Índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul (século XIX) – CUNHA (HU)

CUNHA, L.P. da. Índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul (século XIX). Porto Alegre, Evangraf, 2012. 236 p. Resenha de: MARTINS, Maria Cristina Bohn. Sobre histórias não contadas. História Unisinos 17(1):66-68, Janeiro/Abril 2013.

“Índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul (século XIX)” é produto da investigação desenvolvida por Lauro Pereira da Cunha para sua dissertação de mestrado, estudo que efetuou junto ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos2. Mas também é muito mais que isto.

Efetivamente, o texto, apresentado numa edição da Editora Evangraf de Porto Alegre, traz os resultados de vários anos de pesquisa e dedicação do autor, em iniciativas encetadas já muito antes que ele pretendesse dar aos seus estudos um arcabouço acadêmico. Seu comprometimento com a história dos índios é visível e está presente ao longo de todo o texto, assinalando a convicção do autor de que os historiadores, mas também a sociedade como um todo, têm um débito pelo seu desconhecimento dela.

O tema que mobiliza a inquietação intelectual de Lauro P. Cunha é o das populações indígenas do litoral norte do Rio Grande do Sul, envolvendo suas histórias, suas relações com a sociedade “branca” e suas demandas atuais. Neste sentido, a pesquisa pretendeu dar uma resposta àquilo que ele percebeu como uma grave lacuna na historiografia regional (e local): o silêncio em relação à presença e protagonismo histórico de índios do grupo Jê no litoral gaúcho, “como se esta região tivesse se tornado definitivamente ‘esvaziada de índios’ com a retirada dos Guaranicarijó pelas bandeiras escravagistas” dos séculos XVI e XVII (Cunha, 2012, p. 16).

A sua constatação de que as áreas da encosta oriental do Planalto Meridional cobertas pela Mata Atlântica eram, ainda no XIX, no atual RS, o extremo austral do “território de uso” dos xoklengs, levou-o a formular duas questões centrais que serão desenvolvidas na obra: (i) Como os indígenas agiram/reagiram diante da expansão da sociedade ocidental nestas regiões? Considerando os xoklengs como agentes dos processos históricos em curso, de que forma ocorreu sua interação com a colonização lusobrasileira e, depois, com as frentes de imigração europeia? (ii) Sob quais ideias “do outro”, brancos e índios se posicionaram e agiram neste processo? A busca por estas respostas guiou a reflexão proposta pelo autor, interessado que estava em conhecer “este ignorado cenário, composto por homens, mulheres, crianças, ‘índios selvagens’, ‘índios mansos’, brancos, negros e mestiços que não fazem parte dos relatos épicos da historiografia local, mas que desempenharam vários papéis nos projetos de ocupação econômica e populacional da região.

Resistindo, fugindo, matando, morrendo ou assustando, os índios xokleng também foram agentes históricos neste processo” (Cunha, 2012, p. 16).

Em nome deste interesse, Cunha percorreu muitos arquivos, na maioria das vezes para se frustrar diante da escassez de documentos que tratassem das relações entre os xoklengs e as populações ocidentais com os quais eles travaram contato. Também leu muitos livros, teses e dissertações sobre a história do litoral norte do Rio Grande do Sul, para novamente se desencantar diante da desatenção dos historiadores para com eles. Justamente por isto, a parcela da investigação que talvez lhe tenha sido mais cara – e que se apresenta muito rica para os leitores interessados – foi aquela que o autor conduziu visitando “comunidades tradicionais” do litoral, oportunidade em que conversou com moradores antigos e, principalmente, em que ouviu suas histórias. Histórias cheias de ação e vivacidade; histórias cheias de violência e pavor, como no caso das ações de “bugreiros” ou de “índias pegas no mato a cachorro”, que ele reproduz, discute e avalia.

A dissertação, que foi revista e adaptada para dar origem ao livro que aqui resenhamos, teve por título O botoque e o açúcar: índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul (século XIX), o qual, como reconhece o seu autor, é tributário da obra de Luíza Tombini Wittmann (2007), O vapor e o botoque, que estudou as relações entre colonos alemães e índios xokleng no Vale do Itajaí em Santa Catarina. Wittmann, neste trabalho, oferece uma rica contribuição a um tema que não é indiferente aos estudos historiográficos, arqueológicos ou antropológicos do estado vizinho3.

