não se distingue de sua manifestação, de seu atuar. Desse modo, nessa teoria, não haveria espaço para um sujeito operante separado daquele atuar. “A ação é tudo” (p. 49), como afirma o filósofo de forma conclusiva na sua Genealogia da moral.

Ainda no domínio dessa teoria, a relação das forças entre si, como foi visto em relação à vida, seria de uma luta permanente, na qual cada uma delas busca expandir-se até o seu limite, tornar-se mais forte. O mundo seria, assim, um complexo e tenso campo de forças em conflito por expansão, sem princípio, fim ou sujeito. O que nos recoloca no âmbito da vontade de poder, pois, nesse sentido, como ressalta a intérprete, “toda força é vontade de poder” (p. 51). Agora, porém, ao designar aquele impulso por mais poder, a vontade de poder tem também uma ampliação do ponto de vista conceitual. Ela passa a corresponder a uma “explicação do caráter intrínseco da força” (p. 52) – como uma qualidade da força. Um ponto decisivo para a interpretação da autora que, tendo por pressuposto, neste momento, tanto aquela ampliação do campo de atuação do conceito quanto a sua compreensão como uma qualidade da força, pode arriscar sua hipótese de que aquela teoria de fundo cosmológico serviria de pedra de toque para o filósofo em outras esferas de seu pensamento, como é o caso da axiologia.

Tomar o domínio dos valores a partir da perspectiva da vontade de poder significa dizer que nesse âmbito não existe qualquer critério absoluto ou tábua de preceitos pré-estabelecida, anterior à vida e às suas manifestações. Significa também considerar, assim, em última instância, como o único critério plausível para diferenciar, por exemplo, bom e ruim, a própria vida – concebida, no caso, “como vontade de poder” (p. 60). A avaliação dos valores se daria, então, pela observação do quanto eles seriam expressão da afirmação ou da negação da vida, do quanto a favoreceriam ou obstruiriam. Nesse ponto, a autora reitera que “moral, política, religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve ser submetida a um exame, deve passar pelo critério da vida. E a vida é vontade de poder” (p. 62). O que confirma a sua hipótese, que mencionamos no parágrafo anterior, de que a vontade de poder, enquanto uma concepção de mundo, uma cosmologia, tem precedência sobre outros campos considerados pelo filósofo. No caso, o da axiologia.

Diferentemente do que foi notado na primeira parte do livro, em que a autora – abordando o tema da vontade de poder – não parece encontrar grandes dificuldades para comprovar sua tese de que o caráter cosmológico, a “nova visão de mundo” teria um papel central na filosofia de Nietzsche, em especial nos escritos posteriores ao Zaratustra, na segunda parte – quando se volta para o tema do eterno retorno do mesmo – as dificuldades parecem se ampliar. O que faz acentuar também o caráter polêmico da obra e a maior atenção às posições contrárias. Numa sequência, o debate se ocupa, inicialmente, da tese de Nietzsche, do eterno retorno do mesmo e suas principais controvérsias e, posteriormente, da tese da autora, de que o eterno retorno, parte capital daquela “nova visão de mundo”, teria um papel decisivo na filosofia de Nietzsche.

Iniciando sua argumentação, Scarlett Marton cita um fragmento do ano de 1885, no qual se evidenciaria a correlação entre os dois conceitos, o de vontade de poder e do eterno retorno, posto que o mundo, segundo o filósofo, seria “um mar de forças” que se transforma eternamente, retorna eternamente. O vínculo entre ambas seria feito, como se evidencia naquela passagem, pela teoria das forças, que é tomada nesse contexto por seu caráter polêmico. Pela contraposição que representa em relação a algumas teorias conhecidas da época, em especial à ideia de entropia e à segunda lei da termodinâmica. Nesse sentido, é ressaltada a ideia do filósofo de que as forças seriam finitas e se correlacionariam entre si num tempo infinito, configurando um universo que não se ampliaria e nem atingiria uma finalidade, pois, se houvesse essa finalidade, com o tempo infinito e as combinações finitas entre as forças, ela já teria sido atingida.

Adentrando na polêmica, a autora explicita a posição assumida por Nietzsche, mas não se limita a defendê-la. Ao contrário, tomando como referência G. Simmel, afirma que aquela repetição pensada por Nietzsche não seria um dado necessário “a não ser que as cartas estivessem marcadas e os dados viciados” (p. 69). Mais ainda, ela evidencia que a posição cosmológica assumida por Nietzsche no debate com os físicos de sua época incorre em outro problema ainda mais sério, pois ela não apenas fecha as portas para a realização de uma finalidade última, como retira do mundo “qualquer novidade” (p. 67).

