História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) | Glaydson José da Silva

Glaydson José da Silva é historiador com doutorado pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente é professor da Universidade Federal de São Paulo e diretor associado do Centro de Estudos e Documentação do Pensamento Antigo Clássico, Helenístico e de sua Posteridade Histórica (CPA/UNICAMP). Também é avaliador do Ministério da Educação para fins de reconhecimento de cursos de História. Seus principais temas de pesquisa concentram-se nas relações entre antiguidade e modernidade, nas tradições interpretativas em História Antiga, direcionando para o estudo das leituras acerca do mundo antigo no caso da França contemporânea e extremas direitas.

O pesquisador possui várias publicações dentre artigos e capítulos de livros e participou da organização de diversas obras. O livro História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944), de 2007, recebeu auxílio publicação da FAPESP e trata-se de uma versão revisada de sua tese de doutorado defendida em março de 2005 sob orientação do Professor Doutor Pedro Paulo Funari. A partir de sua leitura notamos como o historiador constrói uma História crítica e analisa como a modernidade pode usar o passado. O estudo das apropriações da Antiguidade no regime de Vichy é a maneira pela qual o autor nos evidencia isso.

O livro está dividido, além da introdução e conclusão, em quatro capítulos, cada um com duas partes e iniciando com um breve prólogo que contextualiza o tema a ser tratado. O assunto geral é o regime de Vichy e o objeto de análise o passado gaulês, romano e galo-romano usado para justificar a dominação alemã e o colaboracionismo francês com a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. As fontes são materiais da época, como livros acadêmicos, livros de vulgarização científica, manuais de História e de Arqueologia, jornais, revistas, discursos, textos oficiais, correspondências, cartazes, moedas e outros.

Como os capítulos iniciam com um pequeno prólogo, possuem bastante autonomia em relação à totalidade da obra. No primeiro Silva realiza uma discussão teórica acerca da instrumentalização do passado e defende ser preciso percebermos que na historiografia do mundo antigo, as imagens e lógicas históricas são produzidas dentro de tradições interpretativas atreladas, mais ou menos, ao contemporâneo.

Nesse capítulo o autor também discute as noções de herança e legado para explicar como se constituem os mitos fundadores, os quais perpetuam valores e imagens da vida nacional, objetivando criar identidades pelo uso da ideia de permanência. Dessa forma, com o intuito de resgatar a memória nacional, a História e a Arqueologia assumem um papel importante: estão a serviço do Estado e permitem qual tipo de memória se pode (re)construir. Essa tradição de apropriação do passado em prol do governo assume dimensões gigantescas no século XIX e continua ainda no XX, principalmente no contexto das duas grandes guerras – do qual Silva retira seus exemplos de instrumentalização do passado, a Itália fascista e a Alemanha nazista.

Silva ainda trata do caso francês a partir do nascimento do herói Vercingetórix na escrita da História francesa após a sua Revolução. O autor reflete sobre como na França a disciplina histórica está atrelada a memórias construídas durante a elaboração da identidade nacional e, também, constitui-se em uma História mitológica – afinal, cria mitos de origem – encontrada principalmente na escola, espaço ideal de divulgação e popularização, e possuindo na política sua primeira finalidade já que são controladas por discursos desse gênero.

O mito consolida-se a partir de 1814 e 1815 com a invasão da França por prussianos e cossacos. Nesse contexto cresce o apelo a Vercingetórix, líder gaulês vencido pelos romanos na antiguidade, que simboliza a luta pela liberdade e é um verdadeiro herói. Segundo o autor, os historiadores e escritores colocam-no em evidência para retornarem a oposição entre romanos e gauleses e, assim, justificar as lutas políticas da época. Novamente em 1870 a França é derrotada pelos alemães e a imagem de Vercingetórix, que se rende diante de César, mas sem ser humilhado, preserva para os republicanos algo essencial: a honra da França vencida. E, também, na primeira grande guerra a imagem do herói gaulês aparece.

