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Questões metodológicas em manualística / Revista Brasileira de História da Educação / 2020
Os manuais escolares ou livros de textos se constituem como uma fonte relevante para a investigação histórico-educativa desde que a historiografia da educação pôs seu foco na cultura escolar, processo que recorre, sobretudo, as últimas três décadas. O livro escolar, desde então, tem sido considerado um dispositivo fundamental para a transmissão de saberes e para a organização das práticas escolares. Tendo isso por base, este dossiê pretende refletir sobre algumas questões metodológicas ao redor da manualística, um campo de pesquisa que tem produzido ao redor de si um corpus extenso de pesquisas de caráter histórico e didático, nem sempre atento às preocupações metodológicas. Assim, a partir dos trabalhos apresentados neste dossiê, buscamos divulgar as pesquisas ao redor da análise dos manuais escolares e livros de texto, possibilitando o diálogo com novas perspectivas metodológicas sobre essas fontes documentais. Propõe-se, igualmente, lançar um olhar sobre como as metodologias próprias das ciências sociais podem auxiliar na análise e nos questionamentos sobre os processos históricos-educativos que têm os manuais escolares objetos e fontes de pesquisa privilegiados.
Por manualística entendemos um campo de pesquisa que acolhe o livro escolar como objeto de estudo em suas diversas frentes analíticas e epistemológicas. Escolano (1998, 2013) define a manualística como o campo de conhecimento que pesquisa os manuais escolares por meio de diferentes enfoques e perspectivas, desde sua dinâmica interna (que perpassa o estudo do manual como textualidade – estrutura, gênero, formatos, linguagens, emoções etc. – até os formatos transponíveis pelo hipertexto na era digital), passando pelas suas formas de produção e utilização no âmbito histórico-educativo. Pensamos que a manualística se converteu numa linha de trabalho que vem ganhando fôlego na pesquisa histórico-educativa iberoamericana e europeia, como ressaltam os trabalhos de Mahamud e Badanelli (2016) e Martinez e Rubio (2018).
Reflexo desse processo, este dossiê surgiu a partir das discussões realizadas no painel ‘Avanços Metodológicos na pesquisa histórico-educativa com livros escolares’, realizado junto ao Congresso Iberoamericano de História da Educação Latino Americana em Montevidéu / Uruguai em 2018. Esta parceria foi inicialmente uma idealização do Centro de Investigação Manuais Escolares – MANES, sediado na Faculdade de Educação da Universidad Nacional de Educación a Distancia – UNED (Madrid, Espanha) que desde mediados dos anos 1990 tem contribuído para a criação e ampliação de uma rede internacional de pesquisadores europeus e latinoamericanos dedicados ao estudo da manualística escolar. Cabe destacar que o dossiê se soma a outros trabalhos que têm como foco o estudo desse objeto a partir de uma vasta gama de olhares, desde aqueles que se detêm aos contextos de produção e recepção (Teive & Ossenbach, 2016), até dos que o analisam desde uma perspectiva cultural e social (Rocha & Somoza, 2012) e como fonte para a história da educação no contexto espanhol e brasileiro (Moreira & Munakata, 2017).
Ao todo o dossiê reúne cinco artigos advindos de três países (Brasil, Espanha e Argentina) e caracteriza a produção de uma rede de pesquisadores que tem como foco o estudo dos manuais escolares na ponte histórica entre a educação e as ciências sociais. Em muitos casos, os / as autores / as são pioneiros / as em seus países, pelo estudo desses artefatos culturais, e que se propõem neste dossiê apresentar, por meio de suas experiências de pesquisa, estratégias metodológicas para análise de manuais escolares e livros de texto.
