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Formação Sindical no Brasil: história de uma prática cultural – MANFREDI (RBH)
MANFREDI, Silvia Maria. Formação Sindical no Brasil: história de uma prática cultural. São Paulo, Escrituras Editora, 1996, 212 p. Resenha de: RODRIGUES, Kátia Souza. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 36, 1998.
O primoroso trabalho de Sílvia M. Manfredi desafia os leitores a assumirem a tarefa proposta pelo mestre Paulo Freire na apresentação do livro, ou seja, “produzir também a significação do texto”. Dessa maneira, mergulhar no passado das experiências e práticas de educação e/ou formação sindical no Brasil, do princípio do século até a década de 80, é encontrar igualmente uma outra história do movimento operário.
Relegados a um plano secundário nos estudos existentes sobre o movimento operário-sindical, temas como educação, cultura sindical, formação/organização e poder político em entidades sindicais ganham dimensão e visibilidade inéditas. Por tudo isso, a leitura desse livro revela a importância de “outros quereres” na trajetória do movimento operário brasileiro.
Suas preocupações com a educação de um modo geral – no meio acadêmico e na militância – remontam às experiências de alfabetização pelo método Paulo Freire e à conseqüente prática de “educação popular”1. Já na sua tese de doutoramento, publicada em livro em 19862, a autora voltava a atenção para o resgate da educação sindical no Estado de São Paulo entre as décadas de 60, 70 e início dos anos 80.
Na sua obra mais recente, Sílvia M. Manfredi propõe como objetivo uma reconstituição histórica de grande amplitude. Assim, mesmo diante das dificuldades inerentes ao empreendimento – tais como a escassez de estudos e pesquisas sobre o tema educação e/ou formação sindical e o acesso a fontes documentais, escritas ou orais -, com certeza muitos sindicalistas e trabalhadores hão de sentir satisfação ao ler este livro, que, por sinal, descortina um campo fértil e atraente para outros pesquisadores3.
No primeiro capítulo Sílvia M. Manfredi realça inicialmente a preocupação central de “resgatar e refletir sobre experiências e práticas de educação dos trabalhadores brasileiros, no seu processo de constituição como sujeitos coletivos, isto é, como sujeitos instituintes/instituídos de coletividades (…)”4. Além disso, define educação sindical a partir das práticas educativas mais sistemáticas, como congressos de trabalhadores, cursos, seminários e palestras realizados por associações de classe ou outras entidades socioculturais, com o propósito de divulgar projetos e propostas político-sindicais e formar quadros organizativos. Sem falar, obviamente, de iniciativas referentes à imprensa sindical, programas de rádio e televisão, boletins, revistas, teatro, cinema etc. Ela dá então início à reconstrução da preocupação educacional no movimento operário-sindical brasileiro com a apresentação das propostas educativas dos libertários, particularmente dos grupos anarco-sindicalistas, englobando os anos 1902-1920. No Brasil, como é salientado, o projeto educativo dos libertários tinha três dimensões que se ligavam entre si: a educação político-sindical, a educação escolar e as práticas culturais de massa5.
A partir daí, a autora destaca que a concepção educacional anarquista “articulava as práticas educativas (…) com outras práticas no campo cultural e do lazer, de caráter massivo e popular. Teatros, festivais de música e poesia, piqueniques eram constantemente promovidos pelos libertários nos bairros operários dos centros industrializados da época”6.
Sílvia M. Manfredi enfatiza sobretudo no projeto de educação dos libertários o seu “caráter globalizante” (aspectos culturais, educativos e libertários) que o caracterizava “como um projeto de educação classista (…) voltado para a emancipação político-ideológica e cultural da classe operária”7. Dessa forma, os libertários propuseram a construção de um “projeto educativo singular, próprio e autônomo”8.
O segundo capítulo situa o Estado brasileiro e a proposta educativa nos anos 30 e 40. Ela lembra que por intermédio do Ministério do Trabalho desenvolveu-se um esforço incomum – de cunho “educativo e propagandístico” – que incluía uma política de sindicalização com vistas a construção do sindicalismo oficial. Como parte desse empenho sobressaem as emissões radiofônicas dirigidas aos trabalhadores em cadeia nacional (1942-1945), o curso de orientação sindical (1943), também publicado em livro pelo Ministério do Trabalho, o tablóide Vargas – Boletim do Trabalhador, a edição popular da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho (1943) e o Serviço de Recreação Operária (SRO) (1943), destinado a promover atividades culturais, desportivas e recreativas.