No segundo capítulo “A Antiguidade a serviço da colaboração: nas trilhas da memória, a reescrita da História da França dominada (1940-1944)” Glaydson José da Silva contextualiza no prólogo o momento histórico estudado, fornecendo informações importantes sobre o debate governamental francês acerca da derrota. Silva também nos explica o que é a Revolução Nacional (R.N.) e como Vichy torna-se um Estado autoritário, explanando o papel da propaganda na sua legitimação.

O autor termina tal introdução do segundo capítulo nos explicando a importância de seu estudo. A pesquisa desse período da França até as décadas de 1970 e 1980 eram poucas, mas desde então isso mudou. Contudo, questões sobre o colaboracionismo e o estatuto da História e da Arqueologia durante o Regime ainda não foram muito trabalhadas. Dessa maneira, seu livro pretende contribuir com esse domínio tão pouco explorado.

Na continuidade da leitura, observamos o retorno do mito de Vercingentórix. O autor inicia a primeira parte do capítulo explicando o conceito de memória coletiva que surge com os estudos de Maurice Halbwachs e a partir do qual reflete sobre a ideia de um patrimônio histórico e cultural comum aos franceses, amparando a R.N. e o Regime de Vichy. A memória coletiva proporciona as bases necessárias à compreensão da derrota, à justificativa da dominação e à colaboração com estrangeiros.

O patrimônio histórico e cultural comum é buscado por meio da História e da Arqueologia a serviço de um Estado autocrático e, por isso, estão comprometidas com ideologias legitimadoras, pois o governo propõe uma releitura das origens coletivas que atende aos seus próprios interesses. Essa interpretação do passado é baseada em uma ideologia política de fundo revisionista: procura difundir a ideia “de que os gauleses não foram vencidos pelos romanos, mas, sim, beneficiados pela inserção da Gália nos domínios do Império, e que da união desses dois povos nasceram os franceses.” (SILVA, 2007: 91).

A justificativa da dominação tanto romana como alemã, em épocas diferentes, então, é fundamentada em uma ideologia da derrota, ou seja, no entendimento de que os gauleses e depois franceses (mesmo sendo povos brilhantes) mereciam o castigo da ocupação por causa de seus desvios disciplinares. Dessa forma, como nos mostra Silva, a recuperação do passado gaulês para a propaganda de Vichy possui dois aspectos: o de homenagem aos gauleses por sua luta heróica contra as legiões de César e pelo reconhecimento da superioridade romana. E com essa noção de que a associação com o outro (romano ou alemão) propicia o avanço e o progresso, o colaboracionismo também se justifica.

O próximo capítulo do livro nos traz o caso específico de Jérôme Carcopino, historiador, arqueólogo e epigrafista do mundo romano, secretário do Estado e ministro da educação entre 1941 e 1942. No prólogo observamos a preocupação do autor em explicar a discussão que existe em torno desse estudioso em saber se teria sido mais um intelectual do que um político ou se o contrário. Para Silva, sua função no governo não justifica suas escolhas na elaboração do passado, porque a própria função é uma escolha e o importante é notarmos as interfaces entre o historiador e o político na figura de Carcopino. As escolhas desse pesquisador constroem uma História política factual focada nos grandes homens do passado, o que o autor percebe a partir de trechos dos seus escritos. Nesses escritos, também notamos a emissão de juízos de valor a respeito de indivíduos, situações e momentos históricos.

Com essas considerações sobre Carcopino, o autor passa a analisar a partir de Stéphane Corcy-Bebray e outros autores, sua inserção no cenário político vichysta. Carcopino é favorável ao armistício e evolve-se com o colaboracionismo. A partir de 1940 recebe diversas nomeações, como diretor da École Normale Supérieure onde empreende grande reforma: reforço do poder do diretor, exclusão das mulheres e dos judeus, entre outros; ao mesmo tempo em que defende junto ao Regime a manutenção de bolsas para alunos judeus e de advogar em favor de seus amigos e colegas do meio universitário, Mare Bloch por exemplo. É a partir desse estudo da relação de Carcopino com o poder que Silva tece algumas considerações acerca da aproximação de suas obras políticas com as suas obras acadêmicas e realiza uma importe reflexão sobre qual é o lugar dos historiadores da Antiguidade, um dos assuntos abordados no próximo e último capítulo.

