História e narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica – MALERBA (PL)

Em História e narrativa: a ciência e a arte na escrita histórica, Jurandir Malerba, professor da UFRGS, reúne textos de importantes pesquisadores, filiados a diferentes áreas das Ciências Humanas, cuja temática nos convida a refletir em que medida a história se aproxima de um discurso científico e/ou artístico.

Resultado de uma disciplina ofertada no Programa de Pós-graduação em História da PUC-RS, o livro tem o mérito de trazer ao público que compartilha a língua portuguesa a tradução de estudos seminais para o campo da narrativa histórica, além de textos inéditos ou reeditados que evidenciam o reconhecimento e a competência de pesquisas produzidas por brasileiros no campo da teoria da história. Leia Mais

Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império | Jurandir Malerba, Cláudia Heynemann e Maria do Carmo Teixeira Rainho

Em 1965, Dona Ivone Lara, Silas de Oliveira e Bacalhau cantaram, em samba-enredo do Império Serrano, uma história dos grandes bailes da história da cidade do Rio de Janeiro.[1]2 Um dos destacados pelos compositores, o último d'”Os cinco bailes da história do Rio”, era o baile da Ilha Fiscal, que o governo da monarquia promoveu em 9 de novembro de 1889 em homenagem à visita de oficiais chilenos ao país – poucos dias antes, portanto, do fim do regime. O tema não era novidade para a escola: em 1953 o Império ficou na segunda colocação no desfile com o samba “O último baile da Corte imperial”, assinado por Silas de Oliveira e Waldir Medeiros. Em 1957, foi a vez da Unidos de Vila Isabel relembrar a efeméride, indo para a avenida com o samba “O Último Baile da Ilha Fiscal”, de Paulo Brandão, ainda que sem tanto sucesso. A presença do baile da Ilha Fiscal nos três sambas sugere sua força como marco para a memória urbana do Rio de Janeiro.

O último e nababesco baile da monarquia brasileira ressurge no livro Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império (EdiPUCRS, 2014), organizado por Jurandir Malerba, Cláudia Heynemman e Maria do Carmo Rainho. O livro reúne artigos de especialistas nas mais diversas áreas (moda, música, gastronomia, esportes e política) sobre uma notável coleção de documentos que o capitão de fragata José Egydio Garcez Palha organizou recolhendo menus, carnês de bailes, partituras musicais e comentários variados na imprensa sobre o baile, seus participantes e seus promotores. Recolhida entre 1889 e 1891, a coleção pertence desde 1930 ao Arquivo Nacional.

Um dos pontos destacados pelos organizadores na apresentação da obra reside no farto manancial de informações sobre diferentes aspectos do fazer cotidiano da cidade que se queria moderna. Desde nuances do fazer da mais alta política em suas recepções diplomáticas aos cochichos e maledicências sugeridas na imprensa, passando pelas preferências estéticas da elite imperial em sua frequência a casas da moda, cabeleireiros e confeitarias, a coleção realça a grandiosidade daquele baile sob a ótica dos personagens da própria época. Mesmo quem não esteve entre os aproximadamente 4 mil presentes à grandiosa festa pôde sentir de perto a grandeza do momento. Do Cais Pharoux dava para apreciar a suntuosidade da Ilha Fiscal fartamente iluminada por fogos de variadas cores, 700 lâmpadas elétricas e 60 mil velas. Do cais, ademais, partiam as damas e senhores da sociedade rumo ao baile.

A recepção aos chilenos se estendeu para além do baile, tendo durado dois meses. Nesse tempo, um interlúdio: a república fora proclamada bem no meio da visita dos convidados daquele país, chegados ao Rio em meados de outubro e partindo da cidade em finais de novembro. Em que pese a mudança de regime, mantiveram-se as variadas atividades propostas aos ilustres visitantes. Não fosse a república, teriam ainda as conversas sobre o baile rendido mais um tanto? Seja como for, o fato é que, 15 de novembro à parte, a grandeza do ultimo baile da monarquia imprimiu sua marca indelével na memória da cidade.

“Dê-me um pouco de magia, de perfume e fantasia e também de sedução”: impressões sobre as festas chilenas.

No livro, os capítulos de autoria de Victor Melo, Carlos Sandroni, Laurent Suaudeau, Carlos Ditadi e de Maria do Carmo Rainho apresentam por meio da análise da imprensa o que os organizadores chamam de “clima de opinião”. De fato, brotaram comentários os mais variados nos jornais da cidade, incluindo a observação de costumes e práticas de elite não tão bem assimiladas por alguns dos convidados presentes no baile. Algo a se estranhar, a princípio, pois segundo Melo, coordenador do Laboratório de História e do Esporte e Lazer da UFRJ, “a cidade já estava acostumada e apreciava atividades públicas” de monta, desde teatros ao turfe e ao remo, passando por festividades religiosas e sociedades dançantes (p. 118-119; 158).

De fato, se nos fiarmos no samba de Ivone, Silas e Bacalhau, a tradição festiva da cidade vem de longe. Segundo o musicólogo Carlos Sandroni, na ausência de formas de comunicação como o rádio, eram as bandas musicais, geralmente militares, que embalavam as festas, numa mobilidade impressionante que lhes permitia tocar em locais diferentes no mesmo dia. Sua onipresença não marcaria apenas a importância e formalidade de ocasiões solenes. Pelo contrário, elas botavam as pessoas para dançar. No baile de Ilha Fiscal tocou-se de tudo: quadrilhas, valsas, polcas e lanceiros animaram os presentes madrugada adentro, até quase o sol raiar, prática comum, aliás, em outros bailes frequentados pelos cariocas (p. 138-140).

Ao som da música, o detalhe das práticas ditas civilizadas – inclusive porte e vestimenta adequados para as danças – passava como forte signo de distinção, aspecto que apontava proximidades políticas e maneiras de inclusão no regime, tema que perpassa toda a obra. Victor Melo, em capítulo sobre as práticas esportivas, apresenta as disputas entre grupos de elite por receber a comissão chilena em seus clubes de remo e de turfe, preferência entre os cariocas mas que dividia as elites. Esses clubes serviam de ponto de encontro e aproximação entre grupos de preferência política comum, como republicanos ou monarquistas, respectivamente (p. 121; 129). Idem para o porte nessas ocasiões ou mesmo à mesa: estima-se que o refinadíssimo banquete oferecido aos chilenos no baile da Ilha Fiscal tenha custado aos cofres públicos 250 contos de Réis, segundo Suaudeau, que é chefe de cozinha, e Debati, pesquisador no Arquivo Nacional, quase 10% do orçamento da província do Rio (p. 162). Repleto de iguarias da culinária estrangeira, especialmente francesa, o banquete foi alvo de crítica de parte da imprensa pelos seus custos e também pelo pouco apreço às “iguarias puramente brasileiras”, segundo matéria n’O Paiz (p. 166). Convidados e garçons também foram alvo da crítica de jornalistas: homens fumando, conversando alto, acotovelando as senhoras, atirando restos de comida ao chão receberam comentários reprovadores. Assim como os criados, considerados desleixados e um tanto “esquecidos” (p. 107, 165). As senhoras não foram poupadas: entre os objetos encontrados após o baile, havia até mesmo espartilhos e “algodões em rama”, usados por debaixo dos espartilhos para dar corpo às mulheres (p. 107). Ao que parece, os algodões perdidos – e que demandavam o manejo, digamos, mais complexo da vestimenta feminina – não foram poucos, segundo Sandroni (p. 144). Não haveria ocasião melhor para manejos mais quentes. Afinal, a proximidade de corpos em danças regradas (ou nem tanto) realçava um tipo particular de experiência sensual que legava às senhoras assíduas frequentadoras de baile a “fama de assanhadas”.

A falta de civilidade pareceu quase geral, segundo observadores, incluindo a adequação da roupa à ocasião. Perder espartilhos não era pouca coisa: frequentada como foi por “senhoras e cavalheiros da fina flor fluminense” (p. 144), festas como a oferecida aos chilenos inscrevem-se, segundo Rainho, especialista em História da Moda, numa “cultura das aparências” que ganhava força entre a elite carioca especialmente nos anos finais do Império. O baile da Ilha Fiscal gerou um apagão no comércio de modas na cidade: não havia costureiras, maisons e cabeleireiros suficientes para tanta dama convidada. Ao mesmo tempo que manuais de etiqueta ensinavam cada vez mais a circunspecção feminina, as roupas atuavam como um poderoso meio de sedução que não cabia nesses manuais (p. 199).

“Algo acontecia, era o fim da monarquia”: aproximações entre cultura e política.

Segundo Rainho, além do mais, algo chamava a atenção nos comentários na imprensa sobre o grandioso baile: a ausência de comentários sobre a vestimenta dos oficiais chilenos (p. 201). Sebastião Uchoa Leite, poeta e ensaísta, em texto originalmente publicado em 2003 para o projeto que deu origem ao livro, apresenta um ponto interessante nesse sentido. Em grande parte dos comentários e reportagens sobre a recepção dos chilenos havia “um clima de oposição crítica ao próprio status quo reinante no país” (p. 101).

“Espécie de miragem”, ainda segundo Leite, o baile teria sido o ponto culminante do significado das “festas” para a monarquia. A observação não deixa de ser paradoxal, dado que a corte de Pedro II era avessa a grandes festividades. Jurandir Malerba, professor da PUCRS, lembra que o último baile no Paço Imperial ocorrera em 1852 após o encerramento das atividades do Parlamento (p. 39). Nesse ínterim, a família imperial teria se contentado com apresentações teatrais um tanto amadoras e para poucos convidados. No que Malerba lança uma hipótese interessante: considerando a destreza política de Dom Pedro II e sua saúde já frágil que cada vez mais servia como justificativa para seu distanciamento da condução direta da política nacional, o baile da Ilha Fiscal pode ter sido calculado para encenar “o grand finale de seu reinado” (p. 42-43).

