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Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir – RANIERI (TES)
RANIERI, Jesus. Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, 176 p. Resenha de: MARTINS, Maurício Vieira. Revista Trabalho/ Educação e Saúde, v.11, n.2, Rio de Janeiro, maio/ago. 2013.
A relação existente entre o pensamento de Marx e o de Hegel sempre foi tema que dividiu os estudiosos do marxismo. Dentre as várias posições que se delinearam a este respeito, podemos citar a de Louis Althusser, que entendia que o corpus teórico marxiano deveria ser expurgado do pensamento de Hegel, para que ele encontrasse finalmente sua cientificidade mais genuína. Na outra ponta do debate (embora sem polemizar explicitamente com Althusser), temos a contribuição de György Lukács, que afirmava que, apesar de suas incontornáveis diferenças frente a Hegel, Marx absorveu de modo crítico alguns temas presentes no mestre de Jena.
O livro de Jesus Ranieri, Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir se filia claramente a esta última tendência. Já na Apresentação de seu trabalho, Ranieri é transparente ao reconhecer que sua leitura de Hegel deve muito às indicações presentes no Lukács tardio, especialmente em sua grande obra da maturidade, Para uma ontologia do ser social (que dedica um extenso capítulo precisamente a um balanço do legado hegeliano para o marxismo).
Sendo assim, Ranieri visa sobretudo recuperar aqueles elementos presentes em Hegel que se mostrem fecundos para uma teoria social de escopo mais amplo, ainda que para isso seja preciso proceder a uma crítica dos aspectos mistificadores igualmente presentes no filósofo alemão. Com este intuito, Trabalho e dialética enfatiza a compreensão hegeliana do mundo como uma processualidade permanente, que não se deixa capturar por uma visão estática da realidade (visão que ainda marcaria mesmo um filósofo tão proeminente como Kant). Com efeito, em Hegel, “a medida da reflexão é a certeza de que o mundo muda e de que a mudança exige um método capaz de acompanhar o movimento de mutação que, em si mesmo, já representa um universo de conexões” (p. 70).
Se é verdade que o primado do devir sobre o ser já havia sido afirmado há séculos por um filósofo como Heráclito, é igualmente verdadeiro que Hegel extrai consequências de fundo de tal compreensão, que se corporificam em sua abordagem propriamente dialética. Destarte, para poder formular adequadamente o devir mundano, é necessário um método que se liberte das antinomias excludentes dentro das quais se movia a tradição filosófica anterior, como essência e aparência, forma e conteúdo, necessidade e acaso etc. Libertação que vem a ser, aliás, outra das grandes contribuições de Hegel enfatizadas por Ranieri, como mostra sua análise das determinações-da-reflexão (Reflexionsbestimmungen, categorias desenvolvidas na Ciência da Lógica hegeliana). Muito resumidamente falando, tais determinações nos mostram o trânsito contínuo entre aquelas mencionadas categorias que haviam sido formuladas de modo dicotômico pela tradição filosófica anterior. Tendo sua origem mais remota no esforço de apreensão do mundo pela consciência sensível, as determinações-da-reflexão, quando corretamente apreendidas, findam por mostrar sua referência ao ‘outro’ do fenômeno isolado: “o conteúdo da ‘consciência sensível’ devia ser, em princípio, o puro singular, mas ele (o conteúdo) é dialético, já que força o singular, no seu excluir de si o outro, a referir-se ao outro, depender dele e, assim, ir além de si mesmo.” (p. 54).
Além da compreensão da realidade como um devir permanente e da correta visualização das determinações-da-reflexão, há que se destacar, ainda, o pensamento de Hegel sobre o trabalho humano como extremamente fecundo para as bases de uma teoria social consistente. De fato, Hegel foi um dos primeiros filósofos a mostrar a descontinuidade introduzida pelo trabalho no mundo natural. Nas argutas palavras do próprio filósofo: “…a ferramenta não possui ainda nela mesma a atividade. É coisa inerte, não retorna [zurückkehren] a si mesma. Obrigo-me a trabalhar com ela. Tenho a astúcia [List] de introduzi-la entre mim e a coisidade externa, a fim de poupar-me e de suprir com ela minha determinação e utilizá-la” (p. 80).
A partir destas indicações, Ranieri mostra que o trabalho humano introduz categorias de finalidade num universo que era antes dominado apenas por relações causais. Este é o núcleo fecundo para uma teorização acerca do ser social, que encontra no trabalho o protótipo mais antigo, incessantemente modificado, de sua constituição. Porém, prossegue Ranieri, o erro de Hegel foi ter projetado a teleologia de fato existente no trabalho para a história como um todo, o que o levou a acreditar numa espécie de teodiceia que supõe que existem finalidades ocultas no transcorrer da história humana: “o idealismo errou ao não compreender que a teleologia (a posição conforme a fins) não existe em outra esfera a não ser aquela do trabalho humano” (p. 116).
