Manuais Escolares e Mídias Educativas: temas e perspectivas de investigação | Educar em Revista | 2019

O propósito fundamental deste dossiê é apresentar tendências e abordagens atuais na produção de conhecimento sobre manuais escolares e mídias educativas no Brasil e em outros países, evidenciando resultados de pesquisas, mas também identificando lacunas ou temas menos privilegiados que poderão orientar novas investigações. Igualmente, pretende-se contribuir com o debate teórico sobre a produção, circulação e apropriação de manuais e mídias educativas, sejam impressas ou digitais, em diferentes contextos da contemporaneidade.

Os manuais escolares são, reconhecidamente, materiais que afetam a vida cotidiana das escolas, de diferentes formas e em diferentes situações. No Brasil em especial, a existência de programas nacionais de avaliação e distribuição gratuita de livros didáticos impressos a todos os alunos de ensino fundamental e médio, na maior parte das disciplinas curriculares, coloca o debate sobre o tema como uma questão política e educativa da maior relevância. Essa particularidade justifica a necessidade e a pertinência de pesquisas no campo educacional. Leia Mais

Manuais escolares, mediações tecnológico-pedagógicas da Escola Moderna / Cadernos de História da Educação / 2018

São várias as locuções para designar os livros destinados ao uso escolar: manuais pedagógicos, livros didáticos, livros escolares, manuais didáticos etc. Todas elas versam sobre questões relativas ao ensino, mas também à aprendizagem, seja para formar professores ou alunos, por causa da cadência que tais livros imprimem à organização do trabalho didático. O que os caracterizam são a forma didática aliada aos conteúdos cognitivos, mas ambos se engendram para a constituição do livro escolar.

Esse dossiê reúne seis artigos, sendo cinco sobre livros escolares de teor diverso: três deles se referem a manuais de Pedagogia, destinados à formação de professores, dois se envolvem com manuais didáticos, destinados ao aluno, e referidos aos fundamentos de educação e à aprendizagem da escrita e da redação; e o último trata, com especificidade, de conteúdos relativos às “regras comuns para os professores das classes mais baixas” explicitadas no Ratio Studiorum.

Contemplam tais análises datações diversas: 1599, 1825, 1851, 1874, 1895, 1965 e os anos de 1980-1990. Por isso, seriam tais livros escolares expressões da ‘longa duração’ de F. Braudel (1902-1985), uma locução cunhada em 1949; porém, não se trata de afirmar que tais livros escolares sejam apenas expressões de um tempo longo, mas sim de considerálos como partícipes centrais da escola moderna enquanto mediações em diferentes tempos e espaços diversos.

Poderiam ser considerados como singularidades, mas também como mediações, representadas por esse dossiê, uma vez que estão presentes nos inúmeros colégios jesuítas pelo mundo afora, na Itália, na França, no Brasil e na Colômbia. São eles mediações representantes de uma história cruzada e mesmo interconectada em vista de sua disseminação e de sua circulação, o que permitiria a investigação comparada.

Nos objetos envolvidos pelos artigos desse dossiê, a escola se encontra protagonizada, seja pela orientação ao professor, seja pela destinação ao aluno. Ou seja, tal centralidade privilegia o que a escola deve fazer, seja pelo protagonismo de que goza o professor, seja pelas demarcações didáticas destinadas ao aluno.

Talvez o que esteja em foco seja mesmo o ensino, pois tais textos-objeto do dossiê contemplam conteúdos específicos inspirados em organização didática adequada, em linguagem acessível e em facilitação do entendimento. Quando tais livros escolares são denominados por manuais, sua origem se refere a manus, que em latim significa mão, o que designa que seja algo manuseável, que seja levado à mão do leitor aquilo que é essencial em termos de conhecimento.

Por isso, ao manual é inerente ser didático, isto é, apropriado ao ensino. Além disso, os conteúdos, por consequência, estão associados a uma dada disciplina, cuja raiz deriva do verbo latino, discěre, cujo significado é aprender, instruir, estudar. Em suma, o molde didático tem em vista a formação do professor, como é o caso dos manuais pedagógicos, mas não deixam os livros escolares de se constituírem como mediação tecnológico-pedagógica.