Não é o caso do Rio Grande do Sul, uma vez que se tornou regra aqui entender que os xoklengs “são índios de Santa Catarina”. Lauro P. da Cunha refuta esta ideia e maneja uma série de argumentos e dados empíricos, para evidenciar que os xoklengs estiveram presentes, também, no litoral norte do Rio Grande do Sul até que a intensificação da presença dos “brancos”, especialmente com a introdução das lavouras de cana de açúcar, inviabilizasse esta condição.

O livro é prefaciado pelo Prof. Dr. Eduardo Neumann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o qual afirma que a cuidadosa investigação do autor permitiu “reabilitar, no quadro geral das populações indígenas, um grupo que habitava o Rio Grande do Sul mas que não era mencionado como um coletivo específico”. E, ainda, que o trabalho, por meio da operação de identificação e transcrição de documentos oficiais de caráter administrativo, permitiu resgatá-los “do silêncio a que foram confinados pela escrita da história oficial” (13).

O texto tem suas 236 páginas divididas em três capítulos. No primeiro deles, o estudo apresenta uma “retrospectiva” da história de contatos entre os grupos indígenas do litoral norte do Rio Grande do Sul e os ocidentais (bandeirantes, religiosos e tropeiros) a partir do século XVI. Ele buscou evidenciar aí que, contrariamente ao que reza a historiografia, os xoklengs não eram um grupo isolado até os inícios da imigração europeia no estado, e que seu comportamento esquivo no Oitocentos resulta exatamente do conhecimento que haviam adquirido a partir de suas relações anteriores com os brancos, isto é, das experiências que tinham vivido e das interpretações que conferiram a elas. Ainda neste capítulo o livro discorre sobre o avanço da pecuária neste espaço, evidenciando que, embora uma “fronteira étnica” com os xoklengs começasse aí a se esboçar, estancieiros e indígenas ocupavam, ainda, territórios diferentes e não mutuamente cobiçáveis: a planície costeira (formada por campos, banhados e lagoas), e a floresta da “encosta da serra Geral”.

O capítulo seguinte abrangeu o tempo da instalação da agricultura por meio da “frente açoriana” de colonização. Apesar de seus roçados estarem instalados nas faces dos morros voltadas para o mar, estes “colonos” deram início à erosão da fronteira geográfica que havia separado brancos e índios, processo que, ao mesmo tempo, levou ao enrijecimento da fronteira étnica. Segundo o autor, neste momento os nativos poderiam ter contornado o contato mais intenso com os brancos, mas não o fizeram, investindo em uma série de ataques, especialmente em busca de ferramentas e outros bens materiais que desejavam.

Os xoklengs “não mais se encontravam isolados porque não tinham mais como se manter indiferentes ao mundo que se criava ao seu redor e à sua revelia. Não estavam tão distantes do mundo colonial, e as ‘correrias’ que praticavam eram um exemplo de que […] podiam entrar e sair dele”.

Seu modo de vida havia se alterado de forma incancelável, especialmente pelo aparecimento de novas necessidades criadas pelo contato, tal como cachorros, tecidos e, principalmente o ferro (Cunha, 2012, p. 215).

As iniciativas dos xoklengs para obter estes recursos geraram violenta repressão por parte dos colonos e do poder público, bem como contribuíram para firmar a noção de que eles eram um perigo e um empecilho para o avanço das lavouras. Com o estabelecimento militar de Torres (1820) e o surgimento das Companhias Sertanejas (1822), o Estado passou a investir sistematicamente na perseguição aos “selvagens”. O autor chama a isto de “bugreirismo oficial” e avalia, neste momento do texto, as políticas e práticas que pretenderam abrir a região para a presença dos imigrantes europeus que passavam a ingressar no Rio Grande do Sul.

O assentamento de colônias de italianos e alemães no litoral norte, ao longo do XIX, significaria o caminho sem volta para o processo de depopulação indígena nesta área, e a história das relações dos nativos com esta nova frente de expansão da fronteira agrícola é o tema do terceiro e último capítulo da obra. Nesta nova fase, observa o autor, o governo provincial “se colocou francamente ao lado dos colonos, enviando […] soldados para o interior das matas para perseguir índios que permaneciam como problema […]” (Cunha, 2012, p. 215). Além deles, os xoklengs haveriam de se enfrentar, também, com companhias de perseguidores de negros quilombolas, madeireiros, mercadores e mesmo bandidos comuns, que passavam a frequentar a mata.