O texto aborda também a célebre dialética do senhor e do escravo, momento em que fica evidente o talento de Hegel em mostrar a tensão reflexionante dos papéis inicialmente assumidos por cada um destes personagens: apesar do exercício de sua dominação, o senhor passa a depender cada vez mais do trabalho do escravo para poder se relacionar com a natureza (p. 110). Já nos capítulos finais de seu livro, Ranieri discute como Marx simultaneamente se apropriou e transformou alguns dos mencionados núcleos temáticos desenvolvidos por Hegel.
Apenas como exemplo de tal procedimento, destaquese que o método de exposição marxiano – objeto de tantas controvérsias entre os especialistas – tem inegavelmente uma dívida com Hegel, mas dele se diferencia, já que: “para Marx, expor corretamente significa fundar, para a qualificação correta dos elementos componentes do objeto, uma teoria das abstrações racionais” (p. 147). Aqui, o primado cabe ao esforço de captura das determinações singulares do objeto que está sob análise (e não mais à sua referência mediatizada ao Espírito, princípio motor e culminância da dialética hegeliana). É a partir deste entendimento que se torna possível visualizar, por exemplo, as características do trabalho abstrato – que se desenvolve plenamente apenas na sociedade capitalista – como categoria que se articula ao capital, passando a presidir a lógica contraditória de desenvolvimento desta mesma sociedade. É por esta razão que o “método marxiano leva em conta que a determinação última da realidade é propriamente uma contradição real e não simplesmente um movimento lógico de autoconstituição do conceito (…), tal como é concebida a dialética em Hegel.” (p. 155).
Por fim, cabe o registro acerca de uma questão conceitual quase ausente na bemvinda contribuição de Ranieri. Referimonos ao que Marx certa vez nomeou como o “aspecto negativo do trabalho”, intimamente entrelaçado à sua positividade. Numa passagem decisiva dos Manuscritos de 1844, mesmo reconhecendo a grandeza da teorização de Hegel, Marx nos alerta: “Hegel se coloca no ponto de vista da Economia Política moderna. Concebe o trabalho como a essência do homem, que se prova a si mesma; ele só vê o aspecto positivo do trabalho, não seu negativo” (Marx, 1985, p. 190).1 Ora, este último aspecto está estruturalmente ligado ao estranhamento vigente na sociedade capitalista, ao esvaziamento das capacidades humanas em favor do capital. Assim é que Marx formula o trabalho em sua bivalência: se ele é o fundamento do processo do tornarse homem (destacando-o de sua determinação natural), é também, e ao mesmo tempo, fonte cotidiana de alienação e de mortificação dos trabalhadores. Garimpando mais nos referidos Manuscritos, veremos que há um conceito mais amplo que o de trabalho (Arbeit), que vem a ser o de atividade (Tätigkeit) consciente. E Marx visa claramente expandir esta dimensão da atividade consciente; daí sua insatisfação com o fato de que “até agora toda atividade humana era trabalho, isto é, indústria, atividade estranhada de si mesma” (Marx, 1985, p. 151). Reencontramos esta crítica à unilateralidade do trabalho também em A ideologia alemã, quando Marx sustenta, sem meias palavras, que a “revolução comunista se dirige contra o modo da atividade até nossos dias, elimina o trabalho…”. É apenas neste momento que ocorre a “transformação do trabalho em autoatividade” (Marx e Engels, 2009, p. 56 e p. 59).2 Ora, tais afirmações seriam ininteligíveis se não levássemos em conta as considerações anteriores, referentes à crítica marxiana à negatividade também presente no trabalho. Entendemos que o texto de J. Ranieri se beneficiaria de um desenvolvimento conceitual desta contraditoriedade real. Vale lembrar que, no campo marxista contemporâneo, autores ilustres como Moishe Postone chegam a sustentar que “a análise marxiana do capitalismo (…), não é levada a cabo do ponto de vista do trabalho, mas se baseia mais propriamente numa crítica ao trabalho no capitalismo” (Postone, 2006, p. 59).3
Como se vê, neste ano de 2013 (que marca os 130 anos do falecimento de Marx), o pensamento do filósofo continua nos interpelando nas mais variadas dimensões de nossa experiência mundana. O texto de Jesus Ranieri ilustra de forma eloquente a fecundidade de uma obra.
Notas
1 Marx, Karl. Manuscritos: economía y filosofía. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 190, grifos nossos. Notemos que o próprio Jesus Ranieri traduziu para o português estes densos Manuscritos, aqui publicados pela Boitempo Editorial.
2 Marx, Karl; Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 56 e p. 109, respectivamente.
3 Postone, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación social. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 59. Não concordamos com a íntegra do argumento de Postone, mas ele é relevante para o ponto aqui sob exame.
Maurício Vieira Martins – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: mauriciovieira9@gmail.com
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