Há que se observar ainda alguns pontos importantes evidenciados pela autora que merecem referência, como o fato de o Estado, pela primeira vez, tomar para si a iniciativa de organizar um projeto educativo contrário àqueles gestados pelas tendências de esquerda no período pré-30. A proposta estatal, que entendia as atividades educativas como iguais às de caráter recreacional e assistencial, esvaziava-as de qualquer significado político-ideológico e implicava na inauguração de um “estilo de educação sindical” que sobreviverá até a década de 60.
No terceiro capítulo o foco de análise são as iniciativas de educação sindical assumidas por partidos e organizações de esquerda entre 1945 e 1950, em contraposição às iniciativas oficiais. Serão investigadas a atuação e as propostas do Partido Socialista Brasileiro bem como a surpreendente recriação da universidade popular dos anarquistas em 1945.
Nesse momento, a presença do PCB no movimento operário-sindical é de fundamental relevância. O que se percebe no partido é o nítido privilégio conferido à formação político-partidária (formação de quadros), à qual se resumia, em última análise, sua prática de “educação sindical”9. As escolas do PCB serão examinadas de maneira extremamente profícua. Ao lado de fontes escritas, as fontes orais – os depoimentos de ex-dirigentes como Hércules Correa, Armênio Guedes e Jacob Gorender – dão um toque especial no que tange à análise e à reflexão sobre a pedagogia comunista. Vale frisar o item “Avaliando os cursos à luz da experiência de hoje”10, no qual a desvinculação entre o partido e as bases e a desqualificação dos próprios dirigentes sindicais – chamados de “sindicaleiros” – dão uma mostra da visão de educação do PCB.
O capítulo quatro se detêm na formação sindical nas décadas de 50 e 60. Nele, Sílvia M. Manfredi salienta “as práticas avalizadas e incentivadas pelo Ministério do Trabalho” e as consideradas “alternativas”11, por se oporem à concepção estatal.
Abre-se um amplo leque de práticas de formação diversificadas, indo desde a ação do complexo IPES/IBAD, do Instituto Cultural do Trabalho (ICR), até as atividades programadas pelo Ministério do Trabalho e outras de caráter mais autônomo desenvolvidas em alguns sindicatos (por exemplo, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Têxteis do Rio de Janeiro, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e o Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, que, convém sublinhar, chegou a ter um Centro Popular de Cultura). Passam ainda pelo crivo da autora as práticas do ISEB, dos movimentos de educação e cultura popular, e dos vários grupos ligados à Igreja Católica, englobando tanto o movimento circulista como as organizações tipo JOC, JAC, ACO e a Frente Nacional do Trabalho (FNT).
É necessário ressaltar novamente as fontes utilizadas neste capítulo. Com muita propriedade os textos acadêmicos irão se juntar aos depoimentos dos trabalhadores, demonstrando a preocupação e a pertinência de dar “vez e voz” aos “excluídos da História”. O capítulo cinco trata de quatro entidades que podemos considerar como “núcleos irradiadores” tanto para experiências específicas como quando da constituição das centrais sindicais. As atividades desenvolvidas entre anos 70 e 80 no DIEESE, na Fundação Casa do Trabalhador (MG) na Fase e na Contag, são os destaques do texto. As propostas formativas e educativas dessas entidades ganham luz própria e, sobretudo, mostram a capacidade de realização que une intelectuais e trabalhadores na formação de quadros e lideranças, seja nos sindicatos, nos movimentos populares e/ou rurais.
No capítulo seis são enfocados os projetos e as práticas de formação sindical da CUT, da CGT e da Força Sindical na década de 80 e início dos anos 90. Mesmo concordando com a autora quanto ao fato desses projetos ainda estarem em processo efetivo de configuração, considero que ela poderia enriquecer ainda mais o trabalho se a reflexão e o balizamento (que ocorreram nos capítulos anteriores) sobre as centrais sindicais e suas propostas educativas tivessem um contorno mais nítido. Afinal, estamos diante de propostas distintas de sindicalismo, o que significa dizer que a dimensão político-ideológica cutista – apesar dos pesares – difere muito do “sindicalismo de resultados” da Força Sindical12.
Portanto, acredito que o capítulo ganharia mais ao matizar os projetos e as práticas formativas das centrais, mostrando claramente suas diferenças político-ideológicas, que, no meu entendimento, não podem estar dissociadas do projeto educacional que implementam. Não há dúvida que a utilização de depoimentos, nesse caso, seria também absolutamente imprescindível para essa diferenciação.
