História das sensibilidades e das emoções / História – Questões & Debates / 2013

Em 2012, o Programa de Pós-Graduação em História foi contemplado pelo Edital de Apoio aos Programas de Pós-Graduação Notas 5 e 6 da Fundação Araucária, agência de fomento à pesquisa e tecnologia do Estado do Paraná. O projeto contemplado, Sentimentos na História, resulta de uma experiência acadêmica coletiva originada com a criação, em 2008, da Linha de Pesquisa Intersubjetividade e Pluralidade: Reflexão e Sentimentos na História, na qual temas como as relações de gênero, o corpo, os gestos, as sensibilidades, as paixões, os sentimentos morais e religiosos e os sentimentos na política integram uma pauta de investimentos teóricos e metodológicos a respeito das subjetividades e da configuração das relações intersubjetivas.

O interesse dos historiadores pelos sentimentos e afetos é relativamente recente. Esta aproximação tardia do tema está relacionada às origens oitocentistas do conhecimento histórico enquanto saber científico, objetivo, neutro e imparcial. Não podemos olvidar o fato de que a história nasceu epistemologicamente como História Política, entendida naquele contexto como a narrativa do Estado e dos homens notáveis, especialmente aqueles ligados ao exercício do poder político. Ciência e política se constituíram prática e discursivamente no século XIX enquanto domínios “elevados” do conhecimento e da ação racional, imunes aos acontecimentos “baixos” do cotidiano, das paixões, dos sentimentos e das diferenças. Ciência e política eram, narrativa e politicamente, homogeneidades, verdades que se revelavam à luz da razão, do método e da disciplina encarnados em sujeitos idealmente sem marcas sociais, os estadistas e cientistas ou os historiadores e cientistas políticos.

Apesar da resistência dos historiadores, o terreno começou a ser preparado antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, com a guinada epistemológica dos Annales e o fértil debate historiográfico com a sociologia, a antropologia, a psicologia, os estudos sobre religião e a linguística, bem como o impacto do pensamento e da crítica psicanalítica. Mesmo não tratando especificamente dos sentimentos, nota-se a construção de uma nova perspectiva sobre o sensível, o imaginário, o maravilhoso, o aparentemente insignificante em trabalhos como Os reis taumaturgos, de Marc Bloch, e O problema da descrença no século XVI: a religião de Rabelais, de Lucien Febvre.

A partir das décadas de 1950 e 1960, outras abordagens históricas vão contribuir de maneira significativa para os futuros estudos sobre os sentimentos, como a Demografia Histórica e a História da Família e suas descobertas sobre a sexualidade e as sensibilidades do passado em relação ao casamento, às crianças e à morte. A história da sexualidade e a história das mulheres, por sua vez, lançaram novas luzes sobre práticas, representações e sensibilidades envolvendo grupos sociais marginalizados e destituídos de memória. Contudo, é importante salientar que estas abordagens não problematizaram, nem do ponto de vista teórico, nem empírico, os sentimentos. Esta nova frente só começou a ser aberta por historiadores ligados à Nova História, como George Duby e seus importantes estudos sobre o amor, Elizabeth Badinter e a reflexão em torno da desnaturalização do amor materno e Anne Vincent-Buffault e seu estudo sobre as sensibilidades e emoções.[1] É notável nos estudos mencionados a escolha pelos sentimentos afetivos e pelas sensibilidades. O ódio, o medo, a ira, sentimentos de pertencimento / exclusão, continuaram a ser tratados como sintomas da erupção do irracional e da anomia, numa linha analítica herdeira do pensamento weberiano e da Escola de Frankfurt.

Poderíamos multiplicar os exemplos de pesquisas e publicações que vêm sendo estimuladas por essa corrente historiográfica e mesmo assim estaríamos cometendo injustiça para com diversos outros autores que perseguem estas mesmas orientações teórico-metodológicas. Trata- -se de um campo vasto e aberto à investigação histórica. Sentimentos e emoções, mais do que objetos particulares e restritos a formas ou tipos, são experiências e percepções que se conectam à dimensão afetiva e sensível da vida. Participam de nossa organização psíquica como indivíduos na mesma proporção que participam da vida social, definindo identidades, estabelecendo ou rompendo vínculos sociais, criando ou negando afinidades, propiciando interação e reconhecimento pelos outros ou criando barreiras intransponíveis por intermédio de suas manifestações mais violentas, como a intolerância e o ódio.