Cabe destacar que ainda não há um consenso entre os pesquisadores sobre o conceito de ‘manual escolar’. Isso talvez ocorra pela diversidade de contextos nacionais em que essa fonte se faz presente, acrescenta-se ainda as múltiplas dimensões: linguística, política, educacional, cultural etc.; que dificulta ainda mais na precisão de um termo que dê conta de nomear esse artefato cultural; produto e produtor de culturas (Magalhães, 2011; Munakata, 2016; Galván, Martínez, & Lópes, 2016). Apesar disso, podemos apontar algumas características básicas do que pode ser considerado um manual escolar, tais como a intencionalidade do autor ou editor de ser expressamente voltado para o ensino escolar; sistematicidade e sequencialidade na exposição dos conteúdos; adequação para o trabalho pedagógico; estilo textual expositivo; combinação de imagem com texto; presença de recursos didáticos explícitos, como tabelas, quadros, exercícios etc.; regulamentação dos conteúdos segundo os planos de ensino oficial e fiscalização do Estado sobre a produção e circulação desses artefatos culturais (Badanelli, Mahamud, Milito, Ossenbach, & Somoza, 2009).
Os artigos que fazem parte deste dossiê apresentam diferentes nomenclaturas para definir o manual escolar: livro didático, livro escolar, livro de texto etc. Podemos considerar que há diferenças entre eles, principalmente se tivermos em conta as demandas dos diferentes níveis de ensino. O contexto da educação básica (ensino infantil, fundamental e médio) se difere da educação superior ou cursos profissionalizantes, assim o sufixo ‘didático’ e ‘escolar’ auxiliaria na definição do nível educativo. Embora, em alguns casos essas nomenclaturas são mais fluídas e tendem a considerar todas as denominações como sinônimos. A questão é que ainda precisamos avançar na construção de um vocábulo, no interior da manualística, que consiga caracterizar o objeto, auxiliando no seu desenvolvimento teórico e metodológico. É com esse intuito que passamos para a descrição dos trabalhos que compõem o dossiê.
O primeiro artigo intitulado ‘Proposta metodológica multimodal e interdisciplinar na pesquisa manualística’ de Kira Mahamud Angulo, professora do Departamento de História da Educação e Educação Comparada da UNED, propõe uma reflexão teórica sobre os manuais e livros de texto como documentos relevantes para a história da educação. Ao resgatar as discussões teóricas internacionais sobre a valorização dessas fontes, a autora nos apresenta uma trama narrativa que se desenvolve em três aspectos: o primeiro resgata e atualiza as reflexões teóricas e empíricas sobre o método na análise de manuais escolares; o segundo ressalta a relevância do tratamento metodológico dos livros de texto como documentos singulares e, por último, nos apresenta uma proposta metodológica multimodal, pois é constituída pelo reconhecimento de que existem diversos elementos materiais e simbólicos que estão presentes nesses documentos (imagens, emoções, narrativas, sentimentos, intenções etc.) e interdisciplinar, porque compreende que os diversos conhecimentos científicos (teórico e metodológico) podem ser mobilizados na análise dos livros e manuais escolares. Pensamos que a proposição metodológica abre caminho para a obtenção de informações sobre o manual escolar como fonte documental historiográfica, permitindo ampliar os horizontes da análise social, política e cultural desse objeto, bem como desvelar projetos de sociedade orquestrado por determinados agentes e instituições sociais, na formação e constituição dos Estados nacionais e de seus sistemas de ensino.
O segundo artigo denominado ‘Os livros didáticos da perspectiva da sociologia do conhecimento: uma proposição teórico-metodológica’ é de autoria de Simone Meucci, professora de Sociologia da Universidade Federal do Paraná (Brasil). Nele, a autora discute, num primeiro momento, o valor do livro didático como documento relevante para a compreensão dos processos de definição do trabalho intelectual na sociedade. Tal reflexão se atrela a sua experiência de pesquisa, que discute em diferentes momentos históricos, à produção de livros didáticos para o ensino da sociologia no Brasil. A autora nos convida a um olhar metodológico para analisar os livros escolares a partir da sociologia configuracional de Norbert Elias, delineando ações analíticas para a compreensão das diversas dimensões dos processos constitutivos de um campo de conhecimento, para o qual os manuais são destinados, tendo em vista as dinâmicas de fronteiras e seleção de conteúdos disciplinares para determinados contextos culturais e sociais.