Segundo adverte Lauro Cunha, não houve interesse por parte das autoridades em integrar os xoklengs ao sistema econômico regional4, descartados que foram como possível mão de obra ou produtores de artigos que interessassem comercialmente aos brancos5. Para os colonos e autoridades locais, eles se constituíam em um entrave ao progresso e segurança; “a presença deste ‘outro’ era um incômodo e o medo obrigava a que não se reconhecesse seu direito de estar ali. E, como ninguém aceitava plenamente a sua humanidade, a solução seria o seu afugentamento” (Cunha, 2012, p. 190). Por parte dos índios parece também não ter havido inclinação à convivência.

Assim, eles ofereceram resistência armada sempre que lhes foi possível e recuaram quando não havia outra opção; ao mesmo tempo, à medida que a colonização se assentava, restavam-lhes menos espaço e possibilidades de sobreviver.

Se Lauro Pereira da Cunha queria contar a dramática histórica deste desaparecimento, esquecido pelos livros de história regional, este não era seu único intento, uma vez que pretendia, também, refl etir sobre as ações e escolhas dos xoklengs, que não foram vítimas inermes do avanço dos brancos, mas “praticaram seus furtos e dispararam suas fl echas”, agiram e se transformaram, “pois era impossível permanecerem imutáveis no conflituoso contato com o outro”. Foram, desta forma, agentes fundamentais na construção da sociedade do litoral norte do Rio Grande do Sul, ajudando a delinear os seus limites e possibilidades. Reavaliando suas categorias culturais e o significado deste contato, optaram por expropriar o branco em bens que poderiam lhes ser úteis, em especial no que tange aos instrumentos de ferro. Eles pensaram, assim, em seus próprios termos, a recusa quanto a alianças ou contatos amistosos, mantendo-se em permanente estado de guerra “e arcando com as consequências da escolha feita” (Cunha, 2012, p. 215).

É preciso finalmente lembrar que o autor tem plena consciência de que recuperar histórias passadas tem forte incidência na história presente, e que ele pretende que as páginas que escreveu contribuam para a composição de uma etno-história xokleng, instrumento que os índios têm aprendido a acionar nas suas demandas pelo reconhecimento de territórios sobre os quais afirmam ter direitos “históricos”.

Referências

LAVINA, R. 1994. Os Xokleng de Santa Catarina: uma etnohistória e sugestões para arqueólogos. São Leopoldo, RS. Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 266 p.

NAMEM, A.M. 1994. Botocudo: uma história de contato. Florianópolis/ Blumenau, Ed. da UFSC/Ed. da FURB, 112 p.

SANTOS, S.C. dos. 1973. Índios e brancos no sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. Florianópolis, Edeme, 313 p.

SANTOS, S.C. dos. 1997. Os índios Xokleng: memória visual. Florianópolis, Ed. da UFCS; Itajaí, Ed. da UNIVALEI, 152 p.

SELAU, M. da S. 2006. A ocupação do território Xokleng pelos imigrantes italianos do Sul Catarinense (1875-1925): resistência e extermínio.

Florianópolis, SC. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal de Santa Catarina, 156 p.

WITTMANN, L.T. 2007. O vapor e o botoque: imigrantes alemães e índios xokleng no Vale do Itajaí/SC (1850-1926). Florianópolis, Letras Contemporâneas, 265 p.

Notas

2 O trabalho, concluído em agosto de 2012, intitulou-se O botoque e o açúcar: índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul. Contribuíram com o mesmo, como membros da sua Banca de Qualificação, os professores Véra Maciel Barroso, Marcos Witt e Maria Cristina Bohn Martins; da Banca de Mestrado, participaram Eduardo Neumann, Jairo Rogge, Eloísa Helena Capovilla da Luz Ramos e Maria Cristina Bohn Martins.

3 Entre outros: Selau (2006); Santos (1973); Santos (1997); Namem (1994); Lavina (1994).

4 Nem tampouco, como se dizia desde os tempos coloniais, “em resgatá-los para a civilização”.

5 “Tivessem sido incluídos na política de aldeamentos que ‘pacificou’ os kaingang, certamente não teriam desaparecido” (Cunha, 2012, p. 215).

Maria Cristina Bohn Martins – Universidade do Vale do Rio dos Sinos Av. Unisinos, 950, Cristo Rei 93022-000, São Leopoldo, RS, Brasil 1 Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Unisinos; Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: mcris.unisinos.br.

Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História | Ronaldo Vainfas

Em 1997, a Editora Campus lançou uma obra que reunia uma série de ensaios gerais sobre teoria e metodologia, analisando os percursos, os principais conceitos e o debate em diversos campos da prática historiográfica. O livro “Domínios da História”2 , organizado pelos professores da Universidade Federal Fluminense, Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, logo se tornou referência em cursos de Graduação e Pós-Graduação, 3 ao revelar-se um importante instrumento de trabalho para professores e pesquisadores.

Naquela obra, além da Conclusão, em que avaliava os “caminhos e descaminhos da história”, Ronaldo Vainfas foi também responsável pelo capítulo intitulado “História das Mentalidades e História Cultural”, texto no qual elaborou reflexões que, de certa forma, acabaria por retomar e ampliar neste seu “Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História”, lançado pela mesma Campus em 2002. Leia Mais

América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos – PRADO (VH)

PRADO, Maria Ligia Coelho. América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo EDUSP; Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração – EDUSC, 1999 (Ensaios Latino-Americanos; 4). Resenha de: MARTINS, Maria Cristina Bohn. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.23, p. 234-238, jul., 2000.

Dois são os campos em torno dos quais Maria Ligia Coelho Prado centra suas reflexões em “AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XIX. Tramas, Telas e Textos”: a história da cultura e das idéias políticas. Surgida em 1999 — em edição esmerada e muito bem ilustrada — numa publicação conjunta das Editoras da Universidade de São Paulo e da Universidade do Sagrado Coração, a obra reúne — revistos e ampliados — um conjunto de textos que foram apresentados pela autora como tese de livre docência ao Departamento de História da Universidade de São Paulo. Se cada um deles representa uma abordagem sobre uma América multifacética, em conjunto eles constituem um esforço de entendimento das peculiaridades deste universo que é o continente latino-americano.

Centrada no século XIX, a obra percorre diversos temas e questões — que, de fato, entrelaçam-se — fundamentais para a compreensão de um período crucial da história do continente e das nações que o compõem. E, ainda, o faz buscando, em alguns ensaios, fugir aos limites nacionais e propondo, através da história comparada, pensar semelhanças e diferenças entre o Brasil de colonização lusa e os Estados Unidos de colonização anglo-saxônica, em relação aos países americanos de colonização hispânica. Como questões importantes para pensar o século e o espaço em questão, a autora escolheu temáticas que vão das relações entre Universidade, Estado e Igreja à construção das identidades nacionais, do papel dos intelectuais latino-americanos nos debates de sua época sobre a democracia e a participação popular no processo político, ao âmbito do feminino, expresso, tanto na sua participação nas lutas pela independência, quanto no universo de suas leituras no XIX.

Os dois primeiros capítulos do livro retomam um tema capital da primeira historiografia latino-americana: o momento da independência em relação do domínio espanhol. Propõem a eles, contudo, um tratamento que se distancia da produção mais tradicional, ocupada fortemente em exaltar a atuação dos líderes das guerras de emancipação.

No primeiro, “A participação das mulheres nas lutas pela independência política na América Latina”, a autora lembra que, apesar da intensa renovação teórico-metodológica da historiografia contemporânea, a participação feminina nas história da independência da América Latina é território ainda pouco ou nada explorado. Desta forma, e “revertendo a perspectiva de alheamento da mulher das coisas públicas” preocupa-se em desvendar o papel desempenhado por elas nos eventos em questão. Falando da sua participação como mensageiras, como soldado nos exércitos camponeses, ou das suas atividades acompanhando as jornadas das tropas — cozinhando, costurando ou lavando —, das ricas criollas de famílias tradicionais ou de mulheres pobres ou mestiças, o texto de Maria Ligia Prado evidencia a necessidade de uma maior consideração por parte da historiografia da presença feminina num universo que tradicionalmente é percebido como especificamente masculino. Igualmente esclarecedor é o seu alerta para que esta reavaliação não incorra na perspectiva reducionista que, quando reservou-lhe algum papel nesta história, circunscreveu-o de forma a enquadrá-lo não “no espaço público onde efetivamente deu-se sua atuação política”, mas a recolhendo ao circuito do espaço privado, “já consagrado como ‘o lugar da mulher’ “.

