Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil / Marcos Maio

Raça como questão reúne um conjunto de textos que analisam a problemática racial no Brasil, desde o século XIX até os dias atuais. Como os próprios organizadores afirmam na apresentação do livro, “tratam de temas variados e contextos diversos desde os debates sobre as interrelações entre identidade nacional e raça no fim do século XIX até as presentes vinculações de raça com as tecnologias genômicas”.1 Isso nos permite entender o fio temático dos textos, não obstante possam ser lidos isoladamente.

Para Jean-François Véran, no prefácio à obra, “o conceito de raça [é colocado] na interface entre os três domínios nos quais ele vem sendo elaborado historicamente”,2 quer seja o domínio científico, a dimensão política e o plano social. Decerto, o grande valor de Raça como questão não é somente instigar o leitor a participar da discussão sobre o entendimento de “raça” na dinâmica histórica, mas também compreender como esse conceito é formulado nos âmbitos da ciência, da política e do social.

O primeiro capítulo, “Entre a Riqueza Natural, a Pobreza Humana e os Imperativos da Civilização, Inventa-se a Investigação do Povo Brasileiro”, de Jair de Sousa Ramos e Marcos Chor Maio, serve como uma espécie de introdução, pois contextualiza os primórdios da apropriação do conceito europeu de raça pelos intelectuais brasileiros, na segunda metade do século XIX e início do século XX. Esse fato não estava dissociado do que se entendia por civilização, cujo eixo central era a Europa em relação à periférica América Latina.

Nesse período do pensamento ocidental, em que a ideia bipolar do mundo era suficiente para explicar a realidade, havia um projeto de dominação no plano político, ao lado de certo desinteresse em desvendar cientificamente a origem do homem. Nesse sentido, criou-se por parte de escritores europeus a explicação a cerca do “povo” brasileiro, a partir da noção de “natureza exuberante versus raça deficiente”.3

Influenciados pelo pensamento europeu, intelectuais brasileiros tentaram, paradoxalmente, formular uma ideia positiva de civilização brasileira. É com esse ponto de vista que irá se desenvolver a argumentação do primeiro capítulo de Raça como questão. Foi no século XIX que essa ideia ganhou maior expressividade, tendo como apoio teórico “os determinismos climáticos e raciais”, bem como “a ideia de evolução”.4 Tanto o meio físico quanto a raça se tornaram elementos importantes para o cientificismo determinista, que defendia não somente as diferenças entre os povos, mas, sobretudo a hierarquia entre eles. Como informam os autores do texto em apreço:

Assim, a suposta hierarquia racial entre os homens era tomada como expressão de um movimento evolutivo da espécie humana, evolução essa definida pela sobrevivência dos mais aptos e que explicaria o porquê da expansão europeia em todo o globo terrestre e seu domínio sobre outros povos.5

Nesse sentido, Jear de Sousa Ramos e Marcos Chor compreendem que a noção de clima e raça migra do âmbito da ciência para as relações políticas, que, naquela época, reconfiguravam-se a partir do olhar que os europeus tinham, principalmente, sobre a América. A partir daí, criou-se uma imagem pejorativa do Brasil, cuja argumentação principal estava na “população atrasada em termos evolutivos”.6 Entretanto, o texto problematiza a questão, quando põe em evidência os motivos pelos quais as ideias evolucionistas europeias “tiveram ampla aceitação entre intelectuais e políticos latino-americanos”, cuja resposta a essa questão se encontra nas “relações entre centro e periferia desenvolvidas entre Europa e América Latina”.7

Foi durante a Independência do Brasil que “as teorias raciais vão ganhar importância”, devido ao objetivo do país de estabelecer-se como uma nação civilizada, com povo homogêneo. Com a República, encontra-se um espaço mais favorável às teorias deterministas, haja vista que ela “motivou o aparecimento de um novo conjunto de representações sobre a identidade brasileira”.8

Com objetivo de compreender melhor a maneira pela qual os intelectuais brasileiros lidavam com essa questão, os autores discutem o pensamento de três escritores da segunda metade do século XIX e início do século XX, quer seja Sílvio Romero, Raimundo Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Estes intelectuais, embora tenham dialogado com as teorias raciais europeias, interpretaram cada um a seu modo, o Brasil da época como um lócus onde seria possível um avanço social e político, no sentido de nação civilizada.