Como se observa, os livros escolares são inerentes à cultura ocidental, por exemplo, desde o Didascalicon, da Arte de Ler de Hugo de São Vitor (1096-1141), um manual destinado à orientação da leitura. Com certeza, estão presentes em tais livros escolares concepções de pedagogia e de educação, traduzidas em orientações antropológico-filosóficas, éticas, psicológicas, religiosas, políticas e metodológicas em relação ao ensino. Certamente, sob tais orientações estão as concepções de professor, de aluno, de ensino, de aprendizagem, didática etc.

O artigo de Mirella Dascenzo se conduz em torno do método indiciário e arqueológico, ao modo de Sherlock Holmes, através de um manual de Pedagogia destinado à formação de professores. Seu foco é a busca de indícios de tradições metodológicas e didáticas subjacentes, que possam revelar a circulação do saber pedagógico e didático destinado à referida formação dos docentes. O manual de Pedagogia em foco tem por título, Istruzioni di Mauricio Serra ao maestro della scuola normale del villaggio di Bunnanaro in Sardegna. Sua publicação é de 1825, antes portanto da unidade italiana, e está circunscrito ao período de medidas assumidas, a favor da instrução do povo, pelo Reino do Piemonte e da Sardenha antes da referida unidade. Em particular, tratava-se de induzir os párocos a coadjuvar o Estado em torno da empresa educativa. Em termos de resultados, argumenta a autora que as tradições metodológicodidáticas sedimentadas constituem o ‘ritmo lento da História’, a ‘longa duração’ de F. Braudel; além disso, o manual de Maurício Serra permite entrever experiência e sensibilidade didática amadurecida, além de revelar a possibilidade de complexa reconstrução da história comparada das culturas escolásticas e da educação.

O artigo de Karl Lorenz tem por objeto o Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (Método e Sistema de Estudos da Companhia de Jesus) aprovado em 1599. Tal documento, conforme o autor, tem por arquitetura as políticas, os procedimentos administrativos, os currículos e as práticas de ensino nas instituições educacionais jesuíticas na Europa e no exterior. Seu foco específico é o programa das letras humanas, cuja análise converge para o comportamento profissional do professor jesuíta responsável por sua implementação. Este trabalho identifica as ações que um jesuíta brasileiro teria demonstrado quando ensinando as humanidades em um colégio brasileiro nos séculos XVI e XVII. Suas ações e atividades pedagógicas são inferidas das Regras comuns para os professores das classes mais baixas explicitadas no Ratio Studiorum.

Ariclê Vechia tem por objeto o manual intitulado, Fundamentos da Educação, de Amaral Fontoura. Nas primeiras décadas do século XX, os educadores brasileiros se apropriaram de um conjunto de ideias de renovação educacional que convencionamos chamar de Escola Nova. As ideias “escolanovistas”, permeadas por diferentes vertentes de pensamento, nortearam as reformas educacionais e as práticas educativas até os anos 1960. Nesse programa de reformas educacionais, a publicação de livros foi uma das principais estratégias para divulgar valores e conhecimentos destinados a conformar a prática docente. A partir de meados dos anos 1940 houve uma renovação das preocupações com os aspectos teórico e metodológico da formação de professores, sendo que os manuais pedagógicos assumiram a função de guia para o professor. Alguns de seus autores eram “escolanovistas”, de vertente católica, como Amaral Fontoura, autor do manual, Fundamentos da Educação, a primeira obra da Coleção Biblioteca Didática Brasileira assinada por ele, e que teve grande aceitação nas escolas normais do país.