Minuciosamente representado como signo de civilização em terras americanas, o Império do Brasil apresentava também seu lado moderno por meio de sua capital, o Rio de Janeiro. Cláudia Heynemann, supervisora de pesquisa no Arquivo Nacional, chama atenção para o vasto roteiro de visitas da comissão chilena, que em muito se aproximava daqueles propostos por livros de viagem do oitocentos (p. 57). Malgrado a presença de alguns problemas como calçamento e arborização, o processo de modernização pelo qual passava a cidade na segunda metade do XIX entrelaçava natureza e cultura por meio de obras como as do Passeio Público, do Campo da Aclamação e do Jardim Botânico (p. 65), uma modernidade ao mesmo tempo pedagógica e disciplinar (p. 70). Cidade já bastante grande, que contava com 226 mil pessoas livres e quase 5 mil escravos segundo o censo de 1872, o Rio de Janeiro se complexificava: novos bairros foram criados, acompanhados pela expansão do serviço de trens e bondes. Novas práticas de sociabilidade surgiam a seguir marcadas por hábitos europeizados, segundo Vivien Ishaq, doutora em história. A rua do Ouvidor mantinha o cetro de polo dos modismos e do bom gosto, mas cada vez a cidade também se dividia em várias se considerarmos os usos distintos dos espaços pelos grupos de diferentes camadas da sociedade (p. 81-84).

Em comum a todos os artigos de Festas Chilenas está o destaque para o baile como espaço de autorrepresentação tanto das elites imperiais quanto do próprio regime: esse ponto é especialmente destacado por Sebastião Uchoa Leite e Jurandir Malerba. Leite, ao sublinhar aspectos políticos de ocasiões festivas, neste caso por meio da imprensa através das críticas a usos e maneiras apresentados no baile, afasta o caráter “ameno” da ocasião. Houve encontros entre os aproximadamente 4 mil presentes mas havia também tensões (p. 109-110), presentes já no momento de seleção dos convidados. Malerba, ao realçar o baile como momento político, o faz invertendo o argumento recorrente de que a monarquia apostava, ali, no início de um esplendoroso terceiro Reinado, sob a batuta de Isabel e secundada por seu esposo, o conde d’Eu. Para o autor, o baile foi um último lance político mas com repercussões na esfera da cultura: era a memória da monarquia que estava em jogo.

Malerba distancia-se, assim, do argumento de José Murilo de Carvalho de que o baile teria sido um “golpe de publicidade” pró-continuidade monárquica, pensado por este autor em grande medida a partir de obras ficcionais de Machado de Assis. Em sua argumentação, Malerba oferece ao monarca (e ao regime como um todo) o papel de agente de sua história – e da representação da memória de seu reinado. Ainda que lançado como hipótese, o argumento é interessante na medida em que se aproxima de discussões mais recentes no campo da cultura acerca de sua percepção como manancial de estratégias referendadas pelo contexto, e não como um todo encerrado em si mesmo (segundo uma concepção vulgar e equivocada, porém corrente, de sistema).

Na esfera da historiografia contemporânea, a micro-história propõe um importante debate nesse sentido. Sua aproximação com a antropologia, especialmente aquela proposta por Clifford Geertz, promoveu o entendimento da cultura como um campo no qual o sentido dos símbolos deve ser entendido na análise de situações sociais específicas – é exemplar a “descrição densa” da briga de galos balinesa proposta por Geertz.[2] Mais especificamente, a micro-história investe seu esforço de análise nas ressignificações dos símbolos em situações de disputas sociais, tendo em vista a reflexividade dos sujeitos e sua capacidade de ação racional – como não se lembrar, por exemplo, do pensamento do moleiro Menocchio, estudado por Carlo Ginzburg?[3] Para Giovanni Levi, em artigo de revisão das tendências de análise na micro-história, “a abordagem micro-histórica dedica-se ao problema de como obtemos acesso ao conhecimento do passado [tomando o] particular como seu ponto de partida […] e prossegue, identificando seu significado à luz de seu próprio contexto específico”.[4] Longe da dicotomia que prevaleceu em discussões sobre agência e estrutura ou, de modo mais específico, entre cultura e política, Festas Chilenas lança um olhar sobre a esfera cultural que em muito se alimenta do próprio contexto político. Embora o imperador não ofertasse bailes de monta havia décadas, isso fazia parte do script do fazer monárquico. A suntuosidade da ocasião parecia acenar, assim, menos para o futuro que para o passado de grandiosidade da própria monarquia.

O samba do Império Serrano traz tais elementos para dentro da cena: “o luxo, a riqueza, imperou com imponência” ainda no baile da Independência. No baile da Ilha Fiscal se brindava “aquela linda valsa, já no amanhecer do dia”. “Iluminado estava o salão, na noite da coroação” de Pedro II. Acompanhando os cinco grandes bailes da cidade eleitos pelos compositores, dois localizam-se nos tempos do reinado de Pedro II. Ainda que o recurso ao fausto das festas apresentadas no samba tenha relação com a própria lógica de composição interna do samba-enredo, que ganhava novo formato especialmente nas mãos de Silas de Oliveira,[5] na memória urbana do Rio de Janeiro aquele momento parecia estar encravado como digno de rememoração. Não foi esse o único samba, aliás, a lembrar o baile: mesmo que o samba de 1953, também de Silas, tenha sugerido que nem imperador nem a corte esperavam o fim da monarquia, o esplendor do baile agradara a todos, inclusive os homenageados.[6]

Na esteira da hipótese de Malerba, que vê o baile como grand finale à luz do modus operandi do regime monárquico e de suas lógicas de formação de laços centralizados na figura de Pedro II (“não se faz políticas sem bolinhos”, lembrava o barão de Cotegipe), seria interessante perceber as inscrições desse último movimento do regime não apenas na memória da cidade, mas na memória popular urbana do Rio. Mesmo que todos os artigos da obra considerem, por exemplo, matérias em jornais como expressão de olhares algo debochados e um tanto críticos do baile, da elite imperial e do regime em si, a aproximação dessa perspectiva com outras do restante da população da cidade poderia iluminar mais o argumento central. Poucos anos mais tarde João do Rio chamaria a atenção para a forte presença de símbolos imperiais entre a população pobre e negra da capital da agora república.[7] Os grupos de capoeiras que desmantelavam conferências de republicanos e, após a abolição, a própria guarda negra suscitavam temor frequente entre os grupos aderentes ao novo regime instaurado enquanto os chilenos nos visitavam. Embora nossas fontes disponíveis não o expressem de maneira discursiva, alguns aspectos da cultura popular da cidade parecem ter alguma coisa a nos dizer sobre os significados não só do último baile da monarquia, mas do regime monárquico como um todo, mais tarde cantados “em sonho” na memória urbana carioca.

Notas

1. Vale escutar o áudio do samba-enredo da escola daquele ano, de autoria dos três, intitulado Os cinco bailes da história do Rio“. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=laEBlDSZQZc . Acesso em 10 de abril de 2016.

2. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.Rio de Janeiro: LTC, 2008.

3. GINZBURG, CarloO queijo e os vermes:o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

4. LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In BURKE, Peter (org). A escrita da história:novas perspectivas. São Paulo: EdUNESP, 1992, p. 154-155.

5. VALENÇA, Rachel; VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.

6. Ver, por exemplo, a crônica “Os Tatuadores”, no livro A alma encantadora das ruas:crônicas. Organização de Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.

7. Ver, por exemplo, a crônica “Os Tatuadores”, no livro A alma encantadora das ruas:crônicas. Organização de Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.

Carlos Eduardo Dias Souza – Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP São Paulo, SP, Brasil. E-mail: kdudiaz@gmail.com


MALERBA, Jurandir; HEYNEMANN, Cláudia; RAINHO, Maria do Carmo Teixeira (Orgs.). Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014. Resenha de: SOUZA, Carlos Eduardo Dias. O quinto baile da história do Rio. Almanack, Guarulhos, n.13, p. 210-214, maio/ago., 2016.

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Festas Chilenas. Sociabilidade e política no Rio de Janeiro no Ocaso do Império | Jurandir Malerba, Cláudia B. Heyneman e Maria do Carmo T. Rainho

Entre 09 de outubro e 19 de dezembro de 1889, o Brasil recebeu a visita diplomática chilena a bordo do encouraçado Almirante Cochrane. Este fato, além de ter causado um grande alvoroço político, econômico, social e cultural no país, e em especial na cidade do Rio de Janeiro, coincidiu com a transição do regime político imperial para república.

Atentos aos espaços visitados pelos chilenos, às comidas e bebidas servidas/degustadas, à programação destinada aos ilustres hóspedes, às práticas desportivas praticadas em sua homenagem, aos sons, bailes, músicas que deram o tom cordial entre os dois países, e toda a indumentária que acolheu os convidados, os organizadores de “Festas Chilenas. Sociabilidade e política no Rio de Janeiro no Ocaso do Império” – Jurandir Malerba, Cláudia B. Heyneman e Maria C. T. Rainho – tiveram a felicidade de reunir em oito capítulos, os diversos modos de sociabilidade existentes na cidade do Rio de Janeiro durante estes dois meses. Leia Mais

Lições de História: caminho da ciência no longo século XIX- MALERBA (Topoi)

MALERBA, Jurandir. Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: FGV Editora, Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010. 492pp. MALERBA, Jurandir. Lições de História: da história científica à crítica da razão metódica no limiar do século XX, Rio de Janeiro: FGV Editora, Porto Alegre: EdiPUCRS, 2013. 539pp. Resenha de: FREIXO, Andre de Lemos. Legados da disciplina histórica: experiências na fronteira entre consensos e horizontes. Topoi v.16 n.31 Rio de Janeiro July./Dec. 2015.