Assim, a autora procura, por meio dessa proposta metodológica identificar três momentos dos quais denominam ‘sistematização, institucionalização e rotinização’. O primeiro refere-se ao processo de constituição e articulação entre produtores e receptores do conhecimento; o segundo ao delineamento de um campo de conhecimento e o terceiro a capacidade de manter a articulação dos agentes a estrutura organizacional estabelecida com o objetivo de possibilitar uma continuidade regular e estável ao campo do conhecimento. Além de detalhar cada um desses elementos, Simone Meucci aborda no decorrer do artigo, por meio do modelo teórico-metodológico, fontes, variáveis e proposições para analisar cada uma dessas etapas no estudo dos livros escolares.
Nesta mesma linha de proposição metodológica está o artigo de Marcelo Cigales, professor da Universidade de Brasília (UnB / Brasil) e Amurabi Oliveira, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC / Brasil), denominado ‘Aspectos metodológicos na análise de manuais escolares: uma perspectiva relacional’. Neste estudo, os autores discutem os avanços em relação à manualística, identificando no Brasil as pesquisas que se relacionam com o estudo dos manuais e livros escolares. Partem dos conceitos de Pierre Bourdieu na compreensão de que os manuais escolares estão atrelados à demanda de determinados campos sociais, como o político, cultural e científico que juntos dão forma ao campo educacional e, consequentemente, influenciam na produção dos manuais escolares. Nesse sentido, para os autores, para pesquisar os manuais escolares é preciso estar atento a três elementos: o primeiro é referente à constituição do campo educacional e às inúmeras disputas entre agentes sociais e ao capital simbólico no interior desse espaço social; o segundo volta-se ao interior do manual, onde se pode observar o conteúdo propriamente dito, assim como rede de relações sociais por meio de orelhas, agradecimentos, dedicatórias que também se vinculam à formação e disputa de determinados espaços sociais; e por fim, salientam que na pesquisa com livros escolares é preciso ir além da análise de conteúdo, possibilitando assim melhor compreensão da potencialidade heurística que tais fontes têm na análise histórico-educativa das sociedade modernas ocidentais.
O dossiê também contém dois artigos que abordam a iconografia dos manuais escolares. O primeiro é de autoria de Teresa Artieda, professora da Universidad Nacional del Nordeste, e denomina-se ‘Contribuições da antropologia visual na análise da leitura sobre povos indígenas’. ‘Ou de como diminuir os riscos de um estudo insular dos textos escolares’. Primeiramente, a autora argumenta a favor do uso do livro de texto como fonte primária para descrever certos processos no campo da história da educação. Entre outras coisas encontra no manual escolar uma fonte onde se pode observar indícios de formas de pensar em determinados temas, deixados pelos autores que os escreveram. Em um segundo momento, a autora faz menção para alguns procedimentos contextuais dos manuais escolares que possibilitam aproximações, entre outras coisas, entre os autores e autoras dos textos escolares e suas escolhas em relação à configuração ideológica dos manuais. Por fim, a última parte, são analisadas algumas imagens indígenas que contêm nos manuais analisados pela autora. Esta análise é realizada com apoio dos estudos dos especialistas sobre a prática de fotografar indígenas, localizada historicamente entre as décadas de 1860 até o início do século XX.
Por fim, o último artigo é de Ana Badanelli, professora do Departamento de História da Educação e Educação Comparada da UNED, onde é apresentada uma metodologia de análise para interpretar imagens e ilustrações presentes nos textos escolares editados na segunda metade do século XX até a primeira década do século XXI. No texto ‘As imagens e suas interpretações nos textos escolares espanhóis: uma proposta metodológica’, a autora propõe analisar quais os modos de interrelação entre as formas de representação e o conteúdo. O trabalho se centra no exame dos elementos e dos mecanismos postos nas imagens para transmitir conteúdos, valores, ideologias e crenças presentes nos manuais escolares. Assim, na primeira parte do artigo, Badanelli realiza uma revisão sobre os estudos históricos que utilizam as imagens como fonte primária, para então expor diferentes métodos de análise de imagens e fotografias, dos quais são utilizados tradicionalmente pela história da arte; por fim, a autora analisa diversas imagens escolhidas de diferentes manuais escolares com a intenção de validar e avaliar o método proposto.