Sara Evelin Urrea Quintero e Elizabeth de Sá focalizam um manual de orientação ao professor rural colombiano, e visam explicitar a formação de professores expressa em Hacia una Escuela Nueva. Unidades de capacitación docente, por intermédio das representações de ruralidade e de professor rural nele presentes. Seu marco temporal está circunscrito aos anos de 1980-1990. Na verdade, Escuela Nueva é um programa educacional pensado especificamente para a zona rural colombiana, nascido nos anos de 1970 e vigente até os dias atuais. O presente artigo tem como objetivo analisar o manual para a formação dos professores, Hacia una Escuela Nueva. Unidades de capacitación docente, visando compreender as representações de ruralidade e de professor rural inscritos nele. Pela análise, foi possível perceber que o modelo pode se vincular ao ruralismo pedagógico, não só por utilizar como pano de fundo a vida camponesa, mas pelo seu caráter nomeadamente prático. Ditas pedagogias revelam representações sobre o rural que o compreendem como um cenário pacífico, harmonioso, livre de conflito e com uma forte presença do Estado.

Geraldo Inácio Filho tem por objeto o livro, Princípios de Composição: descripções, narrações, cartas, etc, de Guilherme do Prado, cuja edição é de 1895. Tal manual didático caracteriza-se por prescrições para o ensino da redação / composição na escola, e procura ressaltar como o autor assimilou conhecimentos que contribuíram para fazer da composição / redação um saber escolarizado. Em termos de resultados, o autor configura tal manual como expressão da Escola Nova. Em termos de contextualização, situa-se que a escola brasileira, no fim do século XIX, tinha como ponto forte o ensinar a ler, escrever e contar. E o manual em pauta refere-se justamente à arte de bem escrever. Por isso é atípico, posto que grande parcela dos até então estudados tratam da leitura e não da redação. Assim sendo, esse manual de composição permite perceber o interesse do autor em não se afastar do que se fazia e se pensava no mundo, ao mesmo tempo que levava em consideração nossa realidade nacional.

José Carlos Souza Araujo tem por foco dois manuais de Pedagogia: Cours Pratique de Pédagogie, de Jean-Baptiste Daligault, publicado na França em 1851 – e traduzido e publicado no Brasil, através de duas edições, uma em 1865 e a outra em 1874 – e o Compêndio de Pedagogia de Braulio Jayme Muniz Cordeiro, cuja publicação se deu no Brasil em 1874. O objeto dessa investigação é de caráter comparativo dos referidos manuais destinados à formação docente. O autor privilegia, nesse artigo, as concepções de Educação, ângulo teórico da Pedagogia, Ciência da Educação, a qual também compreendia a dimensão prática, envolta em questões relativas ao que se denominava então por Metodologia. Em termos de resultados, tais manuais foram enfocados como expressões singulares da Pedagogia da Essência, através da vertente humanista cristã, além de se encontrarem assentados em relações culturais, políticas, religiosas, educacionais e escolares. De um lado, tais manuais são singulares em relação à totalidade social, constituindo-se como compartilhantes do processo de formação e qualificação docente no Brasil, àquela altura ainda através das escolas de primeiras letras; de outro, em termos de totalidade social, estão radicados em concepções fundadas na Antropologia, na Ética, na Metafísica de caráter teológico, na Política, no Civismo, na Teologia, na Pedagogia, porém demarcadas pela visão de mundo cristã.

José Carlos Souza Araujo – Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Uberaba. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: jcaraujo.ufu@gmail.com

Geraldo Inácio Filho – Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, com estágio de pós-doutorado concluído na Universidade de Lisboa. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: gifilho@uol.com.br


ARAUJO, José Carlos Souza; INÁCIO FILHO, Geraldo. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 17, n.1, jan. / abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Contextos de recepção e interpretação dos manuais escolares: caminhos teórico-metodológicos para a investigação sobre os manuais escolares na perspectiva da cultura escolar / Revista História da Educação / 2016

Durante as últimas três décadas disseminou-se, entre os historiadores da educação, um forte interesse pelo funcionamento interno da escola e pela história cotidiana das práticas escolares, a qual se convencionou chamar de cultura escolar. Das fontes históricas disponíveis para adentrarmos no universo das práticas e fazeres escolares, uma das mais profícuas tem sido o conjunto dos livros utilizados nas escolas. Desde a origem dos sistemas nacionais de educação, no começo do século 19, os manuais escolares têm ocupado um lugar privilegiado nas salas de aula de todos os países. Daí resulta a sua indiscutível relevância para a História da Educação.