Em Lições dos mestres, George Steiner nos apresentou um ensaio sobre relações entre mestres e discípulos, professores e alunos, todos eles “clássicos”, por assim dizer: Sócrates e Platão, Jesus e seus apóstolos, Confúcio e os budistas, Virgílio e Dante, Husserl e Heidegger, entre muitos outros. No cerne de sua reflexão está o problema da educação. E ele indaga sobre essa questão a partir do significado da ideia de “transmissão” e de para quem seria legítimo transmitir saberes, bem como sobre as relações (de continuidade e descontinuidade) entre traditio – “aquilo que se transmite” – e o que os gregos chamavam paradidomena – “aquilo que se transmite agora“.1 Em suma, o que significa passar adiante o patrimônio cultural acumulado e herdado? E como fazê-lo? Em escala mais restrita, pode-se dizer que a coleção Lições de História se coloca na esteira dessas reflexões, mesmo que não as tematize ou confronte diretamente.

A coleção tem dois volumes e foi organizada por Jurandir Malerba, titular livre de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Seguindo o modelo clássico das antologias, o resultado final é uma obra de história intelectual cujo “público-alvo” parece ser o de estudantes de história e jovens professores em busca de material de qualidade a respeito dos autores que, segundo o organizador, “deixaram um legado monumental para o pensamento moderno” (I, p. 7),2 em especial para a historiografia.

Deste modo, pode-se pensar em uma questão de educação e transmissão aqui também. Ou, pelo menos, de uma “herança” ou perspectivas nesse sentido, enfeixadas num enredo mais ou menos já conhecido: contar uma parte considerada muito importante da história da formação do campo disciplinar da história. Seja como for, ela precisa ser lida e pensada como uma história possível da história. Como uma leitura para sua formação disciplinar. O que provavelmente é realizado sob as lentes de quem se considera parte constituinte do processo. Que hoje reconhece nesses pioneiros algo do que fazemos (embora não façamos mais da mesma maneira) quando escrevemos história. Nesse sentido, digo que elas seguem um enredo “já conhecido”, ilustrando um relativo consenso.

Evidentemente, toda seleção implica o descarte de outras referências que poderiam igualmente ser consideradas (pelas mesmas razões propostas pela coleção) tão relevantes quanto as elencadas. No entanto, os autores que figuram nos volumes abarcam um recorte longo, que se estende, aproximadamente, entre 1785 até a década de 1930. Assim, cabe ressaltar o mérito em ultrapassar alguns limites do já referido acordo consensual. Isso enriquece nosso quadro não apenas de autores conhecidos (ou apresentados), mas ajuda a complexificar o entendimento, por vezes simplista, esquemático e teleológico, do processo de configuração do campo disciplinar da História, suas idas e vindas, desafios e dilemas. Traduções de textos de Voltaire, Pierre Daunou, Georg G. Gervinus, Thomas B. Macaulay, Louis Bordeau, Ernst ­Troeltsch, Karl Lamprecht, Wilhelm Windelband, Friedrich Meinecke, Heinrich Rickert, ­Benedetto Croce, Robin G. Collingwood, Charles Beard, Carl Becker, James Harvey Robinson, entre outros, ampliam o rol de referências e tradições intelectuais disponíveis aos jovens estudiosos brasileiros de História.

Eleito pela Revista Brasileira de História e Ciências Sociais o “Livro do Ano” (2011), o primeiro volume da coleção apresenta, além dos textos dos mestres modernos, introduções às obras desses autores realizadas por quinze profissionais brasileiros de latitudes geográficas bastante distintas. A introdução do volume ficou a cargo de François Dosse. Seu texto é sintético e procura dar tom e diapasão àquele conjunto de referências, que tem por objetivo (re)traçar o caminho da história oitocentista “rumo à ciência”. Caminhos bastante diferentes, como observa Malerba (I, p .8), mas que na introdução de Dosse não se evidenciam em toda sua extensão, uma vez que este prioriza as contribuições francesas para esse desenvolvimento. Os esforços para constituir disciplinarmente qualquer saber necessitam de um relativo consenso sobre quais as referências que devem figurar como incontornáveis para o desenvolvimento da “nova” disciplina. Isso não significa desconsiderar as tensões envolvidas no processo. Erudito e competente, embora por vezes excessivamente simplista, o texto de Dosse destoa um pouco da proposta mais alargada que a coleção promete, mantendo-se fiel ao consenso francês. Seu conceito de historicismo, assim, torna-se restrito, referindo-se quase exclusivamente a uma “história ligada ao particular” que teria “nascido” apenas com Wilhelm von Humboldt (I, p. 25) no seu texto “Sobre a tarefa dos historiadores” (1821).3 Além disso, como se poderá ver nos textos introdutórios assinados por Julio Bentivoglio, Sérgio da Mata, Sérgio Duarte, Arthur Alfaix Assis, entre outros, a historiografia oitocentista alemã formulou propostas inovadoras e originais, amparada em sólida erudição e profunda sensibilidade epistemológica, cujas preocupações envolviam reflexões sobre método, crítica documental, ética, valores, o papel e função social dos historiadores, a problemática da escrita histórica, entre outras. O recurso a comparações entre as historiografias francesa e alemã também figura como fator mais problemático do que propriamente problematizado por Dosse. Com algum exagero, assevera, por exemplo, que a Introduction aux études historiques (1898), de Langlois e Seignobos, seria capaz de concorrer com o Grundriss der Historik (1857-1858) de ­Johann Gustav Droysen (I, p. 28).4 Tratam-se de textos de naturezas muito diversas. Inclusive, o compêndio de Droysen (outro autor decisivo, porém não contemplado nesta coleção) sintetiza as reflexões de natureza teórica e metodológica que pouco se assemelham à definição das etapas da pesquisa à escrita histórica e à deontologia científica dos historiadores proposta no manual dos franceses.5 Evidentemente, não se trata de criar ou sustentar competições inócuas, mas evidenciar que a historiografia oitocentista e os historicismos foram muito mais ricos e multifacetados do que a já bastante datada dicotomia do “velho” e do “novo” permitem perceber. Na economia do texto introdutório de Dosse, portanto, o conceito de historicismo termina por funcionar como a preparação ideal para a triunfal emergência da Sociologia (durkheimiana) para colocar ordem na “casa de Clio” (I, p. 30). Não há nada de errado nisso, mas apenas conserva-se o já conhecido e tradicionalíssimo consenso historiográfico francês a este respeito.

Quanto aos textos escolhidos para tradução, o primeiro volume nos apresenta belos testemunhos de épocas passadas. Suas perspectivas e sociedades são reveladoras de muitos e distintos aspectos das relações entre tempo e história, passado e presente. Muitos dos autores podem ser caracterizados como filósofos, no sentido pleno da expressão (por sua capacidade de análise conceitual e abstrata), pois refletem sobre história a partir do que julgavam ser o seu caráter, se literatura ou ciência.

Não caberia aqui debater todas essas leituras em filigrana, a maioria delas é composta por traduções de textos inéditos em língua portuguesa. Mas são dignas de nota as palavras de Voltaire em suas meditações sobre história, ou melhor, histórias. Isso pode deixar o leitor contemporâneo relativamente surpreso diante dos muitos sentidos que ele definia o conceito de história, já grafado no singular, mas que podia ser “sagrada ou profana”, “filosófica” ou “pragmática”, com suas certezas possíveis e algumas incertezas também, de utilidades como a ilustração moral dos homens de Estado pela via da exemplaridade e da comparação entre culturas, e suas finalidades universais, assim como dotada de algumas “desvantagens” – como as histórias “satíricas”: que apesar de dever ser sempre verdadeira e nunca omitir-se, não deveria revelar aspectos particulares que afrontam ao bem maior (dos Estados), sendo portanto avessas ao espírito que defendia. O texto ajuda o leitor brasileiro a elucidar alguns pontos relativamente enigmáticos, por exemplo, da dissertação de Carl F. Ph. Von Martius, sem dúvida leitor de Voltaire, acerca do como deveria ser escrita a História do Brasil (1843). Seus comentários sobre método e estilo na escrita, uma arte rara, diziam ambos, que envolvia beleza, elaboração, eloquência, gravidade, acuidade e erudição, sempre tomando por base mestres antigos como Tito Lívio, Tácito e Políbio. No mesmo espírito universal do filósofo da história Voltaire, Pierre Daunou, catedrático de História e Moral no Collège de France, republicano francês de primeira hora (1789) e opositor ferrenho de Robespierre e do Terror, relacionava o valor da história a sua utilidade de ilustrar os homens. Em sua preleção de posse à cátedra citada (em 1819), a história e a instrução da prudência contemporânea assumem lugar central. “Cabe à história começar o que acaba o hábito dos negócios, lançar nos espíritos atentos os primeiros elementos do conhecimento dos homens e os germes dessa verdadeira sabedoria que se compõe de prudência e de probidade {…}” (I, p. 80).

As inspiradoras palavras de Lord Acton, aos “companheiros estudantes”, sobre o poder das ideias de movimento e mudança presentes na perspectiva dos historiadores modernos sobre a chave da “Lei da Estabilidade”, que compele os homens “a compartilhar da existência de sociedades mais amplas que as nossas próximas, a sermos familiares com tipos diferentes e exóticos {…}” (I, p. 265). Ou ainda as instigantes reflexões de Louis ­Bordeau sobre a necessidade lógico-existencial do progresso para a vida humana: a “lei de um contínuo crescimento, de um porvir sem final previsto” (I, p. 304-305). Isto é, a necessidade da história de educar, de transmitir e de estimular o desenvolvimento da capacidade de aprimoramento humana no seu processo de civilizar-se, ou seja, de aumentar sua capacidade para o bem-estar de todos. As prudentes observações de Ernst ­Troeltsch sobre a “crise da ciência histórica” (1922) igualmente têm interesse bastante atual. À sua época, e em sua leitura, a crise se inseria entre os muitos rescaldos dos acontecimentos da Guerra Mundial (1914-1918). Nesse sentido, o “gigantesco alimento” espiritual (cultura histórica) produzido pela ciência histórica vigorosa, organizada, especializada e profissional paulatinamente afugentava interesses mais espontâneos da juventude na qual sua geração depositava as esperanças por um futuro melhor. A ciência histórica tornou-se impessoal demais, rígida demais, curiosamente se aproximando daquilo que as ciências naturais faziam há tempos. A juventude, agora acusada de a-histórica, espantava-se diante do monumento de erudição exigido pela ciência da história. Eis o problema: “A opção pela barbárie, que para muitos hoje nos ronda como espectro ameaçador ou como salvação sedutora, é onde se instala a consequência de amplas transformações mundiais, e não a resolução de uma juventude afogada em livros” (I, p. 451). Em uma palavra, a crise dos fundamentos filosóficos gerais, das concepções dos valores históricos e dos elementos constitutivos do pensamento histórico diante dos rumos da humanidade, das necessidades da vida, dos dilemas do presente, que clamam por respostas novas. Fundamentos formulados em tempos “de paz” já não dariam mais conta de embasar uma ciência humana diante das experiências e eventos terríveis como a guerra de trincheiras, por exemplo.