A disputa se estende também à recepção do eterno retorno na pesquisa Nietzsche. Nesse campo, a crítica da autora se volta à ênfase conferida por parte daquela recepção às “consequências psicológicas” do eterno retorno, estendendo-se também aos intérpretes que conferem à teoria circular de Nietzsche apenas um papel heurístico, que se limitaria a levar o leitor do filósofo a tomar uma posição diante da vida. Outra interpretação criticada pela autora é aquela que faz do eterno retorno um imperativo ético, próximo ao que se tem na filosofia kantiana, e que culminaria, como nos casos anteriores, mas aqui de um modo ainda mais acentuado, numa espécie de sujeito livre e responsável por suas ações. Algo totalmente contrário ao pensamento do filósofo.

O desfecho do debate com os interlocutores conduz a uma retomada do ponto nevrálgico da polêmica anterior. De que o eterno retorno não permitiria ao mundo “qualquer novidade”. Neste ponto, fica evidente que a autora não pretende ceder terreno a qualquer interpretação da teoria que venha a retirar dela justamente esse ponto terrível, o caráter determinista daquela visão de mundo que toma como uma fatalidade o fato de que tudo retorna – até mesmo o niilismo e o homem mais pequeno. Assim, se inicialmente ela parece tomar aquele determinismo como um problema, aos poucos deixará claro que ele não constitui um inconveniente para a teoria, mas é parte indispensável dela.

Nesse sentido, acompanhando o filósofo, também a intérprete não se recusa a experimentar filosoficamente o pensamento abissal em suas últimas consequências. Portanto, reafirma que não se deve tentar retirar da teoria a sua consequência determinista, mesmo quando se pretende considerar a correlação entre aquela visão de mundo e o campo dos valores. Isto porque é justamente o seu determinismo que permite a ela se apresentar como uma contraposição ao livre arbítrio e também àquelas tentativas de buscar saídas para o caráter terrível da existência em instâncias fora do mundo, no além.

É a concepção de mundo de Nietzsche que permite a ele pleitear que seus leitores voltem seus olhos para a terra e não para o além, postulando que essa vida, o instante presente como eterno. Nesses termos, rechaçar a metafísica, o recurso a uma esfera suprassensível, assim como o mecanicismo, consiste em assumir o mundo como ele é, a “amar o destino” (p. 98). O que corrobora, agora de forma conclusiva, a tese de que a visão cosmológica se antepõe à moral, pois, no âmbito dessa tese, “o ser humano” não seria o centro pensante do universo, mas “participa(ria( do destino de todas as coisas” (p. 99). O homem é parte do mundo. Pertence a ele. Como a um fatum. Assim, do mesmo modo como não temos uma posição fora da vida para julgar o valor da vida, também não teríamos, segundo a autora, uma posição fora do mundo para julgá-lo, cabendo ao homem, portanto, “conhecer o curso do mundo e entender sua natureza” (p. 101). O mundo é a medida e o homem divide com ele o seu destino. O homem não é o sujeito dos acontecimentos, mas parte do mundo. Nele se manifesta a totalidade do mundo, tanto aquela ampliação do campo de autuação do conceito.

Referências

KAUFMANN, W. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Anti-christ. 4. Ed. Nova York: Princeton University Press, 1974. [ Links ]

MARTON, Scarlett. Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”. 1a ed. Córdoba: Brujas, 2017. [ Links ]

MONTINARI, M. Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos ídolos. Trad. Ernani Chaves. In.: Cadernos Nietzsche 3, p. 77-91, 1997. [ Links ]

Antonio Edmilson Paschoal – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Pesquisador do CNPq. E-mail: antonio.paschoal@yahoo.com.br

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Nietzsche em chave hispânica – MARTON (CN)

MARTON, Scarlett. Nietzsche em chave hispânica. São Paulo: Edições Loyola, 2015. Resenha de: MOYA, Gloria Luque. Cadernos Nietzsche, v.37 n.1 São Paulo jan./jun. 2016.