No segundo capítulo de Raça como questão, intitulado “Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil”, propõe-se uma interpretação diferente da que Sidney Chalhoub desenvolve sobre o pensamento higienista do século XIX. Este no capítulo “Febre Amarela”, do livro Cidade febril (1996), defende o ponto de vista que, durante o combate à febre amarela nos séculos XIX e XX, havia uma postura racista e de classe social. Diferentemente, Marcos Chor Maio não concebe determinismo racial, mas uma “continuidade com o ideário neo-hipocrático do século XIX no Brasil”.9

Contextualizando os argumentos históricos de Chalhoub, Marcos Chor mostra-nos que, ao lado da defesa do branqueamento a favor de uma classe privilegiada, havia um conjunto diversificado de ideias que giravam em torno da questão social. Nem todos os intelectuais defendiam a mestiçagem como degenerescência e o branqueamento como a única solução para o progresso do Brasil. Para concluir seu ponto de vista, o autor cita Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freire, em que vê influência do neo-hipocratismo de Cruz Jobim.

Em “Mestiçagem, Degeneração e a Viabilidade de uma Nação”, Ricardo Ventura Santos analisa as investigações feitas por Baptista Lacerda (final do século XIX) e Roquette-Pinto. Ambos, segundo Ventura, posicionam-se favoravelmente à noção de uma mestiçagem não degenerativa. O que importa no debate sobre a questão racial posta em evidência é, sobretudo, a ambientação, o contexto e as condições sociais. O texto de Ricardo Ventura é significativo, pois revela certos intelectuais brasileiros que, não obstante dialogarem com as ideias evolucionistas em voga na época, souberam impor sua autonomia intelectual, numa tentativa de interpretar melhor a nação brasileira. O autor, enfim, desloca a postura bipolar dos fatos para alcançar uma visão mais próxima da complexa realidade.

Continuando o assunto sobre Antropologia no Museu Nacional, o capítulo quatro, de Raça como questão, “Crânios, Corpos e Medidas”, trata de refletir sobre o impacto e a projeção que as pesquisas desenvolvidas no Setor de Antropologia Biológica tiveram no contexto social e histórico brasileiro. A partir de estudos de instrumentos de medição de crânios, percebe-se um conjunto de teorias postas em prática com a finalidade de compreender a moral humana, levando em consideração elementos físicos e biológicos das raças.

Desde a década de 1950, os equipamentos de medição foram transformados em peças do Museu Nacional, mas continuam a representar o pensamento de intelectuais brasileiros que buscaram uma explicação antropológica para a população brasileira, numa certa época e contexto. Decerto, o capítulo em apreço busca despertar o leitor para a dinâmica da interpretação e dos conceitos sobre a realidade histórica.

Outro interessante capítulo é o “Estoque Semita: a presença dos judeus em Casa-Grande & Senzala”, de Marcos Chor Maio. Trata-se de uma releitura da obra de Gilberto Freyre, focalizando a presença “positiva dos judeus ao processo de colonização do Brasil”, em contrapartida com a “ideia que concebe a existência de uma proposta antissemita na obra do sociólogo pernambucano”.10

Com essa interpretação acerca das ideias freyreanas, que relacionam raça e cultura, Marcos Chor redimensiona Casa-Grande & Senzala no debate sobre a questão racial no Brasil. Atribui à referida obra certa importância e novo significado para o pensamento brasileiro, cuja projeção vem se tornando internacional. Observando o diálogo com as ideias de Roquette-Pinto, com a vertente culturalista de Franz Boas e com a perspectiva neolamarckiana, Marcos Chor analisa o avanço de Casa-Grande & Senzala a respeito das questões raciais no Brasil. No cerne dessa análise, está o judeu que contribui para a miscigenação do povo brasileiro. Sem desconsiderar os elementos culturais e ambientais, Gilberto Freyre põe em evidência conceitos chaves para o entendimento sobre os portugueses em “incorporar características de outros povos: adaptação, plasticidade e mobilidade”.11

Em “Cientificismo e Antirracismo no Pós-2ª Guerra Mundial”, Marcos Chor e Ricardo Ventura analisam a Primeira Declaração sobre Raça da Unesco e seus impactos para a comunidade científica, em 1950. A Unesco, com a intenção de resolver a problemática ocasionada pelo genocídio nazista, defendeu uma postura antirracista em tal declaração. Procura, pois, resolver um problema político e social, através da ciência. Por conta dessa abordagem cientificista, a Unesco sofreu severas críticas de biólogos, geneticistas e antropólogos físicos, o que a forçou a organizar um segundo encontro com especialistas. A fragilidade maior do discurso da Unesco, segundo os autores deste artigo, estava na controvérsia sobre o conceito de raça. As considerações acerca da declaração da Unesco são importantes, porque revelam não somente uma tentativa política por intermédio da ciência, mas sobretudo nos mostra que a problemática racial é mais complexa do que se pensava naquele momento.