Já em “Sonhos e Desilusões nas Independências Hispano-Americanas”, percorrem-se os caminhos do pensamento e da prática políticorevolucionária do colombiano Francisco José de Caldas e do mexicano Miguel Hidalgo y Costilla. O primeiro, postulando uma nova concepção de ciência que questionava os pressupostos escolásticos nos quais se baseara o conhecimento no período colonial, assumiu também uma posição política que o levou a abraçar a causa da independência e, em nome dela, perder a vida. O segundo, levou esta posição ao extremo de conduzir uma insurreição popular que mobilizou as massas em um movimento que fez tremerem as bases do domínio colonial no México. No entanto, “tempos de transformação trazem em si grandes esperanças e sua outra face, as inevitáveis frustrações”, lembra a autora, ao passar a discutir as posições crescentemente autoritárias e conservadoras que foram sendo assumidas por muitos dos que, à época da independência, haviam-se guiado pelas doutrinas liberais. Desta forma ela nos faz acompanhar o movimento pelo qual — no período posterior às guerras de emancipação — aqueles que as tinham iniciado reivindicando a liberdade, passaram a advogar em nome da autoridade.

Dois intelectuais liberais — o argentino Esteban Echeverría e o mexicano José María Luis Mora — são o objeto de análise do terceiro capítulo da obra, em que se analisa suas particulares concepções de democracia e soberania popular, uma vez que justificavam a exclusão dos setores populares da arena política. O ensaio acompanha a reflexão dos dois pensadores sobre os significados das liberdades e da soberania popular, avaliando em que medida a mesma estava condicionada pelas contingentes situações políticas vivenciadas em seus países. Se suas trajetórias pessoais realizam-se por caminhos diferentes, esclarece-nos a autora — Echeverría que fez parte da Geração de 37 não viveu para ver o fim do domínio rosista na Argentina, enquanto que Mora exerceu intensa atividade política tendo participado do governo liberal de Valentín Gómez Farías —, ambos convergem em, a par de sua defesa dos pressupostos da liberdade e da soberania popular, propor mecanismos legais para evitar uma concreta e perigosa participação dos setores populares. Estes seriam desqualificados como sujeitos políticos em favor dos ilustrados que saberiam melhor guiar-se pelo império da razão. Sobre o pensamento e preocupações de ambos, a autora afirma que estavam em consonância com “a situação histórica de seus países e (…) plenamente adequados à realidade latino-americana”, para concluir fecundamente que não se deve concordar com “certas interpretações que separam (…) de um lado , o ‘purismo’ dos pressupostos liberais e democráticos e, de outro ‘a crua e violenta realidade latino-americana’ “.

Na América Espanhola viveu-se, no período pós-independência, uma época de intenso debate entre os defensores da manutenção da universidade colonial e aqueles que propugnavam pela sua extinção, uma vez que viam-na como baluarte do atraso e do domínio da Igreja. Estes últimos propunham que, em substituição aos antigos estabelecimentos de ensino, fossem criadas novas instituições, alicerçadas nos princípios liberais. Este é o objeto do quarto artigo da obra — “Universidade , Estado e Igreja na América Latina”— em que aborda-se o tema das universidades desde o século XIX, tomando-as a partir do campo da história das instituições e das idéias “que devem ser pensadas dentro de um certo contexto sócio-político”. Desta forma, propõe-se a autora a acompanhar, em países diferentes, formas distintas de pensar o tema, elencando o Chile e o México como campo de análise, segundo as especificidades sócio-políticas dos dois países. Por fim, ela aborda o Brasil, em que a primeira universidade surge já em pleno século XX para avaliar como as relações entre Estado, Igreja e Universidade aparecem compondo um quadro em que estão entrelaçados o universo político-ideológico, as lutas sociais e as soluções educacionais propostas.

“Lendo Novelas no Brasil Joanino” estuda textos inscritos neste gênero literário publicados pela Imprensa Régia no Brasil entre 1810 e 1818. A autora propõe-se aí, a analisar a possível “existência, neste período, de um público feminino, provável leitor desses livros, e falar das restrições impostas pela censura oficial à seleção dos textos impressos”. O trabalho de Maria Ligia Prado, porém, não só traça respostas para tais questões, como remete os leitores a outras e igualmente importantes indagações, e que se ligam à história das práticas de leitura. A autora identifica aí, a tensão central de toda história da leitura, entre concepções que postulam a absoluta eficácia do texto (ligadas ao campo de sua produção), ou as que percebem-na como uma prática criativa que inventa conteúdos e significados particulares, não redutíveis às intenções de autores, editores ou censores. Assim, conduzindo-nos ao universo das publicações destinadas às mulheres leitoras do Brasil Joanino, Maria Ligia Prado nos remete, também, aos paradigmas de leitura predominantes neste período e lugar, aos diferentes “modos de ler”, com seus gestos próprios e seus usos particulares do livro. Temas estes, indispensáveis para pensar-se em como os textos escritos, as “novelas para mulheres” neste caso, puderam ser apreendidos, compreendidos e manipulados.