Neste espírito, o segundo volume segue a forma do anterior, igualmente refletindo sobre a natureza da história. Com o texto introdutório a cargo de Allan Megill, tem-se um autor em maior sintonia com o volume que ele apresenta e com o espírito da coleção. A seleção de autores segue a mesma linha analisada anteriormente, porém, prioriza as críticas ao historicismo – ou à “razão metódica” – que emergiram num contexto em que as certezas do progresso e da civilização do mundo liberal burguês europeu do fin-de-siècle: um “em tempo de crise existencial” (II, p. 11). Megill conduz sua introdução seguindo o fio das formulações da “teoria da história”, ou de um “segundo tempo” de teóricos da história que julga decisivo para a reestruturação do lugar e do papel da história como saber científico (moderno) no mundo ocidental.

Primeiramente, cabe destacar que Megill emprega um conceito específico de teoria da história, cuja afinidade maior repousa sobre o grande projeto de Jörn Rüsen, evidentemente ao lado de outros historiadores vinculados ao que se poderia chamar de “Droysen Renaissance“. Assim, teoria da história é aqui compreendida como elaboração de uma reflexão do sujeito do conhecimento sobre si mesmo e sua operação enquanto produção de conhecimento científico. Assim, a teoria da história acontece como autorreflexão incessante do pensamento histórico: que antecede (torna possível), ultrapassa (é intersubjetivo) e, necessariamente, atravessa de uma ponta a outra o trabalho histórico.6 Em uma palavra, para Megill, teoria da história não é mero adereço (ou apêndice) ao trabalho empírico, mas o próprio âmbito reflexivo que constitui e torna exequível e reconhecível a pesquisa e a escrita como sendo históricas a partir da reflexão sobre princípios, conceitos, procedimentos, estratégias e funções daquilo que fazem os historiadores quando fazem história buscando, com isso, compreender criticamente tudo o que está envolvido em tal operação.

É neste sentido que Megill enreda os autores selecionados para o segundo volume a partir do conceito de teoria da história. Ou seja, compreender e distinguir a história de outras ciências ou saberes seria o objetivo ideal que confere coesão a esse grupo. Diante do desafio positivista de formular “a” ciência de uma vez por todas, rejeitando quaisquer outras formas de história como a-científicas, a própria exploração teórica dos projetos historiográficos tornou-se parte do fazer histórico. Nesta análise, a questão fundamental é: “Qual a natureza da disciplina histórica?” (II, p. 19-20). De muitas formas ela é atravessada por antinomias, como a diferenciação entre ciências do espírito (­Geisteswissenschaften) das ciências da natureza (Naturwissenschaften). Sob essa luz pode-se entender, por exemplo, a questão do particular e do geral de W. Windelband (II, p. 152-169), K. Lamprecht (II, p. 137-146) e F. Meinecke (II, p. 263-271); a diferenciação entre ciências nomotéticas e idiográficas, presentes no idealismo neokantiano de H. Rickert (II, p. 185-199) e W. Dilthey (II, p.1 24-129); ou ainda as duas éticas de M. ­Weber (II, p. 226-230), a “ética de convicção” (vida pessoal) e a “ética de responsabilidade” (vida política). Essas últimas figuram como parte da solução weberiana para o crítico debate sobre qual seria o procedimento mais indicado para a produção de conhecimento sobre as coisas humanas. A aliança entre história e sociologia, ambas compreensivas, na proposta de Weber, em que a primeira estaria irremediavelmente atada aos desenvolvimentos conceituais (formulações oriundas de reflexões empíricas de um inventário das diferenças) da segunda, para pensar casos individuais de modo comparativo. Há outras alternativas, é claro.

O nome de um filósofo como Nietzsche não poderia, no entanto, ser facilmente integrado a este conjunto. E se autores como Weber, Collingwood ou Croce podem figurar ali, para Megill a presença do Solitário de Sils Maria entre os eminentes historiadores e teóricos resulta em incômodo. Os primeiros teriam conseguido, como “verdadeiros” teóricos da história, “redefinir a objetividade histórica”, de modo a preservar “sua utilidade como, no mínimo, uma ideia reguladora” (II, p.35). De modo que, se por um lado ele reconheceu o mérito de Nietzsche ter afirmado que tudo passa, “não há fatos eternos” (II, p. 18), por outro, pesa-o como um crítico assaz feroz da cultura moderna e de seu projeto crítico. Não posso deixar de notar em sua crítica o peso de seu posicionamento epistêmico (pró-objetividade, rigor e verdade). Isto é, sua artilharia se volta mais às alternativas teóricas inspiradas no pensamento de Nietzsche, como a meta-história de Hayden White, por exemplo, do que ao filólogo propriamente. Porém, não deixa de estigmatizar como o “santo padroeiro do ataque contra as noções impregnadas de progresso” (II, p. 26) como uma personalidade que “os historiadores poderiam facilmente desprezar – afinal de contas, era um extremista, um louco e um filósofo” (II, p. 27).

Ora, apesar de a coleção ser “de história, sobre historiadores e feito por historiadores”, como esclarece o organizador (I, p. 7), há também espaço para a sempre bem-vinda interdisciplinaridade. Isso prevalece no primeiro volume, com as contribuições da antropóloga Lilia Moritz Schwartz, do filósofo e educador Leandro Konder (1936-2014), da socióloga e cientista política Teresa Cristina Kirschner e da tradutora, mestre e doutora em Letras Daniela Kern. Evidentemente, os historiadores de ofício (Teresa Malatian, Julio Bentivoglio, Sérgio Campos Gonçalves, Marco Antonio Lopes, Temístocles Cezar, Helenice Rodrigues da Silva, Raimundo Barroso Cordeiro Júnior, José Carlos Reis e Sérgio da Mata, além, é claro, de Dosse e do próprio organizador da antologia) prevalecem em número e, sem dúvida, parte decisiva da atividade profissional deles envolve pesquisas sérias em história intelectual, das ideias e/ou da historiografia. O segundo volume é praticamente todo composto por contribuições introdutórias de historiadores profissionais (Cássio Fernandes, Oswaldo Giacoia Jr., José Carlos Reis, Sérgio Duarte, Carlos Oiti Berbert Jr., Sérgio da Mata, René Gertz, Pedro Caldas, Arthur A. Assis, Núncia Santoro de Constantino, Cristiano Arrais, Sérgio Campos Gonçalves, Edgar e Mauro de Decca, Carlos Aguirre Rojas, Raimundo Barroso Cordeiro Jr., além de Allan Megill e Jurandir Malerba). Talvez o recorte disciplinar privilegiado no segundo volume tenha por meta evidenciar a importância e a necessidade do campo histórico como sendo parte de um conjunto de reflexões racionais, mais e mais especializadas, de um projeto crítico do qual o “segundo tempo de teóricos da história” faz parte e ainda poderia ensinar muito, no qual a história se tornou o que de melhor poderia se esperar: uma ciência – como, ao final do volume poderá ser identificada nas palavras de Lucien Febvre (II, p. 488). Ou ainda, como sustenta Megill, que as tarefas do historiador consistiriam somente em conduzir pesquisas históricas, ensinar história e produzir relatos da história – levando em conta os dilemas e desafios da contemporaneidade. Aliás, a questão da contemporaneidade da história pode ser analisada de modo excepcional nas obras daqueles que versaram sobre a relação da história com o presente, como Benedetto Croce, Robin George Collingwood, ou ainda de autores como Charles Beard, James Harvey Robinson e Marc Bloch e Lucien Febvre.