Em seguida, o sétimo capítulo, cujo título é “Antropologia, Raça e os Dilemas das Identidades na Era da Genômica”, traz a discussão sobre raça, identidade, ciência e política para o contexto do início do século XXI. Constatou-se que, a partir de críticas feitas por grupos diferentes às pesquisas geneticistas realizadas sobre a população de Queixadinha, localidade ao norte de Minas Gerais, a complexa relação entre o conhecimento biológico e as políticas sociais ainda não esta devidamente compreendida. Ricardo Ventura e Marcos Chor, por isso, lançam uma série de questionamentos a fim de problematizar o modo como à construção de identidades culturais é observada tanto pela ciência como por grupos sociais que objetivam um lugar na sociedade.

A construção argumentativa desse capítulo resguarda a mesma imparcialidade e clareza dos textos anteriores de Raça como questão. Apresentam e contextualizam a temática. Depois, relatam o fato e o seu impacto para a sociedade. Finalmente, analisam temas antropológicos numa relação conflituosa com a biologia e a política. No caso do presente capítulo, são aprofundadas as discussões sobre o papel da “nova genética” e as políticas sociais acerca das questões de raça, no contexto atual. Integram esse debate temas como essencialismo, racismo, racialismo e identidade.

“No Fio da Navalha: raça, genética e identidades”, continuam a discussão a respeito das identidades raciais no contexto contemporâneo. Entretanto, o corpus agora se trata de um comercial de testes genéticos na Internet. Compreender até que ponto a biotecnologia e a utilização de testes de DNA interferem nas novas descobertas e quais são os seus impactos sociais e políticos hoje é a preocupação da análise feita pelos autores.

Nesse capítulo, depreende-se da conclusão dos autores o importante papel mediador da biotecnologia em “situações [que] nos falam de encontros, tensões e distanciamentos de pessoas consigo mesmas e com outras de seu entorno”,12 ou seja, as pessoas buscam se entender a partir de certa identidade, que se evidencia não só pelas semelhanças, mas também pelas diferenças. Isso fica percebido tanto no apelo comercial do site da empresa como na procura significativa de pessoas pelo serviço oferecido: o teste de ancestralidade genômica. Os resultados desse exame são, segundo os autores, “racializados e etnicizados, tendo como pano de fundo dinâmicas identitárias particulares”,13 bem como culturais e políticas.

No capítulo nove, “A Cor dos Ossos”, Verlan Valle Gaspar Neto e Ricardo Ventura Santos apresentam um texto repleto de reflexões em torno de “Luzia”, crânio de uma mulher achado em Minas Gerais, com mais ou menos 11.500 anos. Os discursos e representações criados sobre essa peça pré-histórica revelam, a partir de apropriações das descobertas científicas, toda uma questão sócio-histórica e política. Os autores, para comprovar seu ponto de vista, lançam mão de quatro exemplos que veicularam na imprensa, em livros didáticos e na Internet. Analisando-os, observaram neles a tentativa de ressignificação do conceito de racialização, para uma nova configuração no plano social e político.

Em volta da reconstituição subjetiva da face de Luzia, feita com argila por cientistas ingleses, cria-se no Brasil um complexo simbólico, de acordo com o texto em apreço. Na verdade, Gaspar Neto e Ricardo Ventura nos chamam atenção para a relatividade e a apropriação dos conceitos, à medida que a dinâmica histórica nos descortina um novo contexto.

