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A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história – RUST (RTF)
RUST, Leandro Duarte. A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história. Cuiabá: EdUFMT, 2013. Resenha de: MADUREIRA, Natalia Dias. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.
A Reforma Papal (1050-1150), de autoria de Leandro Duarte Rust, carrega já em seu título o prenúncio de um período que foi estudado, comentado, avaliado e reavaliado, mas que, como a obra solidamente nos mostra do começo ao fim, não o foi ao esgotamento. O livro aborda a época comumente considerada como período histórico em quem alguns eclesiásticos de Roma teriam desenvolvido um modelo de governo que colocaria os então gestores do poder laico sob sua jurisdição. E para limitar a atuação de reis e nobres, bem como para submeter os cristãos a essa nova forma de governo, os religiosos teriam criado normas que delimitaram o comportamento dos mesmos nos mais diferentes aspectos sociais, incluindo os âmbitos mais particulares, como a moral e a sexualidade.
Os dois primeiros capítulos, intitulados, respectivamente: A história como re-forma e A história como revolução, – cada um deles construído a partir das argumenta-ções e dos posicionamentos estabelecidos por historiadores que se reconhecem ado-tando tais denominações – apesar de apresentarem duas abordagens já bastante conhecidas no meio historiográfico, são arrematados por Rust de uma maneira que mostra ao leitor que essas não são as duas únicas interpretações possíveis para ex-plicar ou contextualizar o que aconteceu entre os séculos XI e XII. Neste sentido, o autor dissocia a abordagem de um binarismo que recorrentemente assola discussões historiográficas. Aqui o “ou isso ou aquilo” abre espaço para observações mais pontuais, voltadas para realidades específicas, que não podem ser engolidas por com-preensões genéricas e totalizantes. Há que se ressaltar também o exercício feito por Rust de pontuar claramente o caráter Moderno que envolve os escritos e conceitos consagrados a esse período do papado medieval. Exercício que se configura em um elemento de grande auxílio, sobretudo para estudantes há pouco familiarizados com os debates historiográficos. Tal ênfase chama a atenção dos leitores para a necessidade de uma pesquisa minuciosa sobre a própria formação da historiografia, pois, por vezes, elementos como concepções anacrônicas surgem entrelaçados com vocabulários que se estabelecem como hegemônicos e que, por isso, ocultam as formações de estilo e sentido equivalentes à sua própria época: As descrições flicheanas a respeito do desgoverno feudal e de seus efeitos – a crise moral que se abateu sobre a sociedade – remetem ao estilo de Proudhon (…). Que tremenda ironia! O elogio ao governo estatal com-posto por Fliche em sua obra lembra os jogos de palavras de um arauto oitocentista do anarquismo (p.29).
O hoje desgastado conceito de Reforma Gregoriana já foi outrora, a “menina dos olhos” de um sem número de autores, como o francês Augustin Fliche, que, escrevendo sobre o século XI, tornou-se uma espécie de “fundador historiográfico”. Escrevendo no início do século XX, Fliche tentou superar o frequente erro cometi-do por muitos escritores: dissociar todas as conjecturas políticas nas quais se envol-vera Gregório VII, da questão primaria que o levará a propor uma mudança; sua origem e fundamentação religiosa. Todas as contendas, impasses e escândalos, se-gundo o autor, não deviam ser motivos de grande destaque; pois eram peças pontu-ais, inseridas em um mecanismo maior: o desejo de mudança que assomava todos os clérigos reformadores e que ganhou corpo em Roma, sobretudo na pessoa de Gregório VII. Foi sob a égide dessa abordagem que Fliche lançou La Réforme Grégo-rienne, cujo título se naturalizou através das muitas obras que acionaram a expres-são como forma de identificação e periodização de uma fase histórica da igreja e do próprio cristianismo. Contudo, pela forma com a qual o texto de Rust se desdobra, fica explícito que a concepção historiográfica da alçada de Fliche possuía sentidos políticos muito específicos. Leandro Rust nos apresenta os argumentos do medieva-lista francês, intercalando-os com oportunas reflexões e considerações sobre a for-ma como a noção de Reforma Gregoriana foi construída – isto é, expressão historio-gráfica a um pensamento político de matriz autoritária. Outrossim, ele resgata os principais argumentos que compartilham da mesma seara intelectual de Fliche, ad-vindos de outros autores, mostrando assim, conhecimento a respeito da historiografia que envolve a Igreja Romana do século XI. Além disso, Rust apresentar, com rigor e habilidade, a difusão historiográfica que esse tipo de interpretação alcançou. Por fim, reconhece a contribuição dada por Fliche para uma nova forma de se fazer história e credita ao medievalista francês grande relevância em quesitos metodológicos implicados à história religiosa.