Seria injusto destacar méritos individuais aqui, uma vez que todos os ensaios introdutórios cumprem com sua função de relacionar aspectos importantes da vida e obra do autor apresentado ao texto inédito deste que se segue, tendo os artigos sido realizados por um grupo de profissionais de reconhecida experiência e competência. Alguns desses textos são mais concisos. Outros, contudo, ultrapassam bastante as expectativas, sendo tão analíticos e pormenorizados que, por vezes, ultrapassam os limites dos textos que deveriam apresentar. É o caso, por exemplo, da introdução de “Fado e história”,7 de Nietzsche, de Oswaldo Giacoia Junior. Seu texto aprofunda passo a passo as meditações sobre a utilidade e desvantagens da história (Historie) para a Vida, escrita por Nietzsche quase vinte anos depois de “Fado e história” (1874), assim como seus desenvolvimentos em sua Genealogia da moral e Para além do bem e do mal. Mais do que isso, apresenta claramente ser um leitor de Nietzsche na esteira de Martin Heidegger, para o qual o historicismo, como perspectiva de consideração da história, perderia de vista o essencial:

{…} que o sentido histórico, é antes de tudo, o vetor que se abre no sentido da historicidade da condição humana, cuja natureza essencial se determina em relação ao tempo, à passagem do tempo, nas dimensões do passado, do presente e do futuro, e, portanto, em relação às experiências fundamentais do ser humano com a finitude, o sofrimento e a morte, cujo sentido somente se descerra no horizonte existencial do tempo. (II, p. 93)

Assim, ao terminar a leitura, não posso deixar de lamentar que a coleção se encerre apenas nestes dois volumes. Retomando um pouco a referência ao texto de George Steiner, com a qual escolhi abrir esta resenha, e a diferença entre traditio e paradidomena, é de se lamentar que tenha ficado de fora do projeto todo o debate contemporâneo (de 1945 até os dias de hoje), com autores importantes e questões decisivas da historiografia que, ainda hoje, suscitam debates. Isto renderia alguns volumes interessantíssimos e enormemente enriquecedores nos quais poderiam ser abordadas as reflexões sobre duração (Braudel); a importante História dos Conceitos (Begriffsgeschichte) e as reflexões sobre o tempo histórico (Reinhart Koselleck); a micro-história italiana (Carlo Ginzburg e Giovanni Levi); a problemática da operação historiográfica na sociologia do conhecimento histórico de Michel de Certeau; as contribuições da epistemologia histórica de Michel Foucault, que reconstrói estruturas de regimes discursivos e propõe uma arqueologia do saber (por períodos epistêmicos) na fronteira entre linguagem, economia e vida; o projeto teórico de Jörn Rüsen; as relações entre história e psicanálise (Jan Assmann e Peter Gay); entre história e trauma (Dominick LaCapra, Saul Friedlander); a retomada do debate sobre as relações entre história e literatura (Stephen Greenblatt); o debate sobre ética e poética em historiografia desde o Metahistory de Hayden White (seguido por autores tão diferentes quanto Keith Jenkins, Frank Ankersmit, Herman Paul e outros); as questões e problemas suscitados pelo linguistic turn; a viragem para o tratamento da historicidade na fenomenologia ontológica de Martin Heidegger; a filosofia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer; as reflexões de Paul Ricoeur sobre as problemáticas relações entre memória, história e esquecimento (e perdão); a defesa do niilismo (ativo) de Gianni Vattimo; as recentes e promissoras reflexões entre história e filosofia da presença (Hans Ulrich Gumbrecht e Ethan Kleinberg); o giro ético-político, o deslocamento do pensamento de matriz metafísica pela ética e pelo engajamento no mundo (Jacques Derrida); entre tantos outros autores/temas. Tais obras fariam uma enorme diferença no panorama apresentado, pois daria sequência a importantes diálogos presentes nos dois volumes que constituem a coleção.

Inclusive, o aumento exponencial de referências e debates auxiliaria a desfazer o panorama em que o formato “histórico-sociológico-científico” da história (o projeto crítico moderno) – profundamente enraizado no paradigma historicista -, apesar de toda sua autocrítica, autorreflexão e erudição, parece ainda constituir o “sentido” (ou o “fim”) de um desenvolvimento linear e progressivo da disciplina. Avanço retilíneo no qual o tempo dos historiadores (configurado em suas narrativas) se confunde com o tempo “em si” e com a própria história. Ora, está em questão aqui um desejo por transmissão; uma herança captada que se quer patrimônio. Portanto, que reflete algo para o presente. Se este é um dos caminhos possíveis, é desejável supor que outras direções possam se desenhar nos horizontes dos historiadores se e quando o esforço de investigação dos autores e tradições intelectuais, filosóficas e historiográficas for impulsionado por uma força analítica que retire seu vigor de algo além da curiosidade (genealógica), ou da propriedade, de uma “história da história” disciplinar. Exercício que, embora crítico e quase sempre muitíssimo bem feito, muitas vezes termina por restringir nossas perspectivas teóricas e historiográficas no (e ao) presente, em vez de alargá-las. A história da historiografia, hoje talvez mais do que a história intelectual e a das ideias, pode oferecer meios para abrir ainda mais o nosso campo de possibilidades.

Finalmente, a publicação da coleção evidencia o crescimento e o fortalecimento qualitativo do campo de Teoria da História e História da Historiografia nos últimos anos no Brasil. Pode-se perceber isso entre os professores convidados para ambos os volumes, muitos deles figuras de atuação e destaque no campo. Reflete-se aqui o aumento do espaço que as revistas especializadas dedicaram a esse enfoque,8 elevando o rigor analítico e de pesquisa. Isso também é mensurável nas propostas de simpósios temáticos e minicursos oferecidos nos disputadíssimos encontros nacionais e regionais da ANPUH, além de outros eventos, tanto os de caráter local quanto nacional, que se consolidam como parte permanente da agenda dos especialistas desta comunidade.9 Todo professor de história que trabalhe com história da historiografia, história intelectual, história das ideias e teoria da história, ciente de que não se tratam da mesma coisa, sabe das dificuldades de encontrar bom material sobre alguns desses “mestres” e debates do (e no) passado. Temos aqui uma contribuição valiosa à bibliografia sobre história e historiadores modernos. A coleção, sem dúvida, ajuda a dirimir algumas das muitas lacunas nesse sentido, especialmente em língua portuguesa.

Referências

ASSIS, Arthur A. What Is History For? Johann Gustav Droysen and the Functions of Historiography. Nova York: Berghahn Books, 2014. [ Links ]

CALDAS, Pedro S. Que significa pensar historicamente: uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav Droysen. Tese (Doutorado) – Departamento de História da PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2004. [ Links ]

DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. [ Links ]

MARTINS, Estevão de Rezende. Historicismo: o útil e o desagradável. In: ARAUJO, Valdei Lopes de… {et al.} (Orgs.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. [ Links ]

MATA, Sérgio da. Elogio do historicismo. In: ARAUJO, Valdei Lopes de… {et al.} (Orgs.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos sobre história. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005, p. 59-65. [ Links ]

RÜSEN, Jörn. Razão histórica I. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2001. [ Links ]

STEINER, George. Lições dos mestres. Rio de Janeiro: Record, 2005. [ Links ]

1STEINER, George. Lições dos mestres. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 12-13.

2Para economia do texto, citarei apenas “(I, p. x)”, em referência ao primeiro volume, e “(II, p. x)” ao segundo da coleção.

3Como nos ensina Estevão Rezende Martins, o termo “historicismo” deriva de uma tradução de “segunda mão”: Historicism (no inglês) que verteu Historismus, termo inicialmente empregado por Friedrich Schlegel ainda em fins do século XVIII. Ver: MARTINS, Estevão de Rezende. Historicismo: o útil e o desagradável. In: ARAUJO, Valdei Lopes de… {et al.} (Orgs.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008, p. 15-48. Ou ainda, Sérgio da Mata, na esteira de A. Wehling, analisou que o historicismo pode também ser definido como uma atitude (espiritual) diante da realidade, da vida e da cultura, mas que emergiu entre fins do XVIII e inícios do século XIX. Pode-se dizer que nesta definição consta um pouco da visão de Herder, lamentavelmente ausente na coletânea, além, sem dúvida, das perspectivas de Ernst Troeltsch e Friedrich Meinecke. Ver: MATA, Sérgio da. Elogio do historicismo. In: ARAUJO, Valdei Lopes de… {et al.} (Orgs.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna, op. cit., p. 49-62. Esses dois últimos autores (como poderá ser conferido nas suas respectivas sessões da coletânea) definiram para o impulso historicista alemão em direção à realidade, cada um a sua maneira, a dinâmica da mudança no tempo (desenvolvimento) além, é claro, do caráter irrepetível dos fenômenos humanos, como bem salientou Dosse.

4No Brasil, a obra de Droysen foi lançada sob o título Manual de teoria da história, com tradução de Sara Baldus e Júlio Bentivoglio. Este último contribuiu para a coleção, assinando pelos textos de dois autores seminais do pensamento histórico oitocentista, Leopold von Ranke e G. G. Gervinus, ambos no primeiro volume da Coleção. DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

5Sobre Droysen e o monumental projeto de sua Teoria da História (Historik), ver: CALDAS, Pedro S. Que significa pensar historicamente: uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav Droysen. Tese (Doutorado) – Departamento de História da PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2004. Ver também: ASSIS, Arthur A. What Is History For? Johann Gustav Droysen and the Functions of Historiography. Nova York: Berghahn Books, 2014.

6Para Rüsen, a teoria da história apreende os fatores determinantes do conhecimento histórico, aqueles que delimitam o campo inteiro da pesquisa histórica e da historiografia. Identificá-los todos e demonstrar sua interdependência sistemática é o que seu projeto almeja. Esse sistema é dinâmico e o autor assevera que o historiador deve saber articular tais reflexões a uma “matriz disciplinar”, que se caracteriza pelo envolvimento circular de cinco elementos fundamentais: ideias, métodos, formas, funções e interesses. Segundo ele, essa matriz é uma formulação conceitual (teórica), mas subjaz à racionalidade que ele diz estar na base de toda instituição de sentido histórico. Ver: RÜSEN, Jörn. Razão histórica I. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2001.

7A tradução do alemão aqui é inédita, embora este texto não seja inteiramente desconhecido do público brasileiro. Foi traduzido, a partir da versão espanhola, como “Fatum e história” In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos sobre história. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005, p. 59-65.

8O Brasil hoje conta com a História da Historiografia, revista Qualis A1 (de excelência, segundo a Capes) exclusivamente dedicada aos grandes temas e subtemas da Teoria da História e da História da Historiografia.

9Entre outros, pode-se destacar também o Simpósio Brasileiro de História da Historiografia (SNHH), realizado anualmente na cidade de Mariana (MG) desde 2006 pelo Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade baseado no Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto (NEHM/ICHS/UFOP), e berço fundador da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH), em 2009.

Andre de Lemos Freixo – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Ouro Preto, MG, Brasil. E-mail: andredelemos@gmail.com.