No capítulo “Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os Usos da Antropologia”, Marcos Chor e Ricardo Ventura discutem e analisam o significado de um evento de expansão das políticas públicas de teor racial. Trata-se da vinculação do sistema de cotas raciais para o vestibular na Universidade de Brasília. Nesse evento, segundo os autores, há relação entre história, antropologia e problemas contemporâneos. Logo na introdução, o texto adverte sobre o modo como a UnB procedeu no processo de seleção para pessoas negras. O critério utilizado se assemelhou às práticas comuns entre o final do século XIX e o começo do século XX. As ferramentas podem ser outras, mas a essência é a mesma: a identificação de “negros com base em características físicas como a cor da pele, textura do cabelo e formato do nariz”.14

Justamente por ter o objetivo de retratar uma injustiça histórica e social com os afrodescendentes brasileiros, a maneira como foi conduzido o processo de cotas na UnB revela-se contraditório. Para fundamentar, portanto, a análise a esse respeito, Marcos Chor e Ricardo Ventura afirmam que “é necessário historiar a atuação dos diversos agentes e agências (…) envolvidos nesse processo”.15 Não se trata, entretanto, apenas de relatar a contradição abrupta entre o programa político-social e os procedimentos usados no processo seletivo. O importante, nesse sentido, é compreender de que forma a política de cotas raciais para o ingresso no ensino superior irá impactar na discussão mais ampla e na efetivação de políticas de ação afirmativa, no contexto atual do Brasil. Esse fato, concluem nossos autores, possibilitou uma forte tensão no seio da antropologia contemporânea.

Finalmente, no último capítulo de Raça como questão, “Política Social com Recorte Racial no Brasil”, Marcos Chor Maio e Simone Monteiro analisam a relação entre raça e saúde. Para tanto, abordam o modo como estão sendo implementadas as medidas do Sistema Único de Saúde (SUS) especificamente para pessoas consideradas “negras”. A partir da contextualização e discussão desse processo, que vem sendo colocado em prática desde o final de 1990, o texto mostra que raça representa tanto um mecanismo para evidenciar as desigualdades sociais, como também “um instrumento político de superação das iniquidades históricas existentes no Brasil”.16

Devidamente contextualizada, a temática se desenvolve de maneira a suscitar no leitor uma reflexão sobre o papel positivo dessas ações racializadas no setor da saúde pública no Brasil. Depois da leitura dos capítulos anteriores, compreende-se melhor que o significado da política de saúde para a população negra é apenas mais uma estratégia de política pública, cuja finalidade é a afirmação social. Entretanto, a forma como se operacionalizam as ações é equivocada. Isso se deve ao fato “da existência de concepções variadas sobre o passado e o presente da nação, assim como de distintas visões sobre a identidade cultural do país”.17 Apesar de os autores não negarem, na conclusão, que a reforma da Saúde significa um avanço importante para “segmentos com expressiva presença de negros”,18 advertem-nos que é preciso pensar sobre as consequências de um processo cujas categorias são conceitualizadas pelos próprios opressores.

Ao concluir os onze capítulos que integram o livro Raça como questão, o leitor atento depreende, entre outras coisas, a preocupação dos autores em refletir e compreender o processo histórico que envolve o entendimento de raça, sobretudo, por partes setoriais da sociedade brasileira, tais como intelectuais, mídia, ONGs, programas governamentais, desde o final do século XIX até a atualidade. Percebe-se, também, que há, no conjunto dos textos, o diálogo com as dimensões da realidade histórica: a economia, a política, o cotidiano, o cultural e o biológico, entre outros. Esses elementos fortalecem o argumento analítico que dá sustentação teórica ao livro, sem cair em abstrações universalistas.

Portanto, Raça como questão trata de trabalhar em torno de categorias históricas tais como identidade cultural, raça, mestiçagem, políticas públicas no Brasil, e seus impactos representativos para a sociedade. Os autores abordam essas categorias não de maneira isoladas ou estagnadas, mas buscam observá-las em suas historicidades e em suas temporalidades.

Notas

1 MAIO, Marcos Chor (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010, p. 22.

2 Idem, p. 9.

3 Idem, p. 27.

4 Idem, p. 28.

5 Idem, p. 30.

6 Idem, p. 31.

7 Idem, p. 33.

8 Idem, p. 34.

9 Idem, p. 55.

10 Idem, p. 130.

11 Idem, p. 135.

12 Idem, p. 200.

13 Idem, p. 213.

14 Idem, p. 255.

15 Idem, p. 257.

16 Idem, p. 287.

17 Idem, p. 288.

18 Idem, p. 310.

José Wellington Dias Soares – Professor assistente do curso de letras da FECLESC/UECE e doutorando em história pela UFMG. wellitonds@yahoo.com.br


MAIO, Marcos Chor (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010. Resenha de: SOARES, José Wellington Dias. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.19, p.84-91, ago./dez., 2011. Acessar publicação original. [IF].

Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo – BICUDO (CP)

BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo. Edição organizada por Marcos Chor Maio. São Paulo, Editora Sociologia e Política, 2010. Resenha de: ALMEIDA, Tânia Mara Campos. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 36, Jan./Jun. 2011.

Ouvi falar da dissertação de mestrado de Virgínia Leone Bicudo, Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (1945), pelo organizador da sua edição recente, Marcos Chor Maio (FIOCRUZ e CNPq), pouco antes de seu lançamento em novembro de 2010 – ocasião do centenário de nascimento da autora. O entusiasmo de suas palavras me levou a lhe perguntar sobre o ganho teórico e político do resgate dessa obra, no sentido de mensurar seu possível impacto no meio acadêmico e entre movimentos sociais. Ao me responder, Maio apontou vários dos seus aspectos produtivos no contexto atual, mas minha curiosidade em conhecer o material e identificar esses e outros aspectos persistiu até ter em mãos um exemplar dessa edição, que possui apresentação de Rodrigo Almeida (Editora Sociologia e Política), prefácio de Elide Bastos (UNICAMP), introdução do organizador e contracapa com elogios de destacados nomes das Ciências Sociais e Psicanálise.

Apresento nesta resenha, portanto, respostas à minha pergunta. De saída, ressalto ensinamentos de Virgínia Bicudo que poderiam ser transpostos para o esclarecimento de que minhas considerações resultam do diálogo com comentários anteriores, bem como da minha trajetória pessoal e de cientista social. Minha leitura está atravessada por outras interpretações e a elas concatenada. Em paralelo, nota-se a construção do objeto da dissertação (atitudes de indivíduos de cor referentes ao preto, mulato e branco em São Paulo), entretecida no cruzamento de tradições disciplinares, dimensões subjetiva e social do fenômeno, relações intra e intergrupos, articulação entre raça e classe, grupos distintos de dados, enfim, no esforço constante de triangulação teórico-metodológica.

Por intermédio das argumentações de Bicudo, faz-se presente o pensamento de Park (1931) sobre conflito cultural e formação da identidade, numa junção entre Antropologia, Sociologia e Psicologia Social pela Escola de Chicago. A ele se vinculam Stonequist (1937), com atenção voltada para pessoas divididas entre diferentes mundos sociais, Faris (1937), com interesse por atitudes sociais, Pierson (1942), com tese orientada por Park e que, por sua vez, orientou Oracy Nogueira e Virgínia Bicudo. Ambos, colegas de turma, inspiraram-se mutuamente e tiveram grande afinidade no tratamento da questão racial, chegando a resultados distintos de Pierson. Enquanto este privilegiava o preconceito de classe, aqueles afirmavam que a ascensão social não apagava as distâncias das marcas de cor.

Também, por meio da dissertação falam negros e pardos de bairros populares e médios paulistanos, pertencentes à classe social denominada inferior (trabalhadoras domésticas, serventes, motoristas e operários, analfabetos ou com curso primário) e à classe intermediária (profissionais liberais e funcionários públicos, com, no mínimo, o secundário). Esse conjunto de depoimentos, organizados por grupos de cor em interseção com classe, constitui parte do material empírico da investigação. Além dele, são encontrados relatos de ex-militantes da Frente Negra Brasileira, organização política da década de 1930, bem como textos do seu jornal Voz da Raça.

Por fim, de modo indireto, comparecem no estudo pessoas de “não cor”. O reconhecimento de que o sentimento de inferioridade dos pretos e mulatos advém das atitudes dos brancos, trazendo-os para suas conclusões, ainda que não os tenha entrevistado, mostra como Bicudo atentava-se à dimensão dialógica e de conflito embutida nos discursos dos/as entrevistados/as e na posição de subalternidade que ocupavam no quadro geral das relações raciais. Assim, ela anuncia a importância de se retirar o problema da marginalidade desses grupos de si mesmos.

Se conseguíamos definir os mecanismos psicológicos pelos quais os indivíduos se ajustavam, éramos forçados a depreender em função de que condições se estabeleciam. Parece-nos legítima a possibilidade de conhecerem-se até certo ponto as atitudes raciais de um grupo étnico, através das reações de outro grupo com o qual interaja. Fomos, pois, conduzidos a formular hipóteses sobre as imposições sociais decorrentes da estrutura social, o que equivale a dizer que também procuramos nas atitudes de pretos e mulatos o reflexo da atitude dos brancos (Bicudo, 2010:157).