Porém, o livro não se restringe às argumentações de Augustin Fliche e seus seguidores. Gerald Tellenbach, medievalista alemão que produziu uma obra crítica sobre o trabalho feito pelo francês é abordado, iniciando o percurso que demonstra as várias revisões sofridas pela Reforma Gregoriana. Tellenbach ampliou as críticas de outro autor de origem germânica, Eric Gaspar, responsável por incorporar as correspondências de Gregório VII aos arquivos da Monumenta Germaniae Historica. Segundo Gaspar, Fliche ignorou uma antiga disputa existente entre “o modelo feudal de igrejas próprias e o episcopal de igrejas autônomas” (p.40), para criar uma lógica de coesão no pensamento religioso do período. Argumentando neste sentido, Tellenbach interperta Gregório VII como um líder que não encontrou na reforma o meio para reagir a um cenário de desordem ou caos, nem política nem moralmente “(…) O historiador alemão encontrou ordem e estabilidade onde Fliche enxergou o desmoronamento quase completo das instituições” (p.41).
Apresentando de maneira bem embasada as vastas discussões sobre as duas correntes historiográficas acerca da realidade sócio-política de meados do século XI, Rust dá mostras de sua preocupação em analisar a produção de conhecimento histórico e submeter ao rigor crítico o sentido contemporâneo das abordagens con-sagradas, abandonando assim, quaisquer possíveis arbitrariedades conceituais.
A trilogia flicheana apelou à história para encontrar uma possibilidade de salvação da ordem pública europeia. Para isso, projetou a história medieval como um precedente da capacidade da Santa Sé de resgatar a sociedade da anarquia e da desordem. Em outras palavras, a Idade Média foi transformada em origem da tradição re-formadora recentemente proclamada por Leão XIII (1810-1903) (p.51).
A ideia de que o caráter revolucionário do ocidente teve início no século XI, justamente com o papa Gregório VII, é outra ideia difundida pelo século XX, mais precisamente pelo alemão Eugen Rosenstock-Huessy, que em 1931 atribuía ao pon-tífice uma personalidade contagiante que inflamou milhares de fiéis e o fez interna-lizar a busca por uma mudança total da vida religiosa. Notoriamente, Rust não se limita a explanar sobre os autores que defendem a abordagem da Revolução Papal – sucessora da noção de Reforma Gregoriana. Mais do que isso, ele prossegue uma lu-cida análise intelectual ao discutir os fundamentos e implicações teóricas de que partiram os autores que posteriormente se inspiraram em tal abordagem teórica para embasarem suas obras. Merece ser destacado o ato de reconhecer e fazer uso de produções que não estão inseridas na familiar cena historiográfica francesa, o que retira o autor de um possível conforto que o trato com o discurso mais tradicionalmente conhecido na historiografia brasileira poderia proporcionar. Além disso, Leandro Duarte Rust tem a louvável capacidade de extrair conteúdo das entrelinhas; de fazer emergir informações que por vezes passam desapercebidas por estarem encobertas por uma névoa de verdades consagradas, de pensamentos considerados sólidos, mas que, precisamente por isso, permitem a identificação do lugar de fala do escritor analisado. Trata-se de uma abordagem que limita à forma dos textos historiográficos, mas que sonda a intencionalidade advinda do discurso empregado: Na superfície das linhas Robert Moore (…) confessava a influência do medievalismo francês. Mas, nas entrelinhas, ocultava um pr-pósito que dominou a historiografia britânica de sua época. Dominou-a e consagrou-a a partir da década de 1960. Difícil lê-lo e não associar sua insistência na multidão/revolução à “história vista de baixo” pelo marxismo inglês (p.73).
Chegando ao fim da segunda parte, o historiador fecha o exercício compa-rativo de maneira bastante clara: Ambas reduzem ao passado a uma unidade taxativa, hermética, negando positividade histórica a grupos e ações sociais que não anunciem a Modernidade industrial. No que diz respeito à socie-dade da época do papa Gregório VII, a busca para restituir as ex-periências possíveis da condição humana, ampliando a complexi-dade da trajetória dos homens no tempo, passa por aceitar a possi-bilidade teórica de que a política papal dos séculos XI e XII não se-ja explicada nem como reforma, nem como revolução. Mas sim, como uma alteridade histórica que parece ainda não ter uma iden-tidade conceitual (p.81).