O GEN (Grupo de Estudos Nietzsche), por meio de sua coleção Sendas & Veredas, em sua série Recepção, dirigida pela professora Scarlett Marton, com a intenção de abrir novas frentes de discussão, vem publicando uma série de números monográficos sobre a atualidade da investigação acerca de Nietzsche em diferentes países. Trata-se de acolher as distintas linhas interpretativas que na atualidade se estão levando a cabo em diferentes países com a finalidade de promover uma reflexão sobre a singularidade e especificidade de suas leituras sobre os textos de Nietzsche. Assim, por exemplo, já foram publicados os seguintes títulos: Nietzsche na Alemanha; Nietzsche abaixo do Equador: Uma recepção na América do Sul; Nietzsche pensador mediterrâneo: a recepção italiana; Nietzsche, um francês entre os franceses. E agora este volume, que trata de reunir sob o título Nietzsche em chave hispânica uma série de trabalhos de alguns dos investigadores de maior relevo na pesquisa Nietzsche que se tem feito neste momento na Espanha. Os autores que aparecem no livro são quase todos os filósofos que têm promovido na Espanha os estudos sobre F. Nietzsche nas últimas duas décadas, dando um impulso de enorme importância à Nietzsche Forschung, fundando uma Sociedade espanhola de estudos sobre F. Nietzsche (SEDEN), sobre cujos auspícios se criou uma prestigiosa revista, a Estudios Nietzsche (ano 2000). Uma das contribuições mais significativas dessa sociedade, por seu alcance e sua grande utilidade para a investigação, tem sido a tradução para o espanhol, partindo das últimas correções do texto original em alemão, de grande parte dos escritos e da correspondência de F. Nietzsche: Fragmentos Póstumos (4 vols., 2007-2010, Tecnos: dir. Diego Sánchez Meca); Correspondencia (6 vols., 2005-2013, Trotta, dir. Luis Enrique de Santiago Guervós) e Obras Completas (4 vols., 2011-2016, Tecnos, dir. Diego Sánchez Meca). Essa enorme tarefa que realizaram em tão poucos anos presta certamente uma colaboração inestimável para todos aqueles estudiosos de língua hispânica que se dedicam a estudar a vida e a obra de Nietzsche. A importância dessa contribuição se pode compreender e ampliar no primeiro capítulo do livro, que revela a presença de Nietzsche na Espanha nas duas últimas décadas.

As contribuições que aparecem no livro são significativas tanto em termos de autores, ligados à SEDEN, quanto por aquilo que abordam: Marco Parmeggiani e Fernando Fava, “Nietzsche na Espanha”; Francisco Ares Doz, “Alcance e limites da recepção de Nietzsche no contexto acadêmico espanhol (1939-1975)”; Diego Sánchez Meca, “Vontade de potência e interpretação como pressupostos de todo processo orgânico” e “Nietzsche ou a eternidade do tempo”; Luis Enrique de Santiago Guervós, “A dimensao estética do jogo na filosofia de Nietzsche”; Manuel Barrios Casares, “O ‘giro retorico’ de Nietzsche” e “Niilismo e pós-humanidade na cultura contemporânea”; Joan B. Llinares, “A filosofia da linguagem em Nietzsche”; Remedios Ávila Crespo, “A critica de Nietzsche ao romantismo”; Marco Parmegginai, “Nietzsche: o pluralismo e a pós-modernidade”. Com isso, o leitor português e brasileiro têm a seu alcance um material importante para conhecer o trabalho que está sendo feito na Espanha, ao mesmo tempo em que se informam sobre a recepção de Nietzsche nesse país desde 1939. Desse modo se desenha um novo quadro na recepção de Nietzsche na Espanha e se apresentam aos leitores novas linhas de investigação para além daquelas com que trabalham atualmente. É indubitável que os esforços que leva a cabo o grupo GEN de São Paulo em difundir a pesquisa que se realiza em distintos países contribuem para criar um espaço comum para que a investigação de um dos pensadores mais importantes de nossa contemporaneidade tenha esse caráter universal que seguramente possibilitará um trabalho mais produtivo acerca da interpretação da vida e da obra de F. Nietzsche.

* Este texto também será publicado na revista Estudios Nietzsche 16/2016, da Sociedade Espanhola de Estudos sobre Friedrich Nietzsche (SEDEN). Tradução de Márcio José Silveira Lima

Gloria Luque Moya– Professora da Universidade de Málaga, Espanha. Correio eletrônico: glorialm@uma.es

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Nietzsche e a arte de decifrar enigmas: treze conferências europeias – MARTON (CN)

MARTON, Scarlett. Nietzsche e a arte de decifrar enigmas: treze conferências europeias. São Paulo: Edições Loyola, 2014. Resenha de: PIMENTA, Olímpio. Cadernos Nietzsche, v.36 n.1 São Paulo jan./jun. 2015.