O sexto ensaio, “Para ler o Facundo de Sarmiento” detém-se sobre um dos textos basilares do pensamento político latino-americano e referência fundamental do pensamento argentino. Obra polêmica, matriz de incontáveis e apaixonadas discussões, “Facundo ou Civilização e Barbárie”, foi publicado pela primeira vez em 1845. Sobre ela, a autora preocupou-se em localizar a produção da obra em sua época, analisar suas partes constitutivas e oferecer um quadro dos principais temas e debates que o livro suscitou e tem suscitado. Desta forma, avalia como imbricadas na dicotomia apresentada por Sarmiento entre civilização e barbárie — encontram-se as propostas do autor para um projeto político alternativo para a Argentina, projeto este calcado nos supostos da doutrina liberal e no unitarismo.

E, indo além da análise desta antinomia que é a faceta mais conhecida da obra, Maria Ligia Prado recupera a produção historiográfica mais recente, apontando outras tantas leituras possíveis. Estas podem deter-se, por exemplo, na análise do livro de Sarmiento como representação dos interesses de determinados segmentos sociais da Argentina da época, ou preocupar-se com outras franjas do texto, suas “sutilezas e ambigüidades”, como chama a autora. É assim que o campo, locus da barbárie, é também o espaço do heroísmo, “envolvido em certa pureza e integração com a natureza que a civilização teria, contraditoriamente, que destruir”. Ou ainda a avaliação sobre a aproximação de Sarmiento com o mundo da tradição oral, uma vez que, embora partidário convicto da importância da educação letrada, foi com depoimentos deste tipo que ele construiu suas considerações sobre a vida dos caudilhos.

Enquanto Sarmiento pensa a natureza argentina sob o signo da negatividade — espaço selvagem que cerca e oprime, lugar por excelência da barbárie — escritores e pintores norte-americanos percebiam-na, na metade do século XIX, como fonte cultural e moral e como base da auto-estima nacional. Esta perspectiva particular sobre a wilderness e sua articulação com a construção da identidade e do nacionalismo norte-americano, é o tema de “Natureza e Identidade Nacional nas Américas”. Neste ensaio, a autora analisa a construção de um repertório de imagens nacionais nos Estados Unidos, calcados na força regeneradora da sua natureza — jovem, vigorosa e pura — em contraste com o desgastado mundo europeu; natureza vista sob o signo da positividade, e em benéfica comunhão com seus habitantes e suas instituições.

Assim, enquanto para Sarmiento a solidão dos vastos espaços vazios, que colocam o homem em contato com a natureza, implica na ausência de respublica e favorece o despotismo e a barbárie, Frederick Jackson Turner revolucionava a historiografia norte-americana do período, propondo que era da free land das florestas que brotava a democracia. Ali onde Sarmiento encontrava um fator de dificuldade para os gaúchos organizarem-se como sociedade civil, Turner via a possibilidade de brotar um individualismo que era promotor da democracia. A fronteira, ponto de encontro entre a civilização e a wilderness, é para ele um espaço regenerador, traduzindo-se em renascimento e rejuvenescimento.

Explorando as construções do imaginário americano, Maria Ligia Prado analisa também neste ensaio, o diálogo travado entre os textos escritos e o repertório iconográfico, especialmente o da chamada Escola do Rio Hudson, cuja perspectiva sobre a natureza norte-americana era igualmente edulcoradora. Emergem daí cenários de paisagens intocadas, de uma natureza não-domesticada, que igualmente contribuíram para a elaboração da identidade nacional. Era, assevera, “uma arte nacionalista, que pretendia afirmar que a natureza atingira sua forma mais pura e elevada nos Estados Unidos”.

Com uma narrativa que consegue ser fluente sem fugir, em nenhum momento, do rigor científico e da erudição, nem incidir na simplificação dos conceitos, “AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XIX. Tramas, Telas e Textos” é uma preciosa via de acesso a uma época particularmente importante do universo latino-americano. Expressão da maturidade intelectual de sua autora, a obra nasceu clássica e percurso obrigatório para todos que pretenderem entender este universo, em — nas palavras da autora — suas tramas, telas e textos.

Maria Cristina Bohn Martins – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, RS.

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