A história escrita. Teoria e história da historiografia | Jurandir Malerba

A teoria da história é mais do que apenas um pensamento sistemático sobre a História e sua escrita; a narrativa história se mostra, cada vez mais, complexa, por suas tensões entre fatos e ficções, verdade e imaginação, objetividade e subjetividade, fontes documentais e as retóricas do discurso; a historiografia não é apenas o discurso circunstanciado sobre as obras históricas, mas fixa-se, cada vez mais, em todo discurso sobre o passado. O que a coletânea de textos organizados por Jurandir Malerba nos mostra, em resumo, é um ‘fazer história’ mais denso e articulado, com as questões de nosso tempo.

Ao reunir as contribuições de Horst Walter Blanke, Massimo Mastrogregori, Frank Ankersmit, Jörn Rüsen, Angelika Epple, Masayuki Sato, Arno Wehling, Hayden White e Carlo Ginzburg, nos oferece uma mostra do resultado dos debates das últimas décadas a respeito da história da historiografia, da teoria da história, da epistemologia histórica, quanto ao princípio de realidade, ao gênero, a comparação e a narrativa. Para ele:

O critério principal para a seleção dos textos que constituem a presente obra foi a intenção de compor um painel, o mais amplo possível, dos campos problemáticos presentes na construção de uma teoria da historiografia, com vistas ao aprimoramento prático de uma revigorada história da historiografia. Nesse sentido, os textos […] reunidos oscilam da reflexão teórica acerca do conceito de historiografia para a reflexão crítica de uma epistemologia da história, passando necessariamente pelas potencialidades e limites metodológicos que cada caminho apresenta. Tratam-se, como é notório, de autores consagrados do pensamento histórico contemporâneo, provenientes das mais distintas tradições nacionais e simpatias teóricas.[1]

Para articular tais textos, o autor os posicionou em quatro blocos, a saber: a) os de que “o foco recai primordialmente sobre o conceito de historiografia e o estatuto teórico do texto historiográfico”, como se vê no texto de Blanke, Mastrogregori e de Arkersmit; b) “por ensaios com propostas mais teórico-metodológicas para o campo da história da historiografia propriamente dita”, como nos casos de Rüsen, Sato e de Epple; c) “discussão teórica da prática historiográfica para o campo da epistemologia”, em que se apresentam Wehling; d) e, no último “seria quase um exemplo das implicações políticas do exercício historiográfico, que tomamos propositadamente no exemplo-limite da história do Holocausto”, por meio do debate entre os textos de White e Ginzburg.

Além dos textos ora indicados, a coletânea ainda é enriquecida com o capitulo de Malerba, que indica os principais eixos das discussões sobre teoria e história da historiografia ocorridas no século passado. Para ele, haveria, sem dúvida, uma tensão entre, de um lado, o “anti-realismo epistemológico, que sustenta que o passado não pode ser objeto do conhecimento histórico ou, mais especificamente, que o passado não é e não pode ser o referente das afirmações e representações históricas”[2] , e, de outro, o “narrativismo, que confere aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso, inerentes a seu estatuto linguístico, a prioridade na criação das narrativas históricas.”[3] Em ambos os casos, a pesquisa histórica esteve ancorada em matrizes, senão frágeis, ao menos em constante pressão, e com necessidade de justificação perante as outras áreas do saber. Mas, o “caráter auto-reflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador da História no conjunto das ciências humanas.”[4]

Para Blanke, a “história da historiografia é uma atividade nova”, que esteve ao lado “do desenvolvimento da história como disciplina independente e com pretensões científicas”, com início “na época do iluminismo.”[5] Suas características estariam balanceadas entre tipos (história dos historiadores, história das obras, balanços gerais, história da disciplina, história das idéias históricas, história dos métodos, história dos problemas, história das funções do pensamento histórico, história social dos historiadores, história da historiografia teoricamente orientada) e funções (afirmativa e crítica). Não por acaso, Mastrogregori ressaltará que as “possibilidades de contato são certamente inúmeras”[6], visto a complexidade da tarefa de se efetuar adequadamente uma história da historiografia. Para Ankermist, tal tensão “nos confronta diretamente com o problema do relativismo resultante da historicização do sujeito histórico.”[7] Como nos indica Rüsen, a “historiografia é uma maneira específica de manifestar a consciência história”, porque “apresenta o passado na forma de uma ordem cronológica de eventos apresentados como ‘factuais’, ou seja, com uma qualidade especial de experiência.”[8] Por isso:

Não há cultura humana sem um elemento constitutivo de memória comum. Ao relembrar, interpretar e representar o passado, as pessoas compreendem sua vida cotidiana e desenvolvem uma perspectiva futura delas próprias e de seu mundo. História, nesse sentido fundamental e antropologicamente universal, é uma reminiscência interpretativa do passado de uma cultura, que serve como um meio de orientar o grupo no presente. Uma teoria que explica esse procedimento fundamental e elementar de dar sentido ao passado consoante à orientação cultural no presente é um ponto de partida para a comparação intercultural. Tal teoria tematiza a memória cultural ou a consciência histórica que define o objeto de comparação em geral. Ela serve como definição categórica do campo cultural no qual a historiografia toma forma. […] [e] a historiografia aparece, na sua estrutura geral da consciência histórica ou memória cultural, como uma forma específica de uma prática cultural básica e universal da vida humana.[9]

Ao levarem a cabo uma intensa discussão sobre o caso do Holocausto, White e Ginzburg promovem uma verdadeira investigação a respeito do lugar do enredo na narrativa histórica e de que maneira se configura o princípio de realidade, que dá forma e modela o discurso histórico.

Em todos esses aspectos, a coletânea em pauta, traz mostras de um panorama rico e denso dos intensos debates que circunstanciaram a produção da história da historiografia no século passado, cujas marcas e implicações ainda vemos nos resultados apresentados pela pesquisa histórica.

Notas

1. MALERBA, op. cit., 2006, p. 8.

2. MALERBA, op. cit., 2006, p. 13.

3. MALERBA, op. cit., 2006, p. 14.

4. MALERBA, op. cit., 2006, p. 15.

5. MALERBA, op. cit., 2006, p. 27.

6. MALERBA, op. cit., 2006, p. 87.

7. MALERBA, op. cit., 2006, p. 98.

8. MALERBA, op. cit., 2006, p. 125.

9. MALERBA, op. cit., 2006, p. 118

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).


MALERBA, Jurandir. (Org.) A história escrita. Teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Teoria da história e historiografia. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.6, p.367-371, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Historiografia contemporânea em perspectiva crítica | Jurandir Malerba e Carlos Aguirre Rojas

Apresentar os caminhos do pensamento histórico e de sua escrita no século XX. Esta é a proposta da obra aqui resenhada. Obviamente, o século XIX não pode ser deixado de lado, pois dele procede a matriz historicista, metódica, cientificista que transformou a história numa área acadêmica. Como demonstram diversos capítulos do próprio livro, essa matriz foi universalizada conjuntamente com a expansão da cultura ocidental européia.

Uma das grandes contribuições dos organizadores foi, todavia, demonstrar campos historiográficos muito além do eixo europeu. Ele está presente, claro, nos artigos sobre a recente movimentação historiográfica na França pós-crise dos Annales, no excelente texto acerca da historiografia alemã, nas análises da micro-história italiana, do pensamento histórico espanhol e lusitano. Mas há também estudos sobre as novas tendências da historiografia russa e, especialmente, uma destacada ênfase na produção latino-americana. Em outras palavras, em que pese a influência européia sobre as outras regiões, ela, a Europa, se torna provicializada no decorrer da leitura. Leia Mais

A Independência brasileira: novas dimensões | Jurandir Malerba

Em meio aos preparativos para a comemoração dos 200 anos da vinda da corte portuguesa para o Brasil, surge no mercado editorial a A Independência brasileira: novas dimensões. Organizado por Jurandir Malerba, o livro é um convite à reflexão sobre um momento crucial da nossa história. Há muito a historiografia sobre o período colonial vem sendo revista por novas teses que compartilham perspectivas inovadoras e dialogam com o que há de mais recente no meio historiográfico internacional. Os artigos da coletânea, originalmente apresentados no seminário New Approaches to Brazilian Independence, em 2003, na Universidade de Oxford, são o resultado de pesquisas de uma nova geração de historiadores sobre o tema. Seu subtítulo (Novas dimensões) visa tanto sublinhar o valor de uma obra que marcou época – organizada, em 1972, por Carlos Guilherme Mota –, quanto distanciar-se de seus pressupostos e métodos de abordagem histórica.

O instigante artigo de Jorge Pedreira, Economia e política na explicação da Independência do Brasil, abre a primeira parte do livro. Ao discutir os argumentos de uma historiografia “clássica” sobre o tema, contesta as interpretações de Fernando Novais e de Carlos Guilherme Mota, baseadas na crise do antigo sistema colonial, uma vez que, segundo o autor, o império luso-brasileiro conheceu uma notável expansão comercial em sua fase final. O conceito de vulnerabilidade – já utilizado por Valentim Alexandre em Os sentidos do império – aplica-se, segundo Pedreira, para designar aquela conjuntura complexa e mutante, pois nada indicava que o sistema colonial estivesse condenado à desintegração. Analisa as convulsões políticas que abalaram Portugal, a transmigração do rei e da corte para o Brasil, a abertura dos portos, o tratado de 1810, o isolamento do grupo mercantil no Reino. Tais fatores teriam gerado um conjunto impreciso de idéias, assim como projetos de “regeneração nacional”. A análise do espaço de convergência entre os interesses dos corpos mercantis de Lisboa e do Porto e as perspectivas políticas de uma importante facção das cortes constituintes levam-no a concluir que, apesar da relevância das questões econômicas, a dinâmica que desembocou na secessão do Brasil teve um caráter essencialmente político. Leia Mais

Historiografia contemporânea em perspectiva crítica | Jurandir Malerba

Apresentar os caminhos do pensamento histórico e de sua escrita no século XX. Esta é a proposta da obra aqui resenhada. Obviamente, o século XIX não pode ser deixado de lado, pois dele procede a matriz historicista, metódica, cientificista que transformou a história numa área acadêmica. Como demonstram diversos capítulos do próprio livro, essa matriz foi universalizada conjuntamente com a expansão da cultura ocidental européia.