Tornar legível a obra de Friedrich Nietzsche e, com isso, fazer com que os pensamentos nela expressos possam ser experimentados por quem os lê é um compromisso dos mais altos no que toca a nós, seus estudiosos brasileiros. Afinal, não obstante a ampla difusão de seus livros e ideias, correlata ao amadurecimento dos estudos nietzschianos no país, resta muito ruído em torno da sua recepção, inclusive nos meios acadêmicos. A responsabilidade filosófica do pensador alemão é ainda hoje contestada; também se discute em que medida as principais formulações que compõem a variadíssima paisagem teórica de seus escritos podem ser consideradas filosoficamente consequentes.

As dificuldades se multiplicam ao se ter em conta que os fins visados pela obra, mas também os meios mobilizados para alcançá-los, são muito diferentes dos que se reconhece como aqueles que legitimam uma filosofia. Não há ali uma ordenação conceitual sistemática, não se persegue a verdade nos termos convencionais, se está sempre a uma distância segura de doutrinas constitutivas de uma dogmática. Não parece assim proveitoso ler Nietzsche como um filósofo entre outros, como um filósofo qualquer.

Programaticamente inteiradas disso, as treze conferências que integram este “Nietzsche e a arte de decifrar enigmas” constroem, com grande felicidade, toda uma rede de caminhos alternativos para a frequentação da obra a que se referem. Se seu propósito é priorizar a análise de como ganham vida as proposições que veiculam os assim chamados conteúdos do pensamento nietzschiano, o perspectivismo que anima as investigações em curso se encarrega de viabilizá-lo de forma muito acertada. Pois um dos aspectos mais notáveis do conjunto desses textos, a par da excelente recensão bibliográfica em que se apoiam, é exatamente a fecundidade heurística do manejo de perspectivas que neles se exercita.

Por si só um tour de force, o tratamento de todos os títulos que compõem a obra preparada para a publicação pelo filósofo produz, assim, resultados estimulantes, principalmente em função dos ângulos escolhidos para a sua abordagem. A evidente familiaridade da autora com o corpus nietzschiano e sua fortuna crítica permitiu-lhe circular no âmbito de cada livro e nos intervalos entre eles através de passagens invisíveis a um olhar menos experimentado. Assim, a tematização de quase tudo o que confere interesse ao universo visado é oferecida ao leitor segundo uma inspiração nitidamente afim à que nele vigora. Por meio da exposição clara e da argumentação rigorosa que acompanham as articulações propostas são iluminadas questões cujo entendimento não é propriamente simples, dado seu caráter enigmático. Na intenção de esboçar possíveis roteiros de leitura, sugerimos a seguir algo a respeito do repertório consolidado pelos estudos reunidos no volume.

Para saber a que aspira o projeto filosófico nietzschiano em sua vertente propositiva, o mais recomendado é começar pela leitura dos capítulos 6 e 11, dedicados respectivamente a Assim falava Zaratustra e Crepúsculo dos ídolos. Tendo como norte o problema da transvaloração dos valores, isto é, as perguntas a respeito de se e como uma filosofia afirmativa da existência é viável e pode intervir nos rumos da civilização, estes dois capítulos indicam os elementos centrais para discutir o encaminhamento para elas elaborado pelo filósofo. O horizonte da transvaloração surge, assim, como bastidor mais abrangente para a inscrição da visada geral da obra em sua totalidade, funcionando como ponto de convergência das melhores expectativas que se pode alimentar quanto ao uso autorizado da filosofia de Nietzsche.

Em contrapartida, se se quer perceber sob que condições e em confronto com o quê Nietzsche esgrimiu seu pensamento, cabe examinar as observações feitas nos capítulos 2, 9 e 11 a propósito das Considerações extemporâneas, de O caso Wagner e de O anticristo. Nesta revisão da vertente crítica do projeto nietzschiano, destacam-se a denúncia ao filisteísmo cultural, feição ostensiva da barbárie moderna e sintoma de um tipo de sensibilidade mórbida cujo nome genérico é wagnerianismo; a análise da corrupção dos instintos que domina a psicologia dos homens modernos, genealogicamente vinculada à debilidade afetiva típica de uma espiritualidade educada pelo cristianismo; e por último uma minuciosa restituição das práticas que permitem ao indivíduo manter ou recuperar sua saúde a partir do exercício da leitura.