O sétimo capítulo evidencia as denominadas “três matrizes discursivas” da formação sindical do “novo sindicalismo” – a matriz marxista, a da educação popular e a da pedagogia paulo-freiriana. Como observa a autora, é importante ressalvar que essas três matrizes foram incorporadas de modo distinto nas formulações pedagógicas e nas práticas formativas das três centrais brasileiras. No primeiro caso, está muito presente a influência do pensamento gramsciano, enquanto na segunda vertente sobressaem os trabalhos de Carlos Rodrigues Brandão, Luiz Eduardo Wanderley e Frei Betto. Já na terceira perspectiva, Paulo Freire, obviamente, e Madalena Freire são os intelectuais cujas obras são examinadas.
Por último, cabe reafirmar que Sílvia M. Manfredi cumpre a finalidade que se propôs atingir. Nas suas próprias palavras, o livro atende ao propósito de “recuperar práticas educativas tidas como pouco relevantes por fazerem parte de um universo de práticas culturais que se dão fora dos espaços sociais concebidos como `social e culturalmente legítimos'”13. Para chegar a dar conta de seu objetivo, a autora percorreu um caminho espinhoso e não usual. O “tão complexo embricamento entre cultura, educação e sociedade”14 é leitmotiv para os leitores saborearem esse texto.
Não posso deixar de anotar ainda que, numa eventual reedição deste livro, é imprescindível maior cuidado com a composição gráfica do texto, tantos são os erros verificados nesta edição. Excetuando o capítulo seis, nos outros encontramos freqüentemente problemas de grafia e outros mais, principalmente nas notas dos capítulos três, quatro, cinco e sete.
Hoje, talvez mais do que nunca, se impõe a quem opta por um mundo `gentificado’ a luta sem trégua pelo sonho possível, pela utopia, contra a ideologia fatalista neoliberal que vem engendrando um `pragmatismo’ pedagógico negador dos homens e das mulheres como seres da decisão, e da ruptura. Como seres óticos.
Com estas palavras, o mestre Paulo Freire define para mim o significado do texto de Sílvia M. Manfredi. Formação Sindical no Brasil é um encorajamento para homens e mulheres organizarem suas experiências e práticas educativas e culturais, produzindo suas próprias representações e significados, como “seres óticos”.
Notas
1 Essas experiências são abordadas em MANFREDI, S. M. Política: educação popular. São Paulo, Símbolo, 1978.
2 Ver MANFREDI, S. M. Educação em sindicatos (Quem disse que a gente não sabe?).Tese de Doutoramento, São Paulo, FFLCH-USP, 1983 e, da mesma autora, Educação sindical entre o conformismo e a crítica. São Paulo, Loyola, 1986.
3 É interessante, para efeito de comparação, ver como essa questão se configura historicamente num outro contexto, especialmente entre o final do século XIX e a década de 60 deste século. Ver DAVID, Marcel. “Formação operária e pensamento operário sobre a cultura em França a partir de meados do século XIX”. In Níveis de cultura e grupos sociais. Colóquio da Escola Normal Superior de Paris, Lisboa, Cosmos, 1974, pp. 267-306.
4 MANFREDI, S. M. op. cit., p. 23.
5 Sobre uma das propostas educativas mais famosas dos libertários, vale conferir o vídeo Escolas Modernas _ educação libertária na São Paulo do início do século, de Carlo Romani, H. Pimentel e O. P. Cardoso. São Paulo, Coletivo Cinestesia, 1995.
6 MANFREDI, S. M. op. cit., pp. 25-26.
7 Idem, p. 26.
8 Idem.
9 A preocupação com a formação político-partidária que compreendia a formação de quadros como tarefa básica do PCB é fruto de uma orientação internacional que regia os PCs. Cf. TARTAKOWSKI, Danielle. “Un instrument de culture politique: les premières écoles centrales du Parti Communiste Français”. In Le Mouvement Social. nº 91, 1975, pp. 79-108.
10 MANFREDI, S. M. op. cit., pp. 57-61.
11 Idem, p. 71
12 A experiência da prática de formação da CUT e o processo de avaliação de seu projeto e de suas práticas pode ser visto em uma publicação recente, da qual a própria Sílvia M. Manfredi participa. Ver a obra coletiva Avaliação externa da política nacional de formação da Central Única dos Trabalhadores. São Paulo, Xamã, 1997.
13 MANFREDI, S. M. op. cit., p. 199.
14 Idem.
Kátia Sousa Rodrigues – Universidade Federal de Uberlândia.
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