A sensibilidade na escolha desse tema de pesquisa, que foi pioneiro dentre as dissertações de universidades brasileiras sobre a questão racial, e a competência em lhe oferecer complexo tratamento empírico e analítico só foram possíveis a partir do lugar existencial de Bicudo. Segundo o organizador da obra, ela era uma mulher parda paulistana. Filha de mãe imigrante italiana pobre, com negro possuidor de educação secundária e do desejo frustrado, por preconceito racial, de tornar-se médico, terminando a vida como funcionário dos Correios. Seu pai era afilhado de fazendeiro, senador e fundador do jornal O Estado de São Paulo, de quem herdou o sobrenome Bicudo. Virgínia formou-se normalista e fez o curso de educadores sanitários, sendo contratada pelo Serviço Escolar do Departamento de Educação. Em 1936, iniciou a graduação em Ciências Políticas e Sociais da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) – instituição vinculada à USP à época. Por ocasião do bacharelado conheceu Durval Marcondes, médico e psicanalista, que implantou o Serviço de Higiene Mental Escolar estadual em 1938, quando Bicudo tornou-se visitadora psiquiátrica. Nos anos 40, começou a ministrar as disciplinas Higiene Mental e Psicanálise na ELSP e ingressou na sua primeira turma de mestrado. Assim, iniciou uma carreira de protagonista no campo da Saúde, Ciências Sociais e Psicanálise. Seu percurso foi peculiar e grandioso face aos resultados de sua própria pesquisa, os quais mostram a discriminação ceifadora da mobilidade social e realização pessoal.

Quanto mais subimos nas classes sociais, tanto mais aumenta a consciência de cor e tanto maior o esforço despendido para compensar o sentimento de inferioridade. Ao mesmo tempo em que se empenham em desenvolver valores pessoais, para eliminar a concepção desfavorável, procuram a autoafirmação na conquista da aceitação incondicional por parte do branco. Consequentemente resulta uma luta por status social mais árdua, dadas as barreiras das distâncias sociais na linha de cor. (…) obtêm ascensão social os indivíduos de cor dotados de inteligência e que desde a infância tiveram estímulos sociais nos contatos primários com brancos. Entretanto, a ascensão ocupacional não confere ao preto o mesmo status social do branco, consideradas as restrições demarcadas na linha de cor, ao passo que o mulato garante sua inclusão no grupo dominante, embora em sua personalidade permaneçam as conseqüências do conflito mental (Bicudo, 2010:160).

A revelação clara de sua “consciência de cor”, expressão empregada por Virgínia para designar o grau de discernimento dos sujeitos em relação à participação de suas características afrodescendentes nas interações, circuitos sociais e conflitos psíquicos, encontra-se no seu trabalho e nas motivações para desenvolvê-lo. Nas primeiras páginas, ela afirma ter estado atenta ao elo com os/as entrevistados/as. Quanto a si, procurou estar ciente das questões pessoais que lhe conduziram à investigação, bem como das suas atitudes sobre o objeto para que tivesse autocrítica, limitando suas projeções nas entrevistas e análises. Quanto aos sujeitos abordados, procurou estabelecer condições psicoafetivas favoráveis à livre expressão. Esse cuidado com os processos de transferência e contratransferência, tendo em conta sua consciência de cor e da posição de autoridade profissional diante dos sujeitos interpelados, sugere influência psicanalítica no entendimento sobre a formação do vínculo e aguçado tato para lidar com fenômeno tão íntimo. Porém, ter criado um ambiente favorável à expressão não se deveu apenas ao domínio de técnicas de abordagem, como também profunda empatia com o outro. Além disso, a explicitação desse cuidado sugere a necessidade em defender-se, de antemão, de acusações de falta de objetividade e neutralidade científicas sob o crivo avaliador positivista.