No prólogo do quarto capítulo, o autor desenvolve o que é extrema direita e o que é a extrema direita francesa, tratando do caso específico da França no pós-guerra, a qual teria esses grupos de radicalização política como herdeiros do Regime de Vichy. De acordo com o autor, elas são ditas como Nouvelle Droite e são uma resposta ao fracionamento da direita, além de estarem ligadas a uma prática historiográfica na qual a História Antiga é comprometida com ideologias de justificação e legitimação de direitos, desigualdades raciais e de grupo social.

Na sequência, Glaydson José da Silva nos traz as discussões mais recentes, da nossa contemporaneidade, em torno do F.N. e a luta contra os imigrantes e a violência. Para o partido, a imigração se inscreve no mais atual aspecto dos debates identitários na França. Porque gera problemas como: a falta de segurança pública, desemprego, saúde e decadência moral; ocasionando uma noção de crise social advinda da perda de identidade. Portanto, o F.N. defende uma delimitação de fronteiras sólidas, a qual exclua os países não europeus e assegure a proteção contra os imigrantes. A noção tida é, por exemplo, de que Roma caiu ao se unir com os povos instalados aos poucos no Império.

Segundo o autor, atualmente o mito gaulês continua sendo veementemente defendido pelo F.N. A sua juventude nacionalista e racista, um exemplo, orgulha-se em exaltar suas origens gaulesas na internet, em camisetas, prospectos, letras de músicas e outros. E esse uso que o partido faz do passado ainda é pouco estudado. Por isso, Silva propõe a pesquisa de historiadores do mundo antigo nesse campo, combatendo o racismo, o elitismo, a xenofobia e outros discursos característicos de partidos como o F.N. Dessa maneira, convida o estudioso da antiguidade a assumir uma pesquisa, em nossa opinião, de muita relevância, mostrando-nos, com um exemplo bastante atual, a aproximação dos estudos antigos com discursos políticos e ideológicos. Por fim, no fechamento do livro, Silva nos deixa a pergunta: qual lugar a antiguidade ocupa em nossas sociedades?

Essa questão nos permite pensar sobre o ofício do historiador, principalmente o do mundo antigo, e se encaixa nas recentes discussões sobre o presentismo da História. A importância de indagar acerca desse lugar nos permite notar a utilização da História a serviço de certa lógica justificadora e legitimadora de questões identitárias, nacionais, raciais e políticas. Além de nos mostrar a História como um discurso do passado que representa as perspectivas nas quais foi construído.

No Brasil, estudos como esse de Glaydson José da Silva estão, aos poucos, ganhando espaço com a formação de grupos de pesquisa dentro do tema da instrumentalização do passado. Um exemplo é o grupo de pesquisa “Antiguidade e Modernidade: História Antiga e Usos do Passado” formado nesse ano de 2010 e cujos líderes são o próprio Silva e a Professora Doutora Renata Senna Garraffoni.

Mesmo que tenhamos resumido a obra História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) e tecido algumas considerações sobre a sua leitura, destacamos somente aquilo que mais nos interessou. O livro todo possui outras explanações e questionamentos, porém, certamente, a indagação principal é sobre o lugar dos estudos antigos. Para refletir mais profundamente no assunto recomendamos sua leitura integral que, como comenta o Professor Doutor Leandro Karnal na apresentação, não é destinado apenas aos especialistas em Antiguidade, mas “a todos que manifestem alguma preocupação sobre os usos e abusos do passado histórico.” (SILVA, 2007: 16).

Camilla Miranda Martins –  Bolsista PIBIC/CNPq.


SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007. Resenha de: MARTINS, Camilla Miranda. Cadernos de Clio. Curitiba, v.2, p.295-304, 2011.Acessar publicação original [DR]