Para fazer jus à prosa das conferências, assinalemos de passagem que, nelas, os temas vêm à baila longe da forma esquemática que lhes emprestamos aqui. Deve-se considerar sua apresentação como algo mais parecido com a atividade de jogar com um caleidoscópio: embora os mesmos elementos estejam sempre presentes, o que conta para o efeito são as combinações que, nos casos em vista, impressionam muito bem.

Outro grupo de estudos que mantém entre si uma espécie de ar de família é aquele que remete a Humano, demasiado humano, Aurora e A gaia ciência, capítulos 3, 4 e 5. Em comum, partilham a adoção de estratégias mistas de acesso às fontes. Associa-se o cuidado com a letra dos aforismos, patente na restituição muito plausível do encadeamento de determinadas sequências deles, à remissão às influências mediatas e imediatas que atuavam sobre o filósofo à época da redação dos livros.

Quanto a Aurora, a análise se volta para a explicitação das relações entre a epígrafe e as discussões desenvolvidas sob sua égide. Contesta com sucesso alegações posteriores do próprio filósofo a respeito da consumação da transvaloração dos valores, neste livro ainda em processo preparatório. O exame do trecho que vai do anúncio da aliança entre filosofia, história e ciências naturais até o diálogo com a pintura “Transfiguração” de Rafael é deveras fecundo no sentido de estabelecer a contestação mencionada.

Quanto a Humano, demasiado humano, tratou-se de distinguir com precisão as vozes do moralista e do iluminista que nele se ouvem, na esteira da influência de Pascal e Voltaire. O mais curioso, porém, é o arranjo que tornou isso possível. Tomando como fio de ouro o contraste entre duas circunstâncias da condição feminina, as mulheres na órbita doméstica e as mulheres emancipadas, procurou-se aferir a qual dos predecessores caberia remeter o que é dito em certos aforismos, sob a clivagem definida por essas rubricas. O saldo aponta, não sem alguma ambivalência, para um Nietzsche partidário da exclusão feminina do espaço público.

Entretanto, e isto é o que confere um interesse específico ao capítulo, encontra-se também nele uma discussão metodológica assaz desafiadora. Uma vez que diversas declarações de Nietzsche, citadas em conexão com o debate sobre o feminino, parecem pressupor uma base sobretudo biográfica, a autora defende, sem hesitação, que contextualizações dessa natureza não se prestam a iluminar textos filosóficos. Tal posição assegura a Nietzsche o benefício da dúvida em relação ao partido por ele tomado, mas traz consigo um inconveniente ponderável. Afinal, muito do que é demonstrado alhures a favor da vertente construtiva do seu pensamento decorre da admissão do nexo constitutivo entre vivências e reflexão. É certo que, nos exemplos que o capítulo propõe, fica decidido que uma correspondência mecânica entre vida e obra não é um procedimento inteligente, e que tampouco a psicologização de um pensamento ou de uma teoria ajuda a esclarecê-los. Mas isto é pouco diante do grande número de oportunidades em que variações do recurso repudiado são mobilizadas com proveito. De mais a mais, chega a ser muito engraçado, por exemplo, que a solene enunciação cosmológica do eterno retorno apareça temperada pela evocação de certos parentes como principal obstáculo à sua vivência.

Quanto a A gaia ciência, tem-se uma retomada bem sutil da questão do feminino a partir de sua luminosa conexão com a recusa do essencialismo. Seja à moda do realismo positivista, que estipula a existência de fatos naturais evidentes, seja à moda do realismo metafísico, que estipula a existência de verdades eternas evidentes, a idealização de algo como a “mulher em si” deve ser finalmente superada. Em seu lugar, compete prestar atenção aos processos complexos e particulares que ocorrem junto a mulheres em situações e papéis típicos, de modo a que o conhecimento então obtido tenha alguma chance de ser verdadeiro. Aliás, em sendo a verdade mulher, vale estender o procedimento a tudo quanto o que se deseja saber, caso se pretenda ultrapassar as mentiras do saber dogmático. Sob esta luz, talvez faça mais sentido a restrição metodológica manifestada, pois é incrível que um pensador dotado de tamanha perspicácia possa se revelar um pobre misógino.