Sua trajetória pessoal seria facilmente incorporada aos casos da dissertação, enquanto mulher mulata, pertencente aos estratos da classe social baixa na infância e em ascensão à classe intermediária na idade adulta. Ela quebrou barreiras raciais e sociais em diversos momentos da vida e encontrou no exercício intelectual um caminho para elaborar suas experiências traumáticas. Maio (2010a, 2010b) relata que Virgínia mencionou o sofrimento como um motivo de sua opção pelas Ciências Sociais na ELSP, uma vez que lá se estudava o problema do negro e se acolhia estudantes não elitistas. Esperava descobrir causas e meios de lidar com sua dor, que compreendia como originada nos intercursos sócio-culturais. Há registros em que diz ter sido vista ofensivamente como negrinha pobre quando pequena e, após ter crescido, como mulher emancipada – haja vista que era a única mulher na primeira turma de Sociologia e Política da ELSP, em 1938. Seu processo de branqueamento foi notório. Seus traços afrodescendentes foram minimizados desde as mudanças sócio-econômicas do pai, passando pela sua instrução e ocupação, até sua aparência. Seu sofrimento deslocou-se da cor e centrou-se na condição de mulher inadequada a espaços físicos e simbólicos.

O que se poderia denominar de “consciência de gênero” de Bicudo, nos parâmetros da “consciência de cor”, não aparece formulado em seu estudo. A condição de gênero não foi problematizada, nem em relação a si nem em relação às mulheres entrevistadas. Essas aparecem em número de 17, frente a 31 casos expostos. São majoritariamente negras e mulatas das classes sociais inferiores, enquanto os homens se concentram nas classes intermediárias. Tal distribuição dos/as entrevistados/as confirma os antecedentes históricos da atual presença de negras e pardas nas camadas mais pobres e de menor escolaridade do país. Enquanto as mulheres enunciam curtas respostas à pesquisadora, homens se estendem em longas reflexões, reafirmando também a tradição patriarcal de que eles detêm a palavra. Esse cruzamento de classe, raça e gênero não fez parte dos objetivos da autora, nem foi sinalizado. Contudo, algumas pontuações a respeito podem ser feitas.

Primeiramente, Bicudo identificou a preferência de negros e mulatos de se casarem com mulheres cujos traços fossem mais claros que os seus. Em contraposição, as negras e mulatas casavam-se com consortes da mesma cor ou mais escuros, para não sentirem rejeição ou, entre as pardas, não serem chamadas de “negras” pelo marido ou suas famílias. Contudo, com pouquíssima viabilidade, várias dessas desejavam os brancos. A dinâmica matrimonial aponta para tramas veladas da discriminação, uma vez que os homens subalternos, para se identificarem, se aliarem imaginariamente com os dominantes e ascenderem na hierarquia social, reeditavam com as afrodescententes a relação de poder a que eram submetidos. Logo, essas mulheres estavam (e ainda estão) em situação pior que a dos homens de cor e das brancas, fadadas a amargar as mais baixas posições numa estrutura social que conjuga racismo com sexismo.

Em segundo lugar, ressalta-se que seis dos sete casos dos negros de classe inferior são mulheres, face à totalidade de homens nos casos dos negros intermediários. Atravessa os grupos uma forte questão de gênero. A análise de Bicudo indica maior simpatia do primeiro grupo, o das mulheres, aos brancos, já que se viam tratadas melhor por estes que pelos negros e mulatos. Essas atitudes se fundamentariam no sentimento de inferioridade do grupo. Ao perceberem os contatos com brancos mais harmoniosos, as negras responderiam a um mecanismo de evitação do conflito com eles, compensando a subalternidade e acabando por ter baixa consciência de cor.

Ao se introduzir a questão de gênero, pode-se supor outras chaves interpretativas, relativizando a auto-rejeição associada a esse grupo, a qual seria a mais alta dos grupos estudados. Ou seja, elas possuiriam conflitos com negros e mulatos por vivenciarem realmente violenta discriminação advinda deles, uma vez que representariam a alteridade de dentro, aquela parte de si mesmos por eles abominada. Só que é com elas que partilhariam relações comunitárias e sobre a inferiorização delas é que galgariam degraus na escalada do poder. Já, para os brancos, as negras pobres representariam uma alteridade distante, menos ameaçadora, fora da possibilidade de interações afetivas e sociais próximas, o que lhes proporcionaria contatos amenos.