Leandro Rust constrói a terceira parte de sua obra – como salienta o próprio título As pegadas do sagrado: o político como religiosidade – pautada em uma reflexão sobre as funções políticas que perpassam as questões de religiosidade nas quais o papado se envolveu. A terceira parte consiste no exercício crítico da abordagem tradicional, que mostra os clérigos reformadores do século XI utilizando a religião como uma “régua” para medir a legitimidade de certos comportamentos, como meio de aferição social. Era através dela, que eles, supostamente, pretendiam separar pessoas de acordo com a relação – ou a falta dela – que mantinham com o sagrado. Tradicionalmente, os gregorianos são apresentados como homens investidos da missão de, a partir dessa separação, almejar o controle do profano, de modo a fazer aqueles entregues ao erro religioso se redimirem e se voltarem para Deus. No capítulo em questão essa relação com o sagrado é abordada sob outro prisma. Rust recorre ao pensamento durkheimiano para demonstrar que como a memória sagra-da criada em torno da trajetória de Hildebrando de Soana, posteriormente Gregório VII, consistia em uma narrativa coberta de episódios que atestavam as fragilidades, as tensões e as contradições da experiência religiosa romana.1 Hildebrando fazia uso da posição por ele ocupada e do seu invólucro de sacralidade como resposta à realidade política que o circundava. Rust demonstra, assim, como as atitudes religiosas do líder símbolo da Igreja de Roma eram mutá-veis, problematizando, assim, a coerência e a coesão ideológicas exaltadas pelos conceitos de Reforma Gregoriana e Revolução Papal como uma memória elaborada por séquito e aliados.
Na parte IV do livro, A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade, Rust apresenta uma rede de evidências, muito bem entrelaçadas, sobre a criação de uma cultura da escrita à qual, sobretudo – conscientemente – os clérigos perpetuavam e usufruíam a partir de sua posição de homens letrados singulares. Essa cultura, se-gundo a historiografia, teria contribuído para o surgimento de uma atmosfera jurí-dica que não mais se pautava em leis orais, e sim, tinha no conteúdo dos papéis, seu respaldo. Contudo, o autor alerta para a dicotomia existente nessa valorização da “cultura da escrita” perante o poder das tradições orais. Tomando como exem-plo uma carta escrita por Gregório VII quando da época de sua deposição, mostra como as duas formas de aplicações jurídicas – a oral e a escrita, aparentemente opostas – se fundem para construir a lógica de ação do religioso. Rust traz ao conhecimento do leitor outros episódios em que demonstram a presença de elementos de oralidade, usados no tempo presente dos envolvidos, ou seja, sem precedentes, sem embasamentos jurídicos formais.
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo, quinta parte do livro, se presta à formulação de uma bem fundamentada crítica às restrições dos historia-dores impostas por limites geográficos, que acabam por engessar os trabalhos em uma única perspectiva social. Neste caso, o texto se dedica à crítica a respeito dos modos de abordar a figura do antipapa Gregório VIII. Para isso, o autor restitui à abordagem dominando ao seu fundamento teórico: o pensamento hegeliano e sua interface com os sentidos nacionalistas da escrita da história. Neste sentido, fica evidenciado como a historiografia produz formas de memória – como a que condenou severamente o antipapa.
Por fim, concluo esta resenha oferecendo um balanço crítico juntamente com a última parte da obra, que tem como título O sentimento político: linguagem e poder. Apesar de todos os capítulos estarem interligados quanto à proposta do título, formando um contínuo exercício de crítica historiográfica; cada um possibilita um estudo em separado devido à forma como o autor abordou os assuntos retratados. Remetendo ao contexto que envolveu a ascensão de Hildebrando de Soana ao trono papal e às conhecidas mudanças provenientes de seu envolvimento com a realidade eclesiástica, Rust apresenta, neste capítulo, uma análise de semântica histórica: a noção de desejo como meio de formação e constituição de uma consciência dos partidários do papado a respeito das relações de autoridade. Recorrendo à noção de teologia política, o autor demonstra como as relações de obediência e desobediência ganhavam sentido através de uma “retórica sobre o desejo”. No entanto, o exercício de análise proporciona um fechamento à principal ênfase do livro: a crítica a respeito dos sentidos e lugares intelectuais que dão voz às abordagens historiográficas vigentes sobre a Reforma Papal. Ao chamar atenção para esse fato, Rust faz refletir sobre o ofício de historiador e questionar de onde herdamos as formas do fazer histórico.
1 Para a mitologia gregoriana ver: HUDDY, Mary. Matilda, Countess of Tuscany, Londres: Jonh Long, 1906.
Natalia Dias Madureira – Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em História Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2367 – Bairro Boa Esperança – Cuiabá – MT – 78060-900 E-mail: nataliamadureira@hotmail.com.