Referências
BADANELLI, A., Mahamud, K., Milito, C., Ossenbach, G., & Somoza, M. (2009). Studying history on line, section: school textbooks: Lifelong Learning programme Erasmus. Bruselas, BE: European Commission. Recuperado de: https: / / www.academia.edu / 9171913 / Studying_History_On_Line._Section_Scho ol_Textbooks?auto=download
ESCOLANO, A. (2013). La manualística en España: dos décadas de investigación (1992-2011). In J. Meda & A. Badanelli (Ed.), La historia de la cultura escolar en Italia y en España: balances y perspectivas (p. 17-46). Macerata, IT: Edizione Universitá di Macerata.
ESCOLANO, A. (1998). La segunda generación de manuales escolares. In A. Escolano (Ed.), Historia ilustrada de libro escolar en España:de la posguerra a la reforma educativa (p. 19-48). Madrid, ES: Fundación Germán Sánchez Ruipérez.
GALVÁN, L., Martínez, L., & López, O. (Coord.). (2016). Más Allá del texto: autores, redes de saber y formación de lectores. Casa Chata, ME: Universidad Autónoma del Estado de Morelos. Centro de Investigación y Estudios Superiores en Antropología Social.
MAGALHÃES, J. (2011). O mural do tempo: manuais escolares em Portugal. Lisboa: PT: Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.
Mahamud, K., & Badanelli, A. M. (2016). Los contextos de transmisión y recepción de los manuales escolares: una vía de perfeccionamiento metodológico en manualística. História da Educação, 20(50), 29-48. Recuperado de: http: / / seer.ufrgs.br / index.php / asphe / article / view / 62455
MARTÍNEZ, J. C. B., & Rubio, J. C. C. (2018). Teoría y metodología de investigación sobre libros de texto: análisis didáctico de las actividades, las imágenes y los recursos digitales en la enseñanza de las Ciencias Sociales. Revista Brasileira de Educação, 23, e230082. Recuperado de: https: / / dx.doi.org / 10.1590 / s1413- 24782018230082
MOREIRA, K. H., Munakata, K. (Org.). (2017). Dossiê livros didáticos como fonte / objeto de pesquisa para a história da educação no Brasil e na Espanha. Revista Educação e Fronteiras.
MUNAKATA, K. (2016). O livro escolar como indício da cultura escolar. História da Educação,20(50), 119-138.
OSSENBACH, G., & Somoza, J. (Coord.). (2009). Los manuales escolares como fuente para la historia de la educación en América Latina. Madrid, ES: Universidad Nacional de Educación a Distancia.
ROCHA, H., & Somoza, J. (2012). Apresentação do dossiê Manuais escolares: múltiplas facetas de um objeto cultural. Pro-Posições, 23(3), 21-31.
TEIVE, G., & Ossenbach, G. (2016). Dossiê: contextos de recepção e interpretação dos manuais escolares. História da Educação, 20(50), 25-28.
Ana Badanelli – Doctora en Ciencias de la Educación por la Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), Madrid, Febrero 2004. Es Profesora Contratada Doctora del Departamento de Historia de la Educación y Educación Comparada de la Facultad de Educación de la UNED. Es Coordinadora General del “Centro de Investigación MANES” desde octubre del 2001. Su experiencia investigadora se ha centrado en el campo de la historia del currículo y de la cultura escolar, campos que se han consolidado como parte de la renovación de la Historia de la Educación en las últimas décadas. Sus estudios se centran fundamentalmente en dos fuentes: manuales escolares y cuadernos escolares, fuentes que favorecen la comprensión de la historia de la escuela. E-mail: abadanelli@edu.uned.es https: / / orcid.org / 0000-0001-5720-5531
Marcelo Cigales – Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Esteve no Centro de Investigação Manuais Escolares (MANES) da Universidad Nacional de Educación a Distancia (Madrid-Espanha) em 2017, realizando parte da pesquisa de doutoramento. É editor das revistas Café com Sociologia e dos Cadernos da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais. Suas pesquisas voltam-se para o Ensino da Sociologia, a Formação de Professores e a História dos manuais escolares de Sociologia no Brasil. E-mail: marcelo.cigales@unb.br http: / / orcid.org / 0000-0002-4320-5941
BADANELLI, Ana; CIGALES, Marcelo. Introdução. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v. 20, n. 1, 2020. Acessar publicação original [DR]