Inspirados nas possibilidades analíticas abertas pelas pesquisas sobre sentimentos, emoções e sensibilidades, apresentamos o dossiê “História das sensibilidades e das emoções”, contando com a colaboração de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros e estrangeiros. O dossiê apresenta seis artigos. O primeiro é de autoria de Claudine Haroche, que faz uma provocativa discussão sobre os fundamentos da percepção, dos sentimentos e das maneiras de sentir, dialogando com filósofos, sociólogos e pensadores da modernidade e das paisagens sociais e culturais da pós-modernidade. O segundo artigo é de Christophe Prochasson, tratando das paixões políticas conforme se configuraram num dos temas centrais da crítica e do fazer historiográfico de François Furet. O terceiro artigo é do sociólogo Mauro Koury, discorrendo sobre a contribuição de Norbert Elias e de sua obra para a constituição de uma sociologia das emoções. Denise Sant’Anna escreve um artigo sobre tema contemporâneo de grande visibilidade ao tratar das relações entre a obesidade e a depressão, propondo uma análise em torno das emoções tristes e do processo de medicalização das emoções. O artigo de Maria Teresa Santos Cunha nos leva para o terreno das emoções cristalizadas pela escrita de si de jovens professoras, registradas em cartas e diários. O último artigo do dossiê, de Ana Paula Vosne Martins, analisa o processo de naturalização e feminilização da bondade.

Esse número da Revista História: Questões & Debates conta também com a sessão de artigos. O primeiro artigo, de Claudia Beltrão da Rosa, trata dos rituais das fundações de colônias latinas entre 334 e 218 a.C. com a finalidade de compreender os significados dos espaços na religião e na legislação romanas. O artigo de Igor Teixeira propõe uma reflexão em torno da categoria tempo, retomando a Legenda Áurea e a narrativa hagiográfica medieval. Deslocando o eixo cultural para o Oriente Árabe, José Henrique Rollo Gonçalves analisa a administração do Egito por uma dinastia turca entre 869 e 905, em pleno domínio árabe, cujos efeitos políticos se fizeram sentir até o século XIX. O artigo de Laércio José Pavanello e de Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes propõe uma discussão em torno do patrimônio cultural, da identidade e da memória a partir da noção de patrimônio comercial, tomando como referência os armazéns de secos e molhados da cidade de Joinville, Santa Catarina.

Nota

1. DUBY, George. Idade Média, idade dos homens; do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado. O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985; VINCENT-BUFFAULT, Anne. História das lágrimas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Ana Paula Vosne Martins


MARTINS, Ana Paula Vosne. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.59, n.2, jul./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Parto e maternidade / História – Questões & Debates / 2007

Desde a publicação dos livros de Simone de Beauvoir (O segundo sexo, 1949) e de Betty Friedan (Mística feminina, 1963), as relações entre os estudos feministas e a maternidade têm sido marcadas pela contradição e pela polêmica. Se o feminismo da primeira onda (finais do século XIX e primeiras décadas do século XX) foi majoritariamente maternalista – apesar de algumas vozes dissonantes –, o feminismo da segunda onda (1960-1970) dividiu-se em relação à maternidade. Ora explicada como uma experiência ética e valorizada, ora denunciada como uma peça fundamental da opressão feminina, sobre a maternidade não se pode dizer que pairou o silêncio ou a negligência intelectual, muito pelo contrário.

Entre as décadas de 1970 e 1980, multiplicaram-se os estudos sobre esse tema que abrangiam diferentes domínios das ciências humanas, o que resultou em artigos, livros e coletâneas nos quais a problematização da maternidade tinha entre seus objetivos criticar as interpretações históricas e deterministas, inserindo experiências como a sexualidade, a gravidez, o parto, a amamentação e a maternagem no terreno da cultura e da história. Esses estudos contribuíram para a desconstrução de verdades estabelecidas sobre o corpo feminino, bem como sobre temas espinhosos para o feminismo, como identidade e cultura femininas. As experiências do corpo, da reprodução, do nascimento e dos cuidados deixaram o terreno da biologia e dos instintos e adentraram no terreno das relações sociais, dos sistemas simbólicos e da dimensão temporal que possibilita pensar historicamente tais experiências.