Todavia, apesar de serem uma fonte valiosa, a pesquisa histórica sobre os manuais escolares tem estado reduzida ao campo dos emissores das mensagens, sobretudo no que se refere ao currículo prescrito pelas políticas e pela legislação escolar. Convictas da importância de tais análises para o campo da manualística e da história do currículo escolar acredita-se, todavia, que elas pouco têm contribuído para o avanço das investigações no campo da história da cultura escolar, haja vista que os manuais escolares, por si sós, dificilmente poderão proporcionar informações acerca da complexa história da prática nas salas de aula, das mediações e transformações realizadas pelos professores do conteúdo dos manuais escolares e de como as mensagens veiculadas nas salas de aula foram recebidas e decodificadas pelos estudantes.

Nessa perspectiva, nos últimos anos, alguns centros de investigação na área da manualística, em diferentes países, trilham novos caminhos teóricos e metodológicos em busca de vestígios ou evidências de como os receptores das mensagens, professores ou alunos, recebem, trabalham e decodificam as mensagens dos textos escolares. Dentre estes se destaca o Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes – em Madrid, na Espanha, que por meio de incursões pela história cultural, história do currículo, etnohistória, etnografia, cultura escolar, história de vida e das instituições escolares tem buscado acercar-se não apenas dos contextos de produção e de incorporação, mas dos contextos de recepção e de interpretação de sentido dos manuais escolares, ou seja, dos seus usos.

Nessa sua busca tem sido bastante profícuo o entrecruzamento do manual com fontes primárias complementares, provenientes dos contextos de recepção, tais como os diferentes tipos de cadernos escolares, exames, folhas de exercícios, diários de mestres e de alunos, informes de inspeção, atas de reuniões pedagógicas etc., as quais podem auxiliar o pesquisador a compreender como os professores e a escola em geral reagem diante do currículo a eles apresentado, permitindo uma maior aproximação do uso e do consumo que deles se fizeram e, consequentemente, da cultura escolar.

Neste sentido, busca-se apresentar investigações realizadas recentemente pelas pesquisadoras do Manes, da Espanha, e por pesquisadores brasileiros ligados a este Centro, os quais têm experimentado, de uma forma ou de outra, estes novos caminhos teórico-metodológicos no sentido de aproximar-se dos contextos de recepção e interpretação dos manuais escolares.

Abrindo o dossiê, Kira Mahamud e Ana Maria Badanelli, em Los contextos de transmisión y recepción de los manuales escolares: una vía de perfeccionamiento metodológico en manualística, apresentam os novos caminhos metodológicos ensaiados pelo Manes no que se refere ao que as autoras chamam de segunda fase de vida do manual escolar: os contextos de transmissão e de recepção. Nesse sentido, destacam a existência multicontextualizada do manual e os diferentes contextos de transmissão e de recepção: de um lado, professores e alunos e as fontes envolvidas em ambos: programas, diários, memórias, autobiografias e biografias de professores, e, de outro lado, cadernos e exames, para cuja análise mobilizam conceitos como os de inferência textual e contextual, intertextualidade e interdisciplinaridade.

Gladys Mary Ghizoni Teive, em Recepção de manuais escolares: um estudo a partir dos comunicados e das atas das reuniões pedagógicas do Grupo Escolar Gustavo Richard (1946-1952), privilegia duas fontes complementares ao estudo dos manuais escolares: os comunicados apresentados pelas professoras nas reuniões pedagógicas do Grupo Escolar Gustavo Richard entre 1946 e 1952 e as atas das mesmas. Estas três fontes entrelaçadas possibilitaram à autora perceber quais problemas eram enfrentados pelas mestras no seu dia a dia nas salas de aula, quais – dentre os manuais prescritos pelo Departamento de Educação de Santa Catarina – foram selecionados para ajudá-las a solucioná-los, como as mestras os utilizaram: se os textos foram extraídos literalmente ou se sofreram alterações por parte das professoras e, neste último caso, que tipo de mescla e ou fusão se operou entre a chamada cultura empírica das professoras e a cultura expressa nos manuais escolares lidos e, ainda, quais as suas representações a respeito das leituras realizadas.