Uma das grandes contribuições dos organizadores foi, todavia, demonstrar campos historiográficos muito além do eixo europeu. Ele está presente, claro, nos artigos sobre a recente movimentação historiográfica na França pós-crise dos Annales, no excelente texto acerca da historiografia alemã, nas análises da micro-história italiana, do pensamento histórico espanhol e lusitano. Mas há também estudos sobre as novas tendências da historiografia russa e, especialmente, uma destacada ênfase na produção latino-americana. Em outras palavras, em que pese a influência européia sobre as outras regiões, ela, a Europa, se torna provicializada no decorrer da leitura. Leia Mais

A história escrita: teoria e história da historiografia – MALERBA (VH)

MALERBA, Jurandir (org.) A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto. 2006. Resenha de: MACHADO, Paulo Pinheiro. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 572-573, jul./dez., 2006.

Do texto viemos, ao texto iremos. Sem querer simplificar o atual debate acerca das diferentes abordagens teóricas sobre a história — seja a história do acontecido ou a escrita sobre o acontecido — é difícil encontrar, em língua portuguesa, livro com um balanço equilibrado e atualizado sobre este debate. A publicação de “A história escrita”, obra de um diversificado grupo de historiadores coordenada por Jurandir Malerba chega para preencher este espaço importante para o debate e a reflexão historiográfica, sendo útil a profissionais, pesquisadores e estudantes. Além da atualidade dos temas e abordagens, os autores não deixam de fazer um abrangente balanço dos impasses, crises e contribuições de importantes historiadores do século XX. As trajetórias intelectuais de Benedetto Croce, Marc Bloch, Lucien Febvre, Le Goff, Arnaldo Momgliano e outros importantes historiadores, são analisadas em diferentes textos, o que dá uma interessante unidade ao conjunto do livro.1

Um dos pontos centrais da discussão é o balanço da contribuição do vendaval pós-estruturalista (ou pós-moderno) sobre a forma de se trabalhar a história. As intervenções dos herdeiros intelectuais de Nietzche, sem dúvida, advertiram a nova geração para as precariedades da ciência e deram sério golpe em noções de finalidade e de progresso da história. A contribuição de Hayden White adverte para a importância das formas narrativas, dos tropos e da grande dose de subjetividade presente na historiografia. No entanto, estas contribuições foram muito pouco férteis no sentido de enfrentar os problemas quotidianos dos historiadores. O debate final da obra, entre White e Ginzburg, sobre uma questão-limite, a “veracidade” do holocausto dos judeus na segunda guerra mundial, acaba por levantar importantes considerações políticas e morais das concepções mais analíticas dos textos e menos inquiridoras de “indícios” e “provas” do que pode ser considerado como “realidade”.

O ponto mais inovador da coletânea é a necessidade de avaliação, comparação e crítica historiográfica. Estamos acostumados a fazer balanços historiográficos sem critérios muito precisos do que deva ser considerado. Além de considerações aleatórias do “gostar” e do “não gostar” de determinados textos, os autores nos chamam a atenção para a avaliação da excelência de nosso ofício. Deverá o historiador, como Heródoto, ser um hábil escritor para cativar seus leitores com a beleza de sua narrativa? Ou devemos, como Tucídides, despreocuparmos com a beleza e atentarmos para a precisão e utilidade de nosso labor? A eleição de critérios para a avaliação e debate historiográfico depende de escolhas teóricas dos autores. Jurandir Malerba, recuperando Benedetto Croce, lembra que, como a crítica poética critica a “poeticidade”, na crítica historiográfica se avalia a “historicidade”, o que abre caminho para considerar a crítica historiográfica como parte integrante da pesquisa histórica. Uma boa discussão sobre termos comparativos na relação entre historiografia ocidental e oriental encontramos no texto do professor Masayuki Sato, da Universidade de Yamanashi, no Japão. Com ele aprendemos que além de considerações teórico-metodológicas este debate precisa incorporar diferenças culturais, já que a história tem especificidades como ofício em diferentes culturas, além de distintos estatutos públicos. Importante discussão neste sentido é levantada por Jörn Rüsen, da Universidade de Bielefeld, Alemanha, no entanto, seu quadro de periodização do pensamento histórico parece algo excessivamente esquemático e contraditório com a proposta original. Angelika Epple, da Universidade de Hamburgo, em texto muito inteligente, propõe um alargamento das fontes para considerar uma história e historiografia das mulheres, além dos limites acadêmicos, ou seja, abrir para admissão de narrativa histórica textos literários, onde sempre houve forte presença feminina.

Enfim, temos a disposição do público uma coletânea com diferentes aspectos das teorias, das metodologias e das fontes historiográficas que procuram criar pontes de discussão e interlocução entre diferentes tradições historiográficas nacionais.

Nota

1 Além de Jurandir Malerba, publicam nesta obra Angelika Epple, Arno Wehling, Carlo Ginzburg, Frank Ankersmit, Hayden White, Horst Walter Blanke, Jörn Rüsen, Masayuki Sato e Massimo Mastrogregori.

Paulo Pinheiro Machado – Doutor em História pela UNICAMP e professor do Departamento de História UFSC. E-mail: pmachado@mbox1.ufsc.br

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Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar – CARDOSO; MALERBA (RBH)

CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 288p. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

A organização de uma coletânea voltada para o debate acerca das representações configura um projeto ambicioso, dada a complexidade que o próprio tema encerra. A obra, além de contemplar o necessário equacionamento do conceito, indica diferenciadas tendências teóricas e contribui para o aprofundamento da reflexão no âmbito da pesquisa histórica, sua natureza epistemológica e hermenêutica. Se uma ressalva pudesse ser feita, apontar-se-ia a ausência de uma detida análise sobre as relações entre a história das artes e as representações ¾ um terreno fértil, mas pouco explorado pela historiografia, especialmente no campo das produções pictóricas e da plasticidade.

No seu conjunto, o volume reúne ensaios que, mediante distintas interpretações, apresenta abordagens que enfocam desde as implicações da representação como objeto histórico até a constatação de sua dimensão lingüística na produção historiográfica. Embora aponte os riscos da utilização indiscriminada da noção supracitada e de determinados paradigmas teóricos sem as devidas precauções metodológicas, o trabalho parte do reconhecimento de que a representação tornou-se uma das pedras angulares do discurso histórico contemporâneo e, como tal, procura caracterizar sua índole e função cognitiva.

Entre as contribuições do volume, chama especial atenção a análise do conceito de representação política na esfera da produção historiográfica brasileira, efetuada por Maria Helena Rolim Capelato e Eliana Regina de Freitas Dutra. As autoras reconhecem a multiplicidade das abordagens, objetos e referenciais metodológicos que têm sido alvo das investigações no âmbito do político, todavia advertem que tal fato não deve ser atribuído aos modismos historiográficos passageiros que tendem a privilegiar os estudos voltados para as representações do poder e do exercício político e sua articulação com a vida social brasileira. Muito pelo contrário, esse deslocamento, do ponto de vista das historiadoras, resulta das aberturas epistemológicas e da operacionalidade proposta pelo estruturalismo e pós-estruturalismo. Nesse contexto, a análise proposta volta-se inicialmente para a identificação dos caminhos percorridos pelo conceito de representações, sua dimensão epistemológica e prática no campo das investigações históricas. E, num segundo momento, procura verificar o impacto do mesmo em cerca de uma centena de dissertações de mestrado e teses de doutorado concluídas nos anos 90, no Brasil.

Com o intento de promover um balanço historiográfico dessa produção, a reflexão abarca desde a análise do elenco dos temas abordados1 até o cômputo das fontes utilizadas nos referidos trabalhos2. A incidência de um confronto entre as posturas adotadas nesses trabalhos e os pressupostos teóricos que informaram as produções dos períodos anteriores às analisadas revelou a tentativa desses pesquisadores estabelecerem um exercício de interlocução com as tendências historiográficas internacionais. Se, por um lado, como salientam as autoras, percebe-se que o resultado de tais iniciativas parecem ter-se reduzido a um tratamento descritivo e pouco analítico, que em última instância revelou significativa dificuldade de compreensão do espaço da política. Por outro, a referida pesquisa possibilitou constatar a importância desse novo campo para a historiografia nacional, além da incorporação de novas fontes e objetos.

Não obstante a constatação do esforço dos profissionais brasileiros, torna-se imperioso admitir, segundo Capelato e Dutra, que mesmo os estudos portadores de maior eficácia empírica e metodológica, não conseguem superar as armadilhas inerentes às simplificações e demonstram uma efetiva dificuldade de aprofundamento teórico pertinente aos conceitos formadores da explanação do conhecimento histórico. Tal assertiva fundamenta-se no rastreamento da noção de representação e na instrumentalização do termo associada às teorias semiolingüísticas consolidadas nos anos 60 e vinculadas à lógica das articulações entre linguagem, símbolo, imaginário e representação. Na trilha dos suportes que embasaram teórica e metodologicamente as pesquisas no campo das humanidades, as autoras pontificam os encaminhamentos propostos por destacados pensadores como Marin, Castoriadis, Lefort, entre outros expoentes.