As historiadoras têm contribuído para esse debate. A história da maternidade é um domínio relativamente recente, mas tem produzido vários trabalhos individuais e coletivos nos dois lados do Atlântico. As abordagens são bastante diversificadas, como a história social, a história cultural, a história política, mas também o recorte cronológico, com estudos que se inserem na longa duração e outros de recorte mais contemporâneo e conjuntural. O dossiê Parto e Maternidade, que apresentamos na revista História: Questões & Debates, visa contribuir com os estudos sobre essa temática numa perspectiva interdisciplinar e de maior amplitude temporal. Instituição que presta serviços de atendimento a famílias em dificuldades, localizada na ilha d’Yeu (França). Fernanda analisa especificamente o que significam a gravidez e o parto para as mulheres que vivem nessa instituição.

Parto e maternidade são analisados neste dossiê como experiências que, para além da dimensão subjetiva – corporal e psicológica –, constituem pontos críticos de interseção do indivíduo e da sociedade, da racionalidade e dos sentimentos, das práticas sociais e das ideologias. Convidamos os leitores a compartilhar destas reflexões.

Neste número também contamos com três artigos que abordam questões referentes ao espaço urbano e à memória, além de práticas políticas e conhecimento. O artigo de Fernando Gaudereto Lamas aborda o contrato das entradas para as Minas Gerais no século XVIII, tanto sob a ótica administrativa quanto sob a econômica. O autor defende que um estudo sobre a ação dos contratadores esclarecerá as peculiaridades do sistema colonial português, bem como as particularidades da economia das Minas Gerais. Também sobre o século XVIII, o artigo de Clarete da Silva Paranhos analisa as Viagens filosóficas do naturalista João da Silva Feijó, correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa. A autora se debruça sobre o levantamento dos recursos naturais realizado pelo naturalista em viagem à Capitania do Ceará em 1799. Já o artigo de Edmilson Santos apresenta uma reflexão sobre os campos de várzea, como espaços urbanos de lazer popular.

Iniciamos com a tradução do artigo da historiadora italiana Claudia Pancino sobre a produção iconográfica dos fetos e nascituros desde a época dos anatomistas renascentistas até a contemporaneidade da transparência dos corpos pela tecnologia das imagens médicas. A autora nos mostra como se constrói a relação entre conhecimento e imaginário, levantando questões bastante instigantes sobre as relações entre o corpo materno e os fetos no processo de produção das imagens anatômicas.

Das imagens da vida e da morte, passamos para o artigo de Georgiane Garabely Heil Vázquez a respeito do aborto. A autora aborda essa questão a partir do conhecimento médico, da interpretação e das reações dos médicos a respeito das mulheres que por motivos diferentes tiveram que recorrer a essa prática para interromper uma gravidez indesejada, senão impossível, para aquele momento de suas vidas.

O artigo escrito pelas pesquisadoras do Instituto de Saúde de São Paulo e da PUCSP aborda a temática do parto e da maternidade através da profissão exercida pelas parteiras diplomadas que atuaram em São Paulo entre 1878 e 1920. Esse artigo é também uma contribuição para a historiografia da imigração, por divulgar fontes pouco conhecidas sobre as parteiras estrangeiras que exerceram seu ofício no país.

As relações entre médicos e mães são o tema do artigo de Ana Laura Godinho Lima, que analisa os manuais de puericultura escritos pelos médicos brasileiros na primeira metade do século XX com o intuito de ensinar as mães a bem cuidar dos filhos sob a égide do saber médico-higienista da puericultura. Terreno de conflitos, pois de um lado está o saber médico amparado nos conhecimentos das ciências biológicas; de outro lado, as práticas e os saberes femininos colocados em suspeição e mesmo condenados pelos pediatras. Desses conflitos, Ana Laura nos apresenta o esforço de aculturação empreendido pelos médicos e seus manuais de bem cuidar das crianças.

A educação também é o tema do artigo de Maria Simone Vione Schwengber. Fundamentada nas contribuições teóricas do pós-estruturalismo, a autora analisa o processo de educação dos corpos grávidos. Utilizando como fonte principal a revista Pais & Filhos no período de 1968 a 2004, Maria Simone estuda os processos de subjetivação através do que se tem denominado de politização da maternidade.

Fechando este dossiê, temos o artigo de Fernanda Bittencourt Ribeiro, no qual são analisados os dados de uma pesquisa etnográfica realizada numa

Ana Paula Vosne Martins – Organizadora do dossiê.


MARTINS, Ana Paula Vosne. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.47, n.2, jul./dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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