O artigo assinado por Nicolas Martínez Valcárcel aborda o uso do livro didático pelos alunos, tanto nas aulas, quanto em casa, um âmbito raramente investigado na área dos manuais. As marcas presentes em cada manual, tal como os sublinhados, diagramas, símbolos, sínteses, permitiram ao pesquisador identificar as tarefas executadas pelos seus utilizadores, iniciadas em sala de aula e continuadas em casa. Por outro lado, o estudo simultâneo do livro com as anotações dos professores possibilitou compreender qual é o papel dos livros de texto na escola. Ademais, a avaliação das características positivas e negativas dos manuais e das anotações, associadas às preferências dos alunos por um ou outro, ofereceram, segundo as conclusões do autor, informações relevantes acerca do presente e do futuro de ambos os recursos a partir do conhecimento de um dos agentes: o alunado.

Em Manuais escolares para um ensino prático, Heloisa Helena Pimenta Rocha indaga sobre o lugar dos manuais escolares no ensino das noções de higiene nas escolas primárias paulistas, um ensino que, segundo as orientações e os programas aprovados nas primeiras décadas do século 20, deveria ser alicerçado na dimensão prática, no intueri, intuitus. Entrecruzando os manuais escolares voltados para o ensino de higiene e saúde com os programas de ensino e com fotografias que documentam aspectos das aulas de puericultura nos grupos escolares, Heloisa objetiva capturar, para além dos enunciados presentes nas obras, indícios das práticas escolares engendradas com o intuito de conformar os gestos de cuidado com o corpo e a saúde dos estudantes.

Finalmente, em Livro didático como indício da cultura escolar, Kazumi Munakata se debruça sobre as possibilidades de utilizar o livro didático como fonte para pesquisas sobre a cultura escolar. Para tal, discute as noções de livro didático, cultura escolar e cultura material e examina livros didáticos franceses, espanhóis, argentinos e brasileiros, destacando os elementos constitutivos da cultura escolar, como os conteúdos das disciplinas escolares, exercícios e atividades, avaliações, ideologias, valores morais e de civilidade, cotidiano escolar, sensibilidades estéticas, materiais escolares e organização das práticas de ensino.

Cabe destacar que este dossiê apresenta apenas uma pequena parcela do potencial de investigações em torno da segunda fase da vida dos manuais escolares: a da recepção e da interpretação de seus conteúdos por professores e alunos. Nosso intento é que esta coletânea de textos possa inspirar ao deciframento da caixa-preta da história da educação: a cultura escolar, a qual, supomos, guarda os padrões – patterns – essenciais que regulam a vida das instituições escolares.

Gladys Mary Ghizoni Teive – Professora na Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Pesquisadora associada do Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná com estágio sandwich e pós-doutorado no Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes / Uned. E-mail: gladysteive@gmail.com

Gabriela Ossenbach-Sauter – Doutora em Ciencias de la Educación e licenciada em História da América. Catedrática de Historia de la Educación e diretora do Centro de Investigación sobre Manuales Escolares – Manes – de la Universidad Nacional de Educación a Distancia, Madrid. Actualmente é presidente da Sociedad Española de Historia de la Educación. E-mail: gossenbach@edu.uned.es

TEIVE, Gladys Mary Ghizoni; OSSENBACH-SAUTER, Gabriela. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 20, n. 50, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Palavras viajeiras: circulação do conhecimento pedagógico em manuais escolares (Brasil / Portugal, de meados do século XIX a meados do século XX) / Revista Brasileira de História da Educação / 2013

Os textos aqui reunidos nasceram de múltiplos encontros que tematizam, particularizam e formalizam processos de circulação de ideias educacionais. Seus autores participam do Projeto de Pesquisa “História da Escola Primária no Brasil: investigação em perspectiva comparada em âmbito nacional (1930-1961)”, que fomentou a confluência de análises, o compartilhamento de fontes documentais e o intercâmbio de pessoas e experiências acadêmicas entre o Brasil e Portugal. Num desses encontros, o IX Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação: Rituais, Espaços & Patrimónios Escolares, realizado em Lisboa em julho de 2012, foram apresentados estudos que atestaram a coerência metodológica e as múltiplas possibilidades interpretativas com um mesmo conjunto de fontes. Daí resultou a presente publicação, cujo intento é apresentar análises de um conjunto de manuais escolares que circularam na Escola Normal brasileira e portuguesa entre meados do século XIX e meados do século XX, a partir de diferentes olhares, reeditando em outra chave o processo original de circulação de ideias entre Brasil e Portugal no qual esses materiais se inserem.