As discussões sociológicas dos anos 1940 mal concebiam a diferença de cor fundadora da desigualdade social (o que acentua o mérito de Bicudo em tratar do assunto), muito menos vislumbravam a inclusão da diferença sexual na pauta. Apenas no fim da década, intelectuais e feministas problematizaram sistematicamente tais questões e criticaram as teorias vigentes nos meios acadêmicos. Estas eram psicanalíticas e, obviamente, Bicudo as conhecia. Grosso modo, dizia-se que o psiquismo, atrelado ao corpo feminino, talhava as mulheres à maternidade, às atividades domésticas e pouco intelectuais, bem como lhes imputava a auto-desvalorização e vitimização. Interessante como Bicudo não se rendeu a argumentos dessa natureza para explicar as atitudes das negras de classe inferior, generalizando o grupo para ambos os gêneros. Qualquer determinismo, psíquico ou biológico, na análise dos dados lhes retiraria o peso sócio-cultural, impossibilitando reflexões psicossociais ao dilema racial.

Ao se jogar luz sobre a condição de gênero de Bicudo, juntamente com os resultados de sua pesquisa, nota-se que sua audácia era enorme e que, provavelmente, corria risco constante de ser desautorizada. Afinal, a academia se erigiu em base androcêntrica, branca e européia/norte-americana. Como ela poderia trazer à tona sua identidade de gênero nos loci da produção de conhecimento, onde se excluíam mulheres e afrodescendentes? Onde ideias eram pensadas por sujeitos considerados sem história, sem classe ou qualquer marca social, assim como ideias eram tidas fidedignas da realidade e, não, formuladas a partir de pontos de vista? Provavelmente, sua consciência de gênero (somada à de cor) a levou a estratégias de acomodação frente à discriminação. Expor-se mulher ou tratar dessa questão colocaria a perder o árduo trabalho que já se mostrava à margem das referências intelectuais da época.

Talvez por ter rompido com o mito da democracia racial, que concebia equilíbrio social entre as raças formadoras do povo brasileiro, bem como com as proposições sobre o preconceito de cor estar subsumido ao de classe, seu estudo tenha tido circulação restrita. Suas considerações, embora exploratórias e passíveis de revisões, anteciparam interpretações sobre relações raciais no país nas décadas seguintes e ficaram silenciadas em período mais recente. Hoje, seu resgate contribui para se refazer a história das Ciências Sociais, do pensamento social e das mulheres afrodescendentes no Brasil. A recente reedição de sua dissertação, portanto, é louvável diante do grande valor do seu conteúdo e de sua autora.

Referências

Bicudo, Virgínia L. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Edição organizada por Maio, Marcos C. São Paulo, Sociologia e Política, 2010.         [ Links ]

Faris, Ellsworth. The Nature of Human Nature, and other Essays in Social Psycology. New York, McGraw-Hill, 1957.         [ Links ]

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Tânia Mara Campos Almeida – Professora do Departamento de Sociologia – UnB, E-mail: taniamaraca@unb.br.

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Raça/ciência e sociedade | Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos

Se compreendermos antropologia justamente como o estudo de raça, ciência e sociedade, a antropologia brasileira o que, apesar do que possam dizer teóricos de várias orientações, teria como marco inicial certo artigo do naturalista alemão Karl von Martius, publicado em 1845 no Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, “no qual argumentava que, para se escrever a história do Brasil, era premente abordar as características cias três raças que o compunham” (p. 9). Para o estudo desse e de outros marcos iniciais está voltado o artigo que abre o livro em questão, a cargo de John Manuel Monteiro, As raças indígenas no pensamento brasileiro do Império’ (pp. 15-22). Destaquemos a atuação cie João Baptista de Lacerda Filho (1882, pp. 6-7, 20), várias vezes mencionado neste artigo e no de Giralcla Seyferth, ainda que nenhum antropólogo brasileiro cia atualidade, nem sequer os cio Museu Nacional, no qual trabalhou, o reivindicasse como antepassado intelectual. Através de muitas medições cie crânios e índices cio mesmo naipe, Lacerda chegaria à conclusão de que “o nosso indígena, mesmo civilizado, não poderia produzir a mesma quantidade de trabalho útil, no mesmo tempo que os indivíduos de outras raças, especialmente da raça negra… . Eis aí como de um problema antropológico deduz-se um problema econômico e industrial.” Apesar cia falta de progênie reconhecida deste ilustre pesquisador, muitos laivos de sua teoria vão ser encontrados em Gilberto Freyre e noutros autores de nossas ciências sociais, mais africanófilos que indianófilos. Leia Mais