É digno de registro que, apesar de termos reunido num mesmo grupo os livros do chamado período intermediário, isso não reflete qualquer opção tomada pela obra em tela. Muito ao contrário, os recortes da periodização costumeira são pulverizados pela reflexão que ali se efetua. Embora úteis, de um ponto de vista didático, por demarcarem uma tópica que livra o leitor iniciante da perplexidade, eles são substituídos pela reconstrução genealógica do percurso filosófico do próprio pensador, procedimento muito mais elucidativo.

Nos capítulos 7, 12 e 13 concentram-se ocorrências exemplares do bom uso da implicação entre pensamentos e vivências. Cuidando de esclarecer o modo como Nietzsche propõe uma reformulação dos móveis tradicionais da filosofia em bases experimentais, a investigação sobre Para além de bem e mal firma as vantagens cognitivas e epistêmicas da reflexão atenta à fisiopsicologia. Diante da alegação de uma oposição fundamental entre os valores, própria dos credos hegemônicos no Ocidente, importa menos a obsessão dialética em esgotar as razões a favor e contra sua crença do que investigar a que tipos humanos ela serve. Vê-se na discussão de Nietzsche contra Wagner que são tipos humanos antípodas de Nietzsche, num sentido decisivo: para viver, precisam de forjar crenças estáveis, já que sofrem por suas carências; ao passo que ele deseja criar, à revelia de qualquer fé, por sofrer de modo muito diverso, em função da abundância de interesses, disposições afetivas e recursos que o habitam. Tais colocações suscitam, de direito, a pergunta: mas, afinal, quem é este Nietzsche? Como esclarece a leitura de Ecce homo, não se trata de um sujeito substancial duplicado, como o que responde pelas páginas biográficas do “Discurso do método”, nem tampouco de um eu que dramatiza em si a existência, como o que figura nas “Confissões”. Mais provavelmente, está-se ali às voltas não com um personagem, mas com um topos, um lugar em que se desenrolam toda sorte de vivências, estimuladas pelos mais variados afetos, sob circunstâncias experimentais também proteiformes. Diferentemente do que acontece na seara do dogmatismo, um espetáculo como esse tende a atrair para si os favores da verdade, cumprindo dessa forma inaudita os mais veneráveis desígnios da filosofia.

Tamanha abertura ao que é plural na ordem da investigação demanda uma contrapartida à altura no que diz respeito ao registro e à transmissão do pensamento. Cabe evitar que as ideias convertam-se em dogma, o que só se alcança mediante um uso singular do discurso filosófico. Mais um enigma se esclarece: por fazer parte de um mundo destituído de características cristalizadas, um filósofo precisa de esvaziar sua enunciação de qualquer traço identitário generalizante, o que só se obtém quando se domina a arte de perspectivar os acontecimentos a partir de sua mais enxuta particularização. O texto, então, enquanto comunica um determinado pathos, nada fala da pessoa de seu suposto autor. Ganha o máximo de objetividade na proporção inversa de seu apelo universal. Nessa mesma medida, seleciona seu leitor, evitando que a condição especial das vivências nele tornadas pensamento seja confundida com qualquer lição doutrinal ao alcance de todos.

Os estudos dedicados a O nascimento da tragédia e à Genealogia da moral, capítulos 1 e 8, organizam-se em torno do exame de hipóteses de leitura imanentes relativas às duas obras. Dotados de uma dicção mais marcadamente acadêmica, argumentam, quanto ao primeiro, contra a presença estruturante de uma dialética ascendente no curso do desenvolvimento da exposição; e, quanto ao segundo, contra a impressão de que a exposição teria caráter linear e demonstrativo, constituindo uma espécie de extrato das concepções nietzschianas acerca dos fenômenos morais. Pelas características assinaladas, e também por cuidarem de restituir o principal das posições teóricas expressas pelo filósofo em ambos os livros, funcionam como boas introduções às suas respectivas problemáticas.

Leitor de Scarlett Marton desde a publicação do seminal “Nietzsche: uma filosofia a marteladas” (São Paulo: Brasiliense, 1982), desejo arrematar essa conversa lançando um olhar de sobrevôo ao movimento desenhado por seus escritos mais recentes. Se já havia ficado contente com “Nietzsche, filósofo da suspeita”(São Paulo: Casa da Palavra, 2010), graças à liberdade que se respira ali, considero ter reencontrado agora essa mesma liberdade, acrescida de um elemento novo, que distingue um intérprete original: a invenção.

Olímpio Pimenta   Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, Brasil. E-mail: olimpix@ig.com.br.

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