O trabalho foi iniciado por meio do levantamento de estudos (devidamente referenciados nos artigos) que investigaram manuais didáticos publicados nos dois países, cuja listagem serviu de guia para a busca nos seguintes acervos: Biblioteca do Livro Didático da Faculdade de Educação da USP / São Paulo; Biblioteca Nacional / Rio de Janeiro; Biblioteca da Universidade do Estado de Santa Catarina, Biblioteca Nacional / Lisboa; Biblioteca da Escola Superior de Educação / Lisboa e Biblioteca da Casa Pia / Lisboa. Por meio desses procedimentos, foram localizados cerca de dez manuais que, comprovadamente, circularam nos dois países, e foram selecionados aqueles cujo conteúdo abordava a formação profissional docente em maior amplitude (função social da escola primária, métodos e conteúdos de ensino, processos avaliativos, provimento material da escola); excluíram-se, por exemplo, aqueles voltados especificamente para questões próprias da Psicologia. As discussões metodológicas preliminares buscaram estabelecer um corpus empírico que possibilitasse o diálogo entre os diferentes enfoques e evidenciasse a fertilidade das fontes, e, por meio desses procedimentos, foi definido o seguinte conjunto de manuais didáticos: Elementos de Pedagogia, de Affreixo e Freire (1870); Curso Prático de Pedagogia Destinado aos Alunos-Mestres das Escolas Normaes Primarias e aos Instituidores em Exercício, de Daligault (1874); Lições de Pedagogia Geral e de História da Educação, de Pimentel Filho (1875); Lições de Pedologia e Pedagogia Experimental, de Faria de Vasconcelos (1910); Lições de Metodologia, de Fonseca Lage (1920); A arte da leitura, de Mário Gonçalves Viana (1949); e Lições de Pedagogia, de Aquiles Archêro Junior (1955).

Os pesquisadores utilizam diferentes lentes para tecer suas análises, e cada um, segundo sua especialidade de pesquisa, aprofunda aspectos que, juntos, compõem um painel interpretativo sobre o processo de escolarização e seus espaços; a normatização do trabalho docente; os princípios que nortearam a seleção cultural para a escola primária; a constituição de modos e métodos de ensino para realizar os objetivos educacionais; e especificidade que assumem os materiais e o ensino da leitura e da escrita. Todas as análises reiteram a importância dos impressos na consolidação da escola primária portuguesa e brasileira, notadamente no que se refere às prescrições feitas nos manuais escolares que, em trânsito, configuramse como palavras viajeiras.

Nessa perspectiva, o artigo “A função social da escola e a constituição da forma escolar (Brasil e Portugal, 1870-1932)”, de Vera Teresa Valdemarin, contribui para a compreensão da consolidação da forma escolar entre os séculos XIX e XX, pois, nas proposições conceituais e teóricas presentes nos diferentes manuais, não são percebidas alterações na função que a instituição adquiriu nas sociedades modernas. No entanto, houve profundas transformações nos procedimentos pedagógicos, tributários de mudanças científicas, sociais e econômicas ocorridas entre a publicação dos textos. Essa transformações refletem a complexidade da cultura composta por acréscimos, desusos, empréstimos e embates que sofreram alterações mediante o enraizamento em continuidades práticas nas quais o processo de escolarização se ampara.