Nessa direção, a proposta de Capelato e Dutra termina intercruzando-se com as inferências implícitas no texto de Francisco J. C. Falcon, que se ocupa prioritariamente da discussão das matrizes teóricas que informam a construção do conceito de representações. Este, por sua vez, apropriadamente, antes de investigar as acepções das representações, propõe-se a pontuar a concepção do discurso histórico mediante a análise de distintas correntes historiográficas, mais precisamente, na perspectiva dos modernos e na dos pós-modernos. De um extremo ao outro, tende a sublinhar o trânsito do conceito: para esses últimos a representação figuraria como negação do conhecimento histórico, enquanto para os primeiros seria reconhecida como parte integrante do próprio discurso da disciplina. Enveredando pelo circunstanciamento dessa problemática no campo da história cultural, Falcon recupera usos e interpretações do conceito na historiografia atual. Assim, termina resgatando etimológica e cognitivamente acepções do termo e do conceito, ocupando-se das articulações entre representações, ideologia e imaginário, e também do mapeamento de algumas das principais obras dedicadas ao tema em questão.

Assim como Falcon, Helenice Rodrigues da Silva empenha-se na recuperação genealógica das representações e seus sentidos na disciplina histórica, debatendo a operacionalidade da noção de representação na esfera da historiografia francesa. Ao procurar acompanhar a trajetória na qual os estudiosos da história cultural e da história política foram atribuindo primazia ao conceito, ao longo da década de 1970, a autora alerta para a necessidade de se relativizar a importância da noção de representação na prática histórica. Nesse horizonte, ressalta que no universo das renovações teóricas e metodológicas processadas nessa área, a história das representações tendeu a firmar-se como complemento e nova orientação da história cultural, uma vez que significou, para os herdeiros da tradição dos Annales, a possibilidade de integração dos atores individuais ao social e histórico. Desse modo, como propõe Roger Chartier, o conceito permitiria a associação entre antigas categorias que a história social, a história das mentalidades e a história política mantinham separadas3. Em síntese, Silva procura evidenciar como a noção de representação, largamente utilizada em disciplinas como a sociologia e a psicologia (entre outras), tendeu a substituir o conceito de mentalidades na pesquisa histórica e de que forma viria a contribuir para a integração dos distintos domínios da disciplina.

Reportando-se às múltiplas facetas que o conceito implica, Ciro Flamarion Cardoso principia sua análise por intermédio de uma tentativa de perceber as motivações que informaram a denominada “virada cultural” na produção histórica da atualidade. Nesse sentido, detecta as implicações de três dos seus desdobramentos na esfera da nova história cultural4. Do seu ponto de vista, essas tendências tenderiam a inverter as premissas estruturais e explicativas do marxismo e dos Annales, terminando por promover a confecção de uma história cultural do social, em detrimento de uma história social da cultura.

Apesar de entender que as representações contribuem para a edificação de uma dada inteligibilidade do passado, Cardoso mostra-se temeroso em relação à crescente negação do realismo epistemológico, identificado em um número significativo de estudos na área das ciências humanas. Nessa direção, desnuda uma série de vícios que tem informado as pesquisas nessa área do conhecimento, analisa os pressupostos teóricos que fundamentam a obra de Roger Chartier e, posteriormente, debruça-se sobre um minucioso acompanhamento dos usos das representações nos horizontes da psicologia social.

Numa trilha similar, mas apresentando o tema do ponto de vista do sociólogo Norbert Elias, Jurandir Malerba analisa a apropriação que a história vem realizando da noção de representação. Considerando que essa questão deva ser deslocada para o campo da narratividade, o autor busca problematizar os procedimentos mais comuns nessa área. Assim, debate os ditames que orientam a indiscriminada utilização do conceito na historiografia contemporânea, reconduzindo a temática para uma síntese distinta das proposições mais recorrentes. Esse encaminhamento privilegia as articulações entre a teoria simbólica de Elias e a definição de habitus proposta por Pierre Bourdier.

Para Malerba, a teoria simbólica de Elias sugere uma leitura de representações que supera os limites circunstanciais da oposição maniqueísta entre o mundo real e o mundo representado. Nessa linha de argumentação, tal enfoque possibilita a incorporação do homem à natureza escapando de falsos dilemas, processados na edificação da teoria processual do conhecimento e da linguagem, de modo a permitir uma compreensão diferenciada do hábito social. Este, por sua vez, contempla a recuperação de visões da experiência de vida dos indivíduos em sociedade5.

Não menos relevantes são as assertivas de Lúcia Helena C. Z Pulino, Graciela Chamorro e Gustavo Blázquez. Enquanto Pulino equaciona o problema das representações em filosofia a partir da obra de Richard Rorty, Chamorro estabelece as possíveis articulações entre o referido conceito e a teologia, rastreando as representações de Deus na história, apontando as relações da teologia feminista com múltiplas formas do simbolismo (paterno e materno). Por seu turno, Blázquez aborda a maneira como a antropologia social tem-se relacionado com a noção de representação.

À guisa de conclusão, Jurandir Malerba reporta-se, por um lado, à proposta de alinhar possíveis conexões entre os textos que compõem a coletânea, respeitando as particularidades das análises propostas em cada um deles, e por outro, ao desconforto cunhado nas abordagens que tendem a limitar os efeitos das representações em toda e qualquer problemática. Oportunamente, acaba apontando os paradoxos de uma história que se propõe nova, mas enfrenta uma crise de “consciência” da própria disciplina. Para tanto, enfoca tantos os impasses teóricos enfrentados pela história como os problemas inerentes ao estatuto epistemológico da história cultural.

Curiosamente, as evidências ilustram o fato de que a abertura do diálogo da história com outras áreas do conhecimento, a conseqüente ampliação de seus objetos, o corpus documental e as estratégias metodológicas deflagraram aquela que poderíamos nomear como crise de identidade da disciplina e um intenso processo de fragmentação da mesma em múltiplas histórias, tomadas como eixo norteador da explicação sobre as contínuas transformações da sociedade moderna.

Por certo, as razões que motivaram o surgimento desse impasse teórico diante das constantes mutações do objeto histórico passam pela questão do narrativismo histórico. Mas, no contexto de tais transformações, a reflexão acerca das representações tornou-se providencial e seus aportes ganharam, cada vez mais, relevância e interesse por parte dos profissionais da área. Contudo, os excessos unilaterais detectados nas formas de interpretação histórica têm se circunscrito a modismos transitórios e efêmeros.

Sem dúvida, tais contingências explicitam a necessidade de se buscar soluções intermediárias para a abordagem das demandas mais urgentes da sociedade humana, suscitando paradigmas explicativos alternativos. Numa visão de conjunto, torna-se forçoso admitir que as restrições ao conceito de mentalidade propiciaram aos historiadores da cultura a busca de premissas alternativas àquelas assentadas na ambigüidade e na imprecisão, observadas nas articulações entre o mental e o social.

A nova história cultural, longe de tomar como objeto preponderante as interpretações dos expoentes filosóficos e as manifestações formais de cultura (como a arte e a literatura), demonstrou sua “estima” pelas práticas populares ou pelas manifestações das massas inominadas expressas nos rituais religiosos, crenças, festas e resistências cotidianas ao poder instituído.

No terreno da história social e política, o descontentamento com os modelos tradicionais impulsionou também a revisão de axiomas pautados por obnubilantes explicações globais. Desse modo, talvez a conjugação entre o poder e as representações venham a assinalar novos dispositivos de apreensão do saber histórico, sejam eles centrados no estudo do imaginário ou da simbologia política.

Por fim, não se deve furtar de proclamar que os resultados dessa coletânea foram plenamente satisfatórios. Ao superar os propósitos iniciais do projeto, com certeza esse volume se tornará uma obra de referência na esfera da produção historiográfica contemporânea.

Notas

1 Identidade nacional, imagens do poder, representações da política, espetáculos políticos, imagens e símbolos do progresso/modernidade/modernização/desenvolvimento capitalista, produção artística, veículos de propaganda política; instrumentos pedagógicos e meios de comunicação e imagens da cidades, são os temas diagnosticados pelo levantamento efetuado. CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 247.

2 Entre as fontes mais citadas destacaram-se: jornais/revistas/pasquins/relatos jornalísticos; obras literárias/narrativas/crônicas/dramaturgia; memórias/diários/biografias/autobiografias/relatos de viagens; discursos/mensagens/manifestos/escritos políticos; depoimentos; iconografia; fotografia; correspondência; música; estátuas/monumentos/obras arquitetônicas/planos urbanísticos; filmes; álbuns; almanaques; objetos simbólicos/moedas, bandeiras, escudos, emblemas, cartazes; rádio/TV; publicidade; mapas e plantas. Idem, p.249.

3 Idem, pp. 82-83.

4 O autor as nomeia como “virada lingüística”, “virada para o interior” e “virada para exterior”, indicando os respectivos representantes de cada uma delas. Idem, p.11.

5 Idem, p. 218.

Sandra C. A. Pelegrini – Universidade Estadual de Maringá.

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Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar | Ciro Flamarion Cardoso e Jurandir Malerba

Não tenho dúvida de que a publicação desta obra coletiva é oportuna ante o debate e as tendências narrativas observadas na historiografia. É oportuna também em razão da pouca importância dada ao tema pela comunidade de historiadores. Somente nos últimos anos essa comunidade despertou para esse aspecto, e ainda assim de forma tímida, apesar de as representações estarem presentes em todos os objetos de pesquisa e nas formas estruturantes das narrativas historiográficas. Decorre também desse aspecto a dificuldade momentânea de resenhar um livro que contém autores e textos com orientações temáticas e epistemológicas distintas. Na verdade, a obra já recebeu, em seu próprio conjunto, uma resenha do professor Malerba, o qual, na conclusão (p. 269-288), com o intuito de estabelecer a conexão do conjunto de ensaios, propõe um conjunto de idéias para além dos próprios textos. E aqui é necessário fazer-se uma primeira distinção: as representações como objeto histórico para a reconstituição do passado e as representações como objeto narrativo da análise historiográfica. Essa distinção é fundamental, pois ela implica em configurações metodológicas diferentes, as quais, não obstante, podem estar intercambiadas. Talvez o subtítulo do livro “Contribuição a um debate transdisciplinar” possa sugerir um encaminhamento nessa direção. Leia Mais