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Formação social do Brasil. Etnia, cultura e poder | Erivaldo Fagundes Neves (R)
Desde a superação da fase ensaísta do pensamento social brasileiro e sua substituição por uma fase acadêmica, disciplinar, aumentou muito a exigência para uma síntese de história do Brasil que fosse, ao mesmo tempo, interessante para o debate público e que contemplasse a produção crescente de especialidade de áreas e sub-áreas. Conhecimento de fontes de períodos distintos da história do Brasil, especialmente colônia e império, trânsito em diferentes campos de pesquisa como história econômica, história da escravidão, história cultural, história territorial e historiografia, são atendidos por Formação social do Brasil do historiador baiano Erivaldo Fagundes Neves, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana.
Neves é uma referência em campos como história agrária, história da escravidão e história regional e local dos sertões da Bahia. Mobilizando sua experiência, produziu uma interpretação da história do Brasil à partir das categorias de etnia, cultura e poder. A obra serve ao estudioso, por seu embasamento teórico e empírico, ao mesmo tempo em que interessa ao debate público pois discute hierarquias raciais, desigualdade, estrutura do Estado e persistência de instituições de privilégio. Mesclando narrativa e análise objetiva, Neves defende a tese de que o Brasil conserva do antigo regime português comportamentos e relações de poder marcadas pelo regime de mercês e privilégios, ao mesmo tempo em que possuiria uma cultura popular exuberante marcada pela diversidade e autonomia. Essa resenha do livro Formação social do Brasil descreve seu conteúdo e destaca lacunas e pontos de força.
Nos quatro primeiros capítulos, o autor trata de temas que podem ser considerados os “antecedentes” do país. Trata de história pré-colonial do Brasil, faz uma ampla revisão das teses arqueológicas sobre povoamento do Brasil, relativizando a teoria de migração via estreito de Bering e afirmando a plausibilidade da hipótese das múltiplas migrações, via África, Polinésia e Extremo Oriente, para a América, bem como das grandes migrações internas no continente sul-americano. Trata de sambaquis litorâneos, aldeias de pescadores, ceramistas e agricultores ribeirinhos no interior do país. Analisa a formação das nações indígenas no período colonial. Discute a formação de Portugal, desde a hegemonia mourisca do território, do Estado português no medievo e do contexto de tensões políticas entre estados cristãos e muçulmanos no Mediterrâneo ocidental, analisa a presença de povos roms, chamados callí na península ibérica. Debate a história dos povos africanos que tinham relação mais próxima com a história do Brasil pelas mediações do tráfico humano e do comércio. Há estatísticas do tráfico e discussão das construção das nações coloniais africanas, como banto, haussá, nagô, jeje ou mina, a serviço do colonizador ibérico.
Não faltam os temas clássicos de presença francesa e flamenga na colônia, o pacto colonial-mercantil e as resistências indígenas e quilombolas. A novidade é a incorporação de uma tendência da historiografia colonial que destaca o caráter não-linear e efêmero da conquista, recuos e resistências, especialmente nos dois primeiros séculos. Neves destaca que a história do século XVII não é só da destruição de Palmares, mas também das 37 vitórias que o quilombo obteve frente às expedições da Coroa. Há uma análise densa dos dispositivos jurídicos-políticos e socioculturais da colonização, a adaptação no transplante para a América, descrições do aparato administrativo da colonização, as instâncias judiciárias e o aparelho militar. Um dos pontos fortes do livro que enriqueceria as atuais discussões públicas sobre direitos e privilégios no país é o tratamento da economia de mercês, com privilégios e suas hierarquizações complexas no modo de organizar a república no Antigo Regime e sua transplantação. Sobre a dimensão cultural, Neves debate o Barroco como um gênero que se apropriou das inovações técnicas do Renascimento e as extrapolou para criar alegorias à partir de signos, o papel da religião na vida cultural e artística da colônia, as academias literárias surgidas no século XVIII como expressão da ilustração colonial e a completa autonomia da música, que conservou o cantochão nos templos, não desenvolveu a música de câmara europeia e promoveu uma imensa riqueza em termos de música popular de rua. Também trata dos aspectos econômicos. Para Neves, é insuficiente compreender a colônia brasileira apenas como exportadora de gêneros para o comércio mundial, mas também perceber o mercado interno. Destaca o papel da pecuária na ocupação dos sertões, da mineração do adensamento demográfico do interior e na mudança de gravidade econômica da colônia e o mito do bandeirante é analisado em sua construção no final do século XIX. O autor destaca os aspectos ideológicos dos protestos anticoloniais, o iluminismo entre os grupos sociais abastados e médios e o haitianismo dos setores subalternos, além dos aspectos políticos da transferência da corte para o Brasil em 1808.
Entre os capítulos 10 e 13, o autor trata da formação do Estado pós-independente. Aborda o papel dos poderes oligárquicos regionais, as continuidades do absolutismo português no poder moderador da constituição outorgada, a formação da burocracia, das forças armadas e de uma elite aristocrática homogênea em torno de Pedro II como estratégia de governança. Para o autor houve duas grandes tendências nas tensões políticas do país, a de centralização do poder e o federalismo das oligarquias rurais, comerciantes e mineradoras regionais. Essa dualidade foi investigada no capítulo sobre as regências, com análise da configuração política partidária do país, dos conflitos federalistas e das guerras civis generalizadas, inclusive as de recorte social e racial. Com o golpe da maioridade, Neves narra a construção da estabilidade monárquica, o reformismo que perpetuava o escravismo e o projeto de embranquecimento do país com a imigração. O segundo reinado, para Neves, é marcado por conservadorismo, resquícios do absolutismo, reformas realizadas quando havia grande pressão, manutenção da estrutura de latifúndio e das características econômicas rurais do país.
Neves analisa a exclusão da quase totalidade da população do letramento e consequentemente uma minúscula elite letrada. Oito em cada 10 brasileiros eram analfabetos no século XIX. Os alfabetizados em geral possuíam rudimentos de leitura e escrita, as quatro operações básicas de aritmética e noção de juros simples e compostos, o suficiente para assinar documentos, não possuir o estigma de analfabeto, negociar, votar, talvez ler livros religiosos, livros agrícolas e, depois de 1890, folhetos com romances em versos. Isso se refletiu em uma literatura brasileira que mimetizava estilos europeus, como o neoclassicismo, o romantismo, o simbolismo e o parnasianismo. A ruptura ocorreu com a industrialização, urbanização e formação de uma sociedade dividida em classes. Neves também trata da formação de uma identidade nacional à partir da historiografia no século XIX, quando o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil estabeleceu uma história pátria na qual a nação se desdobrava da história colonial, com protagonismo português, sendo indígenas e africanos coadjuvantes. As expressões dessa historiografia eram von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil e os volumes de Vanhargen.
Nos capítulos 13 e 14 Neves trata da transição para a modernidade nos aspectos econômicos, políticos e urbanos. A nova infraestrutura de transportes a vapor e a crescente urbanização, especialmente em Rio de Janeiro e São Paulo, se identificavam com um modelo de civilidade que excluía os mais pobres e pretos. Neves narra a exaustão do escravismo e o colapso da monarquia, derrubada por uma parada militar, após uma longa crise política, sucedida por uma ditadura de marechais até a transição para os governos civis que representavam as oligarquias regionais mais poderosas. A república foi seguida de decepção, manifesta furiosamente em lutas sociais como as revoltas da armada, da vacina e da chibata, o tenentismo, o cangaço e os movimentos milenaristas. Trata do processo de consolidação territorial e dos tratados sobre as fronteiras do país, destacando os conflitos com Paraguai e Bolívia. A seguir, o autor discute o colapso da república oligárquica e o processo de modernização pós-revolução de 30. Além da narrativa dos principais acontecimentos que levaram ao fim do regime liberal, destacando o colapso do modelo agroexportador e a recomposição política construída à partir do declínio da hegemonia ruralista, Neves analisa as condições mais estruturais da modernidade e a sua implantação no Brasil, uma sociedade herdeira do escravismo que continuava as formas mais perversas de racismo, exclusão sócio-racial, analfabetismo generalizado e permanência das estruturas de mercê e privilégios. Em que pesem as rupturas em termos de estética, moda e expressão cultural, a moderna sociedade conservava uma série de suas características e mazelas, nos sertões e nas capitais.
No capítulo 15, Neves apresenta vários pensadores do Brasil, desde Antonil, seguido por von Martius, Vanhargen, chegando a Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manoel Bomfim, Oliveira Lima, Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire. Para Neves, o Brasil se caracterizaria por sua alegria, sociabilidade e generosidade, com aspectos do burlesco, do chistoso e do manhoso. Manifestos por uma minoria, haveria a astúcia, a vadiagem e a ilicitude, já destacadas por intérpretes do país como uma das características do brasileiro, mas segundo Neves, seriam aspectos marginais da população e expressão de suas estruturas perversas de concentração de terra, propriedade e poder. A escravidão, o genocídio, o latifúndio, a política baseada na mercê e nos privilégios, característica do antigo regime ibérico, teriam engendrado estruturas que persistem na organização do país. A história brasileira se caracterizaria, assim, por tendências opostas, como o centralismo e o federalismo, o latifúndio e a minifundização da propriedade, a opressão na forma de escravismo, jaguncismo, coronelismo e políticas excludentes dos oligarcas e a adaptação, burla, resistência e revolta permanentes.
Formação Social do Brasil mescla análise estrutural de longa duração, com destaque para aspectos econômicos, étnicos e políticos, mas há momentos narrativos, especialmente após a independência. O recorte cronológico vai até a revolução de 30. A ditadura civil-militar de 1964 está ausente, mas é tentador para o leitor pensar o período recente da história do país à partir das teses do autor de persistência de elementos do antigo regime na modernidade brasileira, como o sistema de mercês e privilégios e as reformas feitas sob pressão por regimes autocráticos. Algumas lacunas são as lutas sociais do movimento operário, já com destaque nas cidades nos anos 1910, e o banditismo rural, exceto por um tratamento mais atencioso ao cangaço. Como ficam os conflitos armados do império e da república de grande escala, como os que envolveram Militão Plácido da França Antunes nos anos 1840 e Horácio de Matos nos anos 1910, ainda ausentes em livros síntese de história do Brasil, dentro das das teses do autor sobre oligarquias fardadas? Formação é mais um livro de história econômica do que de história social, trata mais de estrutura que de conflito, embora destaque que a tensão e a revolta são permanentes.
O leitor que desejar conhecer com mais vagar os aspectos étnicos da formação do povo brasileiro, encontrará uma material amplo que trata de Portugal, África e América, pré-colonial e colonial, que permite uma visão panorâmica dos povos que formaram o Brasil. Além da diversidade étnica de indígenas e africanos traficados para a América, há destaque à diversidade étnica de Portugal, onde mouros, judeus e ciganos faziam parte da população que atravessou o Atlântico.
Uma última observação é que sua estruturação em capítulos pode ser desmontada e remontada. É possível fazer a leitura dos capítulos sobre etnia ou sobre economia, como também há capítulos de temas de cultura ou de política. Outras ordens podem ser feitas pelo leitor, sem prejuízo de sentido, devido à riqueza bibliográfica com qual cada tópico é construído. Nesse sentido, a profusão da bibliografia pode servir de guia de leituras para entender o Brasil. Em outros sentidos, o livro oferece ao leitor bastante autonomia, já que ele pode usá-lo como guia de leituras de aprofundamento, graças à bibliografia ampla e como cardápio de hipóteses extraídas do período colonial, imperial e primo-republicano para pensar questões recentes do país.
A novidade do livro é a proposta de uma história das estruturas econômicas e políticas do país que, não sendo concentrada no sudeste, seja territorialista. As obras escritas por Neves sobre os sertões baianos, tendo por objeto a conquista, o escravismo, a estrutura fundiária, a rede comercial e a cultura, permitiram que ele diferenciasse o território da sociedade, tentação em que caem muitos dos historiadores que pretendem se afastar de uma história dos centros administrativos do litoral. Não há “um sertão do Brasil”, mas sociedades, economias e oligarquias sertanejas, fundamentais para a estruturação do Estado e das hierarquias, políticas, sociais e raciais. Num momento em que a regionalização apressada vem ganhando espaço nas análises sobre política do país, onde abundam expressões como “o eleitor nordestino”, o “o voto dos grotões”, a “divisão regional”, é valiosa uma obra que não reifica o sertão, ao mesmo tempo em que não cai no caminho mais óbvio da historiografia brasileira de síntese que pensa o Brasil, para além de seus centros urbanos de expressão econômica ou administrativa, como território.
Flávio Dantas Martins – Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás e professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: flaviusdantas@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5275-5761.
NEVES, Erivaldo Fagundes. Formação social do Brasil. Etnia, cultura e poder. Rio de Janeiro: Vozes, 2019. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A persistência do privilégio: uma história das estruturas e das hierarquias do Brasil. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.508-513, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
Capital et idéologie | Thomas Piketty
PIKETTY, Thomas. Capital et idéologie. Paris: Seuil, 2019. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A perspectiva histórica das ideologias das desigualdades no recente livro de Thomas Piketty. Revista de Teoria da História, v.23, n.2, p.349-357, 2020.
Flávio Dantas Martins – Universidade Federal do Oeste da Bahia. Barreiras, Bahia, Brasil. Email: flaviusdantas@gmail.com.
[IF]Leituras canônicas e tradição pátria – o pensamento hispano-americano oitocentista em Bilbao, Sarmiento e Sierra | Libertad Borges Bittencourt
O livro de Libertad Borges Bittencourt, Leituras canônicas e tradição pátria, é uma excelente leitura para aqueles interessados em história da América Latina, mas também uma contribuição para as discussões de história do pensamento histórico e teoria pós-colonial ou teorias da colonialidade do poder. A autora aborda, numa perspectiva de história conectada (p. 12), a forma como três ensaístas latino-americanos pensaram o desafio da superação da condição colonial (p. 20). Os três autores em enfoque foram o chileno Francisco Bilbao, o argentino Domingos Faustino Sarmiento e o mexicano Justo Sierra. O livro nasce da pesquisa de pós-doutorado da professora da Universidade Federal de Goiás. Após pesquisar amplamente sobre organizações indígenas na América Latina, a autora se volta para a história do pensamento social no continente no pós-independência e seleciona três países para conferir como seus mais destacados ensaístas do século XIX pensaram a realidade da construção do Estado nacional: México e Argentina, nos extremos da América Hispânica, países com dificuldade para atingir uma unidade interna; e Chile, contrastando com ambos por atingir estabilidade política que foi divulgada como uma espécie de consenso modelar em relação a um continente marcado pela fragmentação e pela guerra civil. Leia Mais
Políticas da inimizade | Achille Mbembe
Saiu em português de Portugal pela Antígona, com o título Políticas da inimizade, a tradução de Politiques de l’inimitié, publicado em 2016 pela Éditions La Découverte, do professor de história e de ciência política Achille Mbembe. Nascido em 1957 em Otété, Camarões, um dos mais importantes intelectuais cosmopolitas da atualidade, o autor leciona no Witwatersrand Institute for Social and Economic Research e já publicou títulos importantes como Crítica da razão negra (MBEMBE, 2014) que também tem tradução em Portugal, original, Critique de la raison nègre (MBEMBE, 2013a), Sortir de la grande nuit (MBEMBE, 2013b) e De la postcolonie (MBEMBE, 2000).
O livro tem cinco capítulos, alguns deles já publicados em revistas em edições anteriores, uma introdução e uma conclusão. Além do profundo e crítico diálogo com os estudos pós-coloniais, o chamado pós-estruturalismo e a historiografia e teoria política contemporâneas, familiar para quem conhece o autor, os ensaios possuem um interlocutor principal: o martiniquenho Frantz Fanon. Leia Mais
Crônica/memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia | Erivaldo Fagundes Neves
O livro Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia1 do professor da Universidade Estadual de Feira de Santana Erivaldo Fagundes Neves, a principal referência para pesquisa em história dos sertões da Bahia, é um livro esperado para aqueles que acompanham a produção do autor. Erivaldo Neves já havia abordado o tema de teoria e metodologia da história regional2, que complementava e desenvolvia argumentos apresentados em texto sobre corografia e historia regional3. Crônica, memória e história abrange estes estudos e contempla as incursões do autor aos temas da escravidão4, ocupação territorial5, caminhos coloniais6, história regional e local7, cultura8, sertão9, história da família, pecuária10 e historiografia11 desde o período colonial, passando pelo império e república, até a produção contemporânea. Além de um exaustivo levantamento bibliográfico, o trabalho é um comentário desenvolvido para o longo percurso de textos históricos apresentados.
A obra tem um prefácio do professor Paulo Santos Silva da UNEB, uma introdução, considerações finais e se divide em três partes, i) leituras sobre a colonização dos sertões baianos, ii) as crônicas, memórias e histórias sobre os mesmos no império e primeira república e iii) as perspectivas historiográficas posteriores a 1930, todas subdivididas em seções. Crônica, memória e história se justificaria por várias razões, mas julgamos duas de vulto: a tipologia apresentada para um extensivo levantamento de textos sobre os sertões baianos que abrange cinco séculos e a história do pensamento histórico sobre um tema que se desenvolve desde crônicas e memórias até uma historiografia técnica e disciplinar produzida em programas de pós-graduação em história de universidades. A polissemia do livro revela a paciência com a qual o mesmo foi gestado: o livro é resultado de um projeto de 25 anos que se desdobrou em outros trabalhos do autor, cuja obra é referência para uma geração de historiadores dos sertões baianos que lhe seguiram e que retornaram ao livro como exemplares de novas perspectivas historiográficas. Leia Mais
A visão em deslocamento: uma história de palavras, figuras e paisagens do São Francisco (1930/1970) | Elson Assis Rabelo (R)
O livro de Elson de Assis Rabelo, Visões em deslocamento, é um estudo sobre a produção de imagens, narrativas e espaços do rio São Francisco em contextos autoritários do Brasil do século XX. Produto de uma tese de doutoramento na Universidade Federal de Pernambuco, o livro analisa um conjunto de vestígios, reportagens, fotografias, periódicos, livros, revistas científicas, relatos de viagens, documentos oficiais, dialogando com teorias pós-estruturalistas, abordagens que investigam a história do campo científico da geografia, historicizam a tipificação das populações, a produção dos espaços, a construção de temporalidades arcaicas para esses tipos construídos e problematiza os interesses e conflitos envolvidos nessa realidade produzida. O objetivo dessa resenha é apresentar a obra e pensar, à partir de temas introduzidos pelo autor, sobre novas possibilidades de reflexão em torno do lugar-comum do rio da integração.
O livro se divide em duas partes, com dois capítulos cada, a primeira trata das paisagens e a segunda dos agentes sociais do espaço. No primeiro capítulo sobre a emergência de um novo espaço na geopolítica da integração, Rabelo reconstituiu a invenção do espaço regional são-franciscano desde a topografia dos engenheiros topógrafos nos anos 1930 até os geógrafos de influência estadunidense do final dos anos 1940, passando por importantes autores sobre o assunto como Geraldo Rocha, Jorge Zarur, Agenor Miranda, Orlando Carvalho, entre outros. O segundo capítulo investiga, partindo da análise de uma longa reportagem da revista Realidade, já nos anos 1960, as imagens de progresso e decadência da navegação, bem como a disputa de memórias da mesma, no contexto de desenvolvimento autoritário nacional. No terceiro capítulo, o autor investiga os processos de tipificação das populações do vale pela geografia e pela sociologia das comunidades, passando pela análise de fotografias. Essa área de imagem e história, na qual o autor se especializa desde então, domina o quarto e último capítulo, onde há uma análise de fotografias que contribuem para deslocar esses tipos e humanizá-los, desclassificá-los de uma taxonomia fixadora de caracteres folclorizantes.
Rabelo consegue muito bem analisar a produção espacial do Vale do São Francisco pelos saberes técnicos e pela imprensa. Sua análise das fotografias é perspicaz. Não é preocupação do autor, entretanto, lidar com a heterogeneidade dos discursos. Nesse sentido, o livro é muito útil para novos pesquisadores, pois estabelece um panorama de grandes linhas gerais da escrita sobre o São Francisco. Novas pesquisas permitirão preencher as lacunas deixadas pelo autor, tanto cronológicas, como o interregno entre o Estado Novo e a ditadura militar-empresarial iniciada em 1964, quanto bibliográficas, já que outros escritores se detiveram sobre a questão são-franciscana nesse período, não analisados pelo autor. Na ficção, especialmente, surgiram narrativas que, quando não contestavam diretamente as espacializações e tipificações descritas por Rabelo, desestabilizavam seus pressupostos. Os poucos trabalhos acadêmicos nessa linha são caracterizados ainda por um saudosismo romântico, que costuma reificar narrativas, tipificações e construir novas espacializações e memórias, sem problematizar a sua produção ou a artificialidade das mesmas. Rabelo consegue problematizar as tipificações e espacializações sem construir novas em seu lugar. Ele não disputa a definição do São Francisco e do sertanejo, não o romantiza ou o idealiza. Em algumas passagens, chega-se a duvidar que ele seja mesmo o objeto do trabalho do autor. A análise se concentra no discurso de tal modo que não há dúvida de que o autor trata dos vestígios, do arquivo e não da realidade dada a ver por eles.
A única lacuna que poderia ser destacada na análise é uma questão cara à história intelectual. Quanto Rabelo trata da espacialização do São Francisco pelos engenheiros e topógrafos dos anos 1930 e 1940, temos a impressão de que não há apropriação, reconfiguração e subversão interpretativa dos mesmos em relação às teses de João Ribeiro, Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso, mas uma continuidade e aplicação regional. A ideia de rio da unidade nacional e caminho da civilização, de João Ribeiro em seu livro História do Brasil no final do século XIX, retomada por Euclides da Cunha em Os Sertões no início do século XX, foi aprofundada e reformulada por Vicente Licínio Cardoso em conferências dos anos 1920, publicadas nos anos 1930 em edição póstuma, que serviram de referência básica para todos os escritores que lidaram com a questão são-franciscana até pelo menos os anos 1950, quando há um salto qualitativo em termos especializados e institucionalizados da produção do saber sobre o rio – muito bem documentado por Rabelo ao tratar do desenvolvimento de pesquisas de geografia regional científica e profissional sobre o Vale. Ocorre que aquilo que é apenas mencionado por João Ribeiro e citado em Cunha é aprofundado em Cardoso, transformado à luz de uma visão sobre o país e o papel da terra como sujeito, bastantes distintas daqueles dois autores. Por sua vez, Geraldo Rocha, Agenor Miranda e outros que se baseiam em Cardoso o fazem com uma reconfiguração ou mesmo o usam como recurso de autoridade para desenvolverem explicações outras, distintas das do engenheiro carioca. Rabelo destaca bastante a homogeneidade dos discursos sobre o rio São Francisco, sem se concentrar na heterogeneidade e nos conflitos e descontinuidades.
A força do livro está na análise da tipificação das populações e da espacialização das paisagens, mas também aponta a produção das temporalidades nesses texto. Trata-se da parte menos desenvolvida no campo de estudos sobre o assunto. Rabelo faz apenas alguns comentários breves sobre o tempo lento das populações rurais do Vale, característica das narrativas tanto dos topográfos, quanto da sociologia de comunidade de Pierson. Chega a tratar mesmo da falta dela, a tese de Licínio Cardoso do rio São Francisco ser um “rio sem história” escrita. Suas considerações limitam-se a apontar as narrativas como anacrônicas, naturalizadoras da história ou deterministas geográficas, sem entrar nos meandros das narrativas construídas e da intertextualidade dos autores com matrizes ou com outros textos dos próprios investigados. Além disso, há pouca ou nenhuma diversidade das temporalidades construídas pelos escritores investigados, dos aspectos híbridos entre técnica e memória na construção de narrativas e dos textos como produções identitárias. Alguns dos documentos analisados por Rabelo são verdadeiros discursos fundadores de regionalismos onde a abordagem técnica e produtora de espaços e tipos se mistura a relatos biográficos, narrativas épicas, memórias familiares e exaltação de personagens. A abordagem dada por alguns trabalhos acadêmicos que, como foi dito acima, reificam noções romantizadoras do rio e se não são capazes de artificializar essa produção discursiva, ao contrário, reforçam uma tradição que contribuem para produzir, é a continuação dessa produção de mitos. Rabelo trata bem dessa produção mítica em espaço e tipos, mas pouco trata do enredo. Isso se deve, possivelmente, pela sua busca por padrões discursivos, que podem ser construídos com espacializações e personagens comuns, mas é mais difícil de ser encontrada em um conjunto muito mais amplo de narrativas. É possível, aliás, que o único caminho viável seja uma taxonomia das temporalidades produzidas pelos mitos engendrados pelos escritores do São Francisco, especialmente em virtude de suas motivações ideológicas e dos projetos sociais aos quais se vinculam.
Sem dúvida, A visão em deslocamento é uma importante contribuição para um campo de estudos interdisciplinar muito vasto que tem o rio São Francisco como tema, cenário ou objeto. Ao contrário de outros trabalhos que buscam validar, quando na verdade instituem, uma tradição narrativa são-franciscana, o livro de Rabelo permite perceber a produção discursiva sobre esse tema, historiciza essa escrita e bagunça a tradição. Ironicamente, é possível que o livro venha a compô-la, ao refazê-la, abrindo novas possibilidades de estudos e desenvolvendo, verticalmente, discussões tratadas de forma panorâmica com fôlego. Bons estudos correlatos tem sido publicados, mas geralmente monográficos e bastante especializados. A vantagem do livro de Rabelo é que realiza uma síntese do campo, uma espécie de balanço da produção escrita, ainda que seja o livro tenha recorte de vestígios e cronologia muito bem definidos.
Numa época em que se matam rios que foram reificados discursivamente como espaços de progresso latente, uma obra que conta uma história desse “rio sem história” é muito bem-vinda.
Flávio Dantas Martins – Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: flaviusdantas@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5275-5761
RABELO, Elson Assis. A visão em deslocamento: uma história de palavras, figuras e paisagens do São Francisco (1930/1970). Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2016. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A invenção do Rio São Francisco: configurações do espaço e dos tipos em contextos autoritários. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.37, n.2, p.462-465, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]
Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia – NEVES (RHR)
NEVES, Erivaldo Fagundes. Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia. Feira de Santana: UEFS Editora, 2016. Resenha de: MARTINS, Flavio Dantas. Revista de História Regional, v.24, n.1, p.213-221, 2019.
O livro Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia1, do professor da Universidade Estadual de Feira de Santana Erivaldo Fagundes Neves, a principal referência para pesquisa em história dos sertões da Bahia, é um livro esperado para aqueles que acompanham a produção do autor. Erivaldo Neves já havia abordado o tema de teoria e metodologia da história regional2, que complementava e desenvolvia argumentos apresentados em texto sobre corografia e historia regional.3 Crônica, memória e história abrange estes estudos e contempla as incursões do autor aos temas da escravidão4, história regional e local7 desde o período colonial, passando pelo império e república, até a produção contemporânea. Além de um exaustivo levantamento bibliográfico, o trabalho é um comentário desenvolvido para o longo percurso de textos históricos apresentados.
A obra tem um prefácio do professor Paulo Santos Silva da UNEB, uma introdução, considerações finais e se divide em três partes, i) leituras sobre a colonização dos sertões baianos, ii) as crônicas, memórias e histórias sobre os mesmos no império e primeira república e iii) as perspectivas historiográficas posteriores a 1930, todas subdivididas em seções. Crônica, memória e história se justificaria por várias razões, mas julgamos duas de vulto: a tipologia apresentada para um extensivo levantamento de textos sobre os sertões baianos que abrange cinco séculos e a história do pensamento histórico sobre um tema que se desenvolve desde crônicas e memórias até uma historiografia técnica e disciplinar produzida em programas de pós-graduação em história de universidades. A polissemia do livro revela a paciência com a qual o mesmo foi gestado: o livro é resultado de um projeto de 25 anos que se desdobrou em outros trabalhos do autor, cuja obra é referência para uma geração de historiadores dos sertões baianos que lhe seguiram e que retornaram ao livro como exemplares de novas perspectivas historiográficas.
Vamos às partes. A primeira delas recua para crônicas, registros históricos e memórias coloniais sobre os sertões baianos. Aqui a produção textual que versa sobre o tema se confunde com a escrita da história no período colonial e são comentados Gabriel Soares de Souza, frei Martinho de Nantes, André Antonio Antonil, Miguel Pereira da Costa, Joaquim Quaresma Delgado, Sebastião da Rocha Pita, Luiz dos Santos Vilhena, entre outros. Além da exegese dos trabalhos destes autores no tocante ao que escreveram sobre os sertões baianos, Erivaldo Neves embasa seus comentários na historiografia contemporânea que investiga temas correlatos.
A segunda seção aborda os trabalhos escritos no Império sobre a colonização, se detém especialmente em estudo das memórias históricas e políticas da Província da Bahia de Ignácio Accioli de Cerqueira da Silva. Para Erivaldo Neves, faltam obras abrangentes com a pretensão do trabalho de Ignácio Accioli e a já datada e importante reedição comentada de Braz do Amaral demandaria uma nova edição crítica desse texto fundamental para a história da Bahia e dos seus sertões, bem como de sua importância como empreendimento historiográfico.
A seguir, Neves trata das obras históricas sobre a colonização dos sertões produzidas na primeira república. É uma seção que inicia com a análise da obra de João Capistrano de Abreu, e Basílio de Magalhães. O autor destaca a importância do discurso histórico do bandeirante teve na historiografia sobre os sertões baianos devido a centralidade paulista na primeira república. O historiador Pedro Calmon é abordado como alguém que dialogará com o pensamento histórico paulista, sobretudo a partir dos anos 1920, no tema do bandeirantismo, entre outros de sua vasta obra. Neves também analisa a obra de Urbino Viana. É desse período, destaca o autor, que começa uma repetição de “informações sem origem conhecida” retiradas das obras de Francisco Borges de Barros12.
Na seção posterior Erivaldo Neves apresenta as leituras históricas sobre a colonização entre as décadas de 1930 e 1960, levando em conta o contexto de produção, a recepção que fazem dos trabalhos que lhes precederam, sua inovação, sobretudo conceitual e metodológica e dialogando com a bibliografia contemporânea sobre o tema. Nesse período surge um gênero novo de escrita, chamada pelo autor de memória histórico-descritiva de municípios baianos. São analisadas mais detidamente as obras de Pedro Celestino da Silva sobre Caetité, Lycurgo de Castro Santos Filho sobre a fazenda Campo Seco em Rio de Contas. Nesse período, em decorrência da profusão, Erivaldo Neves analisa com mais atenção obras que representaram inovação teórica e metodológica, caso do estudo de Santos Filho que é uma história do cotidiano de uma fazenda no sertão riquíssima em dados empíricos graças à excepcionalidade dos registros particulares que teve acesso. É desse período em que pautas como a questão Nordeste e a questão hidráulica de aproveitamento do rio São Francisco ganham importância, e o pensamento histórico regional floresce.
São testemunhos dessa época de busca por definições regionais, embora sejam produções às vezes demasiado frágeis em termos metodológicos e empíricos, alguns estudos apresentados no Congresso de História da Bahia13 ou dos trechos sobre história dos municípios nos verbetes da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros do IBGE14
No última seção da primeira parte, Erivaldo Neves trata das elaborações historiográficas sobre a colonização posteriores a 1970. Nesse período marcado pela profissionalização da historiografia, pelo aumento quantitativo da produção, pelas modificações dos enfoques temáticos que deixam de lado a prioridade sobre a nação, a região e o município, surgem novas abordagens teóricas e metodológicas e uma profícua historiografia sobre os sertões baianos do período colonial, embora ainda relativamente limitada se comparados com outros períodos. Nesse capítulo, Erivaldo Neves resenha uma profusão de dissertações e teses que revelam os enfoque plurais que as inovações da pesquisa historiográfica permitiram no tratamento do passado colonial dos sertões.
A segunda parte do livro do livro trata da produção de pensamento histórico sobre o império e a primeira república. Erivaldo Neves inicia com uma seção sobre as crônicas e memórias históricas produzidas durante o período. Aborda autores como Tranquilino Leovigildo Torres, Gonçalo de Athayde Pereira, João Paulo da Silva Carneiro, Francisco Borges de Barros e mesmo a inusitada memória de Anísio Teixeira sobre o sertão. A análise de Francisco Borges de Barros é importante porque Erivaldo Neves identifique nele a fonte para vários autores posteriores que tomaram suas metáforas como fatos – por exemplo, Antonio Guedes de Brito ter sido o regente do São Francisco – ou mesmo reproduzirem suas afirmações sem embasamento documental. O autor desenvolve uma discussão sobre os desenvolvimentos teóricos e metodológicos da ciência histórica no império e na primeira república, o desenvolvimento institucional e as influências dos autores que trabalharam nesse período sobre o sertão baiano, destacando o IHGB e o IGHB.
Na seção seguinte, Neves trabalha com as crônicas e memórias produzidas após 1930 sobre os sertões baianos do período imperial e da primeira república. Ele destaca a influência da retórica euclidiana nas construções narrativas. Aí são analisados Wilson Lins, Marieta Lobão Gumes,
Flávio Neves, Helena Lima Santos, Mozart Tanajura e Pedro Pereira e seus escritos sobre o médio São Francisco, Caetité, Brumado e Livramento. Depois, Neves trata da historiografia posterior a 1930 e destaca a importância inicial, de Caio Prado Júnior. São analisados os trabalhos de Walfrido de Moraes, Américo Chagas, Fernando Machado Leal, todos sobre a Chapada Diamantina, e destaca o estudo de Eul-Soo Pang sobre o coronelismo baiano15. A seguir, uma profusão de artigos, teses e dissertações é comentada pelo autor – a seção tem o total de 76 páginas – agrupando-as em textos sobre coronelismo e poder local, economia, ocupação, desenvolvimento de comunidades rurais e municípios, conflitos sociais, entre outros temas. A novidade é o desenvolvimento de programas de pós-graduação em história, inicialmente em Salvador, mas não só já que muitos trabalhos foram desenvolvidos em outras universidades, e posteriormente nos programas de pós-graduação nas universidades estaduais sediadas em Feira de Santana e Santo Antônio de Jesus, além de cursos universitários de história em Vitória da Conquista, Alagoinhas, Itabuna, Conceição do Coité, Jacobina, Eunapólis, alguns deles com mestrados interdisciplinares que abrangem pesquisa histórica ou mestrado em história. Neves destaca a importância da interiorização do ensino universitário para a pesquisa histórica.
A terceira parte do livro trata das perspectivas historiográficas posteriores a 1930 sobre os sertões da Bahia. A primeira seção aborda as crônicas, memórias históricas sobre o período posterior a 1930 e inicia com algumas páginas sobre da questão do rio São Francisco a partir das memórias de Manoel Novaes, recuperando outros estudos sobre o rio desde o século XIX – como Orvile Derby, Teodoro Sampaio – passando pelos contemporâneos de Novaes como Geraldo Rocha e Wilson Lins. Em outra seção, Neves analisa os estudos técnicos sobre o período posterior a 1930 com destaque para pesquisadores oriundos dos Estados Unidos, como Rollie Poppino, Charles Wagley, Donald Pierson em colaboração com pesquisadores brasileiros como Thales de Azevedo, Eduardo Galvão e Luiz Antônio da Costa Pinto. Também são abordados estudos técnicos da Comissão de Planejamento Econômico da Bahia e pesquisas acadêmicas sobre o período.
As duas últimas seções abordam os fundamentos historiográficos entre o período 1930 e 1970 e as perspectivas historiográficas desde 1970, destacando a profissionalização da pesquisa histórica, o desenvolvimento de programas de pós-graduação e a diversificação e sofisticação conceitual e metodológica ocorridas no campo. Mais uma vez, Neves analisa livros, artigos, dissertações, teses e outros tipos de trabalho, especialmente as crônicas e memórias que não cessam de aparecer, mas se desenvolvem em paralelo à pesquisa acadêmica, sobre temas diversos como independência, escravidão, ocupação, modernização, família escrava, negros no pós-abolição, redes familiares, religião, cotidiano, vida material, relações de gênero, poder local, secas, mineração, identidades nos sertões baianos, entre outros temas.
Percebemos algumas questões importantes que podem ser levantadas pelo livro de Erivaldo Neves. Primeiro, a problemática do sertão, investigada não só pelos historiadores, mas também pela literatura e antropologia. Percebemos no exaustivo levantamento do autor, considerado “introdutório” pelo mesmo16 a crescente mudança que há entre o sertão pelo olhar estrangeiro, especialmente na colonização e no império, quando os produtores de textos são estranhos aos espaços objeto do discurso, e o sertão que fala de si, sobretudo no século XX, com destaque para a crescente lavra feita por historiadores oriundos dos sertões, caso do próprio Erivaldo Neves. Embora seja um dos temas fundamentais do pensamento nacional e há muita gente que ainda o aborda numa perspectiva exógena, inclusive autores que nasceram nas áreas consideradas sertanejas, a pesquisa de Erivaldo Neves parece indicar uma transição de uma identidade atribuída para uma identidade reivindicada. Quando a identificação de sertão e sertanejo é exógena, os sertanejos são simplórios, violentos, incivilizados – incivilizáveis para alguns autores -, exóticos, folclorizados e romantizados. Com a proliferação dessa identidade reivindicada, a fala de dentro do sertão aos poucos vai abandonando os estereótipos herdados dessa literatura anterior, sobretudo os euclidianos, e vai ganhando complexidade, sofisticação, contradição e conflito. O final da linha é o desaparecimento do sertão e a multiplicação dos sertões cada vez menos sertanejos e mais barranqueiros, catingueiros, brejeiros, alto-sertanejos, geraizeiros, quilombolas, serranos, chapadenses entre outros. O trabalho particular, sobre o pensamento histórico acerca dos sertões baianos, permite uma formulação de uma hipótese geral, a transição entre a identidade atribuída ao outro pelo olhar estrangeiro para uma identidade reivindicada – que reconstrói-se numa diversidade de formas a partir das atualizações dos conflitos – pelos olhares de dentro do sertão.
Essa transição ocorre, na hipótese aqui levantada a partir da análise de Crônica, memória e história de Erivaldo Fagundes Neves, pela apropriação por parte dos sujeitos internos aos sertões, inicialmente das classes médias e abastadas, posteriormente das classes subalternas, daquilo que Johann Michel chama de tecnologias discursivas de si17.
A partir de uma síntese das contribuições de Michel Foucault e Paul Ricoeur, Michel define a tecnologia discursiva de si como a capacidade de formulação de uma identidade narrativa individual ou coletiva a partir de uma configuração poética que inova ao mesmo tempo em que se utiliza do acervo cultural disponível para o autor enquanto leitor e agente do mundo. Daí a importância decrescente de Euclides da Cunha para as identidades narrativas reivindicadas que em algum momento, em alguns textos e autores, reproduzem estereótipos, mas devido a influências externas, terminam por criticá-los e expurgá-los das definições de sertão. Erivaldo Neves destaca que as primeiras elaborações do século XX eram influenciadas pela retórica euclidiana, mas ela perde relevo à medida em que as novas produções, sobretudo as acadêmica, se ancoram em conceitos, teorias e metodologias produzidas na disciplina da história e em outros campos do conhecimento, o que contribui para a complexificação e sofisticação dos sertões como objeto de estudo histórico. Com isso não pretendemos que a produção historiográfica seja apenas entendida como uma expressão identitária. Ao contrário, é a história que é demandada pela identidade narrativa de modo que aquela lhe fundamente, isso ocorre tanto no sentido de demandar um modo de escrita, quanto na própria interpretação realizada na leitura da obra. Quando poucos podiam escrever e dispunham de poder de representar os outros que não podiam ser representados, aí tínhamos uma identidade atribuída no sentido de estabelecimento de características homogêneas a grande grupo humano. Com o desenvolvimentismo da historiografia e com a democratização da escrita, as novas produções historiográficas implodiram a identidade do sertão e do sertanejo. No lugar do idêntico, estabeleceram o diverso e substituíram o local pelo universal, o singular pela pluralidade. Ao mesmo tempo, negar a existência de vínculos entre essa produção historiográfica interna dos sertões e processos de luta e resistência que passam pela reivindicação de identidades e busca por reconhecimento – não mais representadas por outros, mas capazes de se representar – seria ocultar uma das forças motrizes da demanda por novas histórias que são as transformações do presente que exigem novas narrativas.
É possível, graças à tipologia da pesquisa de Neves, perceber como mesmo os primeiros sertanejos que produzem isso que chamamos de identidade reivindicada, já no século XX, como Geraldo Rocha, Anísio Teixeira ou Wilson Lins, eram oriundos dos grupos dominantes daquilo que em outro estudo Neves chamou de “oligarquia fardada”18
Com o passar dos anos, acessam ao universo da produção escrita da história novos sujeitos, de classe média rural e urbana, mas também das classes populares. A sofisticação e diversificação da escrita sobre o passado dos sertões vem também da mudança dos sujeitos que a escrevem, agora destacando-se mulheres, mas também filhos e netos dos vaqueiros, remeiros, quilombolas, trabalhadores rurais e das pequenas cidades e vilas.
O livro também instiga uma reflexão conceitual importante. Neves define a crônica como “registro de fatos em ordem cronológica”, recurso muito utilizada no período colonial para a produção de conhecimentos sobre os sertões para fins políticos e administrativos da Coroa19
Ao contrário, memória já é um conceito mais problemático. Neves a define como “capacidade intelectual fundamentada em um conhecimento que permite sistematizar informações, através das quais se podem atualizar impressões ou saberes do passado, tanto individuais quanto coletivos”.20
A dificuldade reside em utilizar o termo que define uma faculdade mental para designar um gênero de escrita da história distinto da história ou historiografia – mais técnicas e institucionalizadas, digamos assim – e da crônica. O uso do termo memorialista, para designar um escritor que produz textos que não são nem história, nem crônica, dá uma definição mais precisa que a utilização de memória para o gênero, mas não exclui a problemática de encaixar textos individuais na tipologia. Para textos distanciados no tempo, podemos perceber principalmente um registro escrito do passado a partir de uma memória individual e/ou coletiva, sem esmero técnico ou metodológico com pretensões objetivas para além da verdade do testemunho, mas o mesmo não pode ser dito para textos produzidos mais recentemente. Com o surgimento de um campo disciplinar da história e um mercado editorial de nicho, muitos escritores que preocupam-se em registrar suas histórias municipais a partir de uma memória individual e coletiva terminam por ler de forma assistemática obras históricas e realizarem pesquisas documentais. Se esses textos não podem ser considerados historiografia devido à ausência do crivo dos pares – geralmente os memorialistas lançam obras com edição do autor – por meio de bancas, congressos ou avaliação em periódicos ou por pareceristas anônimos, não é possível dizer que estes alguns desses textos não obedecem a certa “operação historiográfica”, já que há pesquisa de documentos, confronto de testemunhos e uso de metodologias ou conceitos explicativos. Daí, talvez, tratarem-se de memórias híbridas com a história acadêmica, para além de testemunhos ou registros de memórias comunitárias compartilhadas – ainda que selecionadas às conveniências dos interesses e da visão de mundo do autor. Todavia, isso trata-se apenas de um levantamento de hipótese a partir da leitura do livro de Neves e não da identificação de uma lacuna. Apenas pesquisas mais pormenorizadas desse gênero poderiam confirmar essa afirmação. Outra dificuldade adicional é que o termo memória, utilizado para gênero de escrita, tem o problema de não distinguir um registro de testemunho pessoal ou familiar de uma pretensa história municipal.
Memória, crônica e história local de Erivaldo Fagundes Neves é uma contribuição relevante para a história da historiografia e obra que deve se tornar referência para pesquisadores dos mais diversos campos que tenham os sertões baianos – ou fronteiriços – como objeto de estudo.
Notas
2 NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na crise da modernidade. Feira de Santana: UEFS; Salvador: Arcádia, 2002.
3 NEVES, Erivaldo Fagundes. Narrativa e interpretação: da corografia à história regional e local. In ARAÚJO, Delmar Alves de; NEVES, Erivaldo Fagundes; SENNA, Ronaldo de Salles. Bambúrrios e quimeras (olhares sobre Lençóis: narrativa de garimpos e interpretações da cultura. Feira de Santana: UEFS, 2002.
4 NEVES, Erivaldo Fagundes. Escravidão, pecuária e policultura: Alto Sertão da Bahia, século XIX. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012 , ocupação territorial5 5 NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador: EDUFBA, 2005. , caminhos coloniais6 6 NEVES, Erivaldo Fagundes; MIGUEL, Antonieta (org.). Caminhos do sertão: ocupação territorial, sistema viário e intercâmbios coloniais nos sertões da Bahia. Salvador: Arcádia, 2007.
7 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). 2 ed. Revista e ampliada. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS Editora, 2008. , cultura8
8 NEVES, Erivaldo Fagundes. O Barroco: substrato cultural da colonização. Politeia: História e sociedade. Vitória da Conquista, 2007, vol. 7, n. 1. , sertão9
9 NEVES, Erivaldo Fagundes. Sertão recôndito, polissêmico e controvertido. KURRY, Lorelai Brilhante (org.). Sertões adentro: viagens nas caatingas séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobson, 2012 , história da família, pecuária10
10 NEVES, Erivaldo Fagundes (org.). Sertões da Bahia: formação social, desenvolvimento econômico, evolução política e diversidade cultural. Salvador: Arcádia, 2011. e historiografia11
11 NEVES, Erivaldo Fagundes. Perspectivas historiográficas baianas: esboço preliminar de elaborações recentes e tendências hodiernas de escrita da História da Bahia. In: OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos (org.); REIS, Isabel Cristina Ferreira dos (org.). História regional e local: discussões e práticas. Salvador: Quarteto, 2010.
12 NEVES, Crônica, memória e história, op. cit. p. 100.
13 IGHB – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Anais do Primeiro Congresso de História da Bahia. Salvador: Tipografia Manú Editora Ltda, 1955. 5 volumes.
14 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: Edição do IBGE, 1957. 36 volumes.
15 NEVES, op. cit. p. 211.
16 NEVES, op. cit. p. 15,
17 MICHEL, Johann. Sociologie du soi – essais d’herméneutique appliquée. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2012. p. 60.
18 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). op. cit. .
19 NEVES, Crônica, memória e história, op. cit. p. 18 .
20 NEVES, Crônica, memória e história, op. cit. p. 16.
Flavio Dantas Martins – Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: flaviusdantas@gmail.com.