Vera Lucia Gaspar da Silva, no artigo “Objetos em viagem: discursos pedagógicos acerca do provimento material da escola primária (Brasil e Portugal, 1870 – 1920)”, localiza e analisa nos manuais um conjunto de prescrições indicadoras do provimento material da escola, que levam à identificação de um desenho material para a escola primária brasileira e portuguesa, num importante período de sua expansão: finais do século XX e anos iniciais do século XX. No retrato construído a partir dos discursos dos diferentes pedagogos destacam-se elaborações sobre o espaço físico, sobre os materiais para o ensino e sobre o aparato burocrático. Nesses elementos, observa-se a suavização do caráter prescritivo inicial, que vai sendo matizado por um tom mais “cientificista”; além disso, no cenário escolar esboçado, revelam-se diferentes formas de conduzir os trabalhos e de operar com os objetos num processo não linear, mas construído por meio de movimentos, de idas e vindas e da convivência de diferentes abordagens.

No artigo “O tema dos modos de ensino nos manuais de pedagogia ou em torno de um problema pedagógico”, Carlos Manique da Silva aborda os manuais na perspectiva da produção de um conhecimento científico em educação que se tornou referencial das práticas, qual seja, aquele que diz respeito aos modos de ensino. Nos manuais selecionados, o autor detecta a mudança de uma perspectiva que advoga a homogeneização da população escolar para o tratamento diferenciado do aluno, produzido pelo desenvolvimento das proposições ancoradas na Psicologia. No debate travado entre duas maneiras de conduzir a relação pedagógica explicitam-se aspectos profundos da atividade escolarizada, que dizem respeito à transmissão do conhecimento e à forma como os professores são entendidos na sua identidade profissional.

Rosa Fátima de Souza, no artigo “A formação do cidadão moderno: a seleção cultural para a escola primária nos manuais de Pedagogia (Brasil e Portugal, 1870 – 1920)”, focaliza a organização pedagógica proposta para a escola primária, tendo em vista o objetivo de ensinar muitas crianças ao mesmo tempo. Nos manuais didáticos analisados, evidencia-se a crescente preocupação com a ordenação e a distribuição do conhecimento e do tempo, que passam a ser considerados requisitos para o exercício da docência. Os conteúdos do ensino primário, resultantes de seleção cultural, tornam-se indissociáveis dos programas, da avaliação e da classificação da aprendizagem e dos procedimentos metodológicos e, juntos, atestam a racionalidade que preside a instituição escolar.

“A mão, o cérebro, o coração. Prescrições para a leitura em manuais escolares para o Curso Normal (1940 – 1960 / Brasil-Portugal)”, artigo elaborado por Maria Teresa Santos Cunha, focaliza questões referentes à escolarização da leitura e evidencia como a ação do Estado a transformou num saber escolar. Nesse processo, os manuais produzidos para uso nos cursos de formação de professores assumem função essencial, pois definem programas, comportamentos – concentração e paciência, por exemplo – e, por meio deles, transformam alunos em leitores. Aliado à escrita, o ensino da leitura atribuiu à instituição escolar importância social sem precedentes, investindo, ao mesmo tempo, na qualificação técnica e simbólica do corpo docente.

Além dos diferentes aspectos tematizados em cada um dos artigos, o conjunto dos textos evidencia a fertilidade dos manuais didáticos como documentos históricos. Indissociáveis da expansão da escola pública, esses materiais de uso cotidiano revelam os vínculos dos autores com o campo editorial e com o campo profissional e a construção do discurso pedagógico. A delimitação temporal aqui adotada possibilitou ainda detectar as modificações produzidas nesse discurso, seja pela incorporação de práticas usuais, seja pela divulgação de tendências emergentes; foram atestados também elementos que parecem resistir às mudanças e têm caracterizado a escola como instituição peculiar. Os manuais, enfim, são dispositivos privilegiados para a compreensão dos processos de circulação de ideias: de mão em mão, de país em país, viajam no tempo; estruturam saberes; e, tomados em fragmentos ou na totalidade, possibilitam o aprofundamento do que sabemos sobre o passado e sobre o presente da escola.

Vera Teresa Valdemarin

Vera Lucia Gaspar da Silva


VALDEMARIN, Vera Teresa; SILVA, Vera Lucia Gaspar da. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.